Um Remédio para o Lobisomem
"Os lobos são a imagem da nossa alma no espelho" Edson Ferreira Sampaio
O medibruxo chega silenciosamente e examina Remus, demonstrando um ar melhor do que o de manhã. Já não precisa fazer palhaçadas para ter toda a atenção dele, pois Remus está bem lúcido,o suficiente para me lançar um olhar de esguelha, mas não há nada que me faça sair da sala. Não até Theodorus terminar de examinar a coluna de Remus.
- Pelo que vejo, está tudo bem por aqui. Muito, muito bom.
- Boa tarde, Theodorus.
- Ah, boa tarde, Snape. Vejo que não o deixou sozinho, mesmo.
Nem com um bando de trolls em debandada e eu sem varinha o deixaria, velhote, saiba disso.
- Ele não deve ficar só, nem por um minuto.
- Sim... Dumbledore já lhe passou as diretrizes ?
- Não, como bemdeve ter observado, eu também estava descansando, depois de passar a noite em ronda em uma companhia que me manteve bem desperto.
- Imagino.Suas rondas são... diferentes.
Diferentes... o medibruxo achou a palavra exata. Tudo em Severus é diferente. Será por isso que eu preciso tanto da presença dele ? Somos os dois diferentes, apenas, e eu estou confundindo tudo ? Achando que é... amor quando na verdade é apenas reconhecimento da solidão entre iguais?
- Sempre. Vou falar com Dumbledore, o tempo é curto.
Sigo com os olhos o bailado das capas negras de Severus ao levantar-se ...são como as últimas folhas de outono agarrando-se às esperanças de poderem continuar vivas... por quanto tempo não importa, apenas estarem vivas um pouco mais... e mais... e mais... Mas agora é hora de ter respostas.
- Ele vai passar a noite comigo, não é Theodorus ?
- Eu mesmo preferiria passar, Lupin, mas Dumbledore acha melhor que seja ele.
- Todos estão loucos ! Vocês não sabem o que é a fera da Lua Azul, não sabem...é só me trancar lá embaixo, eu ficarei bem.
- Não, Lupin, não dessa vez. A concussão foi muito séria, e o trauma foi... complicado em sua coluna. Temo que se o lobo estiver muito agitado, você precise de... cuidados.
- Mas...
- Mesmo durante a transformação, talvez você precise de cuidados. E imediatos.
- Ele não permitirá que ninguém se aproxime.
- Nem Severus, Lupin ?
Sou tão transparente assim, caro Doutor ?
- Eu...temo que ele o machuque.
- Não acredito nisso.
- Eu queria ter essa certeza.
- Ele estará bem protegido... e você imóvel.
- Quem ficará a noite toda fazendo feitiços de imobilidade, caro Theodorus, já pensou nisso ?
- Porisso Severus é mais indicado que eu, Remus. Teria outro motivo além do conhecimento... diferente dele ?
Arte das Trevas... Sim, somente um bom Oclumente praticante de Artes das Trevas conseguiria fazê-lo. Dumbledore era brilhante, ele tinha de admitir. Só esperava que o Lobo entendesse.
- Não. Nenhum outro motivo.
- Como eu supunha : Severus é a melhor escolha, a mais lógica, qualquer um percebe. Vamos, tome isso aqui. Vai se sentir melhor. Eu sei que o gosto é amargo, mas o resultado é muito bom. E depois tem de tomar a Mata-Cão.
- Depois ?
- Depois.
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- Loucura. Simples, pura, rematada loucura. Onde está com a cabeça de me propor isso, Albus ?
- Você tem alguma idéia melhor, Severus ?
- Tenho. Se tiver tempo...
- Mas o seu corpo exigiu descanso, e portanto não tem mais tempo. E era apenas uma conjectura sua...
- Se continuarmos a perder mais tempo aqui, não conseguirei fazer mais nada, e aí sim que será pior. Vou trabalhar na cozinha.
- Molly já está fazendo o jantar na cozinha.
- Inferno Sangrento, Diretor, por todos os trolls da Irlanda, onde eu vou poder fazer uma poção ?
- Que tal no seu quarto, Severus ?
- Esqueceu-se que tenho um hóspede adoentado lá, Albus ?
- Ele é o maior interessado nela, meu querido Severus, e não acho que vá se incomodar tanto com o cheiro. Aliás, é bem agradável.
- Papoulas tem esse dom, Diretor. Cheiram bem... mas são muito venenosas. Tem que saber ser usadas.
- Sim. Como a personalidade de algumas pessoas.
Exatamente, Senhor Diretor. Usadas... como as pessoas. Como seus peões da Ordem da Fênix. Só não vou revidar agora porque preciso de pelo menos uma hora de cozimento, e meu horário está muito restrito.
- E, Severus... acho bom ficar com isso também.
O sorriso era de deboche. Evidentemente, era.
- E o que uma capa de Invisibilidade será útil com uma fera que pressente o cheiro das pessoas há quase um quilometro de distância, Albus ?
- Precisamente aí que nós usaremos...
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Assim que a poção ficou pronta e um já zonzo Remus a tomou, preparei-me para levitá-lo com urgência para o porão, antes que mais gente chegasse para o jantar. (Bando de egoísticos seres que pensavam no próprio estômago quando um dos seus ia passar por tudo aquilo...que outro usasse o cérebro, que outro entregasse a alma a uma besta feroz, eles usariam os estômagos. Bem, eles os tinham. Eu já não podia dizer o mesmo. ).
Lupin estava visivelmente envergolhado e queria chegar lá embaixo o mais rápido possível. Ou talvez fosse a ansiedade da chegada da Lua Cheia que o deixasse assim. Eu não sabia, essa seria a primeira - de muitas vezes, eu esperava - que eu iria passar uma transformação com ele. Se o Lobo permitisse.
Mas um Dumbledore como poucas vezes vi me retirou dali e me ordenou que eu fosse à cozinha jantar. Afinal, eu não havia comido nada naquele dia, e eu precisaria de muita energia para o que eu iria fazer. E eu fui, a contragosto mas fui. Descobri (a contragosto do meu cérebro) que meu estômago também exigia seu quinhão de boa alimentação, assim como os meus companheiros de fé da Ordem da Fênix.
Mas foi com um estranho peso na alma que entrei no porão e me deparei com Albus acariciando os cabelos de um Remus de olhos úmidos.
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- Severus.
- Sim ?
A voz - e a mente que deveria comandá-la - está tão engrolada que nem mesmo eu consigo distinguir direito o que tenho a dizer. Começo a sentir que breve a Lua irá tomar meu corpo, meu sangue e levará minha alma para não sei onde... longe do único lugar onde eu quero ficar. Tantas e tantas transformações e essa é a única que eu quero ficar e não fugir. Mas mesmo assim eu insisto em dizer o que é preciso.
- Ainda dá tempo... de sair.
- Eu sei.
- Vá.
- Não.
- Por tudo... que você... considera sagrado, Severus, SAIA !
- Não, Remus Lupin... não é preciso. Beba mais um pouco disto.
Logo ao primeiro gole, minha cabeça fica mais anuviada ainda : o torpor que eu comecei a sentir assim que tomei a primeira poção de Theodorus quintuplicou-se agora. É exatamente como a Morto-Vivo, mas infinitas vezes mais forte. Somente meus olhos parecem ainda ter vida, meu corpo parece atado e enfaixado como de uma múmia; percebo nitidamente que Severus esperava apenas isso, e é com um olhar calmo que ele se afasta devagar, ao mesmo tempo que começa a entoar o encantamento Imobulus Animae, levantando placidamente o olhar até a janela onde a Lua Cheia começa a entrar; eu sinto envergonhado meu corpo transformar-se (tudo menos essa visão, Severus !), sim, mas o torpor não me abandona; mesmo com o Lobo uivando furiosamente eu ainda estou ali - em outro canto da mente, mas ainda ali, bendita Mata Cão, benditas Artes das Trevas bem usadas - e por mais que uive e tente se mexer, o Lobo não consegue se mover. Somente observo do meu lugar privilegiado que o olhar dele é só para Severus.
Ele não se conforma. Ele não sabe perder. Ele é força, poder, segurança, trevas tornadas vida... Ele quer o parceiro que está ali, a seu alcance. Perto, tão perto... e tão inalcançável, por força e obra das mesmas Artes das Trevas que o criaram. O Lobo uiva desesperado por não conseguir o que mais deseja, força o corpo que não responde a nada e sinto que geme de desamparo; mas eu tento dizer a ele que se acalme, que pelo menos temos Severus por perto. Pelo menos por essa noite ele é nosso, só nosso. Ele não fugiu de nós, nem quando viu a transformação. Não vi em seus olhos a mínima sombra de repugnância, havia apenas... cuidado ? Não, não apenas cuidado... Posse. Preocupação com a própria propriedade, isso sim. Mesmo o Lobo é dele, como eu quero ser. Como não senti isso antes ? Como não confiei em meu olfato antes ? Ele não cheira medo, ele cheira... partilha. Proximidade. Confiança. Sim, ele tem meu cheiro.Meu parceiro. Ele cheira definitivamente como parte minha, parte nossa.Calma, Lobo, você o terá, sim, mas não agora. Não desta vez. Não deste modo.
Acalme-se, ou ambos não aguentaremos. Eu preciso estar com o corpo inteiro para trazê-lo definitivamente para nós. E para isso é preciso que você fique quieto, muito quieto.
Sinto e sei que seu uivar é de dor, de perda... eu já perdi tanto, tantas vezes, porque você não pode perder agora para ganhar depois ? Estou cansado de estar sempre do outro lado da vitória... que seja essa sua vez de perder, besta. Aquiete-se, e espere. Ele virá até nós.
Pois ele não vai conseguir entoar o encantamento a noite inteira, me responde o Lobo, aquietando-se e quase desdenhosamente guardando suas energias.
E você pretende usá-las, ao mínimo descuido meu ou dele.
Mas eu estarei aqui.
