O Capítulo 9 - O uivo do Lobo

E como se fosse sensível a meus pensamentos, ele para... e quase acintosamente aguarda. Altivo como só ele sabe ser, ele me espera, presas à mostra numa ameaça nada velada. Estanco repentinamente ante essa visão quase etérea, pois nem em meus sonhos mais fantasiosos eu o vi assim : escolheu uma pequena elevação entre algumas árvores onde o luar o alcança,deixando-o totalmente iluminado como um ator em um monólogo perfeito. (Monólogo... não. Um dueto bem orquestrado, sempre. Remus e o Lobo, anima e animal, eu sou o intruso : bem vindo, sim, eu o sei agora, mas intruso. Intruso ou não, eu não deixaria nada separar-me de meu par único.)

Se o Lobo deseja mostrar toda sua força e pujança em seu ambiente, não poderia ter escolhido melhor lugar : o lago tornado prata líquida reflete-se em seu pelo banhado pela lua, que é sua força e minha desgraça. Prata que mata, prata que revela a beleza... prata é seu pelo, prata trará sua morte... estranha dicotomia essa, que no entando eu compreendo perfeitamente.

Nesse momento de susto e revelação percebo que me excedi : entreguei o controle da situação à fera, me extenuei nessa fuga desenfreada, e estou quase completamente sem fôlego... reinicio meu caminhar com passo letárgico e comedido, enquanto tremo pela sensação do meu corpo sendo transpassado pelo olhar dominador dele. Respiro mais profundamente para estabilizar o ritmo do meu corpo, ao mesmo tempo que aponto minha varinha. Isso precisa terminar, de um jeito ou de outro.

E sem outra indicação de suas atitudes a não ser a graça inequívoca contida em cada um de seus movimentos ele me ataca. Vem na minha direção como se não tivesse corrido por quase uma hora inteira, como se calculada e meticulosamente tivesse armazenado toda sua energia para esse único salto fantástico, preciso e impossível que coloca o Lobo sobre mim.

Sinto o peso dele me derrubando, sem que eu tenho conseguido pronunciar uma única palavra : arfante e resignado escuto seu rosnado se aproximando da minha orelha, as patas nos meus ombros me impedindo de levantar os braços, o peso do corpo contra o meu me prensando contra o musgo gelado... sei que perdi.

E sem pensar em outra coisa que não o "fico" do meu amor, eu fecho os olhos, viro a face em direção ao lago e ofereço meu pescoço para o deleite da fera.

Rendição, Mestre das Poções ? Pensei que demoraria mais... que você lutaria, que eu brincaria um pouco com você : deixar as marcas de minhas garras em seu tórax que eu desnudaria cuidadosamente com meus dentes, para seu pavor e meu deleite. Mas você não se apavora, não é ? Você sabe quando perdeu, e sabe perder dignamente. Você é sempre digno, espião, mesmo quando mata e fere. Estarei à sua altura, Senhor de Ervas? Seu cheiro inebria, envolve meu olfato como a mais pura das perfumarias : o resgate de um rei não me tirará daqui, enquanto eu puder sentir teu cheiro de medo, resignação e ervas. Me aproximo o máximo que posso sentindo teu coração bater descompassado... ah, como é bom te controlar, Severus Snape ! O que o doce John não conseguiu fazer ao longo de uma vida inteira eu consegui em uma única investida. Prerrogativa apenas de feras dominar outras feras, pelo visto.

E alucinado e imóvel sinto a aproximação da fera arfando em meu rosto, tenho de fazer uso de toda minha força de vontade para não empurrá-lo e sair correndo. Não adiantaria : o último salto me fez ver com o que estou lutando. Ele se aproxima mais, me cheira atrás da orelha, revolve com o focinho meus cabelos, e então me lambe o pescoço, exatamente onde Remus havia me mordido pela manhã. Entreabro os olhos, me viro devagar e miro resolutamente seus olhos : dentro das íris da fera eu reconheço meu amor. E vítima dessa revelação eu subo devagar meus braços e o abraço.

Uivo para o mundo que aquele é meu companheiro, que eu reconheço e assumo aqui, agora e para sempre.Ai daquele que ousar aproximar-se dele para magoá-lo, ou mesmo tocá-lo que seja, pois mesmo que demore o inferno de 3 semanas, eu irei tomar satisfações sobre tais atos. Porque ele é meu, e eu sou dele, e como o luar se imiscuiu nas entranhas do lago, qual veneno de serpente eu tornarme-ei parte dele ; não necessito torná-lo fisicamente igual a mim, pois sua alma assim o é : animal e rude, precisa e fatal, mas verdadeira e confiável. Não necessito de igualdade de formas, quando ele tem tanto a oferecer-me, sendo do jeito que é.

Tremo de quase terror ao ouvir o uivo do Lobo tão próximo, mas sinto claramente que ele está emitindo uma mensagem ao mundo de que não está mais só. E como se o universo inteiro tomasse conhecimento disso, vejo claramente que as estrelas brilham mais e quase se aproximam, ciumentas, para ver-nos abraçados sobre nossa cama de musgo macio, ambos banhados imparcialmente pela luz da lua. Ela não faz diferença entre nós, acolhe a ambos seus filhos pródigos da mesma forma. Ao mesmo tempo as árvores - embaladas por um vento tépido e quase cúmplice - inclinam-se em nossa direção, querendo dar-nos os parabéns por nossa união, e fechando-nos contra o olhar de eventuais curiosos.

E eu pressinto que, nesse uivo que outros definiriam como obra de fera irracional, eu perdi a minha sanidade e finalmente enconhei a minha lucidez.

Mais seguro do que nunca eu suavemente acaricio as orelhas do Lobo, puxando-o para deitar-se a meu lado na cama que a natureza construiu - ao longo dos anos e das chuvas - e tão gentilmente nos proporcionou, pensando ( quase adormecido ) em como as linhas mestras de nossas vidas podem ser escritas de forma tão torta e tão sublime.

Ser feliz é quase ser mordido por um Lobisomem num parque de Londres.

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Dessa tépida noite que o luar fez amor com o lago, a noite mágica na qual eu me quedei extenuado pela longa caminhada e pelo enxame de emoções, a mesma noite que eu - sem sentir - adormeci enroscado a um Lobisomem, foi no final dessa inebriante noite que acordei assustado. Inequivocamente senti, pela condição do ar, que o fim da noite se aproximava. Tudo estava como que em suspenso. As aves noturnas tinham se calado, as do dia dormiam ainda. Era aquela hora silenciosa que precede a aurora, em que os moribundos enfim encontram a paz, e a terra retém sua respiração e seus perfumes. O silêncio era tão grande que eu ouvia as batidas de meu coração.

Ergui-me procurando Remus com a mão, mas meus dedos só encontraram o musgo, e instintivamente eu levantei a varinha. Sentei-me completamente e vi à minha frente o brilho de duas pupilas cor de mel que me olhavam fixamente. Não eram os olhos de Remus. Não senti medo algum, talvez uma ligeira inquietação pela ausência do meu lobo. Levantei-me e calmamente dirigi-me àqueles olhos que me fitavam.

- Venha, meu amigo. Não tenha medo, venha. Para você, eu continuo o mesmo.

E como prova de minhas intenções, eu baixei um pouco a varinha. Ato contínuo outro salto inimaginável, uma língua áspera envolvendo meus dedos estendidos para logo em seguida o focinho voltar a esfregar-se no meu pescoço, rosnando baixinho em meu ouvido. Orgulhosos de nossa proximidade juntos contemplamos o anúncio do nascer do dia, o enorme Lobo Cinzento aninhando-se quase servilmente aos meus pés. Meu Lobo. Meu parceiro.

Meu parceiro. Meu Severus.

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A partir da aurora da minha nova vida e ainda sentindo sobre meus pés o peso do Lobo, comecei a raciocinar sobre assuntos mais mundanos e urgentes : como eu faria para levar Remus de volta a Grimmault Place ?

Com certeza ele não estaria tão disposto como até agora estava na forma lupina, e aparatar sozinho era algo totalmente fora de cogitação. O Lobo, pressentindo minha inquietação, movimentou-se para afastar-se quando eu, num último ato de temeridade o abracei e aparatamos em frente à mansão dos Black.

Corri com um Lobo prestes a se transformar em meus braços até a janela do porão e me joguei lá dentro com ele, em meio a gemidos e uivos da transformação : bem que gostaria de nunca soltá-lo, mas foi puro instinto que me fez quase empurrá-lo para longe de mim; eu confiava nele, aprendi aquela noite a confiar no Lobo, mas esse momento indistinto que meu amor não era fera nem humano eu temia que algo desse errado. Não, eu não temia ser igual a ele, mas não deixaria algo acontecer sem ser da vontade de ambos, por mero e simples comportamento relapso.

Ainda arquejando da corrida e do peso que carreguei, eu acompanhei os últimos estertores do meu amado Remus, feito um trapo jogado no chão do porão dos Black. Eu não entendia a lógica da magia, permitir que o bruxo mais doce e competente em Artes das Trevas passasse por aquilo, mês após mês após ano após ano após década após década... já eram quase quatro décadas que ele passava sozinho por aquilo, todas as Luas Cheias... e ninguém nunca se importou. Trapo, eu bem definira a condição dele, e por extensão a minha própria. Mas agora era a hora do socorro e aconchego, era a hora de estender as roupas e o calor para aquele que me elegera para companheiro. E o mundo, com todas suas cruzes e penas que nos esperasse. Eu tinha um Lobisomem a cuidar, hoje e sempre.

Não me permito descansar os olhos depois da transformação como sempre faço, é urgente que eu os abra e veja o que o maldito fez com Severus, se ele está muito ferido, eu já posso ajudar. Acho que não voltei de todo, não consigo ver onde o Lobo o mordeu : deve ter sido nas costas, como eu, pois ele está inclinado sobre mim, me cobrindo com sua capa.

- Onde ?

- No porão dos Black, estamos de volta, seguros e a salvo.

Tanto quanto se pode estar seguro e a salvo quando se tem um incompetente como o Lord das Trevas de um lado e um bufão como Dumbledore do outro do tabuleiro de xadrez que é o nosso mundo.

- ONDE ELE TE MORDEU ?

Teu olhar de perplexidade me diz que algo que eu mal ousei sonhar aconteceu. Haverá honra entre Lobisomens ?

- Ele não me mordeu.

- Não ?!?!???

- Não. Descanse, foi uma noite longa e movimentada.

Minha voz sai quase inarticulada, de susto e de alívio : ele aceitou o companheiro como humano. Apenas como humano. E pela calma que eu sinto, mesmo que misturada a essa exaustão extrema, ele deve estar bem distante nesse momento. Tento e tento me lembrar de como foi a noite, mas só consigo sentir o cheiro de água e relva, o toque do vento e mais nada. Delírios, apenas, é óbvio. Mas o olhar preocupado de Severus me força a dizer qualquer coisa.

- Eu não consegui ficar, não dessa vez... eu tentei e tentei, mas não conseguia... não sei de nada o que aconteceu essa noite.

- Nada ? Não se recorda de nada ? Do parque, do lago ?

- Parque ? Lago ? Não lembro de nada, Severus ! O que esse doido fez ?

Esse cenho franzido me faz tremer; eu temo o que virá, o que o Lobo fez ? Evadiu-se e andou pela casa ? Como Severus irá se justificar a Dumbledore que eu me soltei, quando deveria estar preso além do feitiço por correntes ? Minha cabeça mexe-se sozinha em tom de desacerto : decidamente estou enxergando mal porque vi um sorriso no rosto de Severus.

- Foi dar um passeio noturno pelo centro de Londres numa noite quente de verão. Para ser preciso, no Hyde Park.

- Esse seu sorriso de escárnio não combina com a seriedade do momento, Severus Snape.

- Não, Remus John Lupin, não combina. Mas eu sei de algo que combina.

E o beijo quase roubado, mas vindo de lábios sorridentes convence Remus de que nada de errado aconteceu. Esses beijos roubados estavam tornando-se um hábito. Dos bons, diga-se de passagem.

- E agora vamos subir. Tenho algo a dizer ao medibruxo.

- Que ele não me aperte tanto ? Ontem você quase pulou em cima do velhote, Severus !

E a risada fraca mas franca do meu Lobo particular tira qualquer resquício de negatividade do ar : por duas vezes fomos juntos ao inferno em companhia de uma besta inumana e em ambas voltamos mais e mais purificados pelo fogo infernal. Mas é somente na maior das chamas que se forja o melhor aço, e desse material que é feito nosso amor : aço e mágica.

- Remus John Lupin, você não pode ficar mais corado e ágil para esse exame, não ?

- Posso... mas vou precisar de ajuda, Severus Snape.