CAPÍTULO 4
Choro e crime no St. Mungus
Finalmente o vazio dentro de Harry se encheu, mas de uma forma ruim. Encheu-se de dor interna, saindo em forma de lágrimas fartas.
Houve um momento de silêncio, em que Harry e Gina deixaram-se levar pela dor. Ficaram os dois, chorando, enquanto o Curandeiro Bright os observava, de cabeça baixa. Ele podia imaginar o que os dois estavam sentindo.
Bright olhou para a menina. Uma expressão abobalhada tomava conta do rosto dela. Os olhos mexiam-se, os braços tinham movimentos impulsivos, mas ele sabia que ela nada podia perceber ao redor. Como um vegetal.
Bright suspirou, ajeitou os óculos, e tentou consola-los.
Sei o quanto será difícil para os dois... Afinal, o Feitiço da Consciência Vazia deixa o atingido num meio-termo entre vida e morte. E cabe a vocês a decisão se cancelam a poção ou não. Imagino como é complicado... Afinal, esse feitiço quebra o sentido natural da morte, deixando nas mãos dos responsáveis a decisão. Mas... Como os pais podem se decidir sobre a morte da própria filha?
Harry andou lentamente até a cama da filha. Entre as lágrimas que embaçavam sua visão, ele viu o olhar da filha, um olhar perdido, vagueando nos quatro cantos do quarto, mas sem dar a impressão de realmente enxergar alguma coisa.
Sr Bright – chamou Harry, se esforçando para falar. – Ela... Realmente... Não pode me ver?
Não. Estelle está no que, tanto os trouxas conhecidos como médicos como nós curandeiros chamamos de estado vegetativo.
O que essa droga quer dizer? – perguntou Gina, histérica, entre seus soluços altos.
Estelle está aí, deitada na cama, com os olhos abertos, tendo movimentos, mas, de certa forma, é como se não estivesse. Não tem consciência. Assim como uma planta. Você sabe que as plantas têm vida, mas não vê uma planta falando. Elas se mexem, mas não tem olhos para nos enxergarem...
NÃO PODE SER! – gritou Gina.
...Estelle está dessa forma – completou Bright. – Lamento, Sra Potter, mas é a verdade...
A VERDADE? O SENHOR ESTÁ LOUCO? OLHA ALI, MINHA FILHA ESTÁ ACORDADA! COM OS OLHINHOS ABERTOS!
Gina ajoelhou-se ao lado de Estelle, passando a mão no rosto da garota.
Não é, querida? – falou carinhosamente, enquanto acariciava a menina. – Não é, meu amor? Minha filhinha. Fala com a mamãe, fala!
Estelle continuou indiferente, seus olhos azuis agora passavam pelo teto.
OLHA PRA MIM – berrou Gina, balançando a cama e tentando virar a cabeça da garota. – SOU EU, MAMÃE, QUERIDA, OLHE. FALA MAMÃE PARA ELE VER QUE VOCÊ ESTÁ ACORDADA.
Gina, não... – disse Harry, tentando afasta-la da menina.
ME DEIXA, HARRY! – ela relutou, mas Harry foi mais forte e conseguiu afasta-la de Estelle, segurando-a pelos ombros.
Não adianta ficar assim! Não adianta fazer nada. Acabou... Nada poderemos fazer... Nada...
Podemos sim – respondeu Gina, mais calma, seus olhos marejados encontrando os do marido. – Podemos... Ela não morreu, está viva, olha...
Gina, não adianta lutar contra a realidade...
A realidade me mostra minha filha ali... mexendo...
...Você ouviu o que o Curandeiro disse...
...Os olhos dela estão abertos... Olhe...
...Ela não vê nada, não tem consciência...
...Mas está viva! A poção... Ele disse... Que mantém as funções vitais... O elo de Estelle com a vida...
Eu não queria acreditar, não queria lhe dizer isso, mas...
Mas o que? Hein?
Mas... Gina, Estelle não tem consciência, isso quer dizer, segundo o Sr Bright...
Que se dane o Sr Bright...
...que ela não pode ver você, nem eu, não sabe que está aqui, nesse quarto do St. Mungus... Pra você, isso é vida?
Pra mim é – falou Gina, decidida, frente a frente com Harry. – Olha lá, ela está respirando... Não está declarada como morta. Pra mim isso é vida.
Um novo momento de silêncio. Os dois apenas se encaravam, e o ruído dos soluços era o único som presente.
Curandeiro, o que o senhor acha? – perguntou Harry, olhando para George Bright. – Dê a sua opinião. O senhor acha que é melhor cancelar ou não cancelar a poção?
Bom, eu não sei... – gaguejou Bright. – A lei diz que essa é uma decisão que cabe, nesse caso, aos dois. Não devo me meter...
Estou pedindo. Por favor. Em nome de um pai desesperado, de uma mãe desesperada, dê a sua opinião. É muito importante.
Bright tirou os óculos quadrados e começou a limpa-los na borda do avental. De repente, ainda os limpando, levantou os olhos míopes para Harry e Gina.
É o que eu disse. Estado vegetativo. Como um vegetal. Não está morta, mas também não está viva...
PRA MIM ESTÁ – vociferou Gina.
Para a ciência, para todas as pesquisas, o estado vegetativo é uma semivida. O Feitiço da Consciência Vazia não deixa nenhum vestígio de consciência, como o próprio nome diz.
O QUE QUER DIZER?
Que sua filha já está morta, praticamente.
NÃO É VERDADE – berrou Gina, aproximando-se da garotinha. – OLHEM. ESTÁ AQUI. VIVA.
Eu disse desde o começo que eram as funções vitais que estavam funcionando – completou Bright. – De uma forma mais clara, e eu espero que vocês compreendam, é como se o corpo de Estelle estivesse aqui, mas sem alma dentro dele.
O Curandeiro fez uma pausa para suspirar. Gina não interrompeu dessa vez.
Eu acho que vocês devem cancelar a poção.
Foi o que bastou para que a mudez repentina de Gina se transformasse em novos gritos, dessa vez mais estridentes, com acúmulo de dor e desespero.
VOCÊ ESTÁ LOUCO? NUNCA! NÃO QUERO CANCELAR A POÇÃO! – ela pegou a primeira coisa que viu – um cálice de metal sobre uma das prateleiras – e arremessou na direção do Curandeiro. Ele se abaixou, desviando. O cálice bateu com estrépito na parede.
Harry avançou até a mulher e imobilizou os braços dela, antes que ela pegasse um vidro de poção e o arrebentasse em cima do curandeiro.
Ele não tem culpa de nada, Gina!
Mas é uma idéia absurda – falou ela, tentando se desvencilhar. – Não podemos deixar que nossa filha morra.
Desculpe, Sr. Bright.
Não tem nada, Sr Potter – disse o curandeiro, enquanto apanhava os óculos que caíram no chão. – Eu não imaginei outra reação senão esta. Eu realmente nunca imaginei que precisaria dar uma notícia dessas, colocando uma bomba na mão de vocês. Todos nós imaginamos que a morte vai vir num estalo, de repente, mas esse feitiço a coloca nas mãos dos responsáveis. É muito mais complicado do que se a garota tivesse morrido na hora. O percurso natural da vida, a morte, está nas mãos de vocês. É um desvio, mas está. Eu só defendi a tese de que Estelle está num meio-termo entre viver e morrer. Na minha opinião, e de grande parte da comunidade hospitalar, o melhor seria cancelar a poção, e deixar que a vida siga seu curso natural.
Mas...
Sra Potter, Estelle não vê nada, eu...
Gina soltou-se dos braços de Harry e levantou um dedo em frente ao rosto do curandeiro.
Como você e seus amigos podem garantir isso?
O curandeiro manteve a calma.
São muitas pesquisas que...
Pesquisas! Teses! – Gina falava, descontrolada, enquanto andava de um lado para o outro do quarto. – Quem garante a vocês que ela não vê nada? Por acaso você ou outro curandeiro já esteve dessa forma para dizer com toda certeza que a minha filha não ouve, não vê, e não se lembra de nada?
Gina, não faz sentido você ficar desse jeito, eles sabem o que está acontecendo com Estelle!
O que é? – ela virou-se para Harry. – Vai defender a opinião dele? Você acha que o certo é acabar com a única maneira de ter a nossa filha aqui, conosco?
Não é isso, não confunda as coisas... Acontece que...
Acontece que, pra mim, a minha filha...
NOSSA...
...está viva... Como assim nossa? Não parece!
Não diga besteiras por impulso, Gina! – ele se irritou. – Não confunda. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu amo a minha filha. Eu amo Estelle. Mas, se ela já está praticamente... – ele engasgou – morta, não tem porque mantê-la aqui, condenada num hospital.
Pra mim tem – falou ela, em tom decisivo. – Pra mim, ela ainda está viva.
Uma nova pausa. Gina virou-se novamente para o Curandeiro Bright, e olhou para ele bem na hora em que ele colocava os óculos. Aqueles óculos quadrados que aumentavam consideravelmente os olhos...
E foi como se um relâmpago tivesse caído em sua mente, atingido os arquivos ocultos em seu cérebro, e os aberto. Tornou-se claro... Um pesadelo com uma fruta se partindo... A noite da destruição da caixinha de música, do choro do bebê que martelava em seus ouvidos...
A profecia.
Ela continuou fitando os olhos esbugalhados do Curandeiro Bright – que a olhava sem compreender nada. E foi como se estivesse olhando para Sibila Trelawney... Na hora da profecia... Aqueles olhos gigantescos, transformados, medonhos... E o que estava barrado, talvez por vontade dela própria, se libertou...
E as palavras soaram em ordem...
Felicidade no enlace. O fruto vai amadurecer. Mas eis que quando está maduro cai do pé. E se despedaça...
Nossa... – murmurou ela, zonza, passando a mão pela testa suada.
O que foi?
Gina, lentamente, virou-se para o marido. Agora tudo se encaixava. Como se as palavras tivessem se escondido, esperando o fato ser consumado.
Um novo acesso de desespero a levou a uma nova seqüência de gritos.
O fruto amadurece e se despedaça... Era isso que Trelawney queria dizer, Harry... Nossa filha! Nossa pequenina!
Trelawney? Fruto... Gina, o que você está falando?
De uma profecia. No meu último ano em Hogwarts... Uma profecia terrível... Mas que eu não conseguia me lembrar...
Tem a ver com...?
Sim. Ela ficou transformada, estranha, e disse isso. O enlace seria feliz, o fruto iria amadurecer, Estelle, mas quando estava maduro... Caia do pé... E tudo se confirmou... Um casamento feliz, uma criança, que cresceu, e, quando estava bem, feliz, aconteceu a fatalidade...
Como você não se lembrava?
Eu não sei... Talvez um mecanismo de defesa interno. Tentando fazer com que eu esquecesse, e realmente eu esqueci. Naquela época estava tão feliz com o nosso noivado... A profecia tocou no nosso casamento, algo que eu queria que fosse bom, especial... Também estava muito ocupada naquela época. Acho que foi isso...
George Bright pigarreou, chamando a atenção do casal.
Eu e minha assistente, Lolita Spencer, precisamos saber o que faremos... Continuamos ministrando a poção em Estelle ou não?
Sim.
Não.
Gina e Harry se entreolharam. Os dois estavam um pouco afastados um do outro, com a cama de Estelle no meio. Para George, aquilo lhe lembrou dois oponentes, prestes a brigar, com uma linha divisória os separando um do outro. Ali, a linha divisória também era o centro da discórdia.
Ele pensou rápido no que dizer.
Acho que essa é uma decisão complicada, que necessita de avaliação da parte de ambos. Procurem relaxar...
Como se fosse possível...
Eu sei, Sra Potter, não é fácil, mas não é impossível. Procurem pensar com calma, os dois conversem bem, até entrarem num consenso. Eu dou um prazo para vocês. Enquanto nada for decidido, continuarei dando a poção para Estelle.
Harry e Gina ainda se olhavam.
Os dois concordam?
Sim – responderam em uníssono.
Ótimo. Peço para que deixem o assunto somente entre familiares e conhecidos. Se cair no ouvido da imprensa, sendo Harry Potter uma celebridade... A decisão pode se tornar mais complicada...
Como assim? – perguntou Harry, olhando para o Curandeiro.
Nada, esqueça... Sem preocupações com possibilidades, por favor... Vocês já têm no que pensar. O que decidir... Conversem bem. O diálogo é muito importante.
E se não entrarmos num acordo? – indagou Gina, com a testa franzida. – A opinião que prevalecerá será de quem?
Não sei... Mas é o que eu disse. Sem preocupações com possibilidades. Vocês têm um fato concreto nas mãos, e um fato nada fácil de se enfrentar... Uma decisão muito, muito importante. Pensem bem e se decidam... Agora, é melhor irem para casa, tiveram um dia cheio...
Sim – concordou Harry. – Mas nem sei se conseguirei descansar...
Eu nem quero – falou Gina com a voz fraca. – Harry, eu... Tenho que ir até a casa dos meus pais, depois até o Rony... Para avisar sobre o que ocorreu. Para eles, ainda estamos felizes no sítio.
É bom avisar – concordou ele, lentamente. – Mas só para eles... Para os Tribbes, talvez, já que são tão amigos nossos...
É. Talvez... Você vai ficar?
Vou, só mais um pouco. Tentar me acalmar. Aceitar a dura realidade... Pode ir.
Gina aproximou-se da filha, que ainda estava com os olhos abertos, mas ainda vazios. Ela beijou o rosto de Estelle, molhando o rosto da pequenina com uma lágrima que escapou. Depois, sem dizer mais nada, saiu da sala, com passos lentos.
Harry puxou uma cadeira e sentou-se, de frente para a mesa do Curandeiro Bright. Passou um lenço sobre a testa suada, depois suspirou, apoiando a cabeça nas mãos.
Que problema...
Essa decisão, realmente, é complicada...
Mas não vai se resolver tão facilmente, Sr Bright – falou Harry, esmurrando a mesa. – Olha, pelo que eu vi, Gina não concorda comigo. Nem concordará. Insiste em deixar nossa filha ali, deitada, como um... Um zumbi... Porque não acabar logo com isso?
Mas para ela a decisão dela também está correta.
Aí é o problema. Dois pontos de vista... Opostos... Eu e Gina não entraremos num consenso, eu sinto isso... Eu sinto que isso ainda vai longe.
Temos sorte do caso estar somente entre nós. Não sairá dessa sala, Sr Potter, eu prometo.
Com licença, Sr Bright.
A voz feminina, alta e clara, soou às costas de Harry. Ele virou-se na cadeira, e os olhos de George Bright levantaram-se para a mulher. Era Lolita Spencer.
Eu preciso ir embora mais cedo. Já fiz tudo o que o senhor me pediu.
Tudo bem, Lolita. Pode ir. Até amanhã.
Até amanhã.
Ela saiu. Harry apontou para a porta fechada, olhando bem para o Curandeiro.
Será que ela pode dizer alguma coisa?
Imagine. Lolita é de minha extrema confiança. Só aceito estagiários assim. Quem eu realmente confio. Por ela, boto a minha mão no fogo.
Lolita caminhou normalmente pelos corredores do hospital. O movimento era o habitual, e tudo andava normal por ali. Tão normal que ela não percebeu que estava sendo seguida por um sujeito com o jaleco do hospital.
A cada dobra de corredor que ela dava, o sujeito ia atrás. Lolita estava a caminho dos vestiários, onde trocaria as vestes de curandeiro assistente pela própria roupa. Finalmente chegou no local, empurrando a porta de madeira pintada de branco. O sujeito parou de chofre em frente à porta, encarando o aviso VESTIÁRIO FEMININO. Olhou para os dois lados, viu que a barra estava limpa, e empurrou a porta.
Entrou lentamente. Torceu em silêncio para que não houvesse mais ninguém lá dentro. Somente ela. A mulher alta, de óculos com aros escuros, cabelos castanhos lisos e presos.
Ele espiou. Lolita estava de costas para ele. Poderia ter aproveitado a visão, observar a bela bruxa trocar de roupa, mas estava ansioso para agir rapidamente.
Avançou vagarosamente por trás dela, puxou a varinha do bolso e apontou para a cabeça da bruxa. Houve um sobressalto no corpo dela, e um gritinho esganiçado.
Quietinha... – sibilou ele, dando uma risada.
Quem... Quem é você? O que...?
Quieta! Aqui quem fala agora sou eu. Você é o Curandeiro assistente do quarto onde a filha do babaca do Harry Potter se encontra, não é?
Isso... Por favor, não me machuque...
Relaxa, boneca. Basta responder tudo o que eu perguntar. Diga-me... A filha dele está com o que?
Atingida por um feitiço... O feitiço da... O feitiço, ah, o Feitiço da Consciência Vazia.
Isso mesmo... E como ela está?
Mantida viva apenas pela poção... Poção da Vida...
Temos um caso de eutanásia... Bem que Garganta disse que o feitiço levaria a isso... Pobre chefe... Agora, fofa, eu preciso saber algo bem interessante, que possa ferrar com Harry Potter. Se você me der alguma informação que valha a pena, está liberada, prometo...
Sim, tudo o que você quiser... Eles... Eles estão divididos... Não sabem se cancelam a poção ou não... E não concordam.
Ah uma divisão de opiniões... Interessante. Mas preciso de coisas ainda mais interessantes, senão vou ter que... – ele pressionou mais a varinha contra a têmpora da bruxa.
Tenho, tenho mais... Informações... – ela gaguejava e suava frio. – Eles não querem que a notícia... Vaze para a imprensa.
Agora assim algo interessante... Obrigado pela ajuda, gata. Eu sou Spike, quem sabe um dia nos encontramos de novo...
Então vai me deixar ir embora?
Não. Se nos encontrarmos de novo, só se for em outra vida, ou no além.
Os ladrilhos brancos do vestiário, tão lustrosos, tornaram-se verdes por um momento.
