Aquele carro era grande, lindo, perfeito. Qual seria a porcentagem de chance de eu convencer papai a comprar um? Tinha tv, comida, refrigerante, vinho...e SORVETE! Não mexi em nada, mas vontade não faltou. O Martin (esse era o nome do motorista) me olhava por aqueles espelhinho que tem no meio do carro e dava risada.
- Tio, liga o rádio!- ele me olhou assustado. Acho que não estava acostumado com a minha "empolgação matinal", como diria meu pai.
Eu sorri a Maggie novamente e sinalizei que iria me retirar da mesa. Ela acenou e eu entrei no quarto, vendo que ela havia deitado na cama de lado. Chegando um pouco mais pra frente, vi que ela estava debruçada em um braço, apoiando o cotovelo na cama, enquanto olhava e brincava com Lory, que estava deitada um pouco mais pra frente dela.
Sentei na cama perto dos seus pés. Seus olhos não se desviaram mas ela sabia perfeitamente que eu estava ali. Permaneci calado, olhando Lauren que brincava com uma boneca. Evitei encara-la pra não forçar mais nada. Pelo visto ela ia ficar do mesmo jeito que ontem por um longo tempo e provavelmente estaríamos em casa antes mesmo que anoitecesse.
Ele ficou sentado na cama observando Lauren e eu comecei a estranhar aquele comportamento. Fico encarando por um longo tempo esperando alguma palavra, alguma pergunta, alguma emoção. Nada. Ele estava estático e parecia que sua cabeça estava em outro lugar, pensando em não sei o que, encarando a imagem de nossa filha.
- John? – eu tento chamar sua atenção um pouco. Talvez era mesmo mais que na hora de eu aprender a ser uma nova Abby.
Martin pára bem em frente ao meu colégio e eu faço "cera", até que ele vem abrir a porta pra mim. Aquelas luvinhas brancas dele eram tão bonitinhas.
- Pronto, Senhorita Carter- ai, eu adorava quando me chamavam de Carter. E mesmo sabendo que era brincadeira dele, eu me realizava
Vejo que Karen chegava na mesma hora e me vira sair dali. Tudo o que eu mais precisava. Agora aquela menina metida nunca mais ia se meter comigo.
Ouço ela me chamar, mas me seguro para não responder de primeira.
- John- ela repete, e agora assim, ainda sem dizer nada, e viro meu rosto, dando atenção pra que ela pudesse falar.
Vejo que ela me encarava naquele silêncio, mas eu entendi muito mais do que ela podia imaginar. Ela se sentou na cama, ficando bem perto de mim. Ela virou o corpo e deitou a cabeça no meu colo, começando a chorar aquilo que não tinha feito durante 24 horas.
Me atirei no seu colo pedindo nada menos que proteção. Um abraço me bastava. Eu não precisava ouvir nada, nem queria ouvir nada, eu só queria que ele não pensasse que eu não confiava nele depois de tudo o que vivemos e do que foi dito. Eu só precisava de tempo pra respirar e colocar tudo em ordem na minha cabeça.
Suas mãos, tiravam meu cabelo do rosto enquanto eu me permitia desabafar em silencio. Fechei meus olhos e, meu corpo cansado a tentar ser a forte sempre, desmoronou como há tempos eu não o fazia.
Sentei na minha cadeira e organizei as coisas em cima da carteira. Eu tinha que me comportar pra não dar trabalho aos meus avós. Coloquei de lado a caneta que o meu avó tinha me dado. Ela era tão bonita e nenhuma das minhas amigas tinha igual a essa.
- Caneta bonita.. – a professora fala ao passar pela minha carteira. Eu sorrio orgulhosa e abro o meu caderno. Hoje o dia ia ser animado na escola.
Era disso que ela estava precisando. E não só ela, eu também. Eu me sinto aliviado quando posso ajudar, quando ela deixa eu fazer parte da vida dela por inteiro, mesmo que seja na dor. Eu faço idéia de quão confusa ela está e há inúmeras coisas que eu gostaria, ou mesmo precisaria, que ela ouvisse agora mesmo.
Mas Abby não quer e não precisar ouvir nada. Ela só quer se sentir assim, protegida de tudo e todos. Hoje, com orgulho, eu posso dizer que conheço a minha mulher muito bem, a ponto de saber que eu não precisava nem podia falar nada.
- Desculpa- foi o único som que eu escutei ela dizer. Continuei, calado, só abraçando-a. De repente, percebi Maggie na porta. Deu um aceno para ela e ela logo se foi, para o meu alivio. Foi então que eu vi Lory olhando para nós dois. Como se ela pudesse enteder algo, ela veio engatinhando do meio da cama até onde nós estávamos.
Percebo Lauren perto de mim e tento sorrir pra ela mostrando que eu estava bem, apesar de tudo. John continuava a me segurar em seus braços enquanto ela se aproximava de nós sentando bem perto do meu corpo. Aqueles olhinhos azuis ficaram me encarando e eu poderia jurar que ela sabia que tinha algo de "errado" ali. Ela virou os olhos pro pai e se aproximou colocando a mão no meu rosto tentando me dizer algo, talvez dizer que tava tudo bem, que não queria me ver chorar. Foi daí que eu me dei conta de que não ia agüentar aquele silencio que teimava em tomar conta da minha vida, e permiti que as lagrimas caíssem dos meus olhos incessantemente.
- Me empresta sua caneta? – eu sabia que ela ia acabar pedindo. Olhei pra ela e pensei se devia ou não fazer aquilo. Uma vez eu pedi a dela emprestada e ela se negou, talvez seja hora de fazer o mesmo.
- To usando.. – falei pegando-a e começando a riscar o papel.
- Só porque eu pedi você ta usando.. – eu olhei pra ela sem dar a menor importância pra aquilo. E agora era so o que me faltava era essa, ter que emprestar tudo a essas meninas que tem de tudo um pouco.
Em pouco tempo ela parou de chorar e colocou Lory em cima da barriga, fazendo com que ela ficasse bem de frente pra nós. Percebi, então, aquela caixa num canto do quarto. Ela não parecia estar mexida.
- Você abriu?- ela nem olhou pra mim, mas sabia do que eu estava falando.
- Só a carta, mas não li toda- ela se levanta com Lory no colo, indo pegar a caixa. Olhei atentamente para o envelope onde estava escrito a mão, com uma caneta preta "Dear Abby". Na hora eu gelei e me lembrei daquilo que tinha feito há anos. Na minha opinião, "Dear Abby" nunca sairia da minha memória, e creio que da dela também não.
Ele me olhou ressabiado. Eu sabia que ele tinha lembrado da mesma coisa que eu. Era uma coisa que nos acompanharia pela vida toda, agora rindo de uma situação que doeu muito naquela época.
- Você vai ler?- ele pergunta e eu encaro a carta novamente, agora na dúvida- não quero forçar, mas você não acha tirar esse peso de vez das suas costas?
- Tem razão...- eu digo sem pensar muito, começando pela segunda vez, ler aquilo. A caixa tinha ficado do lado. Quem sabe se tinha alguma dica do que poderia ser aquilo escrito naquelas linhas?
O recreio havia começado e eu fui brincar um pouco com umas colegas no parquinho. Na verdade eu não estava com muita vontade de brincar.. estava com saudades de tudo.. ate mesmo da Lauren.. do choro dela..
- Passa a bola Julie.. – Alex grita e eu acordo dos meus pensamentos e jogo a bola pra elas. Olho pro lado e vejo que se eu saísse da brincadeira não ia fazer falta. Decidir passear pela escola e ver como as crianças menores brincarem.
Eu permaneço sentado junto com Lauren ao lado de Abby que tentava de alguma forma ler de uma vez aquela carta.
- Eu... – ela olha pra mim - não consigo.. – ela larga a carta na cama e enfia o seu rosto no colchão.
- Vamos Abby... – eu toco sua cabeça e ela levanta o olhar balançando a cabeça. Pego o papel que estava a minha frente e torno a olha-la. Penso que o que eu iria fazer seria errado, mas não custava nada arriscar.
"Querida Abby..
Eu fujo o meu olhar pra ela que continuava com o rosto enterrado no travesseiro. Nenhum sinal de recusa.. talvez eu devesse mesmo ler aquilo pra ela.
Ouço ele começar a falar, e resolvo não impedir. Talvez fosse melhor assim. Se eu não iria ter coragem para ler, que ele o fizesse por mim. Escuto palavra por palavra, atentamente. O ínicio era previsível. Desculpas, arrependimento. Não era uma novidade pra mim. Foi então que vi John parar de ler alto, e ler uma grande parte da carta, apenas pra si.
- Que foi?- eu fiquei curiosa.
- Leia você mesma...- ele não mudou a expressão. Deus! O que mais poderia ter acontecido? O que de tão grave poderia estar escrito ali?
Me sento no balanço, pensativa. Não via a hora de tudo aquilo passar e eu voltar pra minha vidinha normal. De que adiantava ir de limusine pra escola e ter uma caneta que todo mundo invejava se meus papais e minha irmãzinha não estava comigo?
Eu queria aqueles passeios legais, mamãe brigando com papai, ele fazendo de tudo para agrada-la depois. Eles preocupados porque Lory não parava de chorar e eles tentando me fazer parar de ter ciúmes de Lauren... Quanta coisa eu tenho bem dentro da minha casinha...
Vi que com um certo receio, ela foi pegando o papel da minha mão e ainda olhou mais uma vez para Lory antes de voltar os olhos pra carta.
- Deus!- é, ela também tinha se espantado. E pensar que eu também presenciei esta cena, sem a mínima noção do que estava acontecendo.
Eu estava chocada. Comecei a tremer começando a ler o relato dele, que era mais ou menos algo assim.
:"Até hoje me lembro do dia em que por obra do destino, eu fui parar naquele hospital. Eu não conhecia ninguém e todos pareciam me olhar por cima. Eu não te via há pelo menos 15, 20 anos. Foi então que eu vi aquela mulher vindo em direção a maca onde eu estava.
Aquela roupa azul com seu nome escrito. O nome que eu te dei: Abigail. O "Lockhart" eu sabia de onde vinha também. Cheguei a ver fotos do seu tempo de namoro com o tal do Richard. Você me atendeu como se eu fosse um qualquer, mas o tempo todo eu soube que era a minha filha. A melhor enfermeira daquele lugar, eu tinha certeza".
Chega, eu não podia ler mais.
- Quer brincar Julie? – Karen senta no outro balanço e eu viro pra olhar pra ela.
- Não.. obrigada... – eu torno a me balançar de leve e ela pula do balanço.
- Deixa que eu te empurro – ela veio atrás de mim e começou a me balançar mais forte. É... talvez ela não seja tão chata como eu imaginava..
- Você imaginava? – ela perguntou tornando a pegar o papel e dobrando-o, antes de deixar de novo em cima da cama.
- Eu? – a olhei espantando. – Não... – olho pro papel e tento me colocar no seu lugar naquela situação.
- Nem eu.. – ela diz chorando e tentando manter um sorriso – Porque ele não falou comigo? Será que eu fui uma filha tão ruim assim?
- Claro que não Abby – eu pulei para mais perto dela e a puxei pra um abraço – ele tinha as suas razoes. Deveria ter medo..
- Medo? – eu o encaro. – de mim? Porque?
- Abby.. – ele prendeu o seu olhar no meu – imagine você na situação dele. Ele te deixar com uma responsabilidade enorme, sabendo que você era apenas uma criança e que teria que lidar com tudo.. – eu olho pra baixo mas ele não permite e trás meu rosto pra perto do seu - com que cara ele iria voltar e dizer que agora queria ser o pai que ele deixou de ser no momento que ele não enfrentou aquilo e fugiu da casa de vocês por medo?
Começou a passar na minha mente milhares de rostos de pessoas que atendi no County. Como eu pude ser tão cega e não reconhecer o meu próprio pai? O que será que ele sentiu? O que eu senti? Será que ele ficou decepcionado por eu não ter lembrado dele? Ah meu Deus... Pego a caixa e começo a tirar tudo que estava dentro em busca de uma foto. Eu iria reconhecer.. eu tinha que lembrar o dia que meu pai me viu e que não pode nem me dizer adeus..
Quando eu estava começando a me empolgar com Karen, ouvi o sinal tocar.
- Vamos lanchar!- ela disse e me estendeu a mão, e nós fomos correndo para dentro da escola, onde seria servido o lanche.
Hummmm. Cachorro quente. Que delícia! Comi até me fartar e quando pensei que poderíamos voltar a nossa brincadeira, veio a tia e acabou com a nossa festa.
- Vamos, menina. Pra sala- droga, mais lição?
