Caminhos Noturnos
N/A: Muitas revelações neste capítulo, e muita melancolia também, mas acho que vai servir pra mostrar um pouco como Scyena se sente. Harry Potter pertence a J.K. Rowling.
Capítulo 3 – Folhas de Outono
O salão comunal estava escuro e vazio quando acordou. Havia adormecido na poltrona e suas costas doíam. Tivera um sono inquieto e pontuado de sonhos com Snape. Esfregou os olhos e bocejou.
A pensar em Snape, sentiu uma pontada de angústia. Não sabia ao certo o motivo de tal sentimento, mas refletiu em busca de um porquê. A conclusão a surpreendeu. Depois de longos anos, Snape foi a primeira pessoa com quem ela teve um contato mais prolongado, indo além das formalidades que sempre predominavam em suas relações com outras pessoas.
Ela não somava a esses anos, a convivência com sua tutora. Ela era uma exceção, já que a considerava uma mãe.
Sentia-se decepcionada e fracassada.
Em seu íntimo, gostaria de ser uma jovem normal, ter amigos, conhecidos e até um grande amor. Mas a fuga de sua casa, e a constante ameaça de voltar para lá a fizeram se fechar em si, e guardar a sete chaves todos os seus desejos. Maldito dom. Por causa dele sofria os horrores da solidão.
Era como carregar o peso de um mundo nas costas. Sentir-se culpada, sozinha e um fiasco de ser humano, ser o que na verdade não queria, e não conseguir se livrar disso.
"Você está se tornando a pedra que sempre fingiu ser" – disse a voz em sua mente – "Passou tanto tempo fingindo, que agora a Scyena obscura está te dominando. Teria você, coragem para mudar isso?"
Mudar. Ela precisava mudar. Por mais que todos lhe dissessem para ser cautelosa, para não se aproximar dos outros e para manter-se em segredo, no fundo ela desejava o contrário.
Naquele momento, Scyena sentiu-se um monstro. Ergueu as mãos diante dos olhos, e, embora não pudesse vê-las, sabia que estavam ali, prontas a explodir a qualquer momento, como um vulcão adormecido que, ainda assim, não deixava de ser uma ameaça.
"Scyena, você já controla seu dom o suficiente para tentar..."
– Sim, isso é verdade.
"Então por que não tenta?"
Ela cobriu o rosto com as mãos. Insana. A falta de calor humano estava deixando-a insana e isso, definitivamente, era mais difícil de controlar do que o seu dom.
"Você vai tentar?"
Ela não sabia. Estava com medo e confusa.
"Você vai tentar?"
– Cale-se! – cobriu os ouvidos e correu para o seu dormitório. Deslizou por debaixo das cobertas e ajeitou o travesseiro sob a cabeça.
Demorou a ter sono e, antes de adormecer, a voz ainda repetiu uma última vez:
"Você vai tentar?"
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Despertou poucas horas depois e notou que todas as suas companheiras de quarto ainda dormiam. Adorava os domingos. Todos aproveitavam para dormir até mais tarde, e ela, aproveitava para acordar mais cedo.
Tomou um banho, trocou as vestes e pegou um livro de poções na pilha sobre sua mesa de cabeceira. Após o desjejum, aproveitaria o silêncio para estudar nos jardins.
As mesas das casas estavam vazias, e ela sorriu intimamente, feliz por ter acordado tão cedo e poder desfrutar de tanta paz. Degustou sua refeição pacientemente, folheando o livro de poções que trouxera consigo. Era o livro que Snape havia indicado para que estudassem para a avaliação.
"Qual dessas poções ele vai nos mandar preparar desta vez?" – pensou, lendo o título de uma das poções do livro e, inconscientemente, olhou para a mesa dos professores. Para sua surpresa, Snape estava lá, com o queixo apoiado nas mãos cruzadas, os cotovelos sobre a mesa, encarando-a. Desviou os olhos, confusa e envergonhada lembrando-se dos seus pensamentos na poltrona – "Ele está acordado a uma hora dessas? E por que está me olhando?"
Uma mão suave pousou sobre seu ombro direito e ela derramou o leite na mesa com o susto.
– Eu não quis assustá-la...
Virou-se e se deparou com a longa barba branca de Dumbledore. Ergueu os olhos a fim de encará-lo, e quando fez menção de se levantar, ele a deteve e sentou-se ao seu lado. Acenou a varinha e o leite, que já ameaçava escorrer para suas vestes, desapareceu.
– Scyena, você sabe que eu ordenei que qualquer questão relacionada a você e sua conduta na escola fosse reportada diretamente a mim, tanto para sua própria segurança, como para a segurança dos outros alunos, não sabe? – ele disse num tom bondoso, seus claros olhos cintilando. Ela assentiu com a cabeça – Ontem eu recebi uma reclamação por parte do nosso professor de poções. Como ele só sabe uma parte de sua história, estava furioso por você ter saído de repente da sala dele, antes que ele pudesse lhe informar sua punição... – os olhos de Dumbledore se estreitaram – Presumo que algo tenha acontecido para que você o deixasse falando sozinho, estou certo?
Scyena suspirou, resignada – Está, professor.
– Era o que eu imaginava – sorriu ele – Pois bem, eu não pude evitar que sua punição fosse aplicada por ele, então peço-lhe que tente se controlar. Você sabe os riscos de uma exposição... – Dumbledore levantou-se – Ele deve comunicar-lhe a detenção ainda hoje, mas não se preocupe. Eu o convenci a não lhe dar uma tarefa árdua – Ele sorriu mais uma vez e se retirou.
Seus olhos se perderam em algum ponto do salão principal. Dumbledore tinha aliviado seus temores do dia anterior, mas agora ela estava preocupada com outra questão.
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O jardim irradiava tons alaranjados, e as folhas caíam dos galhos para forrar o chão num imenso tapete dourado. Scyena acomodou-se sob a sombra de uma cerejeira e admirou a superfície cristalina do lago, que ondulava suavemente ao sabor da brisa que resvalava em suas águas.
Fechou os olhos e sentiu os aromas do outono, difundidos em cada centímetro do jardim. Seu longo casaco negro mantinha-a aquecida e protegida das correntes de ar frio que circulavam naquela época do ano. Ali perto, ouviu um baque surdo sobre a folhagem e olhou para a direção que o som tinha vindo. Sorriu e levantou-se para recolher do chão, uma maçã vermelha que acabava de cair do pé. Voltou a acomodar-se ao lado de seu livro e limpou a fruta na manga das vestes.
"Tão perfeita em sua forma e cor..."
Uma profunda melancolia assolou-a, fazendo com que suspirasse profundamente. Um casal de grifinórios, que também acordou cedo para aproveitar o dia, correu a sentar sob a macieira, e a trocar confidências e carícias inocentes, enquanto sorriam e mordiam a mesma maçã. Seus olhos castanhos retiveram a imagem por um bom tempo, remoendo o sentimento de solidão que deixavam transparecer.
Ela gostaria de estar no lugar daquela jovem grifinória, aproveitando a juventude como ela, mas não estava. Seu coração amadurecido gritava por amor, mas ela fechava os olhos e tentava não ouvir seus clamores. Amar era um privilégio que ela achava que nunca teria.
A promessa de seu pai deixava bem claro: "Só deixará a obediência ao pai quando se casar com um homem determinado por ele..." e seu pai havia, há muito tempo, determinado o perfil daquele que deveria ser seu marido. Um seguidor das trevas. Era esse o homem que a desposaria. Sob o castigo de perder a pessoa que mais amava caso não cumprisse o pacto de sua família, seu coração estava fadado a dois destinos - acostumar-se ao sofrimento de viver com um vassalo do Lord das Trevas, ou viver eternamente na solidão.
"Mas você não está proibida de ter um amigo..." – a voz sussurrou e ela atirou a maçã no lago, com raiva – Deixe-me em paz, com seus pensamentos. Eu não posso...
"Ah, você pode, sim. Mas será que você consegue?"
Silenciou sob o efeito daquela pergunta. Uma amizade valeria à pena o risco de voltar para sua família?
A família Haze era uma das mais conservadoras da Suécia, e detentora de antigas tradições, as quais eram seguidas à risca. Uma delas era o pacto selado a sangue, que tanto atormentava a vida de Scyena. Segundo tal pacto, o pai detinha total direito para decidir o futuro de suas filhas, passando este direito somente para os homens que se casassem com elas. A situação se tornava ainda pior quando, o próprio pai era quem decidia o perfil dos homens que deveriam desposá-las.
O histórico dos Haze era bastante diverso. Alguns deles se tornaram grandes bruxos que contribuíram para o crescimento da comunidade mágica, outros desenvolveram natureza vil e se associaram às artes das trevas, na busca pelo poder e pela exterminação dos chamados "sangue-ruim".
Atlantis Haze, pai de Scyena, enveredou pelo segundo caminho e, para seu deleite, descobriu em sua filha única um dom extraordinário, herdado de uma antepassada, e que se expressava raras vezes na linhagem da família. Assim sendo, prometeu a sua própria filha ao ascendente e poderoso Lorde das Trevas, em troca de mais fortuna e poder.
Scyena mostrou-se, desde cedo, uma criança astuta e inteligente, e conseguiu fugir de seu pai quando tinha apenas 11 anos de idade. A velha senhora que Scyena tanto estimava, encontrou-a numa estação de trem, tornou-se sua tutora e acolheu-a em sua casa, numa cidade da Noruega, cuidando para que os Haze não a encontrassem.
Tomando conhecimento de que o único bruxo que o Que-Não-Devia-Ser-Nomeado temia, era diretor de uma escola de magia na Inglaterra, entrou em contato com ele e narrou-lhe a história de sua pequena protegida. Mesmo tendo 13 anos e estando 2 anos atrasada, Scyena foi recebida por Dumbledore e seu segredo ficou guardado com ele.
Assim, a jovem sentada sob a cerejeira, agora podia desfrutar um pouco da sensação de estar num lugar protegido. No entanto, seu coração nunca tivera paz. Temia todos os dias que a encontrassem, e a forçassem a usar seu dom para fins ilícitos. Mesmo o desaparecimento do Lorde das Trevas não fora suficiente para tranqüilizá-la. Ainda havia a ameaça de seu pai, e o maldito pacto que perduraria até o fim de seus dias.
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Folheou o livro de poções, mas não conseguiu se concentrar na leitura. Pensar em poções era lembrar-se de Snape, e lembrar-se de Snape era pensar em tudo o que tinha acontecido entre os dois. Dumbledore conseguiu apaziguar sua aflição ao lhe contar que havia conversado com o mestre de poções, aconselhando-o a dar-lhe uma punição mais amena.
A ela restava apenas esperar que Snape fizesse o comunicado oficial, aceitar a detenção que lhe fosse dada, e cuidar para que outros deslizes não acontecessem. Mas será que era só isso que queria fazer? Pousou o livro ao seu lado e encostou a cabeça no tronco da árvore. Havia dúvida e angústia em seu coração.
Ouviu passos quebrarem o silêncio e olhou para o lado. O casal de grifinórios caminhava de volta para o castelo com algumas maçãs nas mãos. Voltou seus olhos para a margem do lago, e divisou a figura de um homem que caminhava lentamente em sua direção.
"É ele..."
Levantou-se e bateu a poeira das vestes. Esperou, com o coração palpitando acelerado, que ele chegasse à sua frente e lhe estendesse o papel que carregava. Pegou o envelope de suas mãos e guardou-o dentro do livro.
Nenhuma palavra foi proferida entre os dois, e Snape virou-se para ir embora.
"Você vai tentar?" – repetiu a voz e ela imaginou que se realmente queria tentar, esta era sua última chance.
Suas mãos trêmulas apertaram o livro e ela tomou fôlego.
– Professor?
Snape parou de caminhar. A brisa matinal balançou a copa das árvores, fazendo uma chuva de folhas douradas cair sobre as duas figuras vestidas de negro, num contraste gritante com a paisagem. As capas longas ondularam com a carícia branda da aragem, e os cabelos de Scyena caíram sobre seus rosto.
O homem tornou a virar-se para a jovem, a tempo de vê-la ajeitar alguns fios negros atrás da orelha. Surpreendeu-se ao pegar-se pensando como ela ficava mais bonita emoldurada pelas cores do outono. Contemplou-a ainda por alguns segundos, antes de sua voz feminina se fazer ouvir.
– Seja lá o que for que o senhor esteja pensando de mim, só queria pedir que me perdoe – ela olhou para os próprios pés, desviando seu olhar dos olhos negros que a encaravam – Não nego o meu erro, mas não errei porque quis...
Ele pensou em usar suas palavras letais para fazê-la perceber sua autoridade, e não repetir os acontecimentos dos dias anteriores, mas viu-se incapaz de tal ato. Pela primeira vez desde que a conhecera, percebeu que realmente ela não era uma adolescente como os outros. Embora ainda fosse estudante, tinha ares de mulher e não de menina.
Os outros professores comentavam sobre a moça que Dumbledore havia aceitado fora dos padrões de idade, mas ele não havia atentado no fato até aquele momento. Ela sempre fora calada e discreta, mas agora que falava com ele cara-a-cara, por vontade própria, ele percebeu do que os colegas de trabalho falavam.
– Eu não sei o que há de tão especial em você, que a torna diferente dos outros alunos aos olhos de Dumbledore, mas não vou abrir mão de sua punição – falou, reencontrando seu velho tom frio.
Scyena ergueu os olhos.
– Não estou pedindo isso – proferiu em tom brando, mirando algum ponto do horizonte atrás de Snape– Estou pedindo o perdão puro e simples, como uma forma de aliviar a angústia que sinto em saber, que o único contato mais prolongado que eu tive com uma pessoa, resultou numa inimizade.
Snape não conteve a surpresa ao descobrir que, debaixo da capa inexpressiva que ela usava, havia um coração e sentimentos. De certa forma, ela se parecia com ele, mascarada diante dos outros, escondendo o que realmente sentia.
Ele não sabia o que responder. Era inédito, até o presente momento, que um aluno fizesse questão de sua amizade. Sentiu-se desconcertado diante daquela jovem, e desviou os olhos dos castanhos que agora o encaravam. As folhas continuavam a cair das copas, e uma delas prendeu-se nos fios negros dos cabelos de Scyena.
Como as palavras custavam a sair, ele apenas caminhou até ela, estendeu a mão e retirou, delicadamente, a folha de seus cabelos.
Scyena observou-o caminhar de volta, margeando o lago, e soltar a folha dourada da cerejeira sobre a água. Snape dissera muito mais com aquele gesto, do que teria dito com qualquer palavra.
Fechou os olhos, sentindo uma gostosa sensação aquecer-lhe o peito.
"Eu não sou um monstro..."
Virou-se para o lado oposto e, com um sorriso nos lábios, refez seu caminho para o castelo, pisando suavemente sobre as folhas de outono.
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Nota: Oh, eu fui poética demais desta vez... Mas se querem saber, foi o capítulo que eu mais gostei. Desculpe, Thay, não consegui fazê-lo maior. Tive medo de esticá-lo demais e torná-lo prolixo.
Eu me inspirei ouvindo duas músicas. Angel, de Sarah Mclachlan, e Come Away With Me, de Norah Jones. Se tiverem oportunidade de reler este capítulo ouvindo estas duas canções, terão noção de como eu me senti ao escrever.
Engraçado como o Snape me pareceu tão acessível desta vez... Nah, deve ser nóia minha hehehe
Eu espero reviews. Sinceramente, espero muitas reviews, ok? D Obrigada mais uma vez a Miri e a Eowin Symbelmine por comentarem.
Beijos da Lady!
