Conversas

No dia seguinte Marguerite e Roxton acordaram confusos e mal-humorados. Antes de se terem sequer levantado, começaram nas suas habituais discussões conjugais. Veronica, que pouco dormira naquela noite e que já estava acordada à algum tempo, aproximou-se dos amigos bem-disposta e com um sorriso na cara.

- Problema teu! Tu é que podias ter apagado a porcaria da fogueira! Nem penses que vou coser essa tua camisa meia chamuscada e cheia de buracos! Não a deixasses a assar durante a noite que isso não tinha acontecido! – resmungava Marguerite

- Problema meu? Desculpa mas quem é que a utilizou como almofada durante a noite e teve um sonho mau atirando-a para cima das brasas? Não fui eu de certeza! – ripostava Roxton

- Primeiro: eu não atirei para cima das brasas. Quando acordei ela estava bastante longe e estava aos teus pés! Segun…

- Não foi aos meus pés foi na minha barriga. Isto porque houve alguém – os olhos de Roxton brilhavam maliciosamente – que decidiu passar a noite em cima de mim com a minha camisa!

- Pois deve ter sido uma dessas Zanga aí da aldeia. Não me admirava nada.

- Marguerite não comeces está bem?

Antes que Marguerite pudesse continuar Veronica decidiu pôr um fim aquela discussão ridícula, por muito cómica que fosse. Tossicou e imediatamente foi fuzilada por dois pares de olhos furiosos.

- Desculpem interromper, mas acho que a camisa agora não interessa muito. Tenho coisas muito mais importantes para vos contar.

- Pois tens minha menina – disse Marguerite agarrando nas suas coisas – Quero saber porque raios nos deixaste dormir até esta hora! Sim porque de acordo com uns boatos que eu acabei de ouvir, a criança morreu ontem. Que raio se passou? Ela não estava estável?

Veronica suspirou.

- Acredita que tenho uma explicação bastante plausível. Mas o melhor é contar-vos a todos na Tree-House. Não há mais nada a fazer aqui e cheira-me que alguém precisa de uma chávena de café.

Despediram-se de Assai que se encontrava bastante chocada com as notícias. Também ela queria saber o que se passara com a criança mas Veronica decidiu limitar a sua explicação à expedição. Por muito que adorasse e confiasse em Assai, Veronica não queria espalhar isso por toda a aldeia. Principalmente porque com isso apenas causaria o caos, a preocupação de parte de Assai. Portanto os três exploradores puseram-se a caminho quando o sol estava já bastante alto, ansiosos por uma refeição e curiosos quanto à história de Veronica. Quando o caminho terminou finalmente, os companheiros subiram pelo elevador que estava propositadamente em baixo, inspirando um cheiro agradável a torradas e a chá.

Foram bem recebidos pelo resto da expedição que comia o pequeno-almoço. Depois de uma enorme confusão de arranjar cadeiras, de fazer e servir café, os exploradores sentaram-se os seis à mesa prontos a ouvir Veronica. Veronica resumiu os acontecimentos da noite anterior, ditando as palavras exactas da criança. Estes mostraram-se um pouco indignados quanto à insinuação de Sheena em relação ao seu medo de ser analisada e rejeitada por todos. No entanto ouviram até ao fim sem interromper, formulando possíveis comentários e explicações nas suas cabeças.

Ao contrário do que Veronica esperava, todos os exploradores começaram a falar ao mesmo tempo, tentando expor as suas questões e argumentando pontos incompreensíveis. Challenger elevou a sua voz acima de todos fazendo-os para com a discussão:

- Voçês tenham lá calma! – exclamou ele levantando-se – Assim não vamos a lado nenhum.

Veronica encolheu os ombros, indiferente.

- Não há lado nenhum para ir Challenger. Não posso fazer nada. Sheena quis que eu esperasse pela altura certa e que vos levasse para uma expedição em busca da Terra Perdida. Mas temos um problema.

- Não sabemos qual é a altura certa – disse Finn

- Não só. Eu não vos quero meter nisto. Eu não tenho o direito de vos desviar das vossas expedições em busca de uma saída do planalto. A vossa missão é ir para Londres. A minha é proteger o planalto. Voçês já fizeram demais por mim. Não tenho esse direito. Voçês foram a minha família durante mais de três longos anos. Isso bastou-me. Não quero que arrisquem mais. – disse Veronica tristemente

- Veronica! – exclamou Malone desesperado – Nem penses que te vou deixar ir à procura de Avalon a tentar cumprir uma missão dessas sozinha! Eu vou contigo! Aliás – Malone agarrou na mão de Veronica – Eu não vou a lado nenhum sem ti. Encontre ou não a saída do planalto.

Fez-se um silêncio incómodo na Tree-House. Marguerite e Roxton entreolharam-se compreensivelmente.

- Acabou Ned – disse Veronica retendo as lágrimas. Largou a mão de Malone e voltou as costas aos seus amigos saindo.

Atrás de si não deixou nada mais do que cinco pessoas pensativas.

Era já quase de noite e Marguerite jazia na cama, deitada de barriga para cima. Era hora de jantar e coubera a Challenger a tarefa de cozinhar, o que deixara um tempo livre para o resto dos exploradores. Marguerite tentava ler um livro mas os seus pensamentos teimavam em desviar-se para Veronica. Lia a mesma frase repetidas vezes até que por fim pousou o livro na cama, entre suspiros. Quase que morreu de susto quando por detrás do livro apareceu um Roxton silencioso encostado à parede do fundo, olhando para ela ternamente.

- John! – exclamou – O que estás aqui a fazer? Queres-me matar de susto? Não se pede primeiro para entrar? Que rico cavalheiro!

- Desculpa, minha querida – disse Roxton – Mas estavas tão bonita aí concentrada no livro que não quis incomodar-te.

Marguerite esboçou um sorriso. Porque é que aquele homem fazia-a sempre sorrir?

- Na verdade não estava muito concentrada – suspirou sentando-se na cama.

- Então – Roxton rodeou-a e sentou-se na beira – Andas bastante estranha nestes últimos dias. Passa-se alguma coisa?

- Não, não é nada – respondeu Marguerite

- Marguerite, eu conheço-te. Conta-me por favor. Sabes que podes confiar em mim.

Marguerite nada disse mas Roxton sabia no que ela estava a pensar. Depois de tudo, de todas as provas de amor, de tudo o que tinham passado juntos seria possível que ela ainda não confiasse nele?

- Não insistas John – Marguerite retomou a fingida leitura.

Roxton, farto de insistir, levantou-se derrotado dirigindo-se à porta. No entanto quando estava quase a atravessá-la ouviu uma voz a chama-lo. Olhando para trás viu a cara inquietante e arrependida de Marguerite.

- Estou preocupada com a Veronica - desabafou.

Roxton voltou ao seu lugar a agarrou-lhe em ambas as mãos.

- Todos estamos, acredita. Temos de ter uma conversa muito séria com ela. Ela não nos pode simplesmente fazer isso. Ainda por cima num assunto tão delicado. Se aceitarmos o que ela diz teremos de a ver partir para sempre, provavelmente para uma morte certa. Se não o fizermos estaremos a invadir um terreno só dela. Afinal Avalon está associado aos seus pais…

- Não só John. Não só. Avalon… Pode ter tanta coisa que nós nem imaginamos. Talvez tantas recordações e tanta coisa boa acabe por nos assustar ter de partir para um lugar desses. De qualquer maneira eu não a quero deixar sozinha.

Roxton admirou a mudança de Marguerite súbita. Esta reconheceu a desconfiança no seu rosto.

- Okay admito que é estranho ver-me tão preocupada com outra pessoa, mas Roxton… – Marguerite aproximou-se, os seus olhos repletos de dor – Já a vejo como uma pessoa muito chegada. Não é agora que a vamos perder. Não digo que não queira ir para Londres – mas acho que podemos adiar isso. Por ela. E Veronica vai ter de o aceitar.

- Oh Marguerite – Roxton sorriu - Obrigado.

- Nem penses que sou sempre assim bondosa e querida – disse Marguerite afastando-se de súbito com um sorrisinho nos lábios

- Hum… – Roxton puxou-a para si – Não faz mal, meu amor. Eu amo-te de qualquer das maneiras.

Por entre um abraço apertado e um beijo suave, ambos começaram a pensar como é que Veronica o aceitaria.

O jantar foi silencioso e calmo. Ouvia-se apenas o som suave dos pratos e dos talheres e por vezes o de um copo a encher-se de água. Quando o silêncio começou a tornar-se constrangedor, Marguerite levantou-se para limpar a cozinha, mas imediatamente estacou com a voz de Challenger por trás de si.

- Não comeste nada, Marguerite – disse Challenger – Não gostaste?

- Gostei sim – respondeu Marguerite equilibrando os seus pratos – Mas não tenho muita fome – Virou-se para Veronica, decidida – Veronica, podes vir comigo lá abaixo?

Os outros levantaram o olhar surpreendidos tanto pelo seu tom de voz extraordinariamente calmo, como pela sua preocupação e afecto. Veronica levantou-se sem uma palavra enquanto os exploradores olhavam-nas de talheres suspensos no ar.

- Ela não devia ter aquela conversa com a Veronica sozinha – disse Finn mal o barulho do elevador se desvaneceu.

- Eu acho que sim - disse Challenger levantando-se – Na verdade, eu acho até que elas deviam ter tido essa conversa à mais tempo.

Marguerite pensava exactamente na mesma coisa, enquanto andava nervosamente um lado para o outro, raspando o chão com as suas botas. Impaciente, Veronica encostou-se a uma árvore, não muito longe da luz acolhedora e segura proveniente da Tree House.

- Marguerite é melhor ires directa ao assuno – exclamou Veronica aborrecida - Não sei se sabes mas se um dinossauro ouve esse restolhar todo e te atacar por trás não vais ter muito tempo para te defenderes.

Marguerite deu uns passos rápidos para ao pé de Veronica olhando em volta. Por fim, apercebendo-se que estava uma noite muito calma e silenciosa, descansou e desabafou todos os seus pensamentos. Contou-lhe a sua conversa com Roxton, e que ninguém a ia deixar sozinha, visto que eles durante três anos eram um grupo que se unira para sobreviver.

- Pode ser estranho para ti ouvires isto – acrescentou Marguerite – Mas eu estou preocupada contigo. Todos estamos. Mais umas aventuras não nos vão impedir de irmos para Londres. Ainda nem encontrámos a saída do planalto! – exclamou.

Marguerite receava que Veronica desatasse aos gritos e a rejeitasse, mas quando se calou esta exprimia emoção no seu olhar.

- Obrigado – murmurou Veronica.

Marguerite suspirou e esboçou um sorriso. Pensou no que mais lhe tinha para dizer, agora que estava sozinha com ela. Mas no momento em que se preparava para lhe revelar os seus sentimentos, o quanto era Veronica importante para ela e como a via como uma irmã muito chegada ouviu um restolhar de folhas agressivo atrás de si. Ambas congelaram e ficaram em silêncio durante alguns minutos, fixando com o olhar um ponto a alguns metros de distância, onde alguns ramos inclinavam-se para a frente e estalavam.

De repente um raptor saltou das árvores rugindo baixinho. Parou de rugir e estacou ao encontrar Veronica e Marguerite. Mas imediatamente recuperou do choque dirigindo-se a elas com fúria.

Aterrorizada, Marguerite procurou a sua arma mas não a encontrou.

- Dispara! – gritou Veronica

- Não a tenho!

Veronica olhou-a e num relance teve uma ideia.

- Corre para o elevador. Vá rápido! – exclamou

Marguerite fugiu com toda a velocidade. Parou no elevador e virou-se para trás a tempo de ver Veronica a desviar-se do dinossauro correndo para a selva. Ouviu um rugir furioso e depois fez-se silêncio. Durante esses minutos inquietantes Marguerite afastou-se do elevador preocupada e curiosa. Mas imediatamente recuou quando Veronica apareceu de repente, pendurada numa liana, aterrando suavemente ao pé de Marguerite. Olhou para trás satisfeita e tirou a sua faca quando o dinossauro apareceu novamente, desorientado. Lançou-a com pontaria e esta espetou-se no coração do animal que guinchou e caiu morto com um ruído abafado. Veronica aproximou-se e retirou a faca limpando-a às folhas.

- É melhor irmos para casa – disse Marguerite

- Sim claro – exclamou Veronica contente observando o dinossauro – Vamos chama-los porque parece-me que já temos almoço para amanhã

Marguerite sorriu e subiram juntas no elevador. "Mais um vez vou ter de adiar aquela conversa", pensou Marguerite.

Satisfeitas entraram na Tree-House contando o sucedido aos outros que imediatamente se levantaram para buscar o animas antes que o cheiro a sangue atraísse outros seres. Depois de trabalho reuniram-se todos, sem sono, como uma família unida, banhados pelo luar brilhante.