Título: Luz e Sombras

Por: Sissi

Disclaimer: IY não é meu.

Capítulo III

A manhã é, para muitos, o começo de um novo dia que não deve ser desperdiçada. Todas as desventuras que ocorreram no dia anterior devem ser esquecidas, pois o passado deve ficar para trás, e o futuro, o presente é o que importa. De que adianta ficar frustrado se uma pequena gota de chuva caiu do céu e se espatifou em milhares de partículas cristalinas se ela não voltará a se unir e constituir esta mesma gota? Da mesma forma que algum incidente possa ter chateado alguém, esta decepção deve ser esquecida, pois ela já ocorreu e não há como voltar atrás.

Sesshoumaru, no entanto, não concorda muito com esta filosofia de vida. Ao avistar sua sala, ele nem pensou duas vezes: abriu a porta, jogou os prontuários sobre a mesa e foi direto à mesa perto do banheiro onde havia um copo e uma garrafa de uísque. Suas mãos tremiam ao segurar a garrafa, e após colocar um pouco do líquido dourado no copo, ele recolocou o copo intacto sobre sua mesa de mogno, sem ter bebido uma única gota deste elixir que, naquele momento, poderia ser seu único remédio.

Seus olhos estavam um pouco irritados, talvez devido à força com que tentava não piscar enquanto se dirigia ao seu escritório. Pressionando seus dedos indicadores sobre suas têmporas, ele começou a esfregar este local, lentamente, como se a toque de seus dedos pudessem dissipar a dor-de-cabeça que iniciara quando uma certa jovem de temperamento nada dócil começou a fazer-se presente na sua mente. Seus lábios se partiram, e um som semelhante a um rosnado escapou-lhe da garganta.

Ela era uma garota relativamente bonita, com rosto simétrico e pouco anguloso, com traços orientais, Sesshoumaru pensou. Seus olhos haviam desnorteado-no por alguns instantes, quando ele os viu pela primeira vez. Lembrava-se de como havia reclamado quando notou os olhos comuns de Sango. Agora, porém, teria que engolir suas palavras de um gosto um tanto amargo. Sim, seus olhos eram bastante exóticos, mas seu temperamento não era nada bom. Quem poderia agüentar uma garota de um gênio tão difícil? Nem mesmo os parentes da própria garota, ele pensou triunfante. Ela e seu irmão formariam um par perfeito, caso ele estivesse ainda solteiro, ou melhor, caso ele não estivesse namorando. Às vezes, ele ainda não conseguia acreditar como ele pôde arranjar uma garota tão fina e discreta. Kagome teria sido uma opção mais lógica, mas talvez, o destino queria assim. Balançando sua mão, como se estivesse espantando um mosquito, ele relanceou seus olhos pela sala quando ouviu passos no corredor que aumentavam à medida que se aproximavam de sua sala. Uma sombra escura se projetou sobre o vão da porta, em que filetes de luz do corredor se infiltravam, e lançavam uma cor esbranquiçada sobre sua sala escura. Um leve ruído de punhos batendo contra madeira, e ele suspirou irritado.

- Entre.

A porta foi aberta lentamente por uma mão pálida que, há tempos, não via a luz do sol numa praia durante o verão. Um estetoscópio prateado estava em volta desta pessoa, e longos cabelos negros estavam presos por uma fita branca, as longas tranças caindo suavemente sobre suas costas. Olhos castanhos e sérios fitaram Sesshoumaru por alguns instantes, e subitamente, quando seu olhar repousou sobre o copo com uísque, um pequeno sorriso aflorou sobre seus lábios.

- Ouvi dizer que você está tendo problemas com uma certa paciente, - a mulher comentou casualmente. Sesshoumaru agarrou os braços da sua cadeira onde estava sentado e lançou um olhar que seria capaz de congelar o Inferno. A mulher, porém, como se acostumada com este olhar, apenas colocou alguns fios soltos de cabelo atrás da orelha, escolhendo uma cadeira defronte de Sesshoumaru para poder olhá-lo melhor. Ou para zombar dele com maior facilidade.

- Quem disse isso?

- Eu ouvi isso por aí...

Kikyou sorriu interiormente, e desviou seus olhos, repousando-os sobre os prontuários espalhados sobre a mesa. Parecia que ele ainda tinha muito o que fazer durante o dia, e estalando sua língua, ela se levantou, esticando sua roupa branca que consistia em uma saia longa que chegava aos joelhos, e uma camisa de mangas três quartos com alguns babados na região da escápula e dos pulsos, a fim de evitar que sua roupa ficasse com muitas rugas. Era um gesto desnecessário, pois para Kikyou Masuhara estar imperfeita era algo simplesmente impossível. Ela era, o que algumas pessoas do sexo masculino aclamavam, a mulher perfeita. Bonita, inteligente e sensual. Poderia existir algo melhor? Uma combinação de características melhor? Os homens diziam que não.

Sesshoumaru, porém, parecia imune aos seus feitiços, não porque não gostasse de mulheres – dizer isso seria um sacrilégio – mas porque ele a conhecia desde a infância e, talvez por isso, já tenha se acostumado com seus encantos. Além disso, como já foi dito anteriormente por várias pessoas, sua personalidade era um pouco parecida com a dele, como um certo ar de superioridade para com estranhos e uma frieza ao tratar com as pessoas em geral, com algumas poucas diferenças que sobressaem quando ela está em companhia de seu namorado, como um certo ar de meiguice que ele ainda não conseguia acreditar que ela possuía, e convenhamos, ficar a vida inteira com uma pessoa que pensa igual a você não seria nada divertido. Onde estaria a graça das discussões, onde estaria a paixão de uma briga? Como se não bastasse, toda vez que ela está com ele, tudo o que eles conseguem conversar é sobre trabalho, seu irmão, e alguns assuntos do dia que estão registrados nos jornais, e que valem um comentário ou dois.

- Bom, ainda tenho que cuidar de vários pacientes.

- Então por que você veio me ver?

- Não posso visitar um amigo? - Ela perguntou.

Sesshoumaru arqueou uma sobrancelha.

- Nós trabalhamos no mesmo hospital, e sempre almoçamos juntos. Precisamos nos ver mais vezes do que isso?

Kikyou franziu a testa, não gostando nem um pouco do mal-humor de seu colega. Aquela paciente não poderia ter sido tão ruim assim, poderia? Além disso, e mais uma vez, um sorriso pousou sobre seus lábios, ela deveria ser o exato oposto de Sesshoumaru para ter conquistado sua atenção. Abanando a mão impacientemente, Kikyou se levantou da cadeira, colocando o assento de volta em seu lugar, e se dirigiu à porta. Sua mão direita permaneceu sobre a maçaneta da porta, esperando sua cabeça formular alguma frase para replicar.

- Já vou indo, mas tome cuidado com esta aí, porque eu acho que ela lhe trará muita dor-de-cabeça pela frente, e dito isso, retirou-se do aposento, não sem antes lhe lançar um olhar curioso. Sesshoumaru, exasperado, pegou uma caneta esferográfica e começou a escrever rapidamente sobre um papel, ignorando-a completamente. Kikyou balançou a cabeça, como se estivesse considerando o futuro, e fechou a porta atrás de si. Ao notar que algumas enfermeiras se encontravam no corredor, ela franziu o cenho, e seus lábios semicerraram. Uma máscara de seriedade parecia ter sido colocado sobre sua face. A máscara de frieza, que todos pensavam ser sua verdadeira personalidade.

Kikyou avançou alguns passos, e apertou o botão para chamar o elevador. Fora um dia produtivo, e para dizer a verdade, fazia muito tempo que ela não via Sesshoumaru perder a compostura, ou melhor, a paciência. Uma visita para esta paciente deveria ser feito imediatamente, não só porque ela seria uma de suas pacientes – Kagome parece que irá precisar de uma psiquiatra por algum tempo – mas também, uma pessoa que conseguiu tal feito com seu amigo de infância merece destaque. Muito destaque. Além disso, e desta vez, ela esforçou-se o máximo possível para não sorrir diante do público, ela teria uma ótima história ao final do dia para contar ao Inuyasha. Ambos teriam uma noite bastante agradável, que ela tinha certeza de que estaria repleto de gargalhadas e de bom humor.

O elevador abriu suas portas metálicas, e Kikyou entrou, abaixando um pouco seu rosto quando um outro médico saiu do elevador. Seus dedos pararam diante dos botões dos andares, e mordendo seu beiço, seus olhos se iluminaram instantaneamente quando apertou o décimo terceiro andar. Olhando seu relógio de pulso, e considerando que seria apenas uma visita de checagem para apenas conhecer sua nova paciente, Kikyou apoiou suas costas sobre o espelho e fechou seus olhos, esperando a máquina transportá-la para mais perto do céu. Um céu límpido e cheio de sonhos. Estes mesmos sonhos que poderiam se concretizar a qualquer momento. Por ora, no entanto, sua vida estava bastante satisfatória, se não boa. Seu coração acelerou ao pensar no Inuyasha, e como aquela noite seria especial. Eles iriam comemorar o primeiro ano de namoro, após vários desencontros nos anos anteriores, incidentes que ela riria caso ela expusesse os fatos a alguma boa amiga. Seus lábios se partiram, e ela beijou um anel prateado na sua mão direita, no dedo ao lado do mindinho.

O elevador parou, e ela saiu para ver novamente paredes brancas com algumas plantas de ricas folhagens em cada canto das salas e dos corredores, ao lado das portas. De vez em quando, algumas pinturas alegravam algumas paredes, mas em geral, elas permaneciam nuas. Seus passos seguros e rápidos rapidamente transportaram-na para o outro lado do corredor, e checando os números das salas, seus pés levaram-na para o quarto 133.

Não havia nenhum som vindo do quarto. Estranho, Kikyou pensou, mas a garota poderia ter facilmente caído no sono. Afinal, acordar depois de um acidente, e gritar com alguém logo em seguida é um ato muito extenuante, mesmo para esta garota com um temperamento tão ousado. Sua mão se levantou e parou diante da porta. Algumas batidas depois, ela esperou pacientemente, não gostando nada do silêncio. Nem mesmo o som de lençóis sendo arrastados, ou de palavras murmuradas eram ouvidas. Apenas um silêncio sepulcral, que faria o sangue de qualquer um gelar. O silêncio não é algo incomum num hospital, mas depois de ter ouvido fofocas de que esta garota não era nada calma, não ouvir ruídos era bastante estranho.

Kikyou abriu a porta, e sua mão que estava na maçaneta enrijeceu. Não havia ninguém no quarto, salvo alguns pássaros no parapeito da janela. Sua mente começou a rodopiar, não acreditando que a garota teria a coragem de fugir. Não seria difícil de compreender a razão de ela querer sair do hospital, mas a ponto de ir embora sem avisar ninguém seria um pouco precipitado. E burro. Como se não bastasse, ela estava no décimo terceiro andar, e pulando pela janela provavelmente a mataria. Provavelmente não, mataria com toda a certeza, com a mesma certeza de que o sol sempre nasce no leste e se põe no oeste. Segurando o estetoscópio com força, Kikyou deu meia volta e começou a se dirigir à secretaria. No entanto, após seu primeiro passo, ela esbarrou numa pessoa e quase caiu devido ao impacto do choque. Abrindo a boca, e colocando uma mão sobre seu peito, ela abanou a cabeça, como se dissipando qualquer coisa que iria dizer, e olhou para a pessoa.

Uma garota de cabelo negro e olhos azuis estava sentada no chão, segurando sua cabeça firmemente. Kikyou abaixou-se e pousou uma mão sobre seus ombros, apertando-os levemente. Kagome levantou seu rosto, e sorriu timidamente, fazendo a outra garota esquecer de levantar seu muro usual contra estranhos. Oferecendo uma mão para Kagome se levantar, Kikyou franziu o cenho quando a outra nada fez, continuando a permanecer sentada no chão, como se seu gesto tivesse passado despercebido.

- Você está bem?

Balançando a cabeça para cima e para baixo, Kagome virou seu rosto para que pudesse ficar cara a cara com a mulher com quem estava conversando. Isto era fácil, pois sendo um hospital, o silêncio era estarrecedor, e a voz desta mulher era clara e melodiosa. Parecia o de uma cantora, Kagome falou para si mesma. Era uma pena que ela não podia ver suas feições, mas com tal voz, ela tinha certeza de que era uma pessoa gentil.

- Estou, só não consigo enxergar.

Kikyou arregalou os olhos. Então esta era a sua paciente, a famosa Kagome Higurashi.

- Venha, eu ajudo você a se levantar, Kikyou ofereceu, agarrando um braço da garota, e incentivando-a a usar suas pernas para se levantar. Alguns segundos depois, Kagome estava sentada na cama, virando a cabeça ocasionalmente à medida que ouvia barulhos ao seu redor. Um objeto gelado foi colocado na sua mão, e segurando com força, ela levou-o até o nariz e cheirou.

- Meu nome é Kikyou Masuhara, e serei sua psiquiatra. E isto aí é água.

-Ah... Obrigada, e muito prazer.

Aproximando o copo de seus lábios secos, ela deu alguns goles, e pousou o recipiente sobre seu colo. Oferecendo sua mão direita diante de si, ela esperou que sua médica apertasse-a como um gesto de reconhecimento de amizade. Kikyou estendeu sua mão, e apertou a mão de Kagome com força.

- O que você estava fazendo fora do quarto? Kikyou perguntou. Um leve tom avermelhado aflorou sobre as bochechas de Kagome, e gaguejando um pouco, devido ao embaraço e sua vergonha, respondeu que estava procurando pelo banheiro. Suas mãos apertaram o copo, incerta sobre o que falar.

- Espero que estejam lhe tratando bem, Kikyou replicou, observando que o quarto estava bem limpo.

- Sim, todos foram gentis, exceto uma pessoa muito irritante, Kagome respondeu com fervor, sem notar que seu rosto havia inflamado devido à veemência de sua afirmação. Kikyou cobriu seus lábios com seus dedos, e seus olhos brilharam de curiosidade.

- Uma pessoa? Quem?

Kagome franziu o cenho, tentando se lembrar do nome da pessoa. Ela mordeu seu beiço, à medida que o tempo passava, e seu cérebro não conseguia chegar à resposta. Frustrada, ela lançou suas mãos para o ar, e agitou sua cabeça para os lados, sentindo-se derrotada. Kikyou apenas sorriu.

- Ele não lhe disse seu nome?

- Como você sabe que era um homem? - Kagome perguntou, surpresa, levantando a sobrancelha num sobressalto. Kikyou apoiou seu queixo em suas mãos, e começou a fitar Kagome. Ela era muito bonita, ela pensou, com um certo ar de ingenuidade recobrindo seu ser. Talvez ela seja o remédio de que Sesshoumaru tanto precisa. Talvez, ela murmurou para si mesma.

- Foi apenas um palpite.

Kagome balançou a cabeça, e aceitou as palavras de sua médica. Relembrando os acontecimentos de algum tempo atrás, suas bochechas inflamaram novamente, e agarrando o lençol onde estava sentada, a ponto de seus dedos perderem qualquer cor que eles possuíam, ela começou a xingar esse médico que nada fizera para acalmar seu ânimo de manhã. A audácia daquele homem! Ela pensou, com raiva.

Kikyou colocou uma mão sobre a da outra, e apertou levemente. A garota se acalmou por instantes, expirando e inspirando com força, como se o ato de se acalmar fosse árduo demais para ela, especialmente quando se lembrava de uma certa pessoa. Kagome cruzou seus braços sobre seu peito, e fechou os olhos.

Ela os abriu rapidamente quando uma idéia lhe veio à mente. Na verdade, era uma pergunta que ela queria fazer algum tempo atrás, e que ninguém parecia querer respondê-la. Uma certa dor afligiu-lhe o coração, como se uma mão invisível apertasse seu peito, e a impedisse de respirar. Engolindo em seco, ela virou seu rosto para que pudesse estar mais ou menos fitando sua médica com seus olhos, mesmo que eles não mais pudessem fornecem-lhe o dom da visão. Abrindo e fechando seus punhos, a ansiedade tomando conta de seu ser, Kagome perguntou pela sua família.

O silêncio reinou na sala, à medida que o ponteiro dos minutos mudava de lugar. Kikyou se remexeu no seu assento, que era ao lado de Kagome. Colocando suas mãos sobre seu colo, e passando a língua sobre seus lábios, ganhando tempo antes de responder, e também para articular melhor a resposta, a fim de evitar ao máximo de quebrar a garota, seus lábios finalmente se partiram, e sua voz, antes melodiosa, agora estava rouca. O ato de falar nunca havia sido tão odioso quanto naquele momento.

- Eu sinto muito, Kagome, mas a sua família...

Kagome fechou seus olhos, e aquela dor na região de seu peito piorou. Seus olhos começaram a arder, e rapidamente, um líquido viscoso começou a escorrer sobre sua face quente. Soluços começaram a tomar conta de seu corpo, e sem poder se controlar, ela se agarrou à Kikyou, que era, naquele momento, seu único conforto. Sua mãe não mais estava ao seu lado, tampouco seu irmão e seu avô. Mesmo sem ter recebido a resposta, Kagome sabia que eles haviam partido para um lugar que ela nunca mais os alcançaria. Eles não mais estavam naquele mundo, deixando-a completamente só. O fogo que antes a tinha consumido, agora estava começando a se apagar.

Kikyou abraçou a garota, fazendo círculos nas suas costas, tentando ao máximo confortá-la. Seus gestos eram um pouco tensos inicialmente, feitos com certo receio, mas à medida que Kagome piorava, ela começou a realmente abraçá-la, e a sussurrar-lhe palavras de conforto. Nada parecia surtir efeito, e num ato de desespero, Kikyou beijou-lhe a testa, um gesto que sua própria mãe fazia para reconfortá-la. Kagome estremeceu, e ficou parada, feito uma estátua. As lágrimas continuaram a escorrer sobre suas faces, mas ela não mais fazia som algum.

- Kagome?

E então, subitamente, ela começou a rir, fazendo Kikyou se afastar dela, com certo receio no olhar. E muito medo.

- Eles não estão mortos. Você mentiu; minha mãe acabou de me beijar, e ela não poderia ter feito isso se estivesse morta, não é?

Kikyou abaixou sua cabeça, fitando o chão, sentindo lágrimas se formarem nos seus olhos. Kagome continuou a rir e a sorrir, a felicidade, ou talvez a loucura, como vocês desejarem chamar, borbulhando em seu peito. Kikyou apenas continuou a chorar em silêncio, nenhuma lágrima ainda escapando de seus olhos, e permitiu a outra garota ter seu momento de felicidade que seria logo abafada.

Finalmente, cansada devido ao turbilhão de emoções por que passara, Kagome caiu no sono, sua cabeça indo de encontro ao travesseiro. Kikyou limpou seus olhos de qualquer vestígio de lágrimas, e arrumou o cobertor sobre sua paciente, para protegê-la do frio. Ela desligou silenciosamente a luz, e saiu. Apoiando suas costas contra a parede do lado de fora, mal notando os olhares curiosos que eram lançados sobre sua pessoa, pois, afinal, ela era a famosa médica inatingível e perfeita, ela abraçou seu corpo cansado, e suas pernas, não mais agüentando a tensão, lentamente desabaram, e seu corpo escorregou para o chão, como uma gota de chuva que desliza sobre o vidro da janela.

- Mas que droga de dia...

Seu comentário não foi ouvido por ninguém, exceto uma figura em branco que a observava atentamente do outro lado da sala. Sesshoumaru levantou uma sobrancelha, e arregalou os olhos quando uma lágrima caiu sobre o avental de Kikyou, o primeiro de vários que seguiram este mesmo fim.

Sesshoumaru se aproximou da figura caída, e colocando uma mão sobre seu ombro, lançou um olhar sério que, para os estranhos, mostrava indiferença, mas que, para os amigos próximos, a preocupação era bastante visível em seus olhos. Apoiando suas mãos sobre Sesshoumaru, Kikyou se levantou com um pouco de dificuldade, pois suas pernas ainda estavam um pouco cambaleantes. Não era todo dia que as forças desaparecem por completo sobre seu ser, e aquele dia ficaria marcado para ela. Quando fora a última vez que ela se permitira chorar? Talvez uns cinco ou seis anos atrás.

- Obrigada.

Seu colega nada respondeu, apenas levantou os ombros e os abaixou novamente, um pequeno e sutil gesto que não passou despercebido para ela. Observando o relógio colocado na parede oposta em que se encontravam, ela soltou um suspiro, voltando seu rosto para Sesshoumaru.

- São duas horas, ela murmurou, retirando a fita que prendia seu cabelo, permitindo que longos fios negros soltassem e caíssem livremente suas costas, agora, sem nenhum padrão.

- Sim.

- Onde você quer almoçar?

Era um hábito dos dois, almoçar às duas horas da tarde, quando o movimento dentro do hospital é menor, especialmente para os dois, uma psiquiatra e um neurologista, ambas especialidades que não demandam uma grande fila de pacientes, como um clínico geral.

Sesshoumaru, mais uma vez, mexeu seus ombros, indicando indiferença. Kikyou suspirou, um pouco exasperada, pois ele sempre fazia isso. Era sempre ela quem decidia o local onde iriam almoçar, e naquele dia, ela se sentia sem forças. Apontando com seu dedo indicador o peito de Sesshoumaru, ela sussurrou, como o mesmo som de uma serpente, que ele iria escolher o local, e caso ele não fizesse isso, não iriam comer nada naquele dia, e passariam fome.

- Pois muito bem, Sesshoumaru replicou levantando seus olhos para o teto, e relembrando os vários restaurantes por quilo na região, cuja comida não era necessariamente barata, e ofereceu o nome de um restaurante francês. Kikyou abriu a boca, e fechou-a rapidamente.

- Pare de brincar, isto é uma conversa séria, ela o advertiu.

- Quem disse que não era?

Ela fechou seus olhos, sentindo-se extremamente velha.

- Vamos ao restaurante aqui do lado, ele ofereceu pela segunda vez. Kikyou acenou afirmativamente com a cabeça, finalmente se sentindo mais calma. Parecia que ele havia finalmente entendido que o assunto era sério, e que não poderia ser resolvido com humor. Humor um tanto deformado pela parte de Sesshoumaru, mas humor de qualquer forma.

- Vamos?

Ele balançou a cabeça afirmativamente. Voltando seus olhos para o quarto 133, ele podia sentir receio em saber o que aconteceu lá dentro. Parecia que esta Kagome Higurashi iria complicar não apenas sua vida, mas a de Kikyou também.

As ruas não estavam desertas, mas também não estavam com muito movimento. A esta hora, a maioria das pessoas já terminaram seu almoço, e já se dirigiam de volta aos seus postos de trabalhos. De vez em quando, era possível avistar alguma estudante de colegial voltando para casa, com mochila colorida nas costas, cujos chaveiros em formas de bonecas de enormes olhos poderiam assustar até mesmo uma mosca.

Kikyou e Sesshoumaru pararam diante de um pequeno restaurante com portas de madeira com pequenas janelas dando-lhes uma visão do interior do estabelecimento, se bem que, com o sol acima de suas cabeças, o interior era bastante escuro, não oferecendo uma visão muito clara da arquitetura, design e decoração. Sesshoumaru abriu as portas e esperou que sua colega entrasse. O restaurante era simples, porém bastante bonito. As paredes eram cremes, com vigas de madeira suportando o teto também de madeira, recoberto por fora com tijolos da cor da terra. O chão de granito refletia a luz das lâmpadas, criando uma atmosfera íntima e aconchegante. Ambos foram, sem devaneios, para o balcão onde pratos grandes e brancos estavam dispostos um em cima do outro, em pilhas, e após cada um pegar um prato, dirigiram-se aos vários pratos dispostos oferecidos aos fregueses. Kikyou foi direto para a seção de saladas, escolhendo folhas verdes, frutas, e sushi para comer, enquanto que Sesshoumaru, de um gosto mais caro e carnívoro, encheu seu prato de arroz, um pouco de batatas douradas com folhas picadas de manjericão e strogonoff de carne, cujo molho branco era especialidade da casa.

Ambos se sentaram perto da janela, um de frente do outro. Sesshoumaru retirou o guardanapo que embrulhava o garfo e a faca, e segurando o primeiro, começou a comer. Kikyou começou a cortar as folhas de alface em pequenos pedaços, depois de ter temperado sua salada com um pouco de molho italiano cujos vários ingredientes transformavam o gosto um tanto amargo das verduras frescas e não cozidas em um sabor mais salgado. Adicionando um pouco de suco de limão sobre o molho, e depois um pouco de azeite de oliva, Kikyou começou a mastigar lentamente sua refeição, seus olhos se abrindo à medida que seu estômago se enchia de comida, do combustível orgânico que faz os corpos se moverem dia após dia.

Era a hora do almoço para os médicos.

Sesshoumaru, após comer um pouco da sua comida, abaixou seu garfo, e fitou Kikyou, que, tentando ignorá-lo, começou a observar os transeuntes, cujos passos já estavam mais lentos após uma manhã cheia de trabalho.

- Kikyou.

Ela não respondeu, e Sesshoumaru chamou-lhe pelo nome mais uma vez. Suspirando um pouco, ela virou seu rosto para o seu interlocutor.

- O que foi?

- O que aconteceu?

Ela pousou o garfo no prato, e limpando os cantos da boca com o guardanapo, respondeu-lhe que nada havia acontecido. Suas mãos, no entanto, tremeram quando ela lhe respondeu, e, percebendo que o assunto estava dado como encerrado, pelo menos, para Kikyou, Sesshoumaru recomeçou a comer, não sem grande esforço por parte dele. Força interna, é claro.

O almoço passou muito rápido, e num piscar de olhos, ambos estavam de volta nas suas respectivas salas. Kikyou sentou na sua cadeira, e deixou-se dominar pelo cansaço. Uma tarde dedicada a reflexões e a um pouco de sono talvez possam fazê-la se sentir revigorada antes da chegada da noite. Afinal, ela tinha um encontro especial com Inuyasha. Porém, algo dizia para ela que ela não estaria muito bem à noite, e mordendo seu beiço, ela fechou os olhos, deixando o ar escapar de seus pulmões. Ela apoiou sua cabeça no encosto da cadeira – não que fosse confortável, mas não havia nenhum outro local para descansar esta parte do corpo – e permitiu que o sono dominasse sua consciência. Seus dedos tensos afrouxaram, e caíram ao lado de seu corpo, quando ela ficou totalmente inconsciente.

Enquanto isso, Sesshoumaru se dirigiu ao quarto 456, de uma paciente chamada Rin. Ele abriu a porta, e avistou uma pequena garota envolta por cobertores, abraçando seus joelhos, comprimindo-os contra seu peito. Ela levantou seus olhos quando ouviu passos, e seus lábios se partiram em um grande sorriso quando viu Sesshoumaru. Ele caminhou até a cama, e colocou uma mão sobre sua cabeça, esfregando um pouco seus cabelos. Era uma pena lembrar que esta garota, Rin, tinha apenas seis anos de idade, e que estava órfã, após perder seus pais e seu irmão depois de um acidente horrível que não vale a pena ser comentado. A criança havia escapado do acidente, não sem seqüelas. Ela havia quebrado a clavícula, rompido alguns vasos sanguíneos na perna, fazendo com que ela não pudesse andar por vários meses, e, a pior parte: ela havia perdido a memória. Ela sofrera traumatismo craniano, e os lobos frontais, responsáveis pela memória, haviam sido danificados levemente, o suficiente para que seu passado fosse esquecido. Seu nome só fora descoberto quando descobriram o nome dos pais, e conseqüentemente, o nome dos filhos através de registros de certidão de nascimento.

Era realmente uma pena.

- Está melhor?

Ela assentiu energicamente a cabeça, seus grandes olhos castanhos brilhando à medida que seu sorriso aumentava de brilho e vivacidade. Ela agarrou sua mão, e não queria largá-lo mais, como uma criança que acaba de ganhar um presente, e só quer ficar com ele por toda uma semana. Sesshoumaru, no entanto, não poderia ser considerado um brinquedo.

Sesshoumaru bateu nas suas costas, e se despediu, prometendo-lhe uma nova visita no dia seguinte. Rin gritou de alegria, e pôs-se a dormir o quanto antes, esperando que o amanhã chegasse mais rápido. Seu pequeno corpo trouxe o cobertor para mais perto de si, e fechando seus olhos, ele tentou acalmar seu coração, e dissipar sua excitação. Sesshoumaru permitiu que a sombra de um pequeno sorriso se fizesse presente, e após fechar a porta atrás de si, caminhou para sua sala. Bem, parecia que seu trabalho para aquele dia havia terminado, o que era um alívio.

Fora um dia exaustivo, e ao lembrar que teria que visitar Kagome novamente, pois a visita do dia fora apenas superficial, ele apoiou a cabeça nas suas mãos. Ao contrário de Rin, ele não queria que o amanhã chegasse. Talvez, ele pensou, ele seja fulminado no dia seguinte, não que seu sangue não fervesse com a inesperada idéia de uma guerra entre duas pessoas que não aceitam perder, mas as fofocas iriam apenas aumentar, e sua fama, talvez pudesse ser prejudicada.

A fama, ele pensou, era tudo. E ninguém, nem mesmo Kagome, poderia fazê-lo mudar de idéia, e, portanto, ela teria que tomar muito cuidado com Sesshoumaru. Ele poderia ser perigoso da sua própria maneira.

Caminhando até a mesinha perto do banheiro, ele pegou o copo contendo uísque e deu um gole.

- Nada mau...

Editado em Dezembro