Tempestade
Capítulo 1
O corpo deitado na sua frente ainda parecia tão fresco, tão vivo. Tocou o braço... Gelado. A pele fria, mas ainda possuía a cor perfeita. Os lábios rosados estavam entreabertos, mas não saía ar deles. Os olhos cuidadosamente cerrados, que pareciam apenas guardar um sono tranqüilo. Os cabelos escuros e longos espalhavam-se pelo travesseiro, formando um manto de seda, tão brilhante com os reflexos da chama da vela ao lado da cama. Pegou uma mecha hesitante, incrédulo de que aquilo fosse verdade.
Sentiu a textura macia entre os dedos, puxando a mecha um pouco, como costumava fazer, para depois ouvir um fingido "ai" e seu riso gostoso, a voz vibrante para seus ouvidos. Nada, nenhum som, nenhuma reação, nenhum sorriso. Duas grossas lágrimas afloraram de seus olhos imensos e desceu em dois filetes pelo rosto pueril, indo cair no rosto plácido. Um soluço precedeu uma série, e logo se jogava na cama de lençóis brancos, abraçando o corpo esguio. Pares de mãos tentaram afastá-lo rudemente.
- Por favor, Milo!
- Me larga! Vai embora!
Livrou-se dos braços de ferro, voltando a abraçar o corpo que há algum tempo perdera o calor aconchegante. Enterrou a cabeça no peito, desatando a chorar. O coração já não batia, o peito não mais arfava, a mão já não mais o afagava. O ódio cresceu no seu âmago, sentindo o olhar de toda aquela gente naquele quarto mortuário sobre si, balançando as cabeças em volta da cama, vendo-o perder a única coisa que ainda possuía naquele mundo.
- Venha, Milo. Já chega!
- Não!
Apesar dos seus protestos, o tiraram de cima da cama, levando-o para fora do quarto, ainda se debatendo e gritando. Um forte tapa no seu rosto molhado o fez parar e levar a mão até a área atingida, mirando seu agressor. Um homem de estatura alta e porte altivo, seu rosto, ainda que bonito, o assustava. Já o vira antes, mas não tão de perto quanto agora. Com uma mão em suas costas, o empurrou gentilmente para fora da casa.
oOo
Encolhido em um canto do aposento, sentado no chão frio, com as costas apoiadas na parede de madeira, olhava o prato intocado na sua frente. Com um olhar vidrado, não tinha vontade alguma de comer. Seu estômago se revirava pela ânsia que sentia, um nó na garganta causado pela mágoa que ainda tomava seu peito. Lambeu os lábios secos, para umedecê-los, o gosto salgado deixado pelas lágrimas que aquela altura já não mais desciam pelas faces por terem se esgotado completamente.
Um par de olhos surgiu na escuridão, de uma das camas que se espalhavam pelo quarto rústico. Uma mãozinha saiu de dentro do cobertor, fazendo um gesto de convite para que se deitasse junto com eles, acompanhado de um sorriso gentil. Milo virou o rosto rudemente para o outro lado, deixando o garoto magoado com sua atitude e voltar a fechar os olhos e a se cobrir. Um arrepio percorreu sua espinha, maldito orgulho. Só o faria morrer de frio naquele maldito lugar. Levou uma colherada da comida insossa para a boca, fez uma careta, gelada. Empurrou o prato para o lado, encontrando uma muda de roupas.
Desdobrou o que parecia ser uma túnica branca, havia com ela um cinturão de couro marrom, para prendê-la na cintura, e também um par de sapatos de couro também macios. Olhou as suas próprias vestimentas, sujas e incômodas. As tirou e vestiu a túnica, que ia até o meio das suas coxas. Era um tanto curta demais, mas ao menos estava limpa. Encostou-se de novo na parede, suspirando profundamente, o sono vencendo suas forças. Um delicioso cansaço tomou seu corpo, mergulhando num mar de sonhos e lembranças, onde nada daquilo havia acontecido.
Sentiu o calor do sol contra suas faces, a água do mar bater em ondas pequenas nas suas canelas, refrescando-o. A areia embaixo de seus pés afundava quando andava sobre ela, com um graveto desenhava, rindo consigo mesmo. Até que uma mulher alta e bela o erguia pelos braços, colocando cada perna sua em volta de sua cintura estreita e carregando-o de volta para casa, a voz cantada dizendo sem parar que não deveria andar sozinho pela praia. A bronca era sempre precedida de uma enxurrada de beijos no seu rosto redondo, fazendo-o rir sem parar e se contorcer.
Havia um cheiro forte de peixe, os pescadores voltavam para a baía com seus barcos carregados. Entraram numa casinha simples, as paredes já deterioradas pela maresia, mas viviam bem ali, apenas os dois. Ela trabalhava em um bar onde servia os marinheiros e pescadores. Moravam ao lado, por cortesia da dona do lugar.
A mulher colocou-o na cama, indo olhar-se no espelho, colhendo os cabelos compridos e prendendo-os num coque acima da cabeça. Herdara dela os cabelos macios e escuros, cheios de cachos generosos que emolduravam o rosto bronzeado. Os dela desciam até a cintura fina, seus membros eram longos e delicados, completados pela graça de seu andar. Os lábios carnudos chamavam a atenção, assim como o colo farto que saltava dos decotes dos vestidos. Apesar da aparência frágil e a pouca idade, era sensual e possuía um sangue latino, que lhe esquentava as veias toda vez que se enfurecia. Quando acontecia, seu peito arfava e seu rosto tornava-se rubro, tornado-a mais bonita, ainda que assustadora. Outras vezes era encantadora, pegando-o de repente no colo e enchendo-o de beijos, apertando-o contra os seios quentes, repetindo várias vezes o quanto o amava.
Havia vezes em que a via se pintar excessivamente, escondendo sua beleza natural, tornando-se algo inumano. Perfumava-se, prendia os cachos e punha um vestido diferente dos que costumava usar, mais apertado e vermelho, aderindo às curvas. O colocava para dormir, rezando juntos, para depois cobri-lo com o cobertor. E ia embora, ficava fora a noite inteira. Então acordava e a encontrava com a fantasia desfeita, cabelos em desalinho, sentada na cozinha, e grossas lágrimas manchando a pintura dos olhos e escorrendo negras pelas faces. Em cima da mesa um copo de leite e notas de dinheiro amassadas. Olhava-o parado na porta, pequeno e hesitante. E sorria chamando-o para si, num aperto tão forte, como se pudesse perdê-lo a qualquer instante.
E foi em uma dessas noites em que acordou sobressaltado, ouvindo várias vozes vindas do quarto dela. Parou sonolento na porta aberta, vendo um homem alto colocá-la com cuidado na cama. A dona daquela casa também estava lá, uma velha, que o mirou com desprezo. Sentiu um calafrio percorrer sua espinha, desviou o olhar deles e foi andando até o leito. Ali estava ela, imóvel, com uma enorme mancha vermelha sobre o colo e o tórax. Tocou-a, manchando sua mãozinha. Aquela não era sua mãe. Aquele corpo era frio, e sua mãe era quente como a areia sob o sol! Foi então que se agitou e foi tirado à força do quarto sombrio.
Mandaram que se sentasse numa cadeira na cozinha, o homem falava com a velha e mais um homem. Dos bolsos tirou algumas notas de dinheiro, depositando na mão enrugada da senhora, que sorriu satisfeita. A expressão do homem continuava impassível, quando o olhou e com uma mão segurou seu queixo e o fez erguer o rosto molhado. O homem do seu lado, um pescador da região, riu baixinho.
- Tão bonito quanto sua mãe, não acha chefe?
- Hunf! Tomara que tenha herdado também o gênio selvagem e não sua burrice, ou não terá valido a pena levá-lo daqui. – A voz soou grave – Porque foi fazer aquilo, Helen?
A última frase foi dita num tom baixo e dolorido, apenas para si mesmo, mas mesmo assim o garoto ouviu e arregalou os olhos. Notou o olhar ansioso que lhe lançou e fechou a cara, pegando sua mãozinha e o arrastando para fora da casa. Obrigou-o a entrar no carro contra sua vontade, e quando o veículo partiu, colou a face no vidro, vendo pela última vez as janelas acesas de sua casa.
Acordou ao sentir a luz bater em seu rosto, piscou várias vezes até que sua visão deixasse de ficar embaçada. Crianças de sua idade e mais velhas saíam de suas camas, trocando suas roupas, espreguiçando-se e conversando entre si. Pares de olhos miravam o garoto de apenas seis anos encolhido na parede, esfregando os olhos. Alguém se postou na sua frente, assustando-o. O menino riu, exibindo buracos entre os dentes pequenos, indicando dentes de leite que caíram para dar lugar aos definitivos. Ofereceu sua mão, erguendo-o, era um pouco mais alto que ele e estava vestido da mesma forma. Uma grande agitação tomava conta daquele aposento, seguiu-os para fora. O homem que o trouxera na noite anterior vestia agora uma armadura reluzente, dourada. Seus olhos imensos brilharam ao ver aquela beleza toda, o sol refletia no metal, cegando-o.
oOo
Demorou um pouco para entender o que se passava, mas no fim estava tão excitado com o que lhe fora mostrado, que por um momento esquecera-se do que passara para chegar ali. Não conhecia muitas outras crianças antes, mas ali elas eram alegres e frequentemente brincavam entre uma aula e outra. Órfãs como ele, esqueciam-se do mundo lá fora, presos num campo. Tinham aulas em salas e treinamentos em ar livre, gostava desse último e se saía bem. Sentia o sangue ferver e uma grande excitação ao atacar, arrebentar pedras ou até mesmo avançar sem piedade nos seus amigos. O mestre sorria-lhe orgulhoso, e lhe devolvia o sorriso, ambicioso, vendo a armadura dourada cintilar.
Os anos passaram e ia ganhando altura e massa muscular, ainda que seu rosto permanecesse infantil e seus membros continuassem graciosos. Cada vez mais perspicaz e forte, os golpes furiosos aplicados com grande precisão e rapidez, assustando até os mais velhos com suas habilidades. A verdade era que a mágoa pela morte da mãe cultivara no seu coração um grande ódio, que crescera e que colocava em seus ataques.
Havia um garoto que estava no seu mesmo nível, ou era o que parecia nas lutas que o mestre organizava entre os dois, a fim de avaliar seus poderes. Seu nome era Albiore, e pegara amizade fácil com ele, assim como vários garotos da ilha. Acreditava que era o único que suportava seus golpes cheios de fúria, com seu rosto plácido e calmo. Mal parecia um cavaleiro, tamanha a paciência e afinco com a qual se dedicava aos estudos de classe. Segundo o mestre, era com ele que ia disputar a posse da armadura de prata. Quando foi avisado da luta, estava em seus aposentos, de frente para a mesa onde o mestre estava sentado. Disse suas qualidades e defeitos, e os de seu adversário, dando alguns conselhos. Sorriu-lhe, Milo deu de ombros e virou-se para sair.
Não foi simplesmente uma luta justa e de iguais, podia-se dizer que fora árdua para os dois rapazes, mas Milo parecia ser mais forte e resistente que Albiore. O rapaz loiro não acreditava no que via na sua frente, ele caído ao chão, com vários cortes no peito, braços e o pior abaixo das costelas, ofegava e mal se agüentava em pé de tanta dor, e Milo na sua frente, em pé, como se seus golpes sangrando em todo o seu corpo como se não lhe fizessem nem cócegas. A expressão cruel no rosto, o sorriso maldoso nos lábios, lambendo o filete de sangue no canto dos lábios. Mal reconhecia o companheiro, nada havia do garoto sorridente que conhecia. Nos seus olhos lia que poderia matá-lo se quisesse, e que nada o impediria.
O mestre percebeu logo e deu por encerrada a luta. Milo endireitou sua postura, virando-lhe as costas. Dois garotos vieram ajudar Albiore a se levantar, e sentiu-se ultrajado por perder. A armadura de prata era de Milo, anunciavam sua vitória, mas este interrompeu.
- Não é a armadura de Prata que tenciono ter, Albiore a merece, ele foi tão bom quanto eu nessa luta...
- Hã? – Albiore parou estupefato.
- Está dizendo que vai ceder seu prêmio para Albiore? - o mestre também estava incrédulo.
Aquilo não era do feitio de Milo, havia coisa atrás desse pedido. E estava certo, o mestre confirmou seu pressentimento assim que o garoto grego soltou uma risada sarcástica e apontou-lhe o dedo em desafio.
- Eu quero a armadura sagrada de Escorpião.
- O quê?
- Ouviu bem, mestre. A armadura de Prata é poderosa, mas eu quero a melhor. E esta é a sua...
- Não sabe o que diz Milo! Desafiar a mim é desafiar a morte!
- Que venha a morte então! Eu não tenho medo dela!
O mestre recuou ao ver o brilho daqueles olhos. Eram idênticos. Ele e aquela menina, os olhos imensos chispavam no o rosto corado, o peito arfante, a figura graciosa pelo efeito do início da adolescência. O cabelo revolto emoldurando as faces, o suor misturando-se ao sangue. Com certeza ele era capaz de matar, como ela era. E também desafiava a própria morte... Cerrou os olhos, lembrando a jovem, e quando os abriu, foi ela que viu. Blasfemou baixo.
Levantou-se de seu trono e caminhou até Milo, ignorando as exclamações dos aprendizes. Acariciou a face do grego, estava quente. Viu-o relaxar com o toque, apoiou a mão no seu ombro, falando-lhe num sussurro, para que apenas ele pudesse ouvir.
- Ainda é muito cedo, Milo. Eu iria dar-lhe mais alguns anos, até que julgasse estar pronto para ela. Até que Athena julgasse que estaria apto para servi-la. Não é tão simples assim.
- Mas estou pronto, meu senhor! Eu sei que estou. O que eu mais quero desde que pus os pés nesse lugar é ela, mestre, e você não pode negá-la a mim!
Baixou a mão e os olhos, vencido. Não, não podia. Mas vê-lo cometer a mesma loucura o feriu, não seria capaz de atacar o garoto. Não com aquela semelhança assustadora. Uma prova! Era isso. Uma prova suficientemente árdua e difícil para seu prêmio, mas que não arriscasse sua vida. Chamou um dos aprendizes mais velhos, mandou que preparassem uma gruta. Disse-lhe no seu ouvido o que queria que fizesse nela. O garoto o olhou assustado e hesitante, mas o mestre perdeu a paciência e o mandou fazer rápido o que mandara.
- Você não tem medo da morte, não é mesmo?
- Não!
- Bom... Muito bom...
Soltou uma risada sarcástica. Depois de um tempo o levou até um buraco na terra, que levava a gruta. A entrada dela fora fechada com uma enorme pedra, e só restara aquele orifício. Acendeu uma tocha, jogando-a lá dentro, e viram milhares de escorpiões se afastarem do fogo. Os garotos exclamaram afobados, Albiore tremeu e agarrou o braço de Milo.
- Você não precisa fazer isso, porque não fica com a armadura de Prata?
- Uma vez você me disse que daria sua vida por ela, não disse, Albiore?
O loiro assentiu, Milo sorria-lhe confiante.
- E você quase a deu para mim em poucas horas atrás, merece aquela armadura. Nunca vi alguém se esforçar tanto para esse dia. – olhou para o fosso – Assim como você, daria minha vida pela armadura dourada.
- Milo...
Afastou-se, olhando altivo para o mestre. Uma ruga apareceu na sua testa alta e lisa, ele ia aceitar aquela loucura.
- Sua prova é permanecer dentro desse fosso, sem se mover. Os escorpiões ali dentro possuem um veneno capaz de matar um exército de homens. Mas você é um cavaleiro, é mais que um homem comum. Foi treinado para suportar as piores dores e ataques. Seu poder é sobrenatural. Sobrevivendo as picadas deles, você será merecedor da armadura sagrada, e então irá para o Santuário, completar seu treinamento e jurar servir a Athena.
- Quanto tempo?
- Sete noites... Sem água, nem comida. Eu falei que era arriscado. Se desistir ou morrer antes disso, terá perdido.
Sustentou seu olhar, seu lábio inferior tremeu um pouco. Mas manteve-se firme. Respirou fundo e sentou-se a beira do fosso, pronto para descer. Desapareceu dentro do buraco e Albiore precipitou-se na entrada.
- Grite se não agüentar, Milo! O tiraremos daí e o curaremos.
- Eu não irei gritar!
- É o que veremos. – o mestre resmungou entre dentes.
oOo
De fato, em seis dias e sete noites, nada se ouvia. Pensaram até que estivesse morto, Albiore implorou para que abrissem a gruta. O mestre recusou-se, relembrando que, a não ser que gritasse por ajuda, só o tirariam de lá depois do prazo. O dia chegou, e estavam certos de que enterrariam o garoto.
A pedra foi removida, algumas tochas acendidas. Avançaram gruta adentro, espantando e capturando os escorpiões que encontravam. Avistaram um vulto apoiado na parede escarpada, um som pesado de respiração aliviou-os. Estava vivo. Iluminaram a figura empertigada, de pé contra a parede, os olhos vidrados, o suor banhando todo o corpo misturado ao sangue fresco que jorrava das feridas abertas. Ofegava e tremia.
- Milo. Venha até aqui.
O garoto lentamente ergueu os olhos para o mestre, estavam vazios. Céus, o que havia feito? As pernas estavam da cor escarlate, mas se moveram, como se acordadas de uma longa fatiga. Empertigou-se, trincando os dentes. Sentia muita dor, isso podia ver. Andou firme até ele, ficando na sua frente, levantou os olhos desafiantes. Depois disso desmaiou em seus braços. O mestre o segurou contra o peito fascinado e ao mesmo tempo aterrorizado. Carregou-o no colo como uma criança, e não era disso que passava. Tinha apenas treze anos.
oOo
Segurou sua nuca com cuidado, levantando a cabeça para despejar a água fria nos lábios entreabertos. O menino inconsciente engasgou, fazendo com que o líquido transbordasse e deslizasse pelos cantos da boca. Deitou sua cabeça de novo no travesseiro, suspirando aliviado. Ainda vivia, os ungüentos e a poção agiam sobre o corpo jovem, um antibiótico comum não faria efeito em um caso como aquele. Ardia em febre, o suor molhando os lençóis brancos, as bandagens manchadas de sangue, que há algum tempo pararam de jorrar das ferroadas.
Encostou as costas no espaldar da cadeira alta ao lado do leito, apoiando o queixo nas mãos cruzadas, observando-o dali. Estavam sós, mandou que todos fossem cuidar das tarefas, enquanto cuidava ele mesmo, sozinho, de Milo. Viu-o remexer-se agitado na cama, gemendo e dizendo palavras ininteligíveis. A fronte franzida e os olhos apertados mostravam que tinha um pesadelo. Deixou a taça vazia junto com o vinho que bebia na mesa e se aproximou, sentando ao seu lado no colchão, que se afundou com seu peso.
Pegou um cacho escuro, afastando-o da testa molhada. Um longo suspiro que parecia mais um gemido seguido de um arfar do peito o fez notar o corpo adolescente esparramado na sua alcova. Eram tão parecidos, e como podia ser diferente? Tinham o mesmo sangue... Os mesmos olhos, o mesmo cabelo... Sem perceber, sua mão acariciava o pescoço macio, o dedo indo tocar o lábio inferior rubro. Sua boca seguiu seu movimento, encostando a língua logo abaixo da orelha, o gosto salgado da pele quente.
- Helen...
Milo abriu os olhos alarmados, se deparando com o rosto do mestre muito próximo de si. Num pulo afastou-o de si e desceu da cama, encolhendo-se contra a parede. Com o movimento, fez a garrafa na mesa cair e se espatifar no chão. Olhou para baixo, estava quase vazia, com apenas um resto de vinho.
Com um som de farfalhar de roupas, Milo mirou o mestre. Os olhos frios estavam injetados, a face corada, havia bebido. Sua risada soou pelo aposento, o garoto encolheu-se mais. Recuou para trás quando tentou tocá-lo mais uma vez.
- Hahaha... Acha que pode fugir de mim?
- A... A armadura! Ela é minha por direito!
- Huhuhu... Ah sim... A armadura... Acha mesmo que tem poder para usá-la? Ridículo! Assim que pôr os pés fora daqui, será morto! Agora vem aqui, vem!
- Está bêbado!
Recuou mais uma vez, vendo-o cambalear, patético.
- E você está morta!
- O... quê?
- Morta... morta...
Repetia aquelas palavras inúmeras vezes, titubeando, deixando-o cada vez mais confuso. Até que a elas se somou o nome de sua mãe. Seu sangue ferveu, ultrajado. O que aquele homem tinha com ela? Levantou-se cambaleante, apoiando-se na parede avançou mais um pouco, pôde sentir o hálito de álcool.
- A bela jovenzinha desonrada... Ainda que se deitasse com todos aqueles pescadores, para mim ela continuava sendo a virgem doce, meiga, com uma criança como ela para cuidar. Eu prometi a ela que iria cuidar de vocês dois, se fosse minha. – riu amargurado – Se recusou, friamente, zombou de mim! Aquela prostituta!
- Cala a boca!
- Mas era o que era... Uma prostituta, não havia como negar esse fato.
Cerrou o punho, não hesitaria em arrebentar sua cara por difamá-la. Mais uma palavra e não se conteria mais.
- Quer saber como ela morreu Milo? Por ganância, por ambição. Queria fazer fortuna sozinha e fugir com você daqui, e sabe como fazia? Deitava-se com homens ricos e os roubava. Ah sim, os matava antes, e com que classe e perversidade!
- Mentiroso...
- Só que o na última tentativa, calculou errado. O homem era forte demais e não adormeceu o suficiente com o veneno que colocou na sua bebida. E não percebeu que ele possuía uma arma de fogo abaixo do travesseiro e... BAM! Hahahaha!
Não, não era verdade. Ela não seria capaz... Não poderia... A via chorar nas noites que voltava para casa, e parecia tão indefesa tão frágil. Cerrou os punhos com mais força, sentindo as lágrimas escorrer por seu rosto. O mestre parou de rir, vendo uma aura dourada cercar Milo. Estremeceu, estava pronto para um ataque. Formou uma barreira em torno de si, e tinha sede de morte, aquele olhar era o mesmo que vira quando lutava com Albiore. Sentiu seu cosmos crescer e tomar o lugar. Aquilo era impossível, como poderia ter um poder daqueles?
Viu-o levantar o dedo em sua direção, juntando energia em volta da unha, que agora tinha o formato de um ferrão. Um ferrão de escorpião! Ele não podia conhecer aquele golpe!
- Agulha Escarlate!
- Milo!
O facho de luz atravessou o quarto e a barreira, perfurando o ombro esquerdo do mestre. O sangue espirrou em gotículas na parede atrás dele, e o homem caiu de joelhos, sóbrio e espantado. "Cruel, igual..." Tossiu, vendo o chão a sua frente manchar-se de vermelho. Ergueu o olhar para Milo, que continuava na mesma posição, a expressão enfurecida. Se não fosse pela barreira que fez a tempo, estaria morto. Como pôde subestimá-lo daquela forma, foi praticamente um suicídio!
Sorriu e encostou-se com dificuldade contra a cama, levantando a palma em oferecimento para Milo, o jovem o encarou confuso.
- Parabéns, Milo. A armadura encontra-se atrás dessa parede, se ela o aceitar, deve partir para o Santuário, completar suas instruções. Escreverei uma carta ao mestre Shion, avisando de sua chegada em Athenas.
- Athenas?
Acenou com a cabeça lentamente. Pediu para que o ajudasse a levantar, sentando-se à mesa. Mandou que pegasse a caixa dourada e a abrisse. Uma luz o envolveu e logo estava vestido com as peças de ouro. Sentiu um calor gostoso percorrer seu corpo.
- Parta assim que amanhecer.
Chamou um dos aprendizes, que ficou alarmado ao ver o mestre ferido, mas obedeceu de imediato suas ordens para que enviasse a carta urgente para Athenas. Logo o lugar estava cheio de cavaleiros e aprendizes, movimentando-se em volta da cama com aparatos cirúrgicos. Albiore olhou impressionado para Milo, que não lhe devolveu o olhar. Limitou a virar-se para sair. Murmurou às suas costas:
- Como pôde atacar nosso próprio mestre...
Milo parou. O loiro então o ouviu rir, balançando os ombros e jogando a cabeça para trás. E sem se virar o deixou, amedrontado.
- Céus...
CONTINUA...
Dezembro/2002
