Tempestade

Capítulo 2

Alcançou a bela criatura, sentido seu perfume de rosas o envolverem e sua pele macia e rosada roçar na sua. Mas sua caça fora tão estabanada, que ambos rolaram pela grama fresca. Quando pararam de rolar, segurou os braços nus da bela criatura acima de si, vitorioso.

- Te peguei!

- Acho que não...

Soltou uma risada melodiosa, antes de segurar seu rosto com as mãos livres e pressionar seus lábios rosados contra os seus. O choque do beijo foi tão grande, que acabou largando-o. Rindo, Afrodite se soltou e voltou a correr, fugindo dos demais jovens cavaleiros, deixando um estático Milo ainda no chão.

- Milo! Você o deixou escapar!

Ao ouvir o grito de Aioria, recobrou-se do susto e levantou-se furioso, sacudindo a poeira do corpo. Ao longe, Afrodite lhe mostrava a língua, zombando dele. Ouviu atrás de si uma gargalhada, e virou-se nervoso, descobrindo que era Saga, o cavaleiro de Gêmeos. Corou de vergonha, era a última pessoa que queria que visse seu embaraço. Pediu licença de cabeça baixa e retirou-se, ignorando o chamado dos colegas. Não queria mais brincar.

Chegara ao Santuário havia apenas três semanas, num barco simples de pescadores. Ficara pelo menos três horas na banheira, se esfregando para tirar o cheiro horrendo de peixe. Mas com a pressa que saiu da Ilha de Milos, fora a única condução que o mestre pôde lhe arranjar. Agora não importava mais esse fato. Estava ali, no Santuário de Athenas, o centro daquela cultura estranha de cavaleiros que cultuam sua religião mitológica, escondidos por eras e eras, enquanto o mundo evoluía e mudava seus valores. E era um membro da elite, da mais alta patente dos protetores da deusa da justiça.

Além dele havia mais garotos, mas nem todos os cavaleiros estavam presentes. Logo que pisara em terra, fora apresentado aos seus mentores, ou melhor, a três cavaleiros de ouro mais velhos, ainda que bastante jovens para qualquer responsabilidade. O irmão de Aioria de Leão, Aioros de Sagitário, que parecia ter um senso de justiça maior que os outros dois. Shura de Capricórnio lhe parecia mais sério e impaciente, e Saga de Gêmeos com certeza era o único com quem simpatizara. Tinha bom humor, não os repreendia, possuidor de um sorriso gentil que desarmava qualquer fúria, e o único que satisfazia seus caprichos. No entanto sabia que não devia subestimá-lo pela sua bondade, percebia-se nele um cosmos surpreendente.

E esse mesmo cavaleiro que tanto admirava veio atrás dele, segurando gentilmente seu braço, pedindo desculpas. Mas ainda tinha um ar divertido no sorriso, que o fez ficar mais chateado ainda. Cruzou ou braços e virou o rosto para o outro lado.

- Não precisa ter vergonha, Milo...

- Hunf!

Balançou levemente a cabeça, suspirando. Colocando as mãos nos ombros do menino, o fez virar para si. Sua voz era baixa e suave.

- Ficou assim porque Afrodite parece uma garota, não é?

Milo levantou o rosto de súbito, ruborizando mais ainda. Peixes seria uma mulher perfeita, linda, não fosse pelo fato de ter nascido homem. Mas isso não justificava a atitude que tomava, confundindo os outros com sua androginia ao seu bel prazer. Quem ele pensava que era para constrangê-lo daquela forma?

- Não fique bravo com Afrodite, foi só um beijo de brincadeira.

- Uma brincadeira de mau gosto! Eu... Ele... Somos garotos!

A expressão se Saga tornou-se pesarosa, um longo suspiro precedeu um afago na cabeça de Milo. O fez virar para onde os garotos ainda continuavam a brincar, não pareciam tomar conta de seu ultraje.

- Ainda tem muito que aprender, pelo visto. Não me surpreenderia nem um pouco se ele fora treinado para seduzir e agir como uma garota.

- Mas porque treinariam um cavaleiro para isso? Não somos treinados para lutar?

- Confundir inimigos, Milo. Enfraquecê-los, ou dominá-los. Se souber usar seu corpo, pode até dominar uma nação inteira, como Cleópatra.

- Vo-você diz... Dormir com homens de poder? Mas ele é um garoto, não uma mulher!

- Na verdade, não faz muita diferença, Milo.

Os braços do cavaleiro de Gêmeos envolveram os ombros estreitos de Escorpião, e enquanto uma mão continuava a afagar os cachos escuros, a outra acariciava o pescoço do jovem, indo em direção ao peito pouco exposto pela camisa de algodão. Estremeceu ao sentir o hálito quente de Saga contra sua orelha, tão perto, que pôde sentir o toque leve dos lábios.

- Não há quem resista a uma pele macia, membros delicados e uma boca receptiva... Desejo não precisa ter sexo, tampouco o amor.

Antes que Milo pudesse replicar, um som de rodas de carro os interrompeu. Saga endireitou-se e olhou para o além dos garotos. Um carro preto luxuoso reduzia a velocidade, parando a alguns metros deles. "Um carro?", Escorpião estranhou o fato de aquele veículo estar ali, uma vez que nas três semanas de estadia não vira um carro sequer. Olhou para Gêmeos, que não parecia estar surpreso.

Dirigiu-se até o carro e acenou para que o seguisse. Curiosos, os garotos rodearam o carro, tentando ver através dos vidros escuros. O motorista, de terno preto e óculos escuros, saltou e cumprimentou formalmente Saga, e então foi abrir uma das portas traseiras. Teve a impressão de que dois principezinhos saíam de lá de dentro, protegendo os olhos do sol forte.

Um deles usava uma espécie de túnica longa branca, com um manto vermelho enrolado em volta dos ombros. Fios dourados e lisos desciam até o meio das costas, e em cima dos grandes olhos azuis, no meio da testa, um pequeno ponto negro. O outro se vestia elegantemente, com uma calça azul marinho e uma camisa branca abotoada até o pescoço, carregava num dos braços um casaco imenso de pele branco. E o cabelo deste era bem escuro, quase negro, mas azulado, o que tornava sua pele mais pálida ainda e destacava os olhos azuis. Estava morrendo de calor, podia-se ver o suor em seu rosto plácido, grudando alguns fios de cabelo e no colarinho um tanto úmido. O primeiro chamava-se Shaka, vindo da Índia, o segundo era Camus, vindo da Sibéria, e logo percebeu porque o garoto se abanava tanto.

Duas urnas de ouro estavam aos seus pés, facilmente reconhecidas como as caixas que guardavam as armaduras de Virgem e de Aquário. Mais duas crianças, eram tão jovens quanto eles. Como o anfitrião, Saga apresentou cada cavaleiro presente, ele parecia aos olhos de Milo muito importante nesses momentos. Depois pediu que ele e Aioria os ajudassem com as malas dos dois rapazes. Quando foi pegar a alça da mala, Camus pegou ao mesmo tempo nela. Encararam-se meio confusos, e então Milo sorriu. O russo não devia ter entendido direito, talvez não falasse grego. Apontou para a mala, indicando que ia levá-la. E foi a vez de Camus sorrir.

- Não precisa. Eu mesmo levo.

- Mestre Saga mandou que eu levasse, pode deixar.

- Não é necessário.

- Mas eu preciso...

- Não, não...

- ESCUTA! VAI ME DEIXAR LEVAR OU NÃO?

Camus largou a mala no mesmo instante, Milo a jogou nas costas, seguindo Gêmeos e assobiando. "Para onde o senhor me mandou mestre?", Camus murmurou, balançou a cabeça e pôs a urna nas costas, indo atrás dos quatro. Enquanto andavam, o grego olhava para trás de esguelha, observando o novo cavaleiro passar o dedo no colarinho, tentando afrouxá-lo sem desabotoar. Olhava ao redor, atento a arquitetura antiga. Sem querer encontrou seu olhar, e sorriu gentil. Distraído, Escorpião tropeçou.

Camus revirou os olhos para cima e murmurou algo na sua língua, que o grego não entendeu, mas não gostou nada do tom que o estrangeiro usou. Saga os deixou nos aposentos reservados no Templo principal, o quarto tornou-se pequeno com a quantidade de cavaleiros curiosos que os rodearam. Shaka girou sobre os próprios pés, olhando fascinado para cima. O teto era alto e possuía afrescos retratando um Apolo renascentista cercado de anjos, não estava acostumado a luxos como aquele quarto. Assustou-se quando Aioria encostou o dedo na sua testa, mais precisamente na pequena pinta no centro dela.

- Porque você tem isso?

- Os monges da minha ordem usam...

- Monge? Você não é um monge. – Máscara da Morte replicou incrédulo – Que eu saiba os monges budistas raspam seus cabelos.

- Eu fui criado na religião budista, mas com fim de me tornar um cavaleiro, não um monge.

A voz de Shaka era calma e confortadora, e não se incomodou com a proximidade de Aioria, analisando suas vestes. Milo encostado na porta de braços cruzados olhou de soslaio para Camus, que tirava suas coisas da mala. Viu Afrodite sentar na cama pegando o tal casaco de pele nas mãos, colocando-o contra a face para sentir a maciez dos pêlos brancos.

- É de verdade?

Apenas acenou, confirmando. Do outro lado, Virgem exclamou irritado.

- Isso é um assassinato, pobre animal!

- Eu entendo seu horror Shaka, mas onde eu vivo os recursos e o dinheiro não chega. O frio é mortal, então temos de nos virarmos como podemos para nos manter vivos.

- E porque trouxe essa veste bizarra?

- Seu sotaque não é russo.

O grego à porta interrompeu-os, estreitando os olhos ao encarar Camus.

- Sou francês e meu mestre também. Vivi seis anos na Sibéria. Mas não perdi o sotaque da minha terra mãe.

Enquanto falava, Milo abriu um dos armários, tirando uma muda de roupa, que jogou displicente para Aquário. Apontou para a sua mala aberta.

- Essas roupas podem proteger do frio, mas não do calor que faz aqui.

Abriu a porta e se retirou, antes de ouvir o agradecimento do francês. Este olhou sem entender para Afrodite, que continuava sentado na cama, com o casaco nas mãos. Ergueu os ombros.

- Ele é sempre rabugento?

- Não. Milo é sempre divertido e descontraído. Mas acho que acordou de mau humor hoje...

"Que importa? Também não sou flor que se cheire, afinal."

oOo

Como num labirinto, cheio de portas e passagens. Corredores que não acabavam mais, e que davam para mais e mais salões. Para onde ficavam os quartos mesmo? As colunas e paredes eram iguais, brancas e lisas, assim não sabia por onde viera. Encolheu seus ombros, o jeito era andar, uma hora encontraria o caminho de volta. Estacou ao sentir uma mão tocar seu ombro, e num reflexo, agarrou o braço atrás de si e passou a pessoa por cima da cabeça, arremessando-a no chão. Ouviu-o gemer e blasfemar alto, e agachou-se para ver quem era, estava muito escuro.

Recuou quando viu os dois olhos brilhantes se estreitarem, era o garoto grego que havia carregado sua mala. Murmurando pedidos de desculpas, o ajudou a se levantar. Milo pôs as mãos na cintura, olhando-o bem de perto, parecia bem nervoso.

- O que faz andando a essa hora da madrugada pelo Templo?

- Ora... – cruzou os braços, sem se abalar – e o que você faz aqui?

- Eu tenho insônia... Ou pelo menos descobri que tinha.

- Pois então. Estou sem sono.

Virou-se e saiu andando, Milo o seguiu.

- Ei! Onde pensa que vai?

- Explorar...

- O que acha que vai encontrar por aí? O mestre não gosta muito que andemos pelo Templo sem permissão ou sem a companhia de um dos cavaleiros mais velhos.

- E que perigo poderia ter para nós?

- Bom... Tem razão, afinal somos os homens mais fortes da ordem de cavaleiros. Mas ele ainda acha que somos crianças, ou talvez não queira que descubramos coisas e...

Enquanto falava, Camus sumia pelas inúmeras portas do corredor. "Ótimo, o desgraçado me deixou falando sozinho", vasculhou o lugar, nenhum sinal do francês. Bufou de raiva, "tomara que se perca!". Voltou para o quarto.

Distraído, a certa altura o francês parou e virou para trás, se descobrindo sozinho. Será que voltava para achar o garoto?

Tentou refazer o caminho, mas acabou entrando por corredores que não tinha visto antes. E se entrasse por aquelas duas portas imensas? As empurrou com as duas mãos, eram bem pesadas, abrindo apenas uma fresta para que pudesse entrar. Armários grandes tomavam toda a sala e todas as paredes altas, até o teto, cheias de livros. Uma mesa longa se encontrava no meio dela. Supôs ser a biblioteca daquele Templo. Sorriu satisfeito, era um belo achado para um novato perdido.

Aproximou-se da mesa, inclinando-se pala ler os livros que se espalhavam por ela abertos. Também havia pergaminhos abertos um em cima dos outros e alguns enrolados. Surpreendeu-se, pareciam muito antigos, tocou em um deles, sentindo a textura. Tinha apenas algumas linhas escritas em grego arcaico, do lado viu uma pena com a ponta manchada de preto. Alguém escrevia naquele pergaminho.

- Quem está aí?

Camus se afastou da mesa num pulo, o coração saltando dentro do peito. A tal voz repetiu a pergunta, e não soube por que, não respondeu. Recuou mais alguns passos, até bater as costas na porta. Viu uma cabeça de cachos azulados aparecer de trás de uma estante. O rapaz franziu as sobrancelhas, saindo de trás dali, olhando para o garoto que estava encolhido na porta. Avançou e contornou a mesa, em passos leves e felinos, o olhar fixo na figura hesitante. Ficou de frente para ele, com uma expressão enigmática. Encolheu mais os ombros e olhou para cima, encontrando aqueles olhos azuis.

- Perdão. Eu sei que não devia ter saído do quarto sem sua permissão.

Camus baixara a cabeça e sua voz soara trêmula e carregada de culpa, esperando uma reprovação vinda de Gêmeos. O cavaleiro mais velho piscou várias vezes, confuso, abrindo a boca e a fechando em seguida, sem emitir som algum. Então passou a mão no cabelo, molhando os lábios, antes de esboçar um sorriso. E, ao invés de uma bronca, recebeu um afago na cabeça, acompanhado de um riso divertido. Levantou os olhos, assustado, o rosto acima de si estava diferente de segundos atrás, mais bonito, cheio de frescor. Quase sentiu vontade de rir junto.

- Diga, gosta de livros?

O garoto acenou energicamente. Puxou uma cadeira para que sentasse, aceitando obediente, enquanto se sentava do seu lado, bem próximo. Pegou um livro aberto, mostrando seu conteúdo. Foi explicando cada parte da biblioteca, contando coisas sobre o Santuário. Camus ouvia atento, com a cabeça deitada nos braços cruzados sobre a mesa. Mostrou-se bastante curioso e inteligente, agradando-o. A certa altura, o viu colocar a mão na boca e bocejar. Estava falando demais, e o menino precisava dormir. Este concordou e desceu da cadeira, se arrastando até a porta. Parou e se virou, envergonhado.

- Eu... Acho me perdi.

O outro segurou o riso, se levantando e o levando até os quartos. Mesmo na escuridão, Camus pode ver que Milo ainda estava acordado, sentado na sua cama, com os joelhos dobrados contra o corpo. Seus olhos brilharam no escuro ao encará-lo, então virou seu rosto para outro lado. "Ele não gosta de mim...", pensou ao deitar-se na própria cama.

oOo

Ao entrar no primeiro corredor, deu de cara com sua própria imagem, porém mais sombria. Retesou o corpo notando a reprovação em seu rosto, mas logo adquiriu uma postura desafiadora contra a atitude do irmão. Rudemente, Saga agarrou seu braço e o puxou para um salão longe dali, trancando a porta com chave. A luz foi acesa, então a figura jovem de seu irmão iluminou-se, junto com seus olhos faiscantes.

Sua cópia deu de ombros, jogando-se cansado numa poltrona próxima prevendo quais seriam as palavras dele. Na voz de Gêmeos podia-se notar que tentava controlar a raiva.

- O que pensa que está fazendo? Vi você sair com Camus da biblioteca, está maluco?

- Acredite, foi sem querer. O garoto entrou ali e... Droga, Saga! Ninguém aparece naquela biblioteca a essa hora da noite!

- Isso não devia ter acontecido.

Andava pelo aposento, visivelmente preocupado. Foi andando até ficar atrás da poltrona. Kanon murmurou consigo mesmo:

- Eu gostei dele. Então seu nome é Camus.

Saga parou, alarmado.

- Uma companhia muito agradável.

- A minha não é suficiente, Kanon? – sua voz soou magoada.

- A sua é única, meu irmão. Mas estamos a maior parte do tempo separado um do outro, e como tenho que me manter escondido. É tão solitário.

- Kanon.

- Por favor, Saga.

O cavaleiro olhou para fora da janela, ao longe pequenos pontos de luz forravam o horizonte negro. Kanon se levantou e caminhou até o irmão, de cabeça baixa.

- Só pode haver um portador da armadura de ouro de Gêmeos.

- Eu sei. Mas nós dois somos apenas um, Saga. Se você morrer, eu também morro.

Abraçou o irmão com ternura, e a discussão foi encerrada com um beijo doce.

oOo

Chegou sonolento no salão do trono, não pregara o olho a noite inteira, como vinha acontecendo desde que chegara da Ilha de Milos. Se continuasse assim, acabaria antes de qualquer prova que lhe mandassem. Mas o pior da noite anterior fora ser abandonado pelo francês no meio do escuro, e depois vê-lo voltar acompanhado de Saga. Sentiu uma pontada de ciúmes.

Ora, e lá estava seu pequeno príncipe estrangeiro, bem descansado, podia-se ver pela face lívida e perfeita. Manteve-se carrancudo, então o viu virar seu rosto e sorrir em sua direção. Apesar de sua surpresa, decidiu continuar com a cara fechada. Percebeu alguém atrás de si e se virou, Saga olhava sorridente para o grupo mais a frente e depois sorriu para Milo, apertando gentilmente seu ombro. Ah, a atenção era para Gêmeos, como pôde se enganar.

Andou raivoso em direção a eles, se jogando do lado de Camus, com tanta fúria, que interrompeu a conversa animada. O francês o olhou hesitante, Milo devolveu mostrando a língua. O outro franziu a testa, sem entender. Mas logo Aioria continuou a falar, quebrando o clima desagradável criado pelo Escorpião.

Ergueram-se assim que o grande Mestre Shion adentrou o salão, enchendo o lugar com seu cosmos grandioso, e ele nem havia mostrado um terço de seu poder. Todos sentiram sua majestade, digna de um deus do Olimpo, mas era o sacerdote da ordem de Athena, e a ela deveria servir com seu poder. Abaixaram as cabeças quando atravessou o salão, indo sentar-se no trono acima do altar. Olhou orgulhoso para aquelas crianças, pois não passavam disso. Mesmo os servidores mais velhos ali dentro eram jovens demais para o mundo.

No entanto estava pesaroso. Eles perderam suas infâncias para tomarem para si a maior das responsabilidades, pensava se deveria ser assim. Questionava se a deusa estava certa ao escolher seus destinos tão cedo, mas sabia que poderia ser severamente punido se duvidasse de suas decisões divinas. O importante era que todas as armaduras estavam reunidas novamente, ainda que o portador da armadura de Libra houvesse se exilado na China, a sua veste dourada estava guardada na Casa Zodiacal.

Pensou com amargura no antigo companheiro de lutas, e nos outros, que morreram ou abandonaram a deusa, e nos que se rebelaram contra ela. Haveria sempre os covardes e os traidores entre eles, não importava se agora eram cheios de vida e tão inocentes, confiando cegamente nos ensinamentos de seus mestres. Percorreu cada jovem com o olhar sob a máscara negra, sua juventude e beleza estavam perdidas para sempre, trancafiadas no passado.

Fitou Mu, ainda silencioso. Desejava que fossem eternamente inocentes e felizes, que nenhuma ameaça jogasse uns contra os outros. Suspirou intimamente, um desejo impossível.

Dispensou-os depois das instruções e das boas vindas. Sempre gentil, mas firme nas regras do Santuário. Deixou o resto nas mãos dos três cavaleiros mais experientes do grupo. O almoço servido no Templo foi bem vindo, generoso e regado a vinho. Os garotos ficaram extasiados ao verem a mesa tão variada e a bebida proibida aos seus lábios até então, acomodaram-se ruidosamente, pegando espantados nos talheres de prata e na porcelana fina.

Camus sentou-se calmamente nas cadeiras das pontas, surpreendendo-se com o afobado rapaz grego que tomou o assento ao seu lado, antes que Afrodite o fizesse. O menino andrógino ficou nervoso, mas sentou-se no lugar vazio do outro lado, conformado. Na hora da sobremesa, percebeu que Milo observava-o levar a colher ao doce e trazê-la até a boca, lambendo os lábios. Sentiu-se incomodado com a situação, no entanto não o encarou, temendo receber outra afronta.

Ouviu a risada afeminada de Afrodite e um puxão na sua camisa, virou-se para o cavaleiro de Peixes, que se aproximou intimamente para falar-lhe ao ouvido. Milo ficou curioso, ainda mais porque era impossível ouvir qualquer coisa com aquela barulheira toda que faziam ali.

- Acho que ele gostou de você.

Soltou mais uma risadinha faceira e viu Camus enrubescer e piscar os olhos, por fim se encolhendo na cadeira. Escorpião não gostou nada da reação do francês, o que aquela imitação de garota tinha dito dele? Sem pensar, partiu para cima de Afrodite, agarrando o colarinho da sua camisa, não notando que praticamente montava em cima do outro. Shura os separou prontamente, e Camus pôde respirar.

Uma tarde cheia de atividades se seguiu, e um jantar igualmente generoso. Apesar de todos já serem instruídos, e, pela própria da propriedade das armaduras, possuírem habilidades de alcançar o sétimo sentido, deviam ser educados, e sempre treinados ao extremo. O mundo não se restringia ao Santuário, portanto deveriam ser lecionados como todo jovem da sua idade.

Camus estava ansioso para retornar a biblioteca, agora já sabia bem o caminho, para devorar e descobrir cada livro existente. Mas estava tão cansado de novidades, que deixaria para o dia seguinte. Talvez Saga pudesse estar lá de novo, para contar mais histórias. Foi com alívio que deitou a cabeça no travesseiro macio, o corpo esgotado relaxando aos poucos. Poderiam ocupar suas Casas Zodiacais como Aioros, Shura e Saga quando atingissem a maturidade, por enquanto tinham de dormir no Templo juntos, nos mesmos aposentos.

Virou-se na cama, ainda com os olhos sonolentos entreabertos. Todos dormiam tranqüilamente, menos um. Milo estava na mesma posição da noite anterior, agarrado aos joelhos e balançando o corpo levemente. Lembrou-se do comentário de Afrodite na hora do almoço, apertou o travesseiro. Se era verdade que estava gostando dele, porque o tratava tão mal? Aquilo não tinha lógica alguma.

Cerrou os olhos com força, e quando os abriu, após alguns minutos, o viu de pé ao lado de sua cama. Não falou nada, e ficaram olhando um para o outro por um bom tempo, no escuro. A luz da lua iluminava uma das faces de Milo.

- Não consigo dormir...

Esfregando os olhos, sentou-se no colchão macio, afastando-se um pouco, deixando um espaço vazio. Prontamente, o grego ocupou o espaço, deitando-se. Camus o mirou, entre sonolento e confuso, ainda sentado. Suspirando, Milo o puxou para baixo, obrigando-o a deitar-se também. "Tem medo do escuro? De ficar sozinho? Ou seria uma trégua?", se perguntava, enquanto era abraçado. Pela primeira vez, o viu tranqüilo, se entregando a Morpheus. Estava com tanto sono, que não se importou. Embalado no calor e conforto de um corpo, que o seu próprio aprendera a esquecer na fria Sibéria, dormiu.


CONTINUA...

Janeiro/2003