Tempestade

Capítulo 3

quien te corto las alas mi angel
quien te arranco los sueños hoy
quien te arrodillo para humillarte
y quien enjaulo tu alma amor
deja me curarte vida
deja me darte todo mi amor

angel...angel angel de amor
no te abandones, no te derrumbes amor

quien ato tus manos ato el deseo
quien mato tu risa mato tu dios
quien sangro tus labios y tu credo
porque lo permitiste angel de amor
deja me curarte vida
deja me darte todo mi amor

(...)

Angel de amor, Maná

Os três garotos permaneciam de cabeça baixa, envergonhados e incapazes de emitir um só som. Na frente deles, dois adultos aborrecidos de braços cruzados balançavam levemente as cabeças. Estavam do lado de fora do templo do Santuário de Athenas, mais precisamente na porta deste, haviam acabado de sair de lá de dentro. Mestre Shion apenas os observava da janela do segundo andar da construção. Um dos garotos, o de cabelos cheios e ondulados de comprimento pouco abaixo dos ombros ainda miúdos, arriscou a olhar para cima, encarando o mestre, mas seu olhar caiu no rosto mal humorado de um homem alto e de cabelos negros, que estreitava ameaçadoramente os olhos para si. Estremeceu e se encolheu, voltando a baixar a cabeça, esfregando, nervoso, uma mão na outra atrás das costas.

Sem dizer uma palavra, Shion desapareceu da janela. O homem de cabelos curtos e pretos descruzou os braços, se aproximando dos garotos. Agarra a orelha daquele que levantara o rosto a pouco, arrastando-o dali, deixando os outros dois alarmados com o cavaleiro de cabelos castanhos claros. O rapaz o seguiu tropeçando, gemendo de dor.

- Por favor, senhor Shura! Foi... Foi sem querer!

- Sem querer... Espera que eu acredite? Logo em você, Milo?

A voz rouca e madura transparecia a raiva, mas Milo só conseguia pensar na orelha sendo puxada com força. Não que fosse a primeira vez que era arrastado dessa forma. No entanto parecia que aquele pedaço de cartilagem iria ser arrancado da sua cabeça, tamanha a violência com que Capricórnio a puxava. Sabia que merecia um castigo, ah, como sabia. Mesmo assim, mesmo tendo passado por essa situação milhares de vezes, devido sua desobediência, ainda tremia de medo com a surra que viria. E tinha mais medo ainda por ser Shura dessa vez que lhe aplicaria. Era o cavaleiro mais cruel que conhecia e aqueles olhos alongados e rasgados só acentuavam sua personalidade amedrontadora.

Quando o largou, foi para arremessá-lo contra uma parede de mármore. Suas costas escoraram na pedra dura, perdendo o equilíbrio e indo cair ao chão de joelhos. Lacrimejante, levou a mão à orelha dolorida, o local estava bem quente, e não precisava de um espelho para saber que estava vermelha como um pimentão. Shura havia se afastado, mas nem teve tempo de procurar uma saída no lugar para fugir. Entrou em pânico ao vê-lo voltar com uma vara fina e resistente, batendo-a contra a palma da mão.

- Muito bem. Levante-se e fique de costas, e tire essas sandálias.

Não gostou nem um pouco do sorriso sádico que o cavaleiro mais velho lhe deu, só fez seu sangue gelar. Mal se agüentando de pé de tanto tremor, Milo se levantou com os olhos fixos na vara. Desamarrou as tiras de couro da perna, se enrolando com elas na confusão que fazia. Quando finalmente se livrou delas, virou-se de frente para o mármore. Como todo aprendiz de cavaleiro ali, vestia apenas uma túnica curta bege, com um cinto grosso de couro marrom escuro na cintura fina, ombreiras, peitoral e joelheira. As pernas dos meninos ficavam nuas até as coxas. Sentiu uma mão grande e calejada tocar-lhe atrevidamente a parte interna de uma das coxas, ficou enojado com aquilo. Shura soltou uma risada de escárnio próximo ao seu ouvido, antes de tomar distância e descer a vara na carne bronzeada.

Apertou os olhos e a boca com força, não iria dar o gostinho de ouvi-lo gemer ou gritar de dor, não mesmo. Mas era difícil manter essa decisão com cada golpe que ardia como brasas na pele. Ele ia batendo mais forte e rápido, o som da chibatada ecoava pelo lugar. Apoiou as duas mãos e a cabeça no mármore frio na sua frente, as pernas tremiam, chegou a não senti-las mais.

- Pare!

Capricórnio parou a vara no ar ao ouvir uma voz familiar soar autoritário. Milo desencostou a cabeça da parede, deslizando lentamente para o chão. O cavaleiro de túnica branca até os pés e cabelos longos ondulados que interrompera a surra se aproximou furioso de Shura, arrancando-lhe a vara da mão e quebrando-a sem esforço.

- Chega Shura! Quer matá-lo?

- Pois bem que essa peste merecia: uma morte dolorosa e lenta!

- Devia controlar esse seu péssimo gênio!

- Hunf! E você deveria ser menos brando com eles!

- Ele já recebeu o castigo merecido, eu cuido dele agora.

Contrariado, Shura ainda chegou a enfrentá-lo. Mas logo desistiu e saiu proferindo uma dúzia de palavrões em espanhol. Saga murmurou um "grosso" ao vê-lo ir embora, e chegou mais perto do garoto quase desmaiado. Agachou-se ao seu lado, segurando seu rosto encharcado de lágrimas. Não percebera que havia chorado, talvez até tenha gritado também. Abriu os olhos, aliviado ao ver o semblante sereno do cavaleiro de Gêmeos.

Jogou os braços em volta de seu pescoço, mergulhando as narinas nos cabelos perfumados, para desatar no choro antes contido. Saga o abraçara protetor, o corpo menor que o seu sacolejando com os sonoros soluços. Murmurando algumas palavras gentis, o pegou no colo, carregando-o para a sua Casa Zodiacal de Gêmeos.

No interior da sua moradia, entrou num quarto grande e aconchegante. Depositou o rapaz grego na cama coberta com um lençol de cetim azul marinho. Ao invés de abrir as cortinas escuras e pesadas, Saga acendeu várias velas que se estendiam em candelabros de ouro por todo o aposento, iluminando-o. Milo se sentiu pequeno naquela cama, estranhamente larga demais para uma pessoa só dormir.

Sentando-se, começou a tirar as partes da armadura de aprendiz e notou que havia esquecido as sandálias. E se alguém as pegasse? Que pena, eram sandálias tão boas. Apoiou o cotovelo num joelho, lamentando a perda do calçado, como se nada mais grave houvesse acontecido. Saga sentou na beira da cama com um baú de madeira, abriu separando gazes e ungüentos. Fez Milo se deitar de bruços.

Analisou os machucados, não chegara a tirar-lhe sangue, mas as marcas vermelhas e quase roxas eram gritantes. Felizmente não deixaria cicatrizes nas pernas jovens. Tocou um dos ferimentos com um pano úmido, Milo que estava com o rosto apoiado nos braços e brincava com as franjas do travesseiro, gemeu baixinho, quase um sussurro. Gêmeos soltou uma risadinha abafada.

- O que fez dessa vez, Milo?

- Eu? Ora, porque implicam tanto comigo?

- Porque dá razão para que impliquem.

O menino virou a cabeça para ele, na mesma posição, apoiado pelos cotovelos, com uma sobrancelha erguida. Tinha uma expressão aborrecida na face, o que fez Saga se divertir. Era um adolescente típico. Olhou desde o cabelo que se espalhava pelo ombro até a curva da espinha, onde o bumbum saliente arrebitava um pouco. E era muito bonito e sedutor na sua inocência explosiva.

Mordeu os lábios para conter sua imaginação e tentou se concentrar nos ferimentos. Alheio aos seus maus pensamentos, Milo começou a contar o que havia acontecido.

Ele, Camus e Shaka estudavam as lições que o mestre Shion acabara de passar no salão principal do templo, onde ficava o trono. Aqueles exercícios eram chatos, os amigos os faziam com a maior concentração e gosto. Mas não era coisa para ele. Gostava de ação, teorias eram ridículas. A certa altura, largou cansado o caderno no chão, bufando de tédio.

Olhou para os outros dois à sua frente, compenetrados. Camus estava sentado no chão, com as costas encostadas numa coluna, uma perna flexionada onde apoiava o caderno. Achou engraçado, estava com uma expressão séria, as sobrancelhas se juntavam quando as franzia. Abria a boca balbuciando algo, como se assim fosse entender melhor o que lia. Queria explodir na gargalhada, mas se segurou porque sabia que levaria uma bronca ou um olhar zangado.

Virou a cara para o trono, feito de ouro e pedrarias preciosas, o forro das almofadas de fino veludo. Foi sentar-se ali, afundando na maciez do encosto. Depois se endireitou imitando o mestre, com os cotovelos apoiados nos braços do trono, as mãos cruzadas abaixo do queixo. E então cruzou as pernas e se esparramou displicente. Suspirou, mirando o chão, foi quando viu a barra da imensa cortina que ficava atrás do trono.

Sempre tivera curiosidade de ver o que havia lá atrás, e queria saber o que tanto o mestre Shion escondia deles, já que proibia que entrassem ali sem a sua presença. Uma olhadinha não custaria nada, ele nem saberia. Deslizou para o chão, foi até o canto da cortina para abri-la. Tateando, encontrou uma maçaneta.

Empurrou a porta escondida, descobrindo praticamente uma sala de tesouros. Seus olhos brilharam de admiração, percorrendo os objetos espalhados e empilhados. Cunhados de ouro e prata, ornados com pedras ricas, que refletiam vivas a luz do sol que passava por pequenas frestas no alto das paredes. E moedas, muitas delas, em vasilhas ou forrando o chão. Agachou-se e colheu algumas, eram gregas, mas de um império muito mais antigo que o da era cristã.

O mestre devia manter o Santuário com aquela riqueza, mesmo que ficasse à margem do mundo cotidiano, gerava despesas absurdas. As vestes, o modo de vida que se tinha ali, eram mera aparência, um capricho dos deuses. Ficou tentado a pegar um pouco, mas largou-as no chão, não era certo. Avançou mais para o interior, encontrando belas cerâmicas gregas, com características que as tornaram famosas. Vasilhas, ânforas, todas decoradas em terra sigilata, onde a queima havia deixado figuras negras em fundos vermelhos, numa habilidade surpreendente. Estavam em ótimo estado, retratavam cenas de epopéias, lendas, histórias maravilhosas contadas na Ilha que reconheceu nas peças. Muitas delas tinham a figura de Athena, com sua armadura e túnica virginal, séria e impiedosa, empunhando sua lança.

Um corredor longo, cheio delas, junto com estátuas um pouco maiores que o tamanho de seres humanos, brancas, mas havia algumas... Coloridas? Eram tão vivas que pareciam respirar. O ar tornou-se mais pesado, e Milo sentiu suar frio. Elas estavam respirando. Sua visão se turvou e teve a impressão de que as paredes se aproximavam, uma da outra, para comprimi-lo. E uma voz chamando-o, engoliu em seco e se virou para a direção do chamado. Uma estatua de um homem armado, vestindo uma armadura antiga, que cobria seus ombros e peito, e um elmo, que deixava apenas entrever a boca carnuda e o queixo largo, uma luz brilhou de lá de dentro.

De repente se sentiu amolecer, tornar-se submisso. Não entendia o que a voz lhe falava, mas era tão sedutora que se deixou levar. A estátua estava viva, mas movia-se lentamente. Levantou um braço, tocando o rosto de Escorpião. Seu toque era frio, extremamente duro e liso, a textura da pedra polida de mármore do qual era feita a criatura. Um silêncio mortal sua boca cerrada ameaçou abrir, produzindo um sibilo.

Uma mão o puxou pelo ombro e acordou de seu transe, dando de cara com a máscara do Mestre Shion. Deu uma grande inspirada, como se só agora pudesse respirar, sentindo seu coração disparar dentro de seu peito. Virou-se para trás, olhando a estátua, agora imóvel e de aspecto mais frio e inanimado, piscou confuso. Não podia ser uma ilusão, um sonho, fora real demais. Shaka e Camus estavam atrás do mestre, encolhidos, o francês o olhava com desaprovação e pareceu também com um tanto de arrogância.

Saga o ouvia com atenção, já havia feito os curativos. Quando terminou, o viu com uma expressão séria e preocupada, com um vinco na testa. Conhecia a estátua de que falava, pela descrição, era a de Ares, deus da guerra. Poderia rir e dizer que Milo tivera uma alucinação por ter tomado muito sol, ou outra explicação do tipo, se não fosse um porém. Essa força de atração, também a sentira, ele e Kanon, já que nada escondiam um do outro.

E aquele mistério começara quando aquela menina foi trazida, um bebê, a reencarnação da deusa Athena. O mestre segurava orgulhoso, mostrando para os cavaleiros reunidos no quarto da criança. Tão pequenina que mal cabia nas mãos de dedos longos do mestre, de bochechas rosadas e os olhos semicerrados. O nascimento esperado por centenas de anos, pela esperança de ter a própria deusa entre eles. Saga rira baixo, vendo a pequenina resmungar de sono e agitar as perninhas gorduchas suspensas. Nada ali havia de sagrado, era mortal demais, viva, nascida de um ventre humano. Não lembrava nada da deusa virgem, soberana e fria, reinando com a sabedoria e se afastando dos corações mortais.

Adiantou-se para pedir que a pegasse no colo, o que todos ali estavam ansiosos por fazer. Mas parou e olhou para fora do quarto, sentira algo chamando, ou uma atração forte. E quando seguiu, deparou-se com a estátua fria e pouco maior que um homem adulto. Afastou-se logo, um cosmos maligno pairava por ali, mesmo que fosse fraco a ponto de ninguém perceber.

Percebeu que Milo o olhava, sentado ereto na cama, vendo sua cara de preocupação. O que quer que seja que estivesse naquele lugar, o menino poderia ter corrido perigo, não sabia a extensão nem a natureza, mas com certeza pagaria caro pela sua curiosidade infantil. Segurou os ombros dele com força, fazendo-o gemer de dor e surpresa, olhando-o assustado.

- Prometa que nunca mais vai voltar a fazer isso, Milo!

- Saga?

Notou que seu tom de voz alterou e que o machucava, tornou a falar mais brando, repetindo e diminuiu a pressão das suas mãos. O garoto baixou a cabeça, murmurando desculpas. Puxou-o para um abraço, sentindo seu peito molhar, estava chorando. Milo sentia que havia feito algo muito grave, para que Shion tivesse que mandar Shura castigá-lo e para Saga gritar com ele dessa maneira, coisa que nunca o viu fazer.

Ainda o tinha nos braços, acariciando suas costas e sussurrando palavras gentis. O corpo de Escorpião era quente e macio, muito agradável de ter contato. Expansivo, o garoto soluçava e apertava mais e mais o abraço, sentindo falta do conforto que há anos perdera. Tinha uma afeição profunda por Saga, apesar do pouco tempo que o conhecia, era fácil sentir amor por ele.

Absorto, Gêmeos mal percebeu um vulto oculto pelas sombras da casa. E quando levantou a cabeça, reconheceu a silhueta de Kanon escondida, e viu um sorriso malicioso projetar-se no seu rosto. Imediatamente se separou do garoto, com o rosto totalmente encharcado. Enxugou-o delicadamente com a ponta das mangas compridas, ajeitando os cachos desalinhados e grudados nas faces molhadas.

- Desculpe Milo. Mas tenho coisas a resolver...

- Ah, claro.

Milo levantou-se e se recompôs, passando as mãos no rosto eliminando os vestígios das lágrimas e fungando. Saga fez o mesmo e depositou um beijo de leve na sua testa, um arrepio gostoso correu pela espinha de Escorpião, que riu. Ficou observando o rapaz se afastar de sua casa e só então virou para a sua cópia, encostado numa coluna, com o mesmo sorriso. Passou por ele e ouviu-o dizer com uma ponta de sarcasmo, antes de fechar a porta.

- Eu falei...

- Cale sua maldita boca!

oOo

Saíra feliz da casa de Gêmeos, apesar da bronca merecida. Era um homem em quem podia confiar e amar. A muito não sentia aquilo no coração. Qualquer um que o visse naquele estado, o tomaria como um tonto sorridente, os olhos ainda inchados e vermelhos e as pernas enfaixadas.

Parou de súbito, murchando o sorriso e cerrando os punhos com força. Acompanhou a figura esguia com o olhar e depois desatou a correr, se jogando contra o cavaleiro desavisado. Camus se viu sob um enfurecido Milo, que o forçava contra o chão de terra. Debateu-se e se soltou, soltando vários insultos na sua língua.

- Não se faça de santinho, que sei que foi você que me dedurou! Você e aquele monge loiro!

- O quê? Do que está falando?

- Os dois estavam atrás do mestre quando ele me pegou, não negue que foram vocês que disseram que eu estava lá dentro!

O francês levantou-se e sacudiu a poeira calmamente da roupa, arqueando uma das sobrancelhas.

- Não fomos nós. Estávamos tão distraídos com nossos exercícios, aliás, coisa que você deveria estar fazendo também! Percebi sua inquietação, andando para lá e para cá, mas não o vi entrar atrás daquela cortina.

- Oh, não?

- Não. Foi quando o mestre voltou e chacoalhou meu ombro, perguntando furioso onde estava, olhei ao redor e não o encontrei. Ele nem deu tempo para que eu ou Shaka respondesse, entrando lá. Apenas o seguimos...

- Como se eu fosse acreditar... Traidor!

O outro apenas o olhou inexpressivo, depois balançou a cabeça, virando-se de costas para se afastar.

- Não espero que acredite. – deu de ombros – Não uma criança como você...

O grego sentiu seu sangue ferver, "criança?". Avançou e o virou para encará-lo, segurando sua camisa rudemente. Camus não parecia assustado, ao contrário, tinha a expressão mais plácida do que nunca. O que o irritou ainda mais.

- Repete se for homem!

- Criança. Qual outro nome para alguém que ainda tem medo de dormir sozinho?

Soltou-o lentamente, fitando aquele rosto que não transmitia nem raiva nem malícia, ou qualquer outro sentimento. Liso e inexpressivo como uma estátua de mármore, da mesma feitura da que viu na sala do Mestre Shion. Nas poucas semanas que estiveram ali, se conhecendo, Milo se levantava no meio da noite e se dirigia para a cama dele, que dividia sem protestar. Nem ele imaginava o porquê ele fazia isso, justamente com aquele estrangeiro. Apenas sabia que se sentia bem ao ter um corpo quente ao seu lado, e que só assim conseguia dormir tranqüilo.

Os aprendizes da Ilha de Milos dormiam em um só dormitório, e quase sempre dividiam as camas e os colchões no chão, amontoados uns nos outros. Talvez sentisse falta, apenas. Mas ele estava insultando-o, e sua posição desafiadora fazia seu sangue ferver. Investiu toda a sua raiva num tapa barulhento, Camus virou o rosto com o impacto, mas nem caiu ou cambaleou. Satisfeito, viu a marca de sua mão vermelha na face esquerda do cavaleiro.

No entanto, o francês virou o rosto novamente para ele, abrindo a boca para sentir a mandíbula dolorida. Fez uma breve careta, e tocou o lábio inferior, que rachara com o golpe, voltando com os dedos escarlates. Mirou Milo com o costumeiro desprezo, como se dissesse com os olhos: "satisfeito?". Deu as costas novamente, para deixá-lo.

Escorpião bufou frustrado, esperava uma reação mais energética que aquela. O que ele pensava? Que podia receber uma surra dele e ainda sair superior? Pois não estava satisfeito não, iria surrá-lo até que implorasse para parar. Deu alguns passos largos e jogou Camus no chão, partindo para cima e desferindo murros às cegas.

Montou no francês, que o empurrou, tentando se livrar. Conseguiu inverter a posição, prendendo o corpo ofegante e agitado de Milo abaixo do seu e suas mãos acima da cabeça. Mas por pouco tempo, porque o outro ainda o jogou para o lado e cobriu-o. Só que nessa manobra desceram ladeira abaixo, até que algumas ruínas os impediram de continuar rolando, batendo com força nas pedras. O grego avançou para atacá-lo, parou ao sentir uma dor latejante na perna.

Havia se cortado com algum fragmento da ruína e sua túnica havia rasgado, Aquário se afastou um pouco e sentou-se nas pedras, recuperando o fôlego. Baixou a cabeça e olhou-o de esguelha, sob a franja farta. Milo soprava o ferimento e sussurrava entre dentes.

- Traidor...

- Não me importo se acredita ou não em mim.

Fitou o garoto estrangeiro, surpreendendo-se. Parecia um tanto melancólico, ainda que continuasse frio na voz indiferente. O chamara de criança, se estava incomodado com sua presença de noite, porque não o expulsava? Não... Era a própria gentileza em pessoa, oferecendo um canto do colchão para deitar-se, permitindo até que o abraçasse. Por isso chegara a se sentir bem em sua presença, diferente do cavaleiro que há pouco vira. "Estava mostrando sua verdadeira face, seu traidor? Frio e zombeteiro?"

Gemeu profundamente, assoprando mais forte no machucado. Que maravilha, estava todo enfaixado, sujo e ralado. E tudo por causa dele. Sem perceber falou para si mesmo, em voz alta.

- Mamãe costumava dizer que tudo sarava com um beijo.

- Beijo? Onde?

Milo lançou-lhe um olhar nervoso, apontando para o ferimento na perna, perto do joelho. Um pequeno corte de onde o sangue saía. Camus olhou-o incrédulo, com as sobrancelhas franzidas, que tipo de mãe falava coisas como aquela? Encolheu-se resignado, do tipo que nunca teve ou teria. Com a manga da camisa, limpou a boca rachada, não se importando em sujar a roupa. Em seguida se ajoelhou na frente do grego, que recuou desconfiado. Ignorando, segurou o joelho de Milo com as duas mãos, se inclinando.

Arrepiou-se todo ao sentir os lábios de Camus encostar a ferida e uma leve pressão deles, mas não foi um tremor de dor. Fechou os olhos com força, sentir aquilo devia ser proibido, não sabia onde, mas devia ser proibido. Quando os abriu, o encontrou bem próximo, encarando-o.

- Melhorou?

Acenou com a cabeça, a pergunta de Camus saíra rouca, mas estava tão perto que pôde sentir seu hálito na face. Sem hesitação, Milo procurou por outro machucado no corpo, e logo estava erguendo o braço ralado para ele, com uma sobrancelha erguida. Os dedos finos do francês eram gelados, mas o contato da boca era macio e úmido. Úmido? Estava lambendo o pouco de sangue, e quando sentiu sua língua na pele, foi como uma corrente elétrica e se afastou subitamente. Aquário riu e agarrou seu braço novamente, assoprando de leve no machucado.

- Ainda acho que um curativo é melhor que um beijo.

Sentou-se do seu lado, encostando as costas numa pedra e olhando para cima, para o topo da colina que tinham acabado de descer rolando. O grego observava seu perfil contra a luz do fim da tarde, tornando sua pele branca em vermelha, o viu levar a mão até a face esquerda. Fora onde lhe dera o tapa, devia estar doendo muito, o dera com bastante força. Fez virar o rosto para si, segurando seu queixo, deu um beijo estalado na bochecha inchada. Mas assim que se afastou um pouco, seu olhar se dirigiu para o lábio inferior dele, com um pequeno corte, o sangue já seco.

A língua passeou pelos lábios, umedecendo-os, Milo engoliu em seco. Seria só para retribuir seu favor, apenas isso, ou pelo menos era o que dizia para si mesmo. Roçou de leve a boca na dele, que a entreabriu, cerrou os olhos ao pressionar os lábios contra os dele. Nenhuma reação, nem um sobressalto ou um empurrão, Camus estava imóvel como uma pedra, mas mais receptivo que uma. Estava bem diferente do cavaleiro que vira a pouco, acima da colina, arrogante.

E Camus era arrogante, orgulhoso, era distante com os outros rapazes e tutores. Extremamente educado, a ponto de nunca cometer uma gafe, como abraçar alguém ou chorar. Nem ele mesmo entendia porque se aproximara de alguém assim, talvez por ser seu oposto, ou porque, por mais que disfarçasse com sorrisos gentis e dissimulados, era triste e solitário como ele.

Quando se afastou, sentiu seu rosto quente, e o de Camus estava corado, e já não era efeito da luz, o sol havia se posto. Os olhos dele se abriram lentamente, nenhuma repulsa ou vergonha neles, nada. Recuperando o fôlego, com alívio sorriu e se aproximou para beijá-lo mais uma vez. Mas dessa vez o francês não deixou, empurrando gentilmente seus ombros.

- Não. Ainda estou bravo com você.

- Bravo?

Quem tinha o direito de ficar bravo era ele, sentiu seu sangue ferver de raiva de novo.

- Eu devia ter dedurado, não foi justo eu e Shaka levarmos bronca por sua causa. Eu nunca recebi um sermão sem motivo, e muito menos de um moleque feito Aioros.

- Ah, vocês receberam sermão? E o que você me diz disso?

Mostrou as pernas marcadas pelo chicote de Shura, Camus olhou surpreso, mas logo tentou disfarçar, se mostrando indiferente.

- Procurou isso, Milo. Eu não sou culpado pelas suas travessuras.

Virou o rosto para o outro lado, cruzando os braços, magoado. Escorpião sabia que a culpa era toda sua, seu egoísmo acabava cegando, e não vira que ele também respondera pelas conseqüências, sem ter participação na brincadeira. Enquanto estava feliz, na companhia de Saga, os dois estavam até a hora que o encontrou voltando do Templo recebendo bronca de Aioros, que era pouco mais velho que eles apenas.

Pegou uma lasca de pedra, cortando o polegar. Agarrou a mão de Camus e fez o mesmo, este gemeu e arrancou sua mão da sua, levando o dedo à boca. Milo pegou de novo sua mão, juntando seu dedo cortado com o dele, o francês o fitou confuso.

- Agora somos irmãos de sangue.

- O quê?

- Não vou mais fazer isso com você, Camus. E não importa onde estivermos, seremos sempre amigos, promete?

Ficou em silêncio, e Milo entendeu como um sim. Aquário achou graça do pacto inocente e infantil, se tudo fosse tão simples como ele fazia parecer. E fantasiar com a felicidade era melhor que enfrentar a realidade e aquele lugar não passava de um sonho. Como os seres dançando no ar.

A tarde findara e a noite caíra, e apenas a luz fria da lua iluminava-os, agora sim, Camus parecia uma estátua, de gelo.


CONTINUA...

Fevereiro/2003