Tempestade
Capítulo 7
Três meses haviam passado desde a festa de Dionísio. E há três meses Camus havia entregado seu corpo para ele, a primeira de outras noites que se seguiram. Observava o cavaleiro de gelo dormir. Estava deitado de lado, apoiado pelo cotovelo, com um sorriso bobo nos lábios. Dormia na sua cama, com a boca entreaberta, ressonando pesado. Milo desviou o olhar para o relógio, na cômoda ao lado. Voltou a olhar o amante com as sobrancelhas franzidas. Estranho, já era tarde e Camus ainda dormia.
Acariciou a face exposta levemente, sentindo a maciez da pele branca e perfeita. Devia ter exagerado na noite anterior, deixando-o muito cansado. O francês não era de acordar tarde, antes que pudesse pensar em abrir os olhos, geralmente ele já estava de pé, calçando os sapatos.
Mas agradeceu por ainda estar adormecido, assim podia admirá-lo com calma. Sem que Camus o encarasse com seus olhos frios e perguntasse o que estava olhando. Ou sem que ele desviasse o rosto ao se sentir observado com tanta atenção. Deslizou os dedos pelos fios escuros, vendo-os caírem e se espalharem em volta do outro, pelos lençóis desfeitos.
Camus era um anjo puro e frio, seu anjo. Sorriu, orgulhoso e infantil, lembrando-se de quando o teve pela primeira vez. Fora seu primeiro, seu único, o cavaleiro de gelo era só seu, e de mais ninguém. Apenas ele tocava seu corpo, via-o derreter em seus braços, ouvia seus sussurros de prazer, presenciava aqueles olhos frios escurecerem e suplicarem mudos.
Tocou levemente a pele nua do ombro do amante, para depois encostar os lábios e beijar o lugar. Sentiu seu cheiro, que já o impregnava e o inebriava a cada vez que o inalava. E pensar que há alguns meses atrás ainda eram apenas amigos, e dizia para Camus se envolver com alguma garota, sair para se divertir. Aquele pensamento o desagradou. Jurava para si mesmo, se mais alguém tivesse aquele corpo, se mais alguém que não fosse ele tocasse aquela pele e o fizesse tremer como fazia... Era capaz de matar.
Afastou-se um pouco, voltando a admirar o rosto sereno. Fitou a boca entreaberta, para então depositar vários beijos nela, vendo os lábios ganharem uma leve cor rosada em resultado. Era melhor parar e se conter, ou Camus acordaria e o chamaria de idiota e perguntaria o que raios estava fazendo. A verdade era que não resistia quando o tinha por perto.
Levantou-se a contra gosto, era melhor tomar um banho gelado. Quando saiu do banheiro, Aquário continuava adormecido, na mesma posição que o deixara. Queria que acordasse, olhasse para ele, sorrisse e desse bom dia, com sua voz sonolenta. Não haveria melhor modo de se começar o dia, com um beijo do amante. Avançou para a cama e hesitou. Não, era melhor deixá-lo dormir. Colocou a roupa de treino, esfregou a toalha na grande cabeleira molhada e olhou para a cama, antes de fechar a porta devagar.
Assim que ouviu a porta ser fechada, Camus abriu os olhos. Ergueu um pouco a cabeça, para ver se Milo tinha ido mesmo embora. Deixou a cabeça cair no travesseiro e suspirou profundamente. Achou que nunca mais saísse da cama. Geralmente acordava antes do grego, se arrumava rapidamente para o treino. Mas quando o percebeu acordando antes dele, decidiu fingir que ainda dormia.
Não queria ter de encará-lo no começo do dia, de ter de conversar com ele. Ainda tentava entender o que acontecera nos últimos meses, tudo tão rápido. Teve de se controlar ao máximo quando Milo tocou sua pele e o beijou, sentindo-se aquecer por dentro. Era aquela sensação que tinha toda vez que Escorpião o tocava, o incomodava imensamente. Há poucos meses atrás podia manter-se indiferente e frio para qualquer um, mas nos últimos meses...
Sentou-se na cama, cobrindo o rosto com as mãos e dobrando os joelhos junto a si. Era isso que o mestre chamava de desejo? Estava se deixando levar pelas vontades do seu corpo como o ensinara, mas como podia se saciar completamente se a cada carícia do amigo queria mais? Não, estava errado. Algo estava muito errado.
Afastou os lençóis de seu corpo e notou um pequeno escorpião negro no meio deles. Sempre escapava algum do vidro. Pegou-o cuidadosamente, olhando-o passear pelo seu braço, dócil. Milo era como esse pequeno ser, perigoso, e estava brincando com o perigo. Levou-o para o vidro, junto com os outros escorpiões.
Ora, Milo lançara seu jogo, e ele o aceitara. Podia tê-lo repudiado, e sua vida agora não estaria virada de cabeça para baixo, não estaria confuso como estava. Respondia aos seus toques, a sua boca ávida e quente, tudo não passava de um jogo. E como um jogo uma hora terminaria, cedo ou tarde, repentino ou não, sabia que uma hora aquilo ia acabar. Se fosse ele a deixar Milo ou o grego o trocar por outra diversão, o que não duvidava muito, não podia prever.
Verificou o vidro, vendo se estava bem lacrado, para que os pequenos escorpiões não escapassem na ausência do dono. Bichinhos de estimação um tanto incomuns, mas ser exótico era da sua natureza. Tomou um banho com a água que Milo usara, já fria, mas não se importou. Pegou sua roupa de treino, que o outro havia dobrado com cuidado. Não havia treinos para aquele dia.
oOo
Os passos da grande sombra ressoavam pelos corredores do imenso Templo de Athena. Dentro de uma máscara e uma longa túnica escura, Saga se sentia sufocado. Imaginava como Shion tinha se acostumado a usar aquilo por tantos anos de sua longa vida. Ele era jovem e não agüentava sentir seu corpo preso daquele jeito. "Ha ha ha, o que foi Saga, se lamentando de novo pelas suas ações? Me poupe...". A figura imponente parou de repente, olhando para um espelho com moldura de ouro no corredor. "Me deixe em paz!"
Voltou a caminhar, ele não ia acabar com a sensação boa que estava tendo naquele dia. O Templo geralmente vazio e solitário estava cheio de aprendizes e cavaleiros jovens, cada grupo em um canto, enchendo aquele lugar amaldiçoado de paz e alegria. Que aquele clima não fosse perturbado, e maldito fosse o deus que decidisse acabar com tudo!
Podia ouvir as risadas e vozes alegres pelos aposentos por onde passava. Um dos aposentos estava silencioso, mas estava ocupado por alguém. Parou na frente da porta cerrada e estremeceu. A biblioteca que Kanon costumava se enfurnar noites a fio, maravilhado com as preciosidades guardadas. Hesitou um minuto, antes de segurar a maçaneta e girá-la. A figura solitária sentada na enorme mesa não se moveu, estava distraído demais, entretido na leitura.
Típico daquela pessoa que conhecia bem, mas que seu irmão felizmente pôde conhecer melhor e aprender a amar sua personalidade fria e reservada. Tinham gostos muito parecidos, tanto que deveria durar horas uma discussão intelectual entre aqueles dois. Sentiu uma dor no peito ao se lembrar do irmão.
Camus finalmente sentiu sua presença e se virou, cumprimentando o grande Mestre. Saga se aproximou e se postou atrás da cadeira do garoto, apoiando sua mão no ombro dele. Viu o pergaminho antigo e um bloco de papel do lado, onde Aquário tomava notas, traduzindo as palavras antigas, mortas há muito tempo.
O Santuário possuía um invejável arsenal de manuscritos da Grécia Antiga, que ninguém mais no mundo possuía. Havia cópias originais das obras destruídas no incêndio de Alexandria, uma verdadeira mina de ouro. Os sacerdotes de Athena os mantiveram escondidos e conservados todos esses séculos, e isso foi possível com a proteção dos cavaleiros do zodíaco. O francês manuseava aquela pequena preciosidade com cuidado, devorando cada letra escrita.
- Esse pergaminho vale milhões... – murmurou.
- Sim. – ouviu o pensamento alto de Saga – Mas suas palavras são mais valiosas ainda para serem trancafiadas em um cofre para que não sejam lidas.
- Verdade. – sorriu – Porquê não está com os outros?
- Eu senti vontade de vir aqui.
Encolheu os ombros, voltando a sua atenção para a leitura. Balançou a cabeça, só mesmo Camus para preferir se enfurnar numa biblioteca velha como aquela. Sem avisar, tirou a pena da mão do garoto. Recolheu os papéis e o pergaminho, ante o olhar confuso do garoto. Afagou a cabeça dele.
- Milo e os outros estão em uma das salas jogando cartas, porquê não se junta a eles?
- Mas eu estava lendo... – apontou desolado.
- Vá se divertir, Camus. Deixe que eu guardo isso para você.
- Mas eu estava me divertindo.
- Eu ouvi as vozes deles no salão principal do lado oeste, vou providenciar que mandem alguns refrescos para vocês.
Saga empurrava gentilmente o menino para fora da biblioteca, ignorando seus protestos. O mandou se apressar. O garoto parou, olhou para trás e voltou a caminhar cabisbaixo. Saga sorriu satisfeito para si mesmo, não queria que se isolasse dos outros.
Camus viu-se parado no corredor, perdido. Ouviu a porta da biblioteca ser fechada e suspirou. Não queria ver Milo, não naquele dia. Não conseguia pensar perto dele, e precisava raciocinar sobre o que estava acontecendo entre os dois. E fazê-lo com Escorpião no mesmo aposento que ele não adiantava.
Olhou para trás de novo, era melhor se mexer, ou o Mestre o veria ali e o levaria pessoalmente para os outros. Salão do lado oeste, ele tinha dito. Andou alguns passou e parou de novo. Para que lado ele tinha de ir mesmo? Gemeu baixinho, aquele lugar tinha de ser tão grande e ter tantos corredores.
Depois de meia hora perambulando pelo Templo e amaldiçoando sua total falta de direção, finalmente conseguiu identificar as vozes dos quatro cavaleiros de ouro. Dirigiu-se para a porta de onde os sons provinham, parou na frente dela e respirou fundo, segurando a maçaneta.
- Já que Milo é a criatura mais sedutora que se viu nesse Santuário...
Camus gelou, soltando a maçaneta lentamente. Era a voz de Máscara da Morte, e a ela seguiram-se risadas.
oOo
Andou alguns minutos depois de deixar a casa de Escorpião, mas decidira dar meia volta e entrar lá de novo. Talvez se ficasse até que Camus acordasse. Podiam conversar, se tocarem, se beijarem. Vê-lo se espreguiçar do jeito gostoso como se espreguiçava, piscando os olhos meio sonolento. Visualizar seu amante desse modo fez Milo voltar decidido e com um sorriso enorme nos lábios.
Mas foi interrompido pelos três cavaleiros de ouro que vinham na direção oposta, indo para o Templo do Mestre. Eram Máscara da Morte, Shura e Aioria. Cumprimentou-os apressado, mas o seguraram, desafiando-o para um jogo. Negou e os três insistiram, dizendo que precisavam de mais um parceiro. Recusou mais uma vez, então Máscara o provocou, dizendo que estava com medo de perder. Estreitou os olhos para o italiano atrevido.
Sabia que não haveria treinamento naquele dia, mas... Olhou melancólico para o seu templo. Queria tanto passar o tempo com Camus. Mas não resistia a um jogo, e estava louco de vontade de fazer a rapa naqueles três arrogantes. Sorriu malicioso e aceitou, seguindo-os.
E agora olhava para as cartas e para os três cavaleiros, sorrindo triunfante. Ganhara mais uma rodada. Jogou as cartas sobre a mesa e recolheu as notas, contando-as. Aioria jogou suas cartas, nervoso, perdera mais uma vez. Máscara também estava furioso e Shura calmo.
- Mas não é possível! Milo, você é um ladrão!
- Hahaha! Eu joguei limpo, Aioria. Que posso fazer... – deu de ombros.
- Mais uma partida! – Máscara não admitia a derrota.
- Mas com que dinheiro vai apostar, ele pegou tudo! – Aiora apontou para o rapaz de cabelos compridos.
- Podíamos mudar o jogo. – Shura acendeu um cigarro e falou calmamente.
Todos olharam para o espanhol, vendo formar um sorriso de segundas intenções na sua face. Aioria entendeu e se revoltou, com as faces coradas. Os três miraram o cavaleiro de Leão, divertidos com sua reação.
- Tem razão. – iniciou Máscara, sarcástico – Perderíamos na certa. Já que Milo é a criatura mais sedutora que se viu nesse Santuário.
Aioria se encolheu na cadeira.
- O que foi Aioria? Pelo que eu me lembre você gostou muito da última vez.
Milo estava adorando o embaraço do leonino, deixou os outros dois cavaleiros estupefatos com o que disse para ele. Máscara fitou incrédulo o grego, que ficou mais vermelho ainda, confirmando que era verdade. Soltou uma gargalhada, acompanhado de Shura. Escorpião apenas embaralhava as cartas, com uma sobrancelha erguida e um sorriso no canto dos lábios.
- Nosso pequeno Adônis não perdoa ninguém, hein? – Shura deu mais uma tragada no cigarro. – Uma garota nova cada noite, saídas furtivas do templo de Virgem...
Soltou a fumaça para cima, enquanto se ajeitava na cadeira. O grego não se importou que Shura soubesse que havia mantido um caso com Shaka também.
- Mas tem ficado quieto esses meses, não? Camus voltou da Sibéria e vocês voltaram a andar juntos, como unha e carne, no entanto não o vejo mais se envolvendo com alguma garota ou cavaleiro...
Milo parou de embaralhar as cartas. Máscara soltou mais uma gargalhada, fazendo com que o espanhol e Aioria olhassem confusos para o italiano e que Escorpião trincasse os dentes.
- Aí que se engana meu caro. Como quase metade desse Santuário, Aquário também caiu na rede dele. Devemos te dar os parabéns, Milo. Conseguiu a façanha de seduzir o bloco de gelo!
Um silêncio sepulcral caiu na sala. Capricórnio estava parado, não acreditando no que acabara de ouvir. O cigarro queimava em sua mão que pendia do braço da cadeira. Levantou o olhar lentamente para o rapaz grego na sua frente, pedindo para que isso fosse mentira. O rosto que encontrou na sua frente o fez balbuciar um "Oh céus...".
O cavaleiro de Escorpião se levantou de súbito, derrubando a cadeira e jogando todos os objetos em cima da mesa no chão, num ataque de fúria. Olhou para Câncer como se fosse pular em cima dele e o matar a socos. Mas não. Apenas apertou os punhos e se virou, abrindo a porta e saindo, amaldiçoando-o. Mas no que pôs os pés para fora da sala, estacou. Virou-se lentamente para o vulto na penumbra, encostado na parede de braços cruzados, ao lado da porta.
Seu coração falhou ao encontrar duas farpas de gelo brilhando.
- "Parabéns, Milo. Conseguiu a façanha de seduzir o bloco de gelo!".
Repetiu a frase de Máscara, num tom mais triste que sarcástico. Continuou parado na frente de Camus, escondendo o rosto com as mãos. Soltou um gemido alto de frustração, e voltou a encarar aqueles olhos frios que só o feriam. Num ímpeto, agarrou o braço do francês, o arrastando pelos corredores do Templo.
Camus deixou-se ser levado, tropeçando nos próprios pés, com a rapidez e afobação do grego. Milo só parava para chutar ou socar as portas, observando as salas do lugar, procurando. Finalmente parou em uma e empurrou-o para dentro dela, fechando as portas e encostando a cabeça na madeira. Camus ficou parado no meio do aposento, levando a mão até a parte do braço em que havia sido agarrado. A pele estava vermelha e dolorida.
Milo virou-se envergonhado para o francês, tentando achar as palavras. O outro apenas levantou a mão, pedindo que não falasse. Andou de um lado a outro da sala, sendo acompanhado pelos olhos do grego. Então parou e se aproximou dele.
- Sobre o que acabou de ouvir, Camus...
- O que vai dizer, que era mentira? Realmente não me importo, Milo. Eu já sabia quem você era quando dormimos juntos, já sabia que eu ia ser mais um na sua cama. Eu não me iludo.
- Você não é mais um. – viu o ar incrédulo do outro – Eu não estive com mais ninguém desde que voltou!
- Isso quer dizer nada. Pode estar com mais ninguém enquanto estivermos juntos. Mas e quando acabarmos?
"Não, não e não!" Aproximou-se de Camus, balançando a cabeça. Com as mãos cercou seu rosto claro e delicado, mirando os lábios rosados. Depositou um leve beijo.
- Eu quero mais ninguém, sabe porque?
O viu arregalar os olhos, incomodado. Quando ia continuar a falar, Camus cobriu sua boca com sua mão, impedindo.
- Não diga a palavra, Milo. Se acha que está mesmo, está enganado. O que aconteceu com a última pessoa que acreditava sentir isso?
As mãos de Milo desceram para os braços dele, piscando confuso. Ele falava de Saga. O que aconteceu? O cavaleiro havia abandonado ele, sem dar satisfações. A ferida que deixou em seu peito ainda não fechara, e Camus era o único que sabia disso. Havia passado de corpo em corpo, cama em cama, tentando esquecer.
Mas tinha certeza que Aquário podia cicatrizar essa ferida, levantou os olhos esperançoso, encontrando de novo aqueles olhos frios. Sentiu uma pontada no peito.
- Não há mais nada entre nós que sexo. É por isso que estamos juntos, por isso que estou com você.
Viu o grego arregalar os olhos, surpreso. Depois soltou o ar ofegante, sentindo-se ultrajado.
- Você mesmo não trata seus amantes como objetos apenas de prazer? - continuou Camus - E como é apenas prazer, o que me impede de ter outra pessoa?
Milo ofegou, estreitando os olhos, que começavam a ficar lacrimejantes. Apertou os braços do francês, machucando-o de novo. Mas Camus continuou com seu rosto impassível e seus olhos frios, machucando-o ainda mais. Desvencilhou-se dos braços de ferro, saindo apressado da sala.
Saiu correndo. Havia acabado. Não tinha mais que sentir aquela coisa estranha, não tinha mais que se sentir sufocado por Milo. Não iria mais sentir seus lábios, seu toque. Mesmo que boa parte fosse mentira, percebeu que era a única coisa que podia afastá-lo e não conseguiu parar mais.
Andava tão afobado e distraído nos seus pensamentos, que mal percebeu a pessoa que vinha na direção oposta. Trombou em algo macio, e quando levantou os olhos, se deparou com Shaka.
"Saídas furtivas do templo de Virgem...". Lançou um olhar terrivelmente frio e ameaçador para o indiano, que recuou confuso.
Voltou a correr, deixando Shaka para trás, chamava-o. Saiu do Templo, respirando fundo. Mirou o horizonte, estava escuro, nublado. Exatamente como se sentia. Ao longe podia-se ver relâmpagos riscando o céu, o som ecoava como passos de um gigante que se aproximava. Uma tempestade...
oOo
Shaka se encostou a parede ao afrontar os olhos gélidos de Camus, até que o mesmo saísse correndo para fora. O que acontecera? Chamou-o, mas ele o ignorou. Porque o olhara daquele jeito? Virou-se e atravessou os corredores. Ia passando por uma sala aberta quando parou de súbito, entrando assustado. Milo estava encolhido no chão, seu corpo tremia com soluços, obviamente chorava.
- Milo?
O grego levantou o rosto todo molhado ao ouvir seu nome, mostrando os olhos azuis marejados. Imediatamente o loiro se agachou, passando os dedos pelas faces coradas, secando as lágrimas que não paravam de escorrer daquele rosto juvenil e bonito.
Lembrou-se do encontro que teve com Camus há pouco, no corredor. Pegou os ombros do grego e o sacudiu.
- Ele te machucou?
Milo piscou e estreitou os olhos, fazendo escorrer mais lágrimas. Acenou com a cabeça, parecia um animalzinho abandonado. Shaka ficou furioso, logo Camus? Era o amigo mais íntimo e próximo, como teve coragem?
Perguntou onde o tinha ferido, e Escorpião afastou os braços. Levou a mão espalmada ao peito, esfregando o lugar do coração. O loiro abriu a boca, entendendo o gesto. Não era físico, estava de coração partido. Ah sabia bem que o francês era capaz disso, egoísta como era. Sentou no chão do seu lado, abraçando-o. Isso só o fez derramar mais lágrimas.
- Faz parar, Shaka. Dói muito.
Esfregou suas costas, pedindo que relaxasse. Depois de algum tempo assim, Milo relaxou. Esgotando as lágrimas e os soluços, recostado no corpo macio que conhecia bem do indiano. Mas não era esse corpo que desejava ter junto a si, ainda que fosse acolhedor.
Ele falara em ter outro. Outro objeto de prazer? Não passava disso, não é mesmo? Não. Camus não teria outro, não seria de outro. Porque era só seu, sua pele, sua carne, seu cabelo, seus olhos, seus gemidos. Era seu para que possuísse quando quisesse, para que fizesse o que quisesse. Afastou-se decidido de Shaka, que o mirou confuso.
Ajeitou a roupa, avistando um espelho, postou-se na frente dele. Penteou os cachos com os dedos, secou como pôde as lágrimas, ainda fungando. Tudo sob o olhar de Virgem, ainda sentado no chão, com as sobrancelhas finas franzidas. Quando se virou para o loiro, exibia um sorriso que pretendia ser de vingança, mas pra o indiano saiu triste.
- Se acha que vai ficar por isso mesmo, ele está muito enganado!
- Milo? O que vai fazer?
O grego saiu correndo, tal qual como o outro tinha feito. Shaka levantou atrapalhado, seguindo-o. Parou na entrada do Templo, o mundo praticamente acabara de cair. Pôde ver a figura de Milo correndo no meio do temporal. Gritou seu nome, mas sua voz foi encoberta por um trovão que ressoou pelo santuário.
oOo
Estava no interior de sua casa, mas sentado no chão e recostado na coluna da construção gélida. Na mesma posição desde que chegara, correndo, como se fugindo de uma grande ameaça. Agora a água chicoteava nas paredes externas, fazendo com que o interior fosse tomado por sons abafados.
Imerso em pensamentos e conflitos, mal percebeu o som de passos sendo misturado com os da chuva. Um relâmpago iluminou a entrada da casa, desvendando a silhueta de Milo. Levantou-se lentamente ao reconhecê-lo. O grego postava-se entre as colunas gregas molhado da cabeça aos pés. Camus saiu das sombras do templo, deixando-se ver pelo outro cavaleiro. Milo manteve o olhar desafiador, até que se moveu. Com as mãos, juntou todo o cabelo molhado, torcendo-o e deixando pingar tudo no chão.
Aquário hesitou um pouco para falar, o grego o olhava silencioso, esperando justamente sua iniciativa.
- Milo. Eu já disse tudo o que tinha para falar.
O outro não se abalou, torcendo ainda mais um pouco o cabelo. Suas mãos partiram então para a barra da camisa, chamando sua atenção para o corpo claramente evidenciado pelo tecido grudado na pele. Tirou a camisa, jogando-a num canto qualquer. Se a situação fosse outra, Camus explodiria com a folga do cavaleiro bem dentro da sua casa.
Milo voltou a mirá-lo e outro relâmpago iluminou sua figura. Então pôde ver o rosto do cavaleiro, os olhos um pouco vermelhos e inchados, ou era apenas ilusão? Franziu as sobrancelhas, perturbado. Escorpião deu um passo, ainda olhando direto para si. No que o francês recuou temeroso, deu largas passadas, segurando com uma mão o braço do cavaleiro e com a outra seu rosto, bem firme.
Circundou os lábios com os dedos, estavam tensos. Passado o susto, Camus assumiu uma expressão raivosa, os olhos frios estreitos jogando farpas. Milo sorriu satisfeito, era isso que queria, seu ar selvagem. Tomou sua boca tão rápido que mal teve tempo de repeli-lo, e a abandonou antes que pudesse reagir.
- Mas eu não disse tudo o que tenho para falar.
Com violência, jogou o corpo do cavaleiro de gelo contra a parede. Camus gemeu com o impacto, e sua boca foi novamente tomada, com crueldade. Seu corpo prensado contra a parede pelo corpo forte de Milo. Tentou resistir, socando e empurrando os ombros dele agitado. Ele não tinha o direito de fazer aquilo.
Encerrou o beijo bruscamente, erguendo o rosto do francês. Olhos vermelhos. Podia vê-los bem, verteram lágrimas antes que chegasse ali?
- É isso que quer de mim, não é mesmo? Sexo? – viu o cavaleiro de gelo virar o rosto ao ouvir sua voz – Eu vou dar tudo o que quiser...
Camus voltou a encará-lo, arregalando um pouco os olhos. Voltou a ser beijado com a mesma violência de antes, mas dessa vez não resistiu, pelo contrário, se manteve imóvel. Uma marionete para que Milo fizesse o que quisesse com ele. Escorpião estava tão cego de fúria e paixão que não se importou com seu comportamento.
Arrancou-lhe as vestes, rasgando-as com impaciência. Na pele pálida deixava de propósito linhas escarlates, de onde finos fios de sangue saíam. Era para marcá-lo, porque era seu, apenas seu. A mera menção de que poderia ser substituído por outro pela própria boca do amante o machucara. Quando separou sua boca, foi para agarrá-lo pelos ombros e jogá-lo no chão. O possuiria ali mesmo, no chão frio do templo de Aquário.
O cavaleiro de gelo olhava para o teto, evitando olhar para Milo, enquanto esse avançava sobre si. Cerrou os olhos ao senti-lo dentro de si, deixava apenas suspiros escaparem de sua garganta. Apenas as respirações pesadas ecoavam pelas paredes ocas. Escorpião estremeceu, antes de cair sobre o corpo do outro.
Ergueu-se um pouco nos cotovelos para fitá-lo ofegante, o francês tinha o rosto virado para o lado. Sem olhá-lo, disse numa voz controlada e cortante.
- Satisfeito?
Era tudo o que Camus tinha para dizer? Segurou seu rosto, obrigando a encará-lo, e então desceu um tapa em sua face. Um fio de sangue escorreu pelo canto da boca vermelha. Estava desafiando-o, como quando eram crianças. Mantendo o corpo à sua mercê, como um boneco, respondendo de forma fria, como se perguntasse se já tinha acabado de forma desdenhosa.
O viu levar os dedos para o lugar atingido, gemendo baixinho. Sua fúria que estava prestes a explodir de novo morreu ali. O que tinha acabado de fazer? Saiu de cima de Camus, o erguendo e colocando-o sentado no seu colo. Fez apoiar sua cabeça na curva do seu pescoço, enquanto o abraçava.
Camus gemeu de novo, seu corpo todo doía e os cortes ardiam como o inferno. Abrindo a mão, fez um pedaço de cristal de gelo se formar, para então o colocar contra a face inchada. Suspirou derrotado, aconchegando-se mais no corpo quente. Lá estava ele de novo, sentindo aquela coisa estranha. Não adiantava tentar, uma vez que havia começado não havia volta. Estava caindo de novo, sentindo seu veneno entrar mais fundo nas suas veias.
- Porque não sai da minha vida? - murmurou.
- Não posso.
CONTINUA...
Novembro/2003
