Tempestade

Capítulo 8

I'm tired of being what you want me to be,
Feeling so faithless, lost under the surface,
I don't know what you're expecting of me,
Put under the pressure of walking in your shoes.

...

Can't you see that your smothering me,
Holding too tightly
Afraid to lose control,
'Cause everything that you thought I would be,
Has fallen apart, right in front of you.

Numb, Linkin Park

Nas semanas que se seguiram, as únicas provas remanescentes daquele dia foram as marcas que Milo deixara em seu corpo. No dia seguinte Camus passara a usar camisas de manga longa preta, com golas altas que cobriam todo o seu longo pescoço. Mesmo morrendo sufocado de calor, mas tudo para esconder os cortes, até que eles cicatrizassem. Claro que os outros cavaleiros estranharam, no entanto nada falavam, pois imaginavam quem era o autor daquilo.

O pior não era agüentar aquela roupa quente, mas sim a vergonha. Obviamente o caso chegou aos confins do Santuário. Milo sorria sem graça toda vez que o francês lançava seu olhar furioso em sua direção. Coisa que demorou pouco para ser esquecido. Algumas carícias e beijos do Escorpião bastaram para que voltassem a serem amantes.

O grego estava novamente exultante, tinha-o e parecia que Camus já tinha se conformado em ser dele. Já que não podia tê-lo por inteiro, contentara-se com seu corpo, sua presença constante. Milo acreditava mesmo que podia manter Camus para sempre com ele, ou pelo menos o máximo de tempo possível.

Para Camus era voltar à estaca zero, ao seu tormento que se tornara cada vez maior. Escorpião possuía um veneno que o viciava, a cada dose precisava de mais, e ele dava, para sua frustração moral. Onde estava seu espírito frio de que tanto se orgulhava? Antes tivesse se satisfeito com alguma serva do Santuário ao invés de cair direto nas garras do grego. Agora era sua tábua de salvação, na qual um náufrago agarra no meio do oceano, como seu único meio de sobreviver.

No entanto não eram pessoas comuns, eram cavaleiros. E como tais, o Santuário exigia compromissos.

Estavam na idade de dezesseis anos, no auge de sua adolescência. Alguns Guerreiros, como Shaka, eram mandados para países e regiões distantes para que lecionassem para uma nova leva de órfãos, tão jovens quanto eles. Alguns rumores diziam que uma nova Guerra Santa estava para começar, e por isso tantas crianças estavam sendo treinadas.

O dia da inevitável separação chegara.

Treinavam luta corpo a corpo em uma arena, quando um aprendiz chegara com uma carta na mão. Milo sentara numa pedra e enxugava o suor do pescoço e do tórax, enquanto via Camus de pé, logo a sua frente lendo a carta. O viu franzir as sobrancelhas por um instante, voltando a expressão fria de sempre. O grego ficava ansioso a cada segundo de silêncio, sabia que era do mestre dele. O que podia estar querendo do francês? Milo no íntimo sabia, mas queria que não fosse o que imaginava.

Terminou de ler e fitou o horizonte, com o semblante pensativo. Quando Escorpião perguntou-lhe do que se tratava, apenas estendeu-lhe o papel. Leu em um fôlego só, sentindo-se estremecer por dentro. Quando terminou, baixou a cabeça, escondendo com o farto cabelo seu rosto transtornado. Respirou fundo, para manter uma voz neutra.

- Quando parte?

- Em menos de uma semana, não quer que eu me demore.

- Ah...

Aquário se voltou para ele, ao ouvir seu suspiro desapontado. Mas surpreendendo-se quando viu levantar seu rosto, descobrindo-o, com uma expressão descontraída. Sentiu-se um pouco incomodado, mas logo se repreendeu. O que afinal esperava, que Milo implorasse que não fosse? Que fizesse uma cena no meio da arena? Balançou levemente a cabeça, porque estava agindo feito um idiota de repente?

Uma toalha foi jogada em seu rosto, despertando-o de seus devaneios. Quando conseguiu se livrar dela, tomou um susto, vendo Milo avançar sobre ele. Desviou-se de seu punho, mas não conseguiu impedir que o derrubasse no chão, caindo junto. O grego estava sobre ele, rindo de si. Levantou a mão, para bater naquela cara desaforada, mas ela logo foi segurada pelo outro. Pegando-o desprevenido mais uma vez, Escorpião dá uma grande lambida no seu pescoço, para depois estalar a língua.

- Hum... Bom.

Camus corou ante seu abuso, provocando mais risos no outro. Depois de tudo ainda corava, como seu anjo era adorável. Saiu de cima dele e se levantou, erguendo-o e batendo a poeira de sua roupa. O francês ainda vermelho se afastava, blasfemando na sua língua e em russo, enquanto o grego ainda ria e corria para alcançá-lo, enlaçando sua cintura.

Três dias se passaram como se Camus nunca fosse partir. Nenhum dos dois mencionava a tal partida, era como se ela não existisse ou estivesse tão próxima. Milo agia do seu jeito habitualmente descontraído, mais fogoso ainda, provocando Aquário a todo o momento. Debaixo da máscara, a despedida fervia-lhe a alma, a tristeza transbordando. Mas não iria demonstrar o que sentia, pelo menos não abertamente, apenas em seus toques possessivos e cada vez mais exigentes.

Não que mostrar seu descontentamento fosse motivo de humilhação para sua honra de cavaleiro, não era como seu amante francês, cheio de índoles e orgulhos. Mas para que aumentar sua tristeza se era inevitável que partisse? Negar uma ordem do Santuário era clamar pela punição.

Acariciou a cabeça dormente encostada em seu peito, pensativo. Estava na cama da casa de Aquário, não gostava muito de entrar nela, aquele ambiente gelava-lhe até a alma. Soprou, vendo o ar de sua boca formar uma fumaça por causa do contato frio. No canto estava a caixa dourada e uma mala, Camus a arrumara na noite anterior. Observara silencioso o francês arrumar suas coisas, com um certo nervosismo.

Depois o fizera pegar todas as mantas e peles disponíveis e cobrir o colchão, para então o empurrar para dentro deles e tomá-lo mais uma vez. Exigente como das outras vezes, mas mais cuidadoso e lento, querendo lembrar de cada pedaço daquela pele branca. Marcar de vermelho cada pedaço dela como seu território, totalmente animalesco, mas não podia evitar. Tinha Camus agora dormindo sobre si, exausto. A cabeça repousada em seu peito, a mão envolvendo seu ombro frouxamente, a boca entreaberta deixando que sua respiração pesada escapasse e viesse acariciar-lhe a pele bronzeada.

Como queria que esse momento durasse eternamente. Não podia fazer nada para que não fosse, que argumentos tinha? Todos aqueles que Camus não queria ouvir, pensando bem, era melhor não dizê-los, não queria escutar de novo daquela boca suave palavras tão duras como tinha acontecido.

Sentiu-o remexer-se sobre si, respirando fundo e se espreguiçando antes de abrir os olhos. O francês sentiu o calor familiar e olhou para cima, encontrando um grande sorriso de bom dia. Milo rapidamente deslizou para fora da cama e começou a se vestir, sob o olhar sonolento e confuso do amante. Quando terminou, se inclinou sobre a cama o beijando.

- Tenha uma boa viagem. Não se esqueça de escrever, hein! Quero saber se consegue se virar com as pestinhas que seu mestre arranjou.

- Não devem ser piores que você. - disse em tom sarcástico, levantando uma sobrancelha.

- Então não vai ter problemas. - riu em resposta - Também tenho uma viagem para fazer. Tchau.

Deu um beijo estalado na testa de Camus e saiu rapidamente do Templo, antes que este mesmo deixasse de sentir sua presença. Após cinco minutos andando do Templo de Aquário, se apoiou na parede de uma construção, cobrindo a boca com a mão e reprimindo um soluço. Sentiu os olhos ficarem úmidos. O que era isso, estava sendo dramático demais. Era só alguns anos, e ele teria de vir ao Santuário sempre, todos tinham.

oOo

Camus passou os dedos sobre a testa e os lábios, olhando instintivamente para suas coisas arrumadas num canto do quarto. Nunca se ausentara por tanto tempo desde que viera ao Santuário proteger a décima primeira casa. Era hora de ir. Suspirou e jogou as mantas para o lado, saindo da cama. Vestiu-se e mirou o grande espelho que tinha ali, fez uma careta, descobrindo uma marca avermelhada no pescoço.

Fechou a camisa, escondendo-a como pôde. Alisou o tecido e passou a mão na franja, mirando seu próprio reflexo. Não reconhecera o grego nessa semana inteira, muito menos nessa despedida casual. Será que...

Balançou a cabeça, colocou a caixa dourada nas costas e pegou a mala. Deu uma última olhada na fachada de seu Templo. Um dia tudo acaba, não é mesmo?

Sua boca fez um movimento mudo.

"Tchau."

oOo

Desembarcou na Ilha de Milos no mesmo dia, não demorara em preparar malas. Sua cabeça ainda estava no Santuário, onde sabia que seu anjo não devia estar mais.

Mas assim que chegou próximo ao lugar onde nascera, um ar familiar encheu seus pulmões, sorriu para seu lar antigo. Era seu povo, caloroso, latino. Seu mundo era muito diferente do dele. Seguindo a pé com sua urna nas costas, se aproximou do domínio dos cavaleiros. Em um campo aberto, dúzias de crianças em vestes de treinamento socavam cada um sacos duros, que eram firmemente seguros por seus colegas.

Parou um pouco afastado, cruzando os braços e sorrindo. O mestre era bastante orgulhoso de seus aprendizes, mas pegava um pouco pesado demais. Lembrava-se de seu tempo de menino, havia muitos como via agora, todos órfãos. Mais da metade nem chegava a se tornar cavaleiro, mas no fundo achava que o mestre queria dar um rumo a eles, uma vez que não havia quem os acolhesse.

Um dos garotos parou e passou a mão na testa suada, cansado, foi quando avistou o cavaleiro parado, franzindo os olhos. Outro acompanhou seu olhar e reconheceu-o de pronto, correndo em sua direção e gritando.

- É o cavaleiro de Escorpião!

Todo o resto parou o que fazia e se aproximaram meio boquiabertos, curiosos. Passou a mão na cabeça do primeiro garoto que o viu, acenando para os outros. O olhavam como se fosse um deus, ou algo do tipo. Milo sorriu meio amarelo, o mestre ia matá-lo por interromper um treino.

Mas o estrago já estava feito, eles não saíam de perto. Quebrando um pouco da hesitação inicial, foi alvo de uma enxurrada de perguntas e puxões. Soltou uma longa risada, pedindo calma. Sentou-se no chão, mandando que fizessem o mesmo. Logo estavam tocando fascinados a armadura sagrada e ouvindo atentamente a cada palavra do cavaleiro.

Em um momento, todas as crianças ficaram quietas e apreensivas, olhando para além de Milo. Nem precisou se virar para saber quem era. Levantou-se, e começou a se virar devagar, até encarar o mestre e dar um sorrisinho sem graça. Com cara de poucos amigos, mandou as crianças voltarem as suas tarefas, que obedeceram imediatamente ao som da voz ameaçadora. Milo seguiu-o, até uma habitação que deveria ser onde os aprendizes estudavam.

- Isso é jeito de me recepcionar? Me fazendo passar vexame, oras, vejam só...

- O que quer? - interrompeu-o ignorando seus resmungos.

- O que quero? Como assim o que quero? Não posso visitar meu mestre mais?

- Pare com isso, bajulação não combina com você. Sempre foi um moleque desobediente, Milo, nunca vem quando o chamo.

- Oras. Eu vim relaxar! Ajudá-lo! Vejo que tem muitas crianças para treinar, e...

Viu o mestre levantar uma sobrancelha, incrédulo. Suspirou e se deu por vencido.

- Camus foi embora a pedido do mestre. Não consigo ficar no Santuário sem pensar nele.

- Ah. Sabia que tinha um motivo egoísta.

Soltou uma risada sonora e saiu da habitação, sendo seguido pelo ex-pupilo. Egoísta, sim, era o que sempre fora. Desafiara insolentemente o próprio mestre por causa da armadura, sempre fora o menino insolente. Deu de ombros, isso era bom, não era? Mostrava o quanto era valente e desafiador. Ao contrário de Albiore que abaixava a cabeça a cada palavra do mestre.

Olhou para o homem andando na sua frente. O tinha chamado de velhote de meia idade, mas não era verdade, tinha seus quarenta anos bem conservados. O rosto forte ganhara poucas rugas e marcas, mas ainda tinha a aparência do homem que encontrara há dez anos, na casa de sua mãe, quando esta jazia fria na cama. Poucos cabelos brancos precoces se perdiam na vasta cabeleira negra.

Foi até uma espécie de adega rústica, entregou uma caneca de metal para ele e abriu uma das garrafas de vinho. Sorveu uma grande quantidade do vinho num gole só, e olhou para o pupilo.

- Camus é bem mais que seu amigo, não?

Milo que estava bebendo, engasgou, tossindo até não poder mais. Colocou a mão no peito, se acalmando, e olhando o homem de esguelha. Zeus, era tão óbvio assim? Mas não devia ser nenhuma surpresa, o conhecia bem mais do que gostaria que conhecesse, ser falso com o mestre e com o último cavaleiro de Escorpião era burrice demais.

O mestre não se abalou, pegou sua caneca e encheu com mais vinho, dando novamente para o rapaz. Mandou sentar-se em uma mesa de madeira gasta próxima a eles, sentando em seguida, em frente a ele. Era normal os cavaleiros se relacionarem e acabarem se enamorando, por se tornarem tão íntimos. No entanto...

- Conhece a lenda de Ganímedes, não?

Acenou com a cabeça, levemente, concordando. Era um personagem da mitologia grega, filho do rei de Tróia, mais belo que qualquer homem naquela terra. Zeus se apaixonara por ele e em forma de águia o levara para o Olimpo, imortalizando-o como menino. Substituíra Hebe na tarefa de servir néctar aos deuses. Ele representava a constelação de Aquário.

- Deixe-me dizer uma coisa sobre a linhagem dos guerreiros que defenderam a casa de Aquário. - viu o grego franzir as sobrancelhas, antes de continuar. - Como todos os outros cavaleiros, estão destinados a servir e defender os deuses. Dão muito valor à honra, ou melhor, a colocam acima de qualquer coisa ou ser humano nesse mundo.

"Têm aversão a criar laços de qualquer espécie, pior, de criar qualquer emoção ou sentimento. Eles chamam de fraqueza humana, o ponto fraco de um Cavaleiro está aí. Enquanto muitos aprendem a odiar o inimigo, eles são treinados a sentirem nada por eles. 'Pela deusa Athena', é apenas isso que importa.

"Milo, eu o treinei e o conheço bem. Sua natureza é agitada e nervosa, por muitas vezes é movido pela raiva e pela vingança, pela sede de justiça. Tem a capacidade de julgar e lutar pelo que acha certo. Eles não. São eternos servos e seus corações são vazios, não é a toa que são guerreiros do gelo. O controle do frio e das emoções são as características fiéis deles. Não podem odiar, nem..."

- Onde quer chegar? - interrompeu-o num lapso de impaciência.

- Como eu disse, tudo o que você sente é intenso demais, está se apaixonando por esse menino, eu sei!

O mestre levantou-se bruscamente, batendo a mão na mesa, fazendo o aprendiz olhá-lo assustado. Em alguns segundos passando do choque, ergueu a cabeça para cima começou a gargalhar com vontade, fazendo sua voz ecoar. Então baixou o rosto, escondendo-o com a farta franja, soltando soluços. Suas palavras saíram num murmúrio.

- É tarde...

- Milo, é melhor que se afaste dele.

Escorpião o encarou, descobrindo suas faces já banhadas de lágrimas, os olhos chispando de fúria. Num gesto que nem seu mestre foi capaz de prever, ergueu-se e prensou-o contra a parede. Seu braço segurava seus ombros contra a parede, os olhos marejados bem próximos de sua vista.

- Desistir dele? Fazer como fez com a minha mãe? - viu a expressão do homem mais velho se transformar - Ela chorava todas as noites, enquanto achava que eu dormia. Uma vez você me disse que a amava, porquê não a salvou?

O soltou lentamente, voltando silencioso para a mesa e sentando-se, enchendo sua caneca de vinho e sorvendo, para mais uma vez enchê-la de novo. O homem às suas costas ficou por um momento estático, apoiado contra a parede. Deu alguns passos até o discípulo, erguendo a mão a poucos centímetros da cabeça dele. Hesitou e recolheu a mão, se virando e deixando-o sozinho.

Ele não entendia, tinha medo, medo de que se tornasse fraco, como ele se tornara. Ficara cego e errara, várias vezes. Não percebera até que o Santuário o banira de seus serviços, sendo encarregado de treinar garotos na Ilha de Milos. E tudo por causa de uma mulher. Tinha orgulho de Milo, a última coisa que queria era que caísse pelo mesmo caminho.

oOo

De volta ao deserto imaculado e branco da Sibéria. Aquecido pelo ambiente aconchegante, observava a imensidão diáfana pelo vidro da janela. Estava sozinho em uma biblioteca de uma das casas mais abastadas do vilarejo. O silêncio era quebrado apenas pelo estalar da lareira. Seu mestre era um homem bem situado socialmente, o dono da casa se sentia até honrado hospedando ele e seu discípulo. Não sabia das posses do instrutor, mas não se surpreenderia se soubesse que possuía alguma fortuna.

Afinal, seus serviços para com o Santuário se encerraram fazia um tempo, antes até de ser trazido para a Sibéria. Tinha conhecimento o bastante, e os financeiros não ficavam atrás. Tinha conexões com o governo da Rússia, e sabia de mais coisas do que ele próprio podia imaginar. Um homem do mundo moderno. O que não queria dizer que se desvencilhara da tradição da qual foi formado.

Era tudo pela deusa, pela ordem e domínio do Santuário. Seus antecessores sempre estiveram atrás das grandes guerras e revoluções do mundo. Sempre fora papel fundamental daqueles que protegiam a estrela de Aquário mover tudo a favor dos deuses. Seu destino também era esse?

Desviou seu olhar ao ouvir a porta ser aberta. Inclinou-se levemente para cumprimentar de forma cortês o homem grisalho que entrava na sala. Devolveu o cumprimento ao garoto, a expressão carrancuda, olhos azuis claros frios, que nunca deviam ter conhecido a ternura ou qualquer sentimento humano.

Sentou-se numa poltrona atrás da vasta mesa, indicando que sentasse à sua frente, do outro lado da mesa. Explicou-lhe que marcara para o encontrar ali porque as estradas e os caminhos estavam interditados pela neve, era impossível de chegar ao casebre próximo ao local de treinamento com uma criança despreparada.

Contava com sessenta e poucos anos, as marcas profundas no rosto denotavam nenhuma emoção. Observava a figura de seu mestre a sua frente, distraído do que lhe falava, apenas acenando com a cabeça. Os olhos vazios focalizavam um ponto qualquer daquela face aristocrática.

- Camus?

Sobressaltou-se e piscou os olhos, só então prestando atenção ao mestre, que franzia levemente as sobrancelhas e esperava que falasse algo. Perdido, baixou a cabeça e pediu desculpas. Ajeitou o cabelo caído no ombro, desviando o olhar do mestre para o seu pescoço brevemente descoberto. Mirou intensamente direto nos olhos confusos do pupilo, antes de se levantar e andar até a janela.

- O que há com você, Camus, nunca perde uma palavra do que eu falo.

- O quê? - se virou surpreso.

- A pessoa que treinei para ser um cavaleiro foi aquele menino que trouxe para cá e não o que está na minha frente agora.

Com as mãos nas costas, encarou o rapaz ainda sentado. Agora mesmo parecia um humano comum, frágil, como uma porcelana prestes a quebrar, e não a rocha em que o transformara.

- Athena não precisa de um humano fraco, se não pode ser um cavaleiro, então não tem o direito de usar a armadura sagrada!

Camus levantou-se subitamente, olhando perplexo o mestre proferindo palavras tão fortes, sem nem mesmo se alterar. Abaixou a cabeça e levou a mão ao pescoço, ele sabia... sabia de tudo. Porque sua alma era transparente, um livro aberto para ele, diferente dele que era tão vazio e sólido que não podia enxergar o que realmente era.

O garoto que ele trouxera à Sibéria não conhecia família, ou qualquer sentimento que alimentasse seu coração. Não se importou em deixar o lar na França, ou o garoto que o trouxera até aquele país estagnado, e aceitava as palavras e lições do mestre sem pestanejar. Aprendia com rapidez e não era preciso que se ensinasse mais que uma vez para que absorvesse o ensinamento. O guerreiro perfeito.

Sem piedade enfrentou sozinho cavaleiros da ordem do gelo, derrotando-os e matando-os com facilidade. Todos que o desafiaram foram derrubados sem esforço. Ao contrário dos outros mestres que treinavam vários aprendizes, o havia escolhido para ser o melhor. E o era. Tinha consciência de seu poder, era um dos mais fortes dos cavaleiros de Ouro, ninguém conseguia tocar o zero absoluto, enquanto ele podia controlá-lo com perfeição.

- Não me envergonhe em frente aos deuses...

Sustentou o olhar firme do mestre, e então deu um leve aceno com a cabeça. Não podia fracassar, não depois de tantos anos e esforço. Mancharia não apenas sua honra, mas a do homem na sua frente.

Sorriu satisfeito ao ver a firmeza no rosto jovem, descruzou os braços e andou até a porta, chamando alguém. Em poucos segundos, uma criança de cabelos esverdeados adentrou na sala, de olhar envergonhado e cabisbaixo. Sendo repreendido pelo velho, endireitou sua postura e encarou Camus, se apresentando. Era Isaac, da Finlândia.

Observou em silêncio o garoto, um tanto incomodado. Aquela expressão, o rosto melancólico, as respostas automáticas, o andar mecânico. Era um pequeno boneco sem vida. Ele mesmo era frio apenas porque tudo o enfadava, enganava com sorrisos falsos e voz doce. Aquela criança apenas esperava ordens para agir. Olhou interrogativo para o mestre, que apenas sorria.

Trouxera o menino de tão longe. Mais uma de suas escolhas impecáveis? Queria imaginar de quem ele tirara aquele ser hesitante de encarar o seu próprio tutor.

Primeiramente fora complicado, Isaac não entendia o que falava, tinha de ensiná-lo o russo e o grego. Além de sua dificuldade em lidar com uma criança. Não que o garoto fosse resistente, atendia a qualquer comando, obedecia-o à risca. Em alguns meses se ajustara ao seu ritmo. A relação que desenvolvera era igual a que tinha com seu mestre, apenas palavras necessárias. Quando não treinavam o que mais reinava entre eles era o silêncio, mas como o tempo era todo preenchido com aulas, não importava muito.

Seis meses se passaram. Sentia-se estranho com aquela presença infantil e melancólica do aluno, no Santuário era tão movimentado e frenético. Um mundo que não era seu. A Sibéria era o seu mundo, o frio e a solidão sua natureza. Aquela criança estava se tornando o mesmo. Devia seguir os passos do mestre com ele?

oOo

Uma moto atravessou as vielas gregas com pressa, desviando dos pedestres que blasfemavam com sua ousadia. Estava atrasado, maldito fora o mensageiro que o avisara na última hora. Adentrou na região do Santuário e desceu da moto, largando-a de qualquer jeito e jogando o capacete para um servo. Gemeu ao avistar a imensa escadaria.

"Está certo preservar as tradições antigas, mas podiam modernizar um pouco...", resmungava intimamente enquanto subia os lances em largas passadas. Entrou no Templo dando uma pausa e olhando para qual corredor devia seguir, antes de retomar a corrida. Avistou dois homens de costas vestidos com túnicas cerimoniais e adornos, reconhecendo um deles. Sorriu.

- Camus!

Aquário parou e se virou ante o chamado, encontrando um Milo ofegante, se apoiando nos joelhos e sorrindo. Suava e vestia um jeans surrado e uma camiseta cavada. Apenas levantou uma das sobrancelhas. Escorpião se recompôs aos poucos, admirando a figura a sua frente, impecável e elegante. "Meu anjo". Só então percebeu que o homem ao seu lado era o Cavaleiro de Câncer, que olhava seu estado lamentável com sarcasmo.

- Milo? O que faz aqui? - Camus o interrogou.

- E que aparência terrível é essa? A noitada foi tão boa assim? - Máscara o interpelou.

- Ora seu... - Milo cerrou os punhos.

- Chega vocês dois, não comecem. Milo, vista-se, sabe que não pode entrar assim em lugar sagrado.

O grego franziu as sobrancelhas, a voz do francês soara tão autoritária. Uma rapariga apareceu do seu lado, carregando a sua roupa e indicando um aposento para se trocar. Foi meio a contragosto, mas não podia aparecer em frente ao mestre com sua aparência decadente. Jurava que vira uma alteração no rosto de Camus quando o italiano falara.

Soubera naquela manhã que Aquário viera à Grécia ter uma audiência particular com o mestre. Tinha de vê-lo, seis meses de separação pareciam mais mil anos. Nesse tempo ficara na Ilha de Milos e na capital, recebendo ordens diretas do Santuário. Parecia que Máscara também viera com o mesmo propósito. Os encontrou no Salão, esperando a permissão do mestre.

- Máscara, vá primeiro ter com o mestre. - pediu Milo.

- E porque eu deveria?

- Preciso falar com Camus.

Câncer quis pôr resistência, então Camus interveio, pedindo que fosse. Esperou que o cavaleiro entrasse nos aposentos do mestre, para então sorrir para o francês, dizendo que tinha saudades. O outro não disse nada, apenas soltou uma risada curta e se afastou, se apoiando no parapeito de uma das janelas grandes e cruzando os braços.

- Ah...

- Não ligue para as coisas que aquele imbecil sempre diz.

- E quem disse que eu ligo?

- Aquele leve tremor no seu olho não foi ilusão minha, Camus.

Olhou surpreso para Milo, que sorria daquele jeito de sempre, sedutor. Virou o rosto para o outro lado, meio aborrecido. O grego achou divertida sua reação, se aproximando. Riu e circulou a cintura de Camus, apertando-o junto a si e aspirando o perfume do seu cabelo. Camus gemeu suavemente ao sentir uma mão acariciar seu cabelo e a outra traçar sua espinha, colando mais seus corpos e sentir seu calor através das vestes.

Não, não queria mais daquele veneno, se cedesse mais uma vez estava perdido. Os lábios de Milo viajaram do pescoço para o lóbulo da orelha, depositando um beijo na face macia. Quando chegou nos lábios, Camus desviou seu rosto, respirando fundo e empurrando seus ombros.

- Eu...não posso.

O grego foi afastado e o mirou incrédulo. Camus evitava fitá-lo nos olhos, tinha as faces afogueadas. Ficaram um bom tempo assim, em silêncio. A vontade de Milo era a de arrebentar a parede à sua frente ou gritar furioso.

- Eu vou esperar o tempo que for preciso. Vou agüentar o quanto for preciso...

Camus levantou o rosto, encontrando os olhos faiscantes do grego, tentando controlar a fúria.

- Porque você é meu! Nem Athena pode tirá-lo de mim!

Tomou o rosto de Aquário com as duas mãos, deixando-o sem reação com a surpresa. Beijou os lábios entreabertos com paixão, explorando o interior com a língua sedenta do seu gosto. Camus soltou um gemido abafado, e então foi solto bruscamente. Soltou a respiração de uma vez, colocando uma mão no peito, sentindo seu coração bater forte e rápido.

Percebeu que Escorpião olhava para além dele e seguiu seu olhar, encontrando o mestre parado no meio do Salão, observando-os sem falar. Apenas levantou a mão indicando que entrasse no aposento. Camus ajeitou o cabelo e respirou fundo mais uma vez. Sentia suas faces queimarem. Resistiu ao impulso de olhar Milo por uma última vez.


CONTINUA

Fevereiro/2004