Tempestade
Capítulo 9
Sentira o olhar de Milo nas suas costas, pesando como chumbo nos seus ombros, até entrar no salão junto com o mestre. Mesmo com as imensas portas cerradas, podia sentir o cosmos agressivo do cavaleiro, incomodando Camus durante a audiência. O mestre também estava consciente dessa presença hostil do lado de fora, via na sua frente um rapaz completamente vermelho de vergonha, encarando o chão a seus pés. Suspirou, o cavaleiro raramente ficava assim.
- Posso pedir para que ele se retire.
- Ah? - levantou os olhos, a tensão subitamente quebrada - Não é preciso, meu senhor.
Mesmo assim, o mestre mandou uma advertência mental para o cavaleiro de Escorpião, que se retirou a contragosto. O francês relaxou um pouco, deixando os ombros tensos caírem. Decidiu ir direto ao assunto, para não deixá-lo ainda mais desconfortável. Perguntou-lhe sobre a situação de Asgard. Aquário ficou um tanto espantado com a pergunta, como o cavaleiro de gelo mais forte dentre os defensores de Athena, era responsável pelas relações entre as duas culturas.
- Asgard? - franziu o cenho - Hilda de Polaris ainda é muito jovem para assumir sua posição perante Odin e seu reino, algumas famílias nobres mantêm o poder até completar a idade suficiente. Porque pergunta, senhor?
- Soube que o reino possui guerreiros poderosos. - ignorou sua pergunta.
- São os Guerreiros Deuses, sete, na verdade. Mas ninguém conhece o paradeiro das armaduras, e é mais provável que não passe de uma lenda. - acompanhou com o olhar ele sair do trono e andar até uma das cortinas. - Acha que oferecem alguma ameaça? - questionou, meio incrédulo.
- Camus, deve saber que há tempos remotos, Asgard esteve sob o poder de um deus grego...
Arregalou os olhos, surpreso. Poseidon? Sim, sabia. Mas o que estava pensando, que o deus dos mares poderia voltar e usar os nórdicos contra eles? Isso era um absurdo, há muito tempo Athena o lacrara e Asgard estava livre de seu poderio. Seus guerreiros deuses não passavam de personagens de lendas, e há séculos que nunca ninguém mencionou a existência das armaduras sagradas. Balançou a cabeça e abriu a boca, o mestre se adiantou antes que replicasse.
- O renascimento de Athena tem uma razão de ser, Camus. É sinal de que outros deuses estão prestes a despertar para ameaçar o mundo. E finalmente começará a batalha para a qual vocês, cavaleiros, estão destinados a morrer lutando.
A grande guerra santa que abalou o Santuário mais de duzentos anos atrás, quer dizer, que estavam prestes a enfrentar o mesmo perigo novamente. As últimas palavras do sacerdote ecoaram na sua cabeça, era para isso que havia escolhido ele? O tirando do seu pequeno e vazio mundo infantil, treinando para que não passasse de uma máquina fria com apenas o objetivo de lutar em nome da deusa da justiça.
Não pôde deixar de pensar em Milo, nos minutos antes de entrar naquele salão. Sua boca ainda formigava pelo beijo, as palavras insensatas voltaram a sua mente. Quem quer que enfrentassem, Poseidon, Hades, Zeus, haveriam muitas mortes. Morreriam.
oOo
Em um aeroporto de Moscou, o jovem mestre do gelo aguardava de pé, vestido elegantemente e segurando um casaco de pele nas mãos. Aguardava a chegada do segundo discípulo, o garoto era um ano mais novo que Issac. Deu um leve sorriso, lembrando da reação do pupilo quando recebeu a notícia. Acordara cedo e o ajudara a preparar as coisas, estava bastante nervoso. Entendia sua ansiedade, depois de meses, teria uma companhia da sua idade.
Alexei Hyoga Yukida. Um mestiço, mãe russa, pai japonês. Orientais não eram bem vistos no Santuário, dificilmente os reconheciam como cavaleiros.
Kyoko estava intrigado com algo mais além dos nórdicos. Soube que seu mestre havia-o incumbido de treinar mais um menino, mas que esse vinha do Japão. Curioso, de fato. O mais curioso foi que lhe chegara a informação de que o tal menino era um dos dez órfãos mandados pela Fundação Graad. A tal instituição mandara garotos de seu próprio orfanato para serem treinados como cavaleiros. A questão era, por que queriam as armaduras? O Santuário poderia muito bem interceder, mas por uma estranha razão, o sacerdote havia decidido esperar e ver.
Seus pensamentos foram interrompidos ao avistar um oriental vestido em um terno preto, trazendo um garoto loiro. Acenou levemente com a cabeça para o homem, e então se agachou, ficando na altura do menino. Seus olhos eram levemente alongados, de tom azul claro, o cabelo loiro meio desalinhado ia até os ombros estreitos. Parecia um tanto constrangido com sua análise.
- Bem vindo, sou Camus, seu instrutor de hoje em diante. - sorriu, desfazendo seu rosto sério.
- Pra-prazer. - sorriu tímido.
Sem demoras, tomou sua mala, que era pequena, o menino devia possuir poucas coisas. Com uma mão espalmada em suas costas, o guiou para fora do aeroporto, a viagem seria um pouco mais demorada. Logo o estava levando em meio à neve da Sibéria, possuía um semblante maravilhado, ao reconhecer sua terra. Avistaram a pequena cabana afastada do vilarejo, e fora dela estava o rapazinho de cabelos verdes, esperando. Surpreso, o viu correr na direção deles, alegre. Era falso o brilho que iluminava seu rosto? Não, Issac não era como ele, era apenas um menino solitário.
Pararam e esperaram que os alcançasse. Se apresentaram, o finlandês fazia graça e Hyoga ria. Em um momento pôs a mão no ombro do russo, pedindo a atenção dos dois.
- Hyoga, como Issac é mais velho e está aqui mais tempo, por favor, ouça tudo o que lhe falar e obedeça.
- Issac. - o garoto se aprumou - Hyoga estará sob seus cuidados de agora em diante, não o abandone.
Entreabriu a boca admirado e acenou energicamente com a cabeça, tinha uma missão. Mais tarde perceberia o quanto tomara aquelas palavras como sua lei, sem se importar com a própria vida.
A convivência por ali mudara bastante, ao invés do silêncio mordaz que aquela casa continha, de respeito entre mestre e aluno, sons de risadas infantis percorriam os corredores. De noite, permanecia em seu quarto sentado em uma poltrona, lendo ou apenas olhando pela janela, as vozes soando como sinos suaves. Não podia conter um sorriso no canto dos lábios. De vez em quando ia até o quarto deles, ralhar, apenas para se mostrar como um mestre severo.
Lembrava-lhe os tempos do Santuário, quando os recém cavaleiros de ouro não passavam de meras crianças. O que significava que enlouqueciam os mais velhos, que eram obrigados a cuidarem deles. Lembrou de quando voltara a sorrir, verdadeiramente. Lembrou...
De relance, um rosto redondo e moreno apareceu na sua mente, piscando os grandes olhos azuis, a boca sedutora esboçando um sorriso malicioso. Fechou o livro que tinha em suas mão de súbito. Depois relaxou-se na poltrona e pôs-se a massagear a têmpora. Então percebeu que haviam ficado quietos. Depositou o livro em uma mesa próxima, se levantando e se dirigindo ao quarto dos infantes. Entreabriu a porta, o suficiente para ver cada um em sua cama, ressonando baixo, indicando que estavam pregados no sono.
Fechou sem fazer barulho e seus pés o levaram para fora da casa. Sua cabeça por instinto se virou para uma direção, seus olhos fitaram um ponto no horizonte branco. Seus lábios formaram uma palavra, sem emitir som algum. "Asgard".
Naquela direção estava Asgard, silenciosa, latente.
Um arrepio percorreu sua espinha. Não, não era o frio, era algo terrível, seus sentidos estavam em estado de alerta. Alguém rondava aquela região, e os observava. Um cosmos poderoso, que mesmo diminuído para tentar escondê-lo, podia perfeitamente senti-lo. Senti-lo e reconhecê-lo. Sim, reconhecia-o. E o amaldiçoava.
Não, não poderia ser. Mas podia sim. Ninguém sabia de seu paradeiro, seu corpo nunca fora encontrado, mas porque, depois de tantos anos, porque? E justamente ali? Cerrou os punhos e estremeceu, percorreu os arredores, indo até um pouco além. Nada.
E ainda assim podia sentir sua presença sufocante, que um dia perdido em sua vida fora agradável. Ofegante, retornou para a frente da casa, aumentando seu cosmos e vasculhando com os olhos. Relaxou os ombros, percebendo que a sensação desaparecera. Seria possível que era uma peça que sua mente pregara?
oOo
Sem perceber, havia se apegado aquelas duas criaturas. Ainda assim agia de forma fria e severa, pois era inerente à sua personalidade, mas possuía algo de ternura quando os olhava. Os garotos o respeitavam e adoravam como a um deus, se fosse possível dizer.
Surpreendentemente, descobrira uma faceta justiceira em Issac. Ao ler uma das inúmeras histórias que lhes lia ao pé da fogueira, sobre um monstro chamado Kraken. O russo jazia com a cabeça apoiada nas pernas do finlandês e o corpo no chão, dormindo. Mas o outro garoto estava bem desperto, os olhos verdes arregalados e brilhantes, ouvindo atentamente. E agora tinha um novo objetivo para ganhar a armadura de Cisne.
No entanto, Hyoga... Não sabia exatamente quais eram as suas motivações. Issac supunha que possuíssem ideais parecidos, e com esse pensamento incentivava mais e mais a treinar consigo. Camus sabia que não era exatamente assim. Muitas vezes pegava o loiro com os olhos perdidos em algum ponto da neve branca. Não via espírito de luta, de vencer. O dia que chegara a saber suas reais intenções, fazia um ano que chegara lá. Levara os dois para treinarem em uma área mais gelada, onde haviam muitas montanhas de gelo. Deviam arrebentá-las queimando seus cosmos.
Começaram com pequenas, mas ainda sim era muito para eles. Voltaram com as mãos vermelhas e doloridas em meio a uma tempestade de neve. Aquário partia na frente, impassível, deveriam segui-lo mesmo sendo difícil. De canto de olho, viu Hyoga parar e olhar para algum lugar. O mar congelado. Correu para aquela direção, ouviu Issac gritar chamando-o. Rápido, mandou que o menino de cabelos verdes ficasse onde estava e então foi em atrás do outro.
Já pisava na superfície molhada e escorregadia, mas não se importava, continuava com determinação, ignorando seus chamados. Alcançou e enlaçou sua cintura, levando-o no colo para uma superfície mais segura. O menino ficou paralisado, em choque, e após alguns segundos se debateu.
- Está louco? Aqui é perigoso!
Gritou contra sua orelha, nunca se alterara assim antes, nunca sentira medo como naquele momento. Há alguns anos aquele mar estava congelado, mas em certos pontos o gelo podia partir-se, ele cairia naquelas águas e não haveria tempo de salvá-lo. O russo não parava de tremer, desabou a chorar, torcendo a roupa de Camus. Ouviu-o murmurar algo como "mamãe".
Com um braço circundando a cintura pequena, e a outra mão segurando sua cabeça contra seu ombro, o ergueu no colo. Subiu até onde se encontrava Issac, que os olhava preocupado, mandou que o acompanhasse. O menino seguiu, tentando ver o rosto do amigo, escondida no peito do mestre. Puxou sua blusa, Aquário o olhou como pôde.
- Ele vai ficar bem?
- Vai ficar sim, não se preocupe.
- Mas o que aconteceu?
- Eu também não sei, Issac, mas não vá para aqueles lados antes que eu diga que vocês podem ir.
O rapazinho concordou com a cabeça. Hyoga fungou e se remexeu, apertando mais o abraço no pescoço do francês.
- Tem... tem um navio ali. Mamãe está dentro dele.
- O que?
Afastou os fios dourados do seu rosto, vendo os grandes olhos azuis marejados. No caminho contara que cerca de dois anos, um ano antes de vir para treinar, ele e sua mãe estavam de partida. Iam ao Japão ver o pai de Hyoga, mas o navio em que estavam sofrera danos, e afundou. Não conseguiram entrar a tempo nos botes salva vidas, haviam tão poucos. A mulher conseguira que o filho entrasse em um, mas ela e muitos ficaram lá dentro. Camus franziu as sobrancelhas, intrigado.
Um navio, naquelas águas revoltas? Nenhuma embarcação podia transitar naquele mar, a correnteza era por demais forte, por isso temeu pelo menino. Seria levado com muita facilidade para longe, e não haveria como salvá-lo. Haveria de ser um navio clandestino, na nação soviética, não era raro pessoas saírem do país por essa maneira. Mas fora perigoso demais e muito recente. Não havia muito contato com os moradores do vilarejo próximo, não recebia notícias deles. Mas seu mestre nada havia dito. Estaria envolvido? Fora ele quem mandara o menino treinar consigo.
Próximos a sua moradia, desceu Hyoga de seu colo e os mandou entrar, dando instruções a Issac que cuidasse do amigo mais novo. Esperou que entrassem, então deu meia volta e retornou ao local.
Andou pelo gelo, uma grossa camada cobria as águas geladas e escuras. Foi muito mais além de onde o garoto havia indicado, parou e olhou para baixo de seus pés. Debaixo da camada espessa, dava para ver claramente uma grande embarcação. Era uma visão um tanto perturbadora, mórbida. A carcaça estava estraçalhada, mas ainda inteira.
Agachou-se e tocou o gelo, em reverência. O vento agitou seu cabelo liso em volta de si. Os gritos de desespero das pessoas que não conseguiram escapar, sendo engolidas junto com a embarcação destruída. Estavam fugindo, tentando uma nova vida, foram enganados com promessas. E ele estava lá... podia tê-las salvo.
Cerrou o punho, dando um pequeno soco, que criou uma rachadura de grande extensão.
Qual era o sentido? Qual o sentido de ser um cavaleiro, e deixar que esse tipo de coisa acontecesse?
No dia seguinte, pediu que Issac fosse treinar e Hyoga ficasse. O pequeno russo se encontrava de pé, na frente dele, com a cabeça baixa, evitando olhá-lo. Tinha medo, sabia que ia ser castigado, fizera o que não devia. Camus permanecia na sua poltrona, as pernas cruzadas e o queixo apoiado no punho. O encarava com olhos frios.
- Fale o verdadeiro motivo pelo qual aceitou ser um aprendiz, Hyoga.
Estremeceu, sua voz era grave e controlada. Gaguejou antes de conseguir formar uma palavra completa.
- A-aceitei... porque queria rever minha mãe. Meu pai que ela dizia que estava nos esperando nunca apareceu no orfanato. Tudo o que eu queria era poder voltar para casa. - uma lágrima escorreu de seu rosto. - Eu quero vê-la.
Sentimentalismo. Levantou o rosto infantil, suplicante.
- Existe uma camada de gelo muito, mas muito espessa sobre o mar. Ouso a acreditar que talvez sua dureza chegue próxima da do gelo eterno que protege a armadura de Cisne.
- O senhor é forte, sei que pode quebrá-la e...
Ergueu a mão, interrompendo-o. Um soluço irrompeu a garganta do pequeno.
- Debaixo dessa camada intransponível... Uma correnteza assustadora, certamente a que varreu o navio de sua mãe. É preciso uma força igualmente extraordinária para suportar essa correnteza e chegar aos destroços.
Mais lágrimas, sentimentalismo. Fraco, era fraco, não passaria de um fraco.
- Ela está morta, Hyoga. Esqueça-a.
Elevou o tom seu tom de voz, em uma advertência. O viu balançar a cabeça em negativa e mais lágrimas rolaram, seguidos de soluços mais altos.
- E se eu te disser que não te aceito mais como meu discípulo e lhe mandar de volta ao orfanato do qual te mandaram?
- Não! - Camus ergueu uma sobrancelha.
- Que fique bem claro, repetirei minhas palavras. Um cavaleiro que deixa suas emoções o dominarem não o pode ser chamado de tal. Pode-se fraquejar, dar ao inimigo uma vantagem sobre você! - a voz era mais grave ainda, preenchendo o aposento, no entanto controlada - Mesmo sabendo disso... Deseja continuar?
O garoto encolheu os ombros, fungou mais uma vez. Mas então levantou os olhos, tentando manter uma posição digna.
- Quero me tornar forte.
Suspirou pesadamente, seus motivos eram egoístas, infantis e egoístas. Aquele que se encontrava na sua frente certamente sucumbiria perante o inimigo, facilmente. Sobreviveria apenas por sorte, seria fraco, com seus sentimentos. Uma pena, uma grande pena. Continuaria a treiná-lo igualmente, mas já estava claro quem usaria a armadura de bronze de Cisne no final de tudo.
Levantou-se e parou do lado dele, apoiando uma mão em seu ombro. Baixara a cabeça de novo, incapaz de encarar seu mestre. Seu precioso mestre.
- Diga nada a Issac. Se ele souber...
Criaria uma desilusão tão grande, destruiria todo seu espírito de luta. O que o motivava a se tornar um cavaleiro de Athena.
A sensação de que alguma coisa ia acontecer, uma coisa horrível, não o deixava. Dirigiu-se a janela, deixando o menino parado no meio da sala. Viu o rapaz de cabelos verdes investir socos e chutes contra uma tora de madeira fincada no chão. O som dos gritos que emitia ecoavam pela vastidão branca. Pequenos flocos de neve caíam, começara a nevar.
E junto com aquela sensação, que crescia, aquela sombra sufocante os rondava novamente.
oOo
Encostou-se em um canto qualquer, descalço, os joelhos dobrados, a barra da calça arregaçada até eles. Usava uma regata e os vastos cachos presos em um rabo de cavalo alto. Descascava e comia uma maçã fresca, o balançar o deixava sonolento. Bateu de leve com a cabeça na madeira pintada, saboreando a fruta, ouvindo as vozes dos marinheiros. Homens simples, que viviam da pescaria. O barco pequeno de tantos em tantos dias ia em direção de uma ilha esquecida pela humanidade, perdida ainda nos tempos da antiguidade, em lendas.
A Ilha de Andrômeda, onde a princesa grega que lhe dera nome se sacrificara. Levava mantimentos aos poucos cavaleiros e aos muitos aprendizes que ali treinavam. Decidira fazer uma visita a seu amigo Albiore, que não o via desde o incidente que o fez ganhar a armadura de ouro. Como o olharia? Com os olhos assustados e acusadores, os quais vira pela última vez?
Entreabriu as pálpebras, mirando o céu de azul intenso, limpo. Deviam ter arranjado um bom número de crianças como aprendizes, lembrava que o companheiro sempre fora calmo e paciente. Riu consigo mesmo.
Então baixou a cabeça e sua franja escondeu parcialmente seu rosto. Aprendizes. Soube que fora incumbido a Camus mais um discípulo, um dia depois daquele. Poderia se dizer que fora a última vez também que o tocara. Olhou para a mão que segurava uma faca, cerrando-a em seguida.
Haviam se encontrado depois, sim, várias vezes. Chamados do Mestre, contas a serem prestadas no Santuário. Não que houvesse se conformado, não que não quisesse tocá-lo. Deixara bem claro o que queria, e Camus sabia-o muito bem. Mas uma parede gelada se formara ao redor de Aquário, se tornara mais distante, e as únicas palavras que conseguiam trocar eram ofensas mútuas.
Um desses encontros fora um tanto instigante, lembrando-se e analisando bem o que acontecera. Fora a poucos meses, na verdade.
Kyoko os convocara para uma reunião, sinceramente, não prestara muita atenção do que se tratava, estava ali apenas para relatar suas missões. Ao fim desta, alguns falavam particularmente com o mestre, outros se dispersaram. Andando pelos corredores do Templo, encontrou o cavaleiro de gelo com os braços apoiados num balcão, o corpo inclinado. Os fios lisos e as vestes cerimoniais se movimentavam com a brisa, olhava para o horizonte. Vestido com o mesmo tipo de roupa, aproximou-se e se deixou ficar a alguns passos dele, os cotovelos apoiados no mesmo balcão, mas de costas para a vista.
Ficaram um tempo assim, em silêncio, e observou-o discretamente. O corpo ainda esguio, a pele alva, e o cheiro dos cabelos que recordava serem os mesmos. Quem falou primeiro dessa vez foi o francês, sem desviar os olhos.
- Como vai? Continua varando noites, como um devasso, deitando-se com o primeiro que lhe der trela? - sua voz fria soou sarcástica, nenhum tremor nela.
- Ah...Sim... E são noites muito boas, diga-se de passagem.
Jogou o cabelo para trás, encostando a cabeça no ombro e brindando-o com um grande sorriso zombeteiro.
- Aposto que é um celibatário. Claro que por escolha, afinal... - se inclinou, aproximando-se da sua orelha, passou os dedos pelos fios azulados perto da nuca - Garanto que não é por falta de opção.
Em um reflexo, se afastou, escapando de suas mãos. Milo voltou ao seu lugar, rindo e fechando os olhos. Não podia evitar esse tipo de ataque. Esperou um pouco e estranhou, essa era a hora em que o cavaleiro revidava a altura, ou simplesmente se retirava. Mas ele continuava lá, do seu lado, fitando o horizonte, o rosto de mármore. Virou-se no balcão, cruzando os braços em cima dele, olhando-o de esguelha.
- E seus alunos?
- Estão bem, crescendo e se tornando bastante fortes. Um deles deve estar próximo de conseguir a armadura.
- Não duvido, com o mestre que possuem.
Nenhuma resposta, aquele maldito rosto se alterava sequer um milímetro, e estava cansado demais para provocá-lo e arrancar nem que fossem palavras ofensivas. Respirou profundamente.
- Desculpe. Não quis soar zombeteiro, acho realmente que deve ser um ótimo mestre assim como é um ótimo cavaleiro.
- Milo.
Camus virara o rosto e o corpo para ele, prontamente se afastou do balcão e fez o mesmo. Alguns passos de distância, esperou que falasse. Sua boca se entreabriu e permaneceu assim, queria falar algo, mas estava hesitante. Uma leve tensão percorreu o espaço entre eles. Seus olhos o fitavam com ansiedade, mas logo sua boca se fechou e soltou um longo suspiro.
- Esquece, não é nada. Preciso ir-me.
Inclinou a cabeça um pouco e deixou-o, Milo o acompanhou com os olhos. Impedi-lo, segurar seu braço, chamá-lo, sim, passara em sua mente. Por um momento vira naquelas duas órbitas azuis e profundas algo do seu antigo Camus, antes de partir. Uma centelha de dúvida e receio.
- Chegamos, chefe!
A voz do capitão do barco o tirou de seus devaneios. Ergueu-se e foi até onde o homem estava, mirando o pedaço de terra no meio do mar.
Na medida em que se aproximavam da margem, a figura de um homem loiro e de pele queimada se tornava mais nítida. Possuía músculos bem desenvolvidos, e seu rosto mostrava uma expressão severa, os braços fortes cruzados em frente ao peito, os pés levemente afastados e firmes. Milo tomou uma postura parecida, a expressão grave e séria. Desembarcou, pisando descalço na água e na areia, parando com as mãos apoiadas na cintura.
Os marinheiros desciam do barco, descarregando os mantimentos, e olhando com estranheza para aqueles dois homens fortes, de peles bronzeadas e cabelos longos se encarando. Uma amazona suspirou ao longe, recebendo uma cotovelada de outra.
O loiro sorriu, e Escorpião soltou uma gargalhada alta. Deu um soco no ombro do outro, para depois agarrá-lo.
- Por Zeus, Milo! Como você cresceu!
- Achou que eu ia ficar menor que você por toda a vida? Sem chance meu amigo!
Agradeceu o capitão e junto com o amigo e alguns aprendizes, carregou as caixas para as moradias. Deixou-as em um canto de uma casa e passou as costas das mãos na testa suada, quente. Um verdadeiro inferno. Quando tinham dez anos mais ou menos, seu mestre os trazia para aquela ilha, para treinar. Era horrível, os aprendizes desmaiavam, e lembrava de sua vista embaçar e seu corpo ameaçar a cair, no meio da luta.
E a noite era gelada, atingia a temperatura abaixo de zero, congelava seus ossos juvenis. Lembranças terríveis era tudo que guardava daquele lugar. Albiore era louco de querer ser mestre em uma ilha maldita daquelas.
Os jovens pareciam bem adaptados, não eram muitos, um grupo pequeno na verdade. Algumas meninas amazonas integravam o conjunto, no Santuário geralmente elas treinavam separadas. E parecia ter uma política diferente, desde cedo percebera que Albiore era um homem pacífico. Uma característica que apreciava nele, mas que nunca seria capaz de tê-la, pois acreditava que esse espírito era inútil contra um inimigo.
Saiu postando-se ao lado do companheiro, que observava uns seis garotos treinarem. Relatou que estava ali a mando do Santuário, uma de suas muitas missões "desanimadoras", por assim dizer, relatar a situação dos domínios. Antes o mandasse caçar algum inimigo a sua altura, matar alguns desordeiros, traidores, quem ia contra a ordem de Athena. No entanto andava tudo muito calmo demais, depois da traição de Aioros. Soubera que quem recebia missões de assassinatos eram Afrodite e Máscara da Morte, o porque de escolher esses dois cavaleiros, era desconhecido.
Albiore sorriu, dizendo que conhecera Kyoko há alguns meses. Achara-o um homem extremamente bom e gentil, de voz autoritária, mas sem deixar de ser suave. Completou que, para um sacerdote como ele, o serviria com todo prazer e confiaria sua vida. Concordou com a cabeça, acreditando nas palavras, ele também sentia-se capaz da mesma atitude.
Fez um gesto com a mão, convidando-o a acompanhá-lo pela área de treinamento. Som de correntes se encontrando, os gritos de ataque e gemidos de dor. Um pouco mais afastado da maioria dos meninos, uma dupla treinava sozinha. A jovem mascarada investia com um chicote contra um garoto de cabelos verdes, açoitava-o sem hesitar, e este apenas se defendia. Tinha 11 ou 12 anos, o corpo magro de pouquíssimos músculos, delicado por demais. A garota devia ter uns 15 anos, o corpo tomando formas femininas, debaixo da armadura de treinamento.
Albiore elevou a voz, mandando-a parar, o rapazinho baixou os braços em forma de cruz em frente a sua cara lentamente, ofegante. Virou o rosto para eles, piscando os grandes olhos verdes. Ralhou com ele, chamando-o pelo nome de Shun, a menina era June. Desculpou-se e prometeu se esforçar mais. Não resistiu e lançou um olhar tímido e curioso para o grego.
Milo sentiu algo perturbar-lhe ao olhar para aquela criança, de alguma forma, tinha certeza de que poderia atacar a amazona facilmente. Mas por algum motivo oculto, evitava, talvez... machucá-la?
Percebeu que o amigo o observava, tocando o queixo com um ar pensativo.
- Notou também, não é?
- Ah! - se refez da surpresa - Sim... existe uma estranha aura nele... não sei identificar o que é exatamente.
- O poder cresce cada vez mais, nem eu mesmo consigo medi-lo. - murmurou e tocou em seu braço, afastando-o.
- E porque não demonstra nem um pouco desse poder?
- Simples, ele não quer.
Fitou com um sorriso misterioso Escorpião e lhe deu as costas.
Ficara três dias naquela ilha. Albiore não havia dito aos alunos que era um cavaleiro de ouro, talvez fosse melhor, evitava afobação. Já havia demais, com o a curiosidade dos garotos, e os risinhos envergonhados das meninas quando sorria em sua direção.
Passara esses dias percorrendo a ilha, as regiões que lembrava serem proibidas pelo mestre. O cavaleiro de prata continuava a seguir essas proibições, para a segurança dos discípulos. Teve até a audácia de adverti-lo de andar por aqueles lados. Ah sim, ele, um cavaleiro de ouro ia obedecer, que patético. Seus pés o levaram para uma terra mais árida e quente, ossadas de animais espalhadas, alguns que haviam escapado do rebanho que mantinham e morreram sob o sol escaldante. Limpou o suor da testa e do rosto, com a camisa que tirara. A garganta arranhou, seca. Sua vista tornara-se um pouco turva.
Desequilibrando-se, recostou-se em uma rocha, fechando os olhos com força, e abrindo-os de novo, a visão embaçada. E então tudo ficou escuro.
Seu corpo tremia de frio, sentia seus membros dormentes. Mas seus olhos continuavam pesados, tão pesados...
Alguém se aproximava, pôde distinguir no meio da escuridão. Usava tecidos de linho branco, que caiam folgados de seus ombros e braços. A vasta franja recobria o rosto, andava com elegância, no meio do nada. Chegou perto o bastante para poder ver-lhe a face, mas o cabelo escuro balançou com o vento gelado, cobrindo quase tudo.
Duas mãos frias tocaram suas faces, aproximando os lábios dos seus, apenas um roçar, que lhe pareceu uma brisa. E então o rosto se revelou, os olhos tristes, amargurados, dolorosos.
Dor, dele, refletida nas duas órbitas azuis, e sua própria dor. Levou sua mão para tocar sua pele, mas esta se dissipou feito areia do deserto quando o fez.
- Camus!
Acordou de súbito, abrindo os olhos assustado. Encontrou-se naquela terra árida pela qual caminhava, só que estava noite. Seus membros estavam realmente dormentes, congelados. Ofegou e da sua boca saiu uma fumaça. Esforçou-se a se levantar, o corpo todo dolorido, gemeu ao sentir cada ponto protestar.
Correu. O quanto suas pernas permitiam, usando até um pouco de seus cosmos para aquecer-se. Chegou na parte habitada da ilha e se dirigiu para as moradias, escancarando a porta do quarto de Albiore. O loiro o olhou sonolento, perguntando por onde andara. Ignorou sua pergunta e chacoalhou seus ombros.
- Preciso ir para a Grécia, agora!
- Gré... Milo! Terá de esperar até o amanhecer!
O viu praguejar.
- A não ser que queira ir nadando...
CONTINUA
Nos Ovas de Hades, chamam Shion de Kyoko, portanto acredito que seja o nome dado ao mestre do Santuário.
Novembro/2004 - Dois anos de "Tempestade"
