Tempestade
Capítulo 10
"Every time I see you falling
I get down on my knees and pray
I'm waiting for that final moment
You'll say the words that I can't say"
New Order, "Bizarre Love Triangle"
Acabava de voltar da quente Grécia, para a fria e sempre clara Sibéria. O encontro com o cavaleiro de Escorpião ainda estava fresco em sua mente, o toque sutil, mas que fora suficiente para ficar gravado na sua pele por dias. Isso não era bom.
Medo? Sim, tinha medo do seu toque, do que podia voltar com ele. Não podia permitir, pelo bem dos dois. Cerrou a porta de seu quarto, recostando-se nela, passando nervosamente a mão na testa, afastando a farta franja, suspirando profundamente. Havia sido diferente das outras vezes, dessa vez não lhe devolveu agressões verbais, escondendo-se atrás das palavras rudes.
Andou até a janela, afastando as pesadas e sisudas cortinas. Próximos a casa, os dois discípulos treinavam, como o ordenado. Seus olhos desviaram-se para mais além, onde montanhas brancas se estendiam pelo horizonte. Mordiscou o lábio inferior, incomodado. Aquela presença...
Tão familiar, sufocante, forte. Por anos, ele não a escondia, queria que soubesse que estava ali, observando-os. Mas a troco de que? Não se deixava encontrar, e Camus sabia que era poderoso para escapar de sua busca. No entanto, com a maturidade tinha consciência de que provavelmente teria igualado sua força, mas então já havia desistido de procurar.
Milo, porque não contara a ele? Estava decidido, não estava? Agora que tinha certeza, se decidira contar assim que o encontrasse depois da audiência com Kyoko. E então, por quê?
Chegara a abrir a boca, mas ao olhar para o grego, as palavras morreram na sua garganta, sendo-lhe difícil para aquele rosto. Por quê?
Não queria que soubesse que ainda estava vivo, porque sabia que iria atrás dele. Ressuscitaria os sentimentos e apenas a ideia o incomodava terrivelmente. Essa era a verdadeira razão, certo?
Continuou olhando para o horizonte branco, segurando as cortinas com força entre os dedos, como se fosse arrancá-las a qualquer minuto.
- O que quer de mim?
oOo
Meses se passaram, em um piscar de olhos.
Logo Isaac estaria pronto para usar a sagrada armadura de Cisne, guardada na montanha do gelo eterno. O garoto mais velho havia desenvolvido um incrível cosmos frio e tinha dominado a técnica "pó de diamante". Era questão de meses até que pudesse ser levado até a montanha, estava confiante de que conseguiria.
A criança finlandesa possuía mais nada no mundo pelo que lutar, a não ser por Athena. Crescera certo do que seria, era melhor assim. Hyoga ainda estava preso à mãe, e não parecia querer mudar, sua atitude de nada ajudaria a se tornar um cavaleiro.
Escondido de seu companheiro aprendiz, o russo voltava ao local onde jazia o navio. Observava-o algumas vezes, via-o concentrar o cosmos no punho direito, o suficiente para desferir um golpe contra a superfície congelada. Segurava o pulso dolorido segundos depois, ficando desanimado ao ver que o gelo continuava intacto.
Hyoga não estava muito atrás de Isaac. Era certo não estar tão preparado quanto o outro, afinal era um ano mais novo. Enquanto o jovem de cabelos esverdeados se encontrava com quatorze anos, o loiro estava com treze. Ainda era cedo, mas já estava decidido.
Nos últimos dias voltou a observar os esforços do russo em quebrar a grossa camada de gelo. Surpreendeu-se com a quantidade de energia que conseguira concentrar dessa vez, e após um único golpe, formou-se uma rachadura de tamanho considerável, mas que não era o suficiente para abrir um rombo. Um grande sorriso de satisfação estampou o rosto do menino. Estava quase conseguindo. Sem perceber, havia evoluído muito.
Camus lamentou-se; seu potencial era perfeito para ser um cavaleiro, se não fosse tão sentimental, se esquecesse seu passado. Morreria facilmente nas mãos do inimigo e isso não podia tolerar.
Isaac começara a desconfiar do amigo, percebera que a determinação dele não era como a sua. Talvez houvesse nenhuma, não sentia nele a vontade de se tornar um defensor de Athena. Não podia suportá-lo, pelo o quê Hyoga treinava afinal?
A descoberta e a decepção que se seguiu mudariam suas vidas e destinos traçados para sempre.
O cavaleiro de Aquário estava ausente, no único vilarejo existente nas redondezas. Era o contato deles com o mundo, as gerações passadas da reduzida população por décadas, possivelmente séculos, serviam os cavaleiros de gelo da ordem da deusa grega. Sentiam-se protegidos e era natural essa convivência.
Voltava para a casa afastada. Ainda estava longe quando sentiu um cosmos explodir. Gelou ao reconhecer a energia, era de Isaac. Provinha da região a qual os proibira de voltar, as águas congeladas, onde Hyoga ignorando suas ordens ia, sem saber que o mestre tinha consciência de sua desobediência.
A presença do finlandês nesse lugar fez Camus ficar bem preocupado. O que estava acontecendo, o que ele fazia lá, desobedecendo suas ordens? Era grave, poderia ter descoberto o que motivava Hyoga a lutar?
Apressou-se na direção dos dois garotos, sentira o cosmos do russo também, estariam lutando entre si? Mas estava distante demais para evitar qualquer coisa, e seu coração bateu mais rápido quando os dois cosmos desapareceram, primeiro o de Hyoga e então, depois de outra explosão, o de Isaac.
Quando alcançou o lugar, vendo um buraco grande aberto na camada de gelo e o russo caído ao lado dele, era tarde demais.
oOo
Esperou impaciente pelo amanhecer. Albiore não conseguira mais dormir, não com um Milo nervoso a andar de um lado para o outro, ruidoso. Alguma coisa muito séria parecia ter acontecido, mas o grego se recusava a falar. Como estava adiantando sua partida, teve dificuldades em conseguir um barco para levá-lo até o continente.
Chegando, ainda teria de ir para a Grécia, o que demoraria mais algumas horas. No caminho, não parava de lembrar do estranho sonho. O rosto de Camus, a dor estampada nos olhos azuis, costumeiramente frios, como nunca havia visto antes.
Recordou-se mais uma vez do último encontro que tiveram, alguns meses atrás. Ele queria dizer algo naquela ocasião, o que poderia ser? Vira uma certa confusão, o olhar que só ele presenciara em raros momentos. Tão típico dele, dizer que não tem importância e deixar as coisas do jeito que estavam, era simplesmente enervante.
Possuía um "apartamento", se é que podia chamar um lugar pequeno em um prédio já antigo assim, em Atenas, próximo ao Santuário. Ficava pouco lá – era útil quando queria um descanso de tudo –, mas tinha de ficar sempre a disposição de Kyoko. E foi para lá que se dirigiu prontamente, assim que saltou do táxi. Subiu os lances de escada em largas passadas, afobado, adentrando o aposento feito um furacão.
Estacou, com a respiração um pouco agitada. Estava escuro, as luzes apagadas. Próximo a janela divisou a figura distraída a olhar para fora através das cortinas de renda. Fechou a porta com cuidado atrás de si, o som sutil do clique finalmente chamando a atenção. Milo aproximou-se e ligou um abajur próximo a cama, iluminando-os parcamente, mas fora o suficiente para ver a expressão abatida de Camus.
O francês tentou um sorriso débil, percebendo-o franzir o cenho, preocupado. Passou os dedos trêmulos pelo cabelo escuro, em uma fraca tentativa de melhorar sua aparência e cruzou os braços.
- Eu... não sabia se receberia meu sinal, faz tantos anos que não faço isso, então... – pigarreou, limpando a garganta, sua voz estava rouca – Como demorou, acabei dormindo um pouco... – apontou para a cama desarrumada, parecia ter acabado de acordar.
Deu uma risada nervosa e continuou.
– Na verdade acho que dormi demais...
- Camus. – interrompeu-o, o outro parou subitamente, olhando-o – Camus, o que está fazendo aqui?
- O que estou fazendo aqui... certo. Eu não deveria estar aqui, deveria estar em Paris, vendo meu mestre. Mas ao invés disso, vim direto para cá. Porque eu vim para cá?
Não parava de falar de forma nervosa, e passou a recolher suas coisas, passando a mão pelos cabelos. Milo olhava-o espantado, estava abalado, tropeçando nas palavras, como se falasse consigo mesmo e não com ele. Aquele não era Camus, o cavaleiro do gelo racional e calmo, cujas poucas palavras eram firmes e seguras. Em muitas vezes frias e cruelmente cortantes.
Segurou seus ombros e gritou, mandando-o parar. O francês largou as coisas no chão, fitando-o. Frágil, prestes a desmoronar, perdido. Por Zeus, quem ou o que deixara seu Camus daquele jeito?
Apertou ligeiramente seus ombros, dando-lhe alguma segurança. Levou uma das mãos a sua face, acariciando levemente a pele pálida, sorriu e falou da forma mais suave que conseguiu.
- Camus... o que aconteceu?
O outro segurou seu pulso, sem tirar a mão em sua face. Cerrou os olhos e inspirou longamente, como se para acamar-se. Quando reabriu os olhos, estava com um ar mais tranquilo, mas ainda podia ver aquela fragilidade.
- Houve uma época em que éramos melhores amigos. Você costumava dizer que me conhecia melhor que a mim mesmo, e acredito que realmente foi o único que realmente me conheceu.
O grego piscou surpreso, sendo pego desprevenido. Aquário apertou a mão em seu rosto, inclinando a cabeça em direção a ela. Em seu estado normal nunca faria aquilo, mas precisava realmente ouvir. Viu Milo sacudir afirmativamente a cabeça e sorriu, quando Saga desapareceu Camus passou a ser a única pessoa importante na sua vida.
- Gostaria de poder voltar ao que éramos.
- Seria maravilhoso...
Pareceu satisfeito com a resposta, abaixou sua mão e se afastou, voltando para a janela. Abraçou seu próprio corpo enquanto observava o movimento das ruas, e começou a falar. Milo fora sentar-se na cama.
oOo
Ele encontrara Hyoga inconsciente, molhado e, percebendo quando segurou seus ombros para erguê-lo um pouco, gelado até os ossos. Cobriu-o com a pele que trazia, esfregando vigorosamente, rezando intimamente para que não sucumbisse a hipotermia. Chamou-o várias vezes, tentando trazê-lo a realidade e não deixar que dormisse. Quando pareceu melhorar e reconhecer o mestre, arregalou os olhos e gritou o nome de Isaac.
Afastando-se de si, o loiro se precipitou para o buraco ao lado deles, dizendo várias coisas sem sentido. Segurava-o pela cintura para evitar que caísse dentro do lago formado, o garoto apontava e agarrava suas roupas. Até que começou a compreender, sentindo seu peito apertar, uma sensação estranha misturada ao pânico.
Dessa vez quem se precipitava na borda do gelo quebrado era ele, olhando para a água turva, vendo muito pouco, havia pouca visibilidade dali. Virou-se para Hyoga, era perigoso continuar onde estava, mas não havia tempo para se preocupar com o menino. Ergueu-se e logo mergulhou, felizmente como cavaleiro de gelo, podia suportar o frio, um humano comum não resistiria muitos minutos.
Nadou até certa profundidade, chegando perto do navio abandonado, olhou ao redor, achou outro buraco aberto na superfície, esse era menor. Afastou-se mais do navio, começando a se desesperar não encontrando rastros de Isaac. Como era possível? Ao menos uma fagulha de cosmos! O garoto estava em um nível avançado o bastante para suportar situações como essa. Como poderia ter simplesmente sumido? Continuou a busca por mais tempo, sentiu seus membros um pouco dormentes. Infelizmente percebera tarde a correnteza aumentar, acabando sendo pego.
Foi tragado para longe, suas pernas incapazes de nadar contra e escapar. O discípulo devia ter sido pego do mesmo jeito e sendo carregado, longe demais para ser alcançado. Faltou-lhe ar, conseguira se jogar contra a camada de gelo acima de si, desferindo um golpe. Seu poder abriu um buraco bem maior que os dois anteriores, feitos pelos meninos. Hyoga viu a explosão, a água jorrar para cima. O gelo abaixo de seus pés tremeu, algumas rachaduras de grande extensão se formaram, próximos de onde se encontrava.
Descobriu que suas pernas estavam fracas ao tentar se levantar para fugir, praguejando em russo. Então viu o mestre vir em sua direção, encharcado e soltando vapor pela boca. Esperou se aproximar mais, conseguindo ver seu rosto, a expressão vazia, fazendo-o estremecer temeroso. Camus parou a alguns passos do garoto, impotente. Não precisou falar para que Hyoga soubesse.
O grito do loiro ecoou pelo mar congelado, seguido do choro descontrolado. O pequeno corpo não parava de chacoalhar com os soluços, o rosto pálido coberto de cristais finos de gelo sendo banhado pelas lágrimas mornas. Seu mestre permanecia de pé, perto dele, fitando um ponto qualquer no horizonte. Era o que fazia quando sabia que estava lá, e queria que estivesse pela primeira vez. Mas ele não estava mais...
Os olhos do francês estavam vidrados, como de um boneco. A dormência dominava seus membros longos, não se importava, uma súbita falta de sentidos, não sentia o frio. Ah, como queria fazer o mesmo que Hyoga, desabar e jogar tudo para fora. Não podia, simplesmente não conseguia, a dor não vinha.
Deu-lhe as costas e agachou-se, mandando segurar-se. O jovem ficou a olhar para os belos cabelos escuros e molhados, espalhados pelos ombros e costas, ainda tomado por espasmos dos soluços. Cobriu-se melhor com a pele e estendeu os braços, envolvendo os ombros dele e firmando as pernas na cintura esguia. Precisavam sair logo daquele local, não era seguro depois de tantos danos feitos a crosta congelada.
Carregou-o em silêncio, os dois incapazes de quebrá-lo. A certa altura, Hyoga apertou os ombros de Camus, enterrando a cabeça contra seu pescoço, começando uma nova crise de choro.
- Foi culpa minha! – sua voz estava embargada – Se eu tivesse ouvido ele...
Parou, olhando para trás.
- Como?
- Ele soube, ficou nervoso comigo, mas tentou me fazer desistir de ver minha mãe. Como o senhor fez... – mais soluços estremeceram seu corpo – Desculpa, desculpa, desculpa!
No fim ajudara-o a quebrar o gelo, agradecido o loiro mergulhara esperançoso, só que se esquecera da correnteza da qual o mestre o havia advertido, há alguns anos. Ficara preso nas cordas do mastro do navio, Isaac como uma aparição voltara e o soltara. Novamente foram pegos pela correnteza, não soube o que se seguiu depois... acordara fora do mar.
oOo
- Isaac... era seu discípulo mais velho. – Milo falou, após Camus ficar quieto.
- E o mais indicado para a armadura de bronze, estava pronto.
- Arriscou a vida pela do amigo. Certamente era um garoto honrado e corajoso.
O francês afastou-se da janela, virando-se para o grego, as faces afogueadas.
- De que adianta essa honra e coragem agora?
- Camus, se acalme!
Milo levantou-se de pronto, falando no mesmo tom que o outro. Nunca em sua vida imaginara ser sua vez de ser a voz racional, que costumava ser o papel do amigo.
Parou, olhando para a figura do grego e para o quarto às escuras, iluminados por uma fraca luz. Perguntou-se pela milésima vez o que estava fazendo ali, na frente de quem mais devia fugir, dizendo todas aquelas coisas. Era, de alguma forma, irônico.
Só queria esquecer, por um instante. O rosto de Milo era tão agradável, redondo e lindo, o mesmo que o atormentava na Sibéria. Porque parecia tão preocupado? Sem pensar seus pés o levaram a se aproximar mais, em passos silenciosos. Sem cerimônia, encostou a cabeça em seu ombro, se acomodando na curva do pescoço. Os fios lisos e escuros escorregaram, cobrindo seu rosto parcialmente.
- O que eu posso fazer? – subitamente embaraçado com a atitude inesperada.
- Apenas fique assim.
Inspirou longamente, aspirando o perfume dos cabelos soltos de Escorpião. Eles ainda lembravam bálsamo.
- Achei que não quisesse me ver mais.
- Essa era minha intenção.
Riu roucamente, mas um riso triste. Camus cerrou os olhos, embalado por aquela voz e pelo corpo quente. Braços evolveram seus ombros e aproximaram mais seus corpos, não estava em seu estado racional, aquilo fora como o céu. Milo encostou sua cabeça contra a dele e passou a acariciar os fios macios.
Passou-se um tempo assim, até que Escorpião quebrou o silêncio.
- Porque não chora?
Tivera a impressão de que derrubara uma gota de lágrima, o que não seria de surpreender. Nunca vira o aquariano derrubar uma sequer. Aquele rosto pálido e frio parecia esculpido em pedra. Mas ele podia ver pelos olhos a tempestade que se revolvia dentro.
Camus abriu os olhos, desperto pela pergunta. Demorou a responder, como se o tempo ali não fosse importante.
- Não posso...
O grego franziu o cenho e virou-se para vê-lo, mas ele virou a cabeça para o outro lado.
- Não é como se não quisesse, simplesmente não consigo.
Não realizara, mas agora se lembrava que a única época na vida em que chorara fora na infância, quando estava no orfanato, na França. Eram lágrimas falsas até onde recordava, ele não tinha por quem chorar. Tão frio, poderia ser que seu coração fora sempre assim, egoísta.
"Eu sou um cavaleiro do gelo".
A morte de Isaac fora-lhe um choque, sua mente ainda não se ligara a realidade. Era como se estivesse vazia, como se fosse um sonho e assim que voltasse para a Sibéria, ele estaria lá. Isaac e Hyoga, rindo e brincando.
- Eu falhei, não falhei?
A voz saiu fraca, cortando o coração de Milo. Não respondera com palavras, apenas apertou mais o abraço, o envolvendo o máximo que podia. Estava com saudades de senti-lo, mas aquele era um momento delicado para o francês. Ele nunca havia perdido alguém, não como ele havia perdido... duas vezes.
O silêncio imperou mais uma vez, seus braços afrouxaram, sentindo a maciez do outro corpo e então uma sonolência. Não havia dormido desde aquela hora em que sentira algo de errado com ele. Ficara tão nervoso o tempo todo que seu corpo não devia ter aguentado.
Camus percebeu e se afastou, pedindo desculpas. O segurou, impedindo-o de se distanciar de novo, não quando conseguira tanto. Sorriu gentilmente e pediu que deitasse com ele, o francês recusou veemente, tentando se livrar da mão que segurava seu braço.
- Como quando tínhamos treze anos.
Arregalou um pouco os escuros olhos azuis, surpreso. Mas então deixou que o puxasse e deitasse na cama desfeita. Puxou o lençol por cima deles, ficaram um de frente para o outro, encarando-se. Milo continuava sorridente, mas percebeu seus olhos cansados e pesados. Era por causa dele?
A culpa tomou-lhe conta, somando-se a outra, não havia dito uma palavra sequer sobre ele. Devia falar-lhe. Não ser egoísta e manter para si mesmo. Ainda lembrava-se da dor dele quando acontecera, não?
- Milo.
- Sim?
As pálpebras estavam prestes a se fechar, estava sonolento e suas respiração pesada e lenta. Ainda assim sorria. Droga.
- Eu... – hesitou e suspirou – Tenho de ir.
- Fique só um pouco mais.
Milo cerrou os olhos e se remexeu na cama, ajeitando-se. Encontrou a mão de Camus e a segurou, para ter certeza de que ficaria.
Esperou que dormisse totalmente, não deixando de olhar o rosto sereno, querendo memorizar cada pedaço dele. Ergueu-se em um dos cotovelos, os cabelos lisos escorrendo pelos ombros e cobrindo o rosto dos dois, enquanto depositava um terno beijo na fronte e nos lábios do adormecido.
Deslizou da cama e recolheu suas coisas, deu uma última olhada da porta, a figura deitada, sendo apenas iluminada pelo abajur.
Aquele misto de sensações... era sufocante.
oOo
Mirou mais uma vez a casa coberta e cercada de neve, trazendo seu casaco no braço esquerdo. Deixou que o ar saísse dos seus pulmões lentamente, para inspirar o ar gélido. Seu olhar percorreu os arredores, se deparando com uma cruz feita de madeira, fincada na terra. Estava quase toda coberta pela neve, chegou-se mais perto e agachou-se, limpando o gelo. Talhado na superfície estava o nome do discípulo.
Cerrou o pulso com força, contendo-se. Hyoga era católico, como os padres que cuidaram dele. A visão daquela frágil cruz doeu-lhe, como se estivesse realmente enterrado ali.
Levantou-se de pronto, dando passos decididos e escancarando a porta, cerrando-a com a mesma violência. O garoto russo ergueu o rosto, parecia estar adormecido ou simplesmente com a cabeça e braços deitados na mesa.
Seus olhos estavam inchados, resultado de várias horas chorando, supôs. Percebeu que seus dedos estavam avermelhados e feridos. Endireitou o corpo, olhando Camus como se fosse uma miragem.
Certificando-se de que o mestre realmente voltara, o loiro veio a seu encontro aliviado. Mas continuava carregado de tristeza e culpa, começou a pedir perdão pela sua falta. Inevitavelmente recordou-se dos devotos da igreja a qual o orfanato fazia parte, pedindo perdão pelos seus inúmeros pecados.
Sua mão ergueu-se e desceu na face do menino, dando-lhe dois tapas vigorosos, fazendo-o cair no chão. Levou as mãos às faces atingidas, encarando-o temeroso e surpreso. Seu mestre sempre centrado e calmo, agora estava prestes a explodir.
- Acorde, Hyoga! Está na hora de acordar!
Sim, estava na hora, dos dois acordarem.
- Isaac foi-se e isso só significa uma coisa.
O russo olhou-o ansioso, com a mão ferida ainda na face.
- Não importa como, você irá quebrar aquele gelo e livrar a armadura. Vai se tornar o cavaleiro de Cisne. Por mim, por sua mãe, por Isaac!
oOo
Dias, meses... um ano.
Mirou o horizonte branco e puro da Sibéria, como costumava fazer.
Nada. Nenhum rastro. Apenas o som do vento, o frio percorrendo seu corpo indiferente. Afastou o cabelo dos olhos, prendendo-o em um frouxo rabo de cavalo, desviando o olhar e se afastando. Hyoga o esperava para o treinamento.
Ele havia desaparecido por completo.
CONTINUA
Maio/2005
