Tempestade
Capítulo 11
"Your love is the only thing I live for in this world
Oh how I wait for the day your heart burns
In these heavenly flames I've already scorched in
I just want you to know
I'll always be waiting"
H.I.M. – "Our Diabolical Rapture"
Kyoko havia morrido.
O velho mestre não tinha um sucessor. Percorreram por treze anos rumores de que Shion havia de fato escolhido alguém, um dos cavaleiros de ouro, como a tradição mandava. Sagitário ou Gêmeos, a dúvida cambiava entre esses dois.
Dois dos mais velhos cavaleiros, quando a maior parte dos dourados contava com apenas treze, quatorze e quinze anos. Mesmo jovens, já eram conhecidos por seu poder, coragem e bondade. Perfeitos para que o velho mestre pudesse descansar, depois de duzentos anos de vigília sobre o Santuário.
Estranhos acontecimentos se seguiram e o sucessor nunca fora apontado. Aioros havia traído a todos, tentando matar a reencarnação de Athena. Fora punido e morto por Shura. Saga sumira misteriosamente nos mesmos dias, nunca mais foi visto.
Um homem chamado Ares agora era o sacerdote mais poderoso de Athena. Um cavaleiro como determinava ser os servidores da deusa, poderoso, apesar de pertencer à ordem dos de prata. Ninguém vira seu rosto, mas parecia ser jovem. Os cabelos tinham o mesmo comprimento de Shion, apesar de serem acinzentados, o capacete era vermelho e a máscara de um azul escuro e metálico.
Milo sentira um frio na espinha ao se encontrar com ele pela primeira vez, a voz forte e vivaz reverberava pelo salão. No entanto sentia algo familiar, mas não se recordava a quê. Talvez com o antigo cavaleiro de Áries, certamente guardavam semelhanças. Mas assim como eram semelhantes, eram opostos.
Ares possuía um tom sarcástico em seus discursos, com notas cruéis. Suas atitudes um tanto não usuais e suspeitas. O vinho era sempre servido no templo, todos os dias em seus aposentos. Como um imperador ambicioso, mantinha belos e jovens rapazes e moças servindo-lhe.
O cavaleiro de Escorpião suspirou, largando a caneta tinteiro, sentado à escrivaninha que mantinha perto da janela. A morte do gentil mestre e a sucessão de tal figura foi um choque para todos. Os treinos se intensificaram, Aioria que estava mais próximo da instrução dos aprendizes revelara que certas coisas se tornaram inconcebíveis. Alguns cavaleiros subiram de posto e abusavam do poder conferido, a xenofobia que sempre existira parecia ter se intensificado.
E ainda havia os servos do templo que desapareciam, sendo que alguns deles surgiam mortos pouco tempo depois. Rumores terríveis cercavam esse homem misterioso.
Afrodite e Máscara da Morte faziam serviços "especiais", dizia-se que haviam se tornado assassinos reais do mestre. Recusava-se a acreditar em tais boatos, um cavaleiro de ouro não poderia se rebaixar a serviços desonrosos.
No entanto ele próprio fora convocado a uma "missão", fizera menção de recusar, mas obrigou-se a se manter calado. Não sabia do que o homem era capaz, podia ser um cavaleiro de prata, mas seu posto era o maior dentre todos os cavaleiros da ordem de Athena. O único abaixo da deusa virgem.
Ele começava a criar acordos com políticos de vários países, era visível a agitação que iniciara em alguns pontos do planeta. Odiava políticos, ainda que devessem agradecer o governo grego por mantê-los encobertos, exigindo favores em troca. Passara semanas seguindo um, de um país pequeno da Europa Oriental, começara a ficar desagradável quando surgiram boatos entre seus companheiros que ele fosse ou um assassino ou um amante.
Recostou-se na cadeira e releu mais uma vez o papel rabiscado, a tinta ainda fresca. Mirou a janela aberta, observando distraidamente o movimento das ruas atenienses.
Escrevia para Camus, era um hábito que adquirira por algum tempo. Contar-lhe o que acontecia, já que estava sempre a serviço do Santuário. Talvez fosse apenas uma forma de sentir-se mais perto do francês, ainda que este respondesse raramente as suas cartas.
Apesar de tudo que acontecera com os dois, o francês continuava sendo o único a quem confiava seus pensamentos. Bem, nem todos, na verdade. Esboçou um sorriso de doloroso escárnio a si próprio, decidindo retomar a carta. Relatou-lhe a situação do Santuário, os boatos, suas suspeitas, pedindo seu parecer. Suspirou e parou a caneta alguns dedos de distância do papel, antes que tomasse o impulso de assinar e encerrar.
Seus olhos passearam pelo quarto, pousando na cama desfeita. Há um ano atrás ele estava ali, com os braços frouxamente envolvendo seus ombros enquanto dormia preso à sua cintura, para que não fugisse. A sensação familiar de conforto e calor ainda estava fresca nas suas doentias lembranças.
Viu o corpo na cama se remexer, em estado de dormência. Estreitou com desgosto os olhos para a figura de bruços, nua. Os longos cabelos lisos e escuros espalhados pelos lençóis e travesseiros, formando um manto sedoso. A pele clara, com algumas marcas avermelhadas da noite anterior.
Merda. Havia feito de novo.
Assim que voltara, não seguira para seu apartamento, mas sim mergulhou na noite ateniense. Bebera, trouxera uma mulher estranha para seu lugar, e ainda por cima uma com aquele cabelo e pele. Ótimo! Quando ia aprender? Dessa vez que não tivesse algum sotaque francês como o último rapaz da boate que visitara durante sua missão.
Ah, ele já sabia o que ia perguntar quando acordasse da tórrida noite. "Quem é Camus?"
Resolvendo como ia dispensá-la rapidamente dali, finalmente retomou a carta, com um tom decidido.
"Sinto muito sua falta, você sabe disso.
Quando vem para a Grécia? Preciso te ver.
Arranje alguma coisa, qualquer desculpa. Mesmo que depois venha me passar um longo sermão por chamá-lo enquanto tem muito trabalho a fazer.
Sempre seu,
Milo"
Imaginava a cara do cavaleiro quando lesse aquelas últimas palavras. Uma expressão exasperada, de censura, e talvez com sorte, o tom avermelhado que espalhava pelas faces pálidas quando ficava envergonhado ou era pego de surpresa. Riu divertido.
Soprou a tinta, e quando viu que estava seca, dobrou o papel e enfiou-o em um envelope, para então guardá-lo no bolso traseiro da calça jeans gasta.
oOo
Surpreendia-se com o quanto podia ser cafajeste, conseguira com efeito, dispensar a companhia da noite anterior com facilidade. Não antes de receber seu merecido tapa na cara, claro. Fora bom. Serviria para se lembrar nas próximas vezes que se metesse a cometer o mesmo erro. Ou não.
Meteu a blusa de moletom pela cabeça a caminho da porta, sem ao menos ver se seu longo e bagunçado cabelo estava no mínimo decente. Desceu apressadamente as escadas sob a explosão furiosa da senhora turca, dona do edifício onde era inquilino. Sabia de cor e salteado o discurso, e até os palavrões.
Montou em sua moto ruidosa e saiu em disparada ao Santuário, acelerando e devolvendo as ofensas aos motoristas que ultrapassava.
Fora como se entrasse em outra época, ainda que fosse a mesma Atenas do século vinte. Os turistas ali ficariam loucos. Estacionou a moto e circulou o vilarejo cheio. As servas pechinchavam e carregavam pesadas sacolas de frutas, guardas e aprendizes vestidos com suas roupas de treino se ajuntavam em grupos, falando alto. Apesar das vestes simples de um cidadão da cidade, muitos ali o reconheceram como o guardião da oitava casa. Acenavam e se curvavam com respeito, interrompendo suas conversas.
Respondia com aceno de cabeça, consciente de sua autoridade ali. Aproximou-se de uma banca de frutas, comprando uma dúzia de maçãs. Hesitou um pouco antes de pegar o saco, pensando ter ouvido sobre cavaleiros de bronze no meio da conversa de um grupo perto de si. Quando lançou um olhar curioso na direção deles, imediatamente baixaram a voz.
Com o cenho franzido pegou sua compra, voltando para sua moto. Deu mais uma olhada pelo vilarejo, aqui e ali, grupos de homens e servas se ajuntavam. O que poderia ter acontecido agora? Aparecera mais um corpo perto do Templo de Athena?
Seguiu direto para as casas zodiacais, atravessando os templos vazios, suspirando resignado. Não costumava ser assim seis anos atrás, o que poderia acontecer se atacassem àquela altura?
Localizou logo o servo de sua casa, assim que entrou. Abriu um largo sorriso, jogando as maçãs para ele sem cerimonia. O homem de mais ou menos trinta anos equilibrou-as surpreso entre os braços, lançando um olhar de censura prontamente ignorado por Milo. O que este fez foi puxar o envelope de trás das calças e segurá-lo na sua frente como se fosse valioso.
- Faça-a chegar rapidamente a Sibéria, Andréas. É de máxima importância!
- Fala como se fosse fácil. – suspirou ajeitando a longa túnica, então franziu o cenho, notando algo pela primeira vez – O que fez no seu rosto?
- Nada. – disfarçou meneando a mão.
O servo balançou a cabeça incrédulo, se afastando para a cozinha. O Milo pegou uma maçã e pôs-se a admirar o vidro com suas mascotes. Fora-lhe difícil arranjar alguém que não tivesse medo dos pequenos escorpiões para alimentá-los durante sua ausência. Andréas fora um aprendiz que nunca conseguira uma armadura, aluno do seu mestre na ilha de Milos. Para ele era mais uma desculpa para arranjar uma babá e vigiá-lo de perto. O professor gagá esquecia que completara vinte anos não fazia pouco tempo.
Pegou um dos escorpiões negros na mão, fazendo-o andar sobre sua mão. Ouviu a voz do servo do outro aposento.
- Se vista, terá de ver o Kyoko. – voltou trazendo as suas vestimentas tradicionais.
- Eu sei. – enquanto mastigava. – Aconteceu algo? Pareciam meio agitados no vilarejo.
- Você não soube? Sinceramente, onde anda com a sua cabeça?
Virou-se para lhe dar uma resposta mal educada, deparando-se com o rosto grave do homem. Saiu de suas vistas para voltar alguns segundos depois, jogando um jornal na mesa a sua frente. Ao mirar a foto da primeira página, engasgou, quase soltando o pequeno animal no chão. Depositou-o na mesa e pegou rapidamente o jornal, os olhos movendo-se nervosos sobre o artigo.
- Mas que diabos...?
Achou que nunca mais veria essa imagem na vida, ainda mais estampada em um dos jornais mais populares do país. A não ser que fosse uma réplica muito bem feita, aquela estátua dourada era nada mais nada menos que a armadura sagrada que sumira treze anos atrás com seu cavaleiro. Fortes spots de luz ao seu redor a iluminava, estava em uma espécie de coliseu moderno.
Sentou-se lentamente, não mais confiando na firmeza das suas pernas para mantê-lo em pé. O servo cruzara os braços e o fitava com ansiedade.
Torneio Galáctico, o que aquilo significava? A neta de um finado japonês milionário em poucas semanas havia armado o circo no país oriental, um evento que chamou a atenção do mundo inteiro. E este envolvia cavaleiros da própria ordem de Athena. "Sacrilégio", murmurou, tentando digerir cada palavra que lia. Estavam expostos, mesmo que se tratasse de um circo de quinta categoria, com um punhado de meros cavaleiros de bronze.
A armadura de sagitário desaparecida hoje era exibida como um prêmio de um jogo, desafiando estupidamente o Santuário. Quem era aquela menina e aqueles moleques que ousavam tal ofensa?
Seus olhos desviaram rapidamente para os nomes dos dez cavaleiros de bronze, sentindo um terrível frio no estômago. Todos haviam sido treinados por cavaleiros da ordem. Pégasus, não era o oriental treinado pela amiga de Aioria? Dragão, esse só poderia ter recebido instruções do lendário Dohko. Fênix fazia parte dos terríveis cavaleiros negros.
Andrômeda... até aquele garotinho, pupilo de Albiore? Passou a mão nervosamente pela testa, limpando o suor repentino. Cisne.
- Então...?
Levantou o rosto, percebendo Andréas com uma expressão nervosa.
- Então o que, homem? Isso não é assunto nosso, é apenas uma dezena de cavaleiros de bronze.
- Mas, o aluno de Albiore... – começou a falar, quando Milo se ergueu fazendo menção de se afastar.
- Eu sei, eu sei. Ele deve saber o que está fazendo. – têm de saber o que estão fazendo.
O servo se adiantou e jogou mais um jornal na sua frente, viu a data, esse era mais recente. A armadura de ouro fora roubada.
oOo
Adentrou a taberna, cerrando rapidamente a porta pesada, mas não o suficiente para que alguns flocos de neve invadissem o lugar com uma rajada de vento. Aproximou-se do balcão com passadas largas, indiferente aos demais frequentadores, alguns bêbados aqui e ali, um grupo de russos idosos jogava cartas em uma das mesas encardidas.
Tirou a pesada capa de pele de urso dos ombros, batendo as mãos na roupa para tirar os flocos acumulados. Olhou de relance para a bandeira vermelha comunista, pendurada perto de um rádio. Logo a figura de um homem de bigodes grisalhos apareceu no balcão, sorrindo-lhe.
- Bom dia, meu senhor.
- Bom dia meu velho Pietro. – dobrou a capa e a depositou no balcão – Há uma tempestade chegando, é bom se recolherem assim que puderem.
- Ah, sim. Muito obrigado, senhor. – curvou-se realmente agradecido.
O homem sem demora depositou um copo, uma garrafa de vodka e algumas cartas na sua frente. Tranquilamente sentou-se em uma das extremidades do balcão, servindo-se da bebida. Então verificou os envelopes, um era de Hyoga, do Japão. Como estaria se saindo?
As notícias naquele país penavam a chegar, fora um milagre ouvir a notícia sobre o tal Torneio naquelas terras.
A última vez que vira o pupilo, fora quando estava de saída, atendendo ao chamado do novo kyoko. Cerrou os dentes ao lembrar do seu primeiro encontro com o homem, algumas semanas antes. A voz grave reverberando pelo salão, sobre sua cabeça curvada, furioso por saber o que acontecia no Japão.
Como o esperado, Hyoga recebera uma convocação da Fundação Graad, a organização a qual era responsável pelo orfanato de onde viera. O mestre anterior resolvera esperar para ver, o atual andava de um lado para o outro na sua frente, esbravejando, gritando ofensas aos orientais. Então, era verdade, a aversão pelos que não eram ocidentais crescia, encorajada pelo próprio mestre.
Parara de súbito de falar, ficando na sua frente, pela primeira vez ousara erguer a cabeça, percorrendo as vestes cerimoniais a cobrir o corpo jovem até chegar a terrível máscara, adornada com uma serpente no seu topo. Os dedos longos do cavaleiro de Prata tocaram seu queixo, obrigando-o a se levantar. Sentira uma leve carícia em sua face antes do mestre se virar e mandar segui-lo.
Apontara uma mesa e uma cadeira, com uma pena e uma folha de papel em cima. Ditava-lhe acima de seus ombros, como um professor a um aluno desobediente, uma carta para Hyoga, o garoto deveria participar do Torneio. Parecia satisfeito ao perceber seu desconforto com a proximidade demasiada que impunha entre eles. Uma sensação familiar e ao mesmo tempo sufocante.
O russo não estava preparado. O suficiente para quebrar a parede de gelo eterno? Sim, mas para uma batalha séria...? Não sabia o que o sacerdote pretendia, mas desobedecer a uma ordem sua estava fora de cogitação.
Ao voltar constatara satisfeito através do pequeno Jacob que o pupilo havia quebrado sem dificuldades o gelo eterno, partira em posse da sagrada armadura de Cisne.
Avistou o carimbo do Santuário na outra carta, deixando a do aluno intacta de lado e pegando-a imediatamente. Suspirou de antecipação, tamborilando os dedos na madeira e olhando brevemente para os lados, antes de virar o envelope e reconhecer a caligrafia de Milo. Abriu e começou a ler, o burburinho passando despercebido pelos seus ouvidos.
Pôs um dedo sobre o lábio inferior, mordiscando a unha e balançando ligeiramente a cabeça, concordando com algumas observações do grego. As linhas finais fizeram sua face esquentar e cobrir-se de um rubor embaraçado.
- Me perguntava sempre quanto tempo minhas cartas demoravam a chegar.
Camus se virou de imediato ao ouvir a voz conhecida, deparando-se com um homem bronzeado coberto de peles e mais peles. Gaguejou piscando surpreso, no que o grego abriu um imenso sorriso de prazer.
- Então, você corou mesmo.
Sussurrou consciente dos olhares curiosos que atraía na taberna, para que apenas o francês lhe ouvisse. Puxou um banco e sentou-se bem perto, seus braços e pernas se tocaram. Seu sorriso foi substituído por uma expressão ofendida, baixou a cabeça e continuou sussurrando.
- Porque não disse que foi a Grécia?
- Do que teria adiantado? Soube que estava em uma missão. – já recuperado do susto.
- Eu teria voltado na hora. - bufou.
- Sabem que está aqui? - tentou ignorar o calor que subiu às faces de novo.
O viu sacudir a cabeça em sinal negativo, sentindo-se ruborizar mais sob o olhar intenso. Sem deixar de encará-lo, Milo meteu a mão dentro de suas vestes, tirando um recorte de jornal grego.
- Precisamos conversar.
Leu rapidamente a manchete sobre a armadura dourada, elevou os olhos para o cavaleiro, mas este olhava para além dele. Percebeu os olhares curiosos dos frequentadores e então notou onde estavam. Guardou o recorte e as cartas, se levantou, jogando algumas moedas no balcão e se despedindo de Pietro. Milo o seguiu para fora, estremecendo e apertando mais junto a si a roupa ao receber a rajada de vento gelado.
Os dois cavaleiros caminharam silenciosos até o trenó carregado de pacotes e peles, Camus soltou a correia dos cachorros, acariciando a cabeça peluda de cada um e alimentando-os. O pêlo espesso extremamente branco dos animais confundia-se com a neve ao redor, o grego admirou-os pularem alegres sobre o cavaleiro. Este calmamente os mimava.
Permaneceu de pé, remexendo-se nervoso, odiava aquele frio maldito. Aquela era sua primeira visita a Sibéria, se dependesse dele, teria visitado mais vezes, senão fosse pela maldita briga e pelo orgulhoso cavaleiro.
Franziu o cenho, vendo uma garota correr apressada na direção deles. Não devia ter mais de dezoito anos, a pele pálida e olhos claros, característico dos moradores daquele lugar. Os cabelos negros estavam presos em uma trança apertada. Parou ao lado de Camus ofegante, as faces vermelhas com a corrida. Segurava um ramo de flores, que entregou prontamente ao francês.
Camus sorriu, trocaram algumas palavras em russo. Ela sorria bobamente, sabia muito bem por que. Milo fincou os dedos enluvados na palma da mão, com força. A menina murchou o sorriso ao perceber o olhar intenso do homem estrangeiro, falou algumas palavras russas apressadas e se despediu, lançando um olhar assustado ao Escorpião. O francês pareceu não ter percebido, protegeu o ramo contra o vento.
Seguiu o francês em silêncio, andando com dificuldade pelas grossas camadas de neve e tentando ignorar o terrível frio que trespassava seus ossos. Olhou de esguelha para o buquê que o outro segurava com cuidado, mordiscando ansioso o lábio.
Não precisou esperar muito para saber para o que era. Após quase duas horas de caminhada, avistou a casa em meio o horizonte de desesperante branco. Camus se afastou um pouco para o lado oposto dela, em direção a uma solitária cruz de madeira, com o nome do primeiro discípulo do cavaleiro de gelo. Retirou as flores danificadas pelo frio e as substituiu pelas que tinha nas mãos.
Torceu os dedos e começou a falar, como se para explicar-lhe.
- Hyoga costuma deixar sempre algumas sabe? Achei que deveria... Enquanto ele não está... Bem...
Sabia o quanto era difícil, fora um ano atrás, mas coisas assim simplesmente não eram fáceis de esquecer. Tocou seu ombro, interrompendo-o. Evitando seu olhar, seguiu para a casa.
Pediu para que entrasse antes, Milo sentiu logo um calor gostoso e bem vindo quando atravessou a soleira da porta. Uma lareira acesa crepitava na ampla sala, tirou as peles e o cachecol, sentindo-se bem melhor. Deu uma boa olhada nas paredes de pedra, nos móveis sóbrios, imaginando ser uma casa bem antiga.
Voltou os olhos para a janela, procurando a figura de Camus, encontrando-o em meio a quatro cães agitados. Descarregou as coisas do trenó e se aproximou da entrada, adiantou-se para ajudá-lo a carregar.
E então olhou ansioso para Milo, encorajando-o a começar a falar.
- A armadura foi recuperada, parte dela. – notou o ar confuso do outro – O Santuário conseguiu todas as peças menos o capacete. Ares está alvoroçado, convocando cavaleiros há muito banidos da proteção da deusa.
- O que? Mas porque eles? – o rosto de Aquário se transtornou.
- Alguma coisa aconteceu e os cavaleiros de bronze convocados ao torneio agora são considerados traidores de Athena.
- Traidores? – soltou uma risada incrédula – Hyoga não sabe muito sobre o Santuário, e é uma criança!
- Veio uma carta dele junto com a minha, não? – interrompeu-o.
Apontou a cabeça para o bolso onde ele guardara os envelopes e o recorte de jornal, instintivamente Camus colocou a mão sobre ele.
- Milo, o que você acha...
- Leia, agora!
Lançou-lhe um ar de desagrado, mas não respondeu. Respirou resignado e retirou a carta, lendo-a diante do olhar penetrante do grego. À medida que lia, ficava exasperado, passou a andar e então se encostou a uma das paredes, pouco afastado do cavaleiro. Contava uma história absurda, que desacreditava a que passara a acreditar em treze anos.
O garoto e mais um bando de moleques desafiavam o Santuário, estavam loucos? Milo se aproximou e entregou-lhe a carta, indo jogar mais lenha e atiçar o fogo. Ouviu-o soltar uma série de ofensas alguns minutos depois.
- Não é problema nosso, somos sagrados cavaleiros de ouro, só podemos ser convocados pela própria Athena ou se o Templo dela for ameaçado.
- Estou preocupado, Camus. Não quero ver-te daquele jeito de novo. Tenho medo que dessa vez não suporte!
Aquário ergueu o rosto surpreso, logo sua expressão passou à ofendida.
- Se Hyoga não puder se defender, então foi uma perda de tempo treiná-lo para a armadura de Cisne!
- Se formos mandados a eliminar eles...
- Isso é absurdo... – riu amargo.
- Responda! – elevou a voz, cortando-o – Se o supremo sacerdote, com todo o poder que possui de responder pela deusa, ordenasse que nós, cavaleiros de ouro devemos eliminá-los, você o mataria com as próprias mãos?
Seguiu-se um longo silêncio, o francês passou os dedos nervosamente pela franja. Encarou-o finalmente com os gélidos olhos azuis.
- Sim. Principalmente se for pelas minhas mãos.
Milo estremeceu, atingido pelo olhar conhecido e pela voz cortante.
- E se um dia chegássemos a ser inimigos... faria o mesmo comigo? – encerrou a pergunta com uma nota amargurada.
- Sem dúvida.
Ficaram se encarando longos minutos, Camus mantinha firme sua expressão fria e impassível, a raiva contida com maestria. Milo teve de se segurar para não desferir uma agulha escarlate no meio daquele belo rosto. O que ele queria afinal? Eram cavaleiros, e em se tratando de ignorar sentimentos e lutar com quem for preciso, Aquário deveria ser mestre.
Deixou os ombros caírem e sentou-se no primeiro sofá que encontrou, curvando-se e enfiando a cabeça entre as mãos. Bem, ele não tinha tanta certeza se conseguiria fazer o mesmo se tratasse de Camus. Isso fazia dele menos cavaleiro?
Ouviu-o falar alguma coisa sobre pegar uma bebida, o som de líquido e de vidro batendo com outro. Uma superfície gelada e lisa foi encostada na sua testa, ergueu os olhos, Camus oferecia um copo cheio. Pegou tocando levemente nos dedos longos, sorveu toda a bebida, sentindo-a descer queimando pela garganta.
Depositou o copo e deixou a cabeça pender, encostando-a no tórax do cavaleiro de gelo a sua frente. Inspirou profundamente, sentindo o cheiro conhecido, a boca encontrando a áspera fazenda das vestes ao invés da desejada pele macia e pálida. Tanto tempo, mas sentia-se desejando o companheiro como se seis anos não tivessem passado.
Esperou alguma reação, um empurrão, que se afastasse e que o olhasse com aqueles olhos que feriam. Mas ele permaneceu como estava, amparando debilmente a cabeça morena em seu tórax. Não entendia, o estava rejeitando ou aceitando com essa imobilidade? Então não pode segurar mais, a pergunta entalada na garganta durante as últimas horas.
- Quem é ela? –sua voz soou rouca.
Camus soltou o ar exasperado, dando outra risada sarcástica, murmurando um "não acredito". O grego ergueu o rosto, sério, o outro o encarou incrédulo. Por um momento teve a visão do Milo de dezesseis anos, perguntando por onde havia andado o dia inteiro ou porque estava tão perto dessa ou daquela pessoa. "Realmente não mudou."
Dando-se por vencido, vendo que o conhecendo como conhecia, não adiantaria contornar. Afastou-se pegando um pouco de bebida para si e sentando na outra extremidade do sofá. Suspirou antes de falar, como se se preparando para a reação.
- Essas pessoas que você viu, por séculos serviram Athena. As gerações de cavaleiros de gelo que por aqui passaram sempre tiveram um vínculo com elas. Nós os protegemos, eles nos servem. – disse com calma, vendo o grego revirar os olhos impaciente – Aquela garota me foi oferecida como esposa.
- O quê? – endireitou-se bruscamente no sofá, sua voz ecoou pela casa. – Impossível...
- Sim. – concordou – Porque não podemos formar famílias, há uma grande razão pela qual somos órfãos.
- Então... – deu um sorriso de escárnio – a julgar pelo olhar apaixonado da garota, aceitou deitar-se com ela.
Sorveu um gole da sua bebida e remexeu o copo, vendo o líquido se movimentar. Estava certo, seu corpo foi oferecido, assim como outros foram oferecidos aos respeitáveis cavaleiros de gelo da Sibéria. Ergueu um dos joelhos e deitou a cabeça nele, apoiando o pé descalço no estofado, apertando o couro com os dedos, de uma maneira meio infantil.
- E como eu poderia?
Escorpião deixou os ombros, que estavam tensos, caírem relaxados. Suspirou, um pouco de alivio, um pouco de agradável constatação sobre o que significava. Esparramou-se no seu lado do sofá, esticando as pernas, a distância entre os dois era pequena. Eram iluminados pela lareira, o fogo dava uma cor avermelhada a pele branca de puro mármore. Deitou a cabeça sobre o ombro, imitando-o com um ar meio sonhador. Tocou os dedos pequenos do pé próximo a si delicadamente, a voz soando rouca e cheia de desejo.
- Sabe que ainda o quero, não?
Fez um sinal positivo com a cabeça em resposta, passando os dedos distraidamente pelos lábios. Oh, estava lá para tentá-lo afinal? Com o mais suave veneno...
- E que esperaria o tempo que fosse preciso... Aguentaria o que fosse necessário...
O francês não completou a frase, ambos sabiam, estava implícito em cada um. Milo sentiu como se um balde de água tivesse sido jogado na sua cara, mas não poderia negar sua promessa. Por um momento sentiu um desespero percorrer seu corpo e anuviar sua mente.
Aquário o fitou melancólico, ah, se soubesse o que os esperava. Eram nada diante do que estava por vir.
Permaneceram quietos, embalados pelo som do crepitar do fogo. Analisando um ao outro, apenas com os olhares. Escorpião quebrou o silêncio, sussurrando, como se temesse que alguém mais pudesse ouvir através das paredes.
- Seria mesmo capaz de me matar?
Abriu a boca, ia revidar, "E você?". Mas um estrondo os interrompeu, fazendo-os voltar à atenção para a janela. Milo piscou, entre surpreso e maravilhado. Os vidros das janelas remexiam-se furiosamente com a força do vento poderoso. O grego soltou uma exclamação admirada, pareciam jóias caindo do céu.
- Nós a chamamos de "Pó de Diamante". Linda... Mas letal.
Como se a última pergunta nunca tivesse existido, levantou-se dando as costas.
- Presumo que deve passar a noite aqui, irei arrumar o quarto de Hyoga.
CONTINUA
Agosto/2005
