Tempestade
Capítulo 12
Curvado diante do homem mascarado, Milo absorvia tudo como se ainda fosse um sonho. Há minutos atrás o poderoso sacerdote ordenava que fizesse um serviço indigno de sua posição, a que ponto a situação chegara para que o convocasse? O mestre anterior nunca faria algo assim, por mais que... Então, o que temia havia se concretizado?
Realmente havia jogado essa possibilidade para Camus, mas acreditava que era impossível de acontecer. O Santuário se encontrava em um caos, era fato, certos cavaleiros não atendiam aos constantes chamados de Kyoko, e uma facção era contra ele. Estavam loucos, por mais que fosse cruel e ditador, era o único que estava abaixo da deusa, e ainda tinha os cavaleiros de ouro como defensores.
Mas mesmo essa elite estava se fragmentando. Mu e Dohko não se moviam do Oriente, Afrodite e Máscara estavam mergulhados em boatos sanguinários, havia os que não mantinham posição. E Aioria, que agora se retirava do salão do mestre, indo cumprir a missão designada para ele, o cavaleiro de Escorpião.
O irmão do traidor, agora se dirigia ao Japão para eliminar o discípulo da amazona Marin. Ela e Shina estavam desaparecidas, consideradas traidoras. A voz dentro de si não parava de repetir suas dúvidas, de que tamanho era o caos em que estavam mergulhados?
Protestou, argumentando o fato de que o grego era irmão de Aioros, e por isso não era confiável para cumprir as ordens. Vira o olhar amargurado do outro, mesmo que por apenas alguns segundos. Sabia o quanto toda a situação o afetara, e a armadura de Sagitário era o pivô de tudo, e ela pertencera a Aioros. Agora, depois de ter sido recuperada, desaparecera novamente.
Milo mantinha a máscara de sarcasmo, escondendo suas preocupações com uma divertida incredulidade. Ares rebateu seus argumentos, afirmando que seria uma ótima oportunidade para que Leão provasse seu valor. Viu-o erguer-se do trono, andando até parar ao lado de si, ainda ajoelhado Milo abaixou mais a cabeça em respeito, dando um olhar de esguelha em sua direção. Ouviu soltar uma risada sombria, que reverberou metálica.
- Além do mais, eu já tinha outra missão para você, Milo de Escorpião.
- Verdade, meu senhor?
- Creio que está a par da identidade dos garotos que ousam me confrontar.
- Sim. – hesitou antes de responder.
- O mestre de um deles se recusa a obedecer meus chamados e minhas ordens, está claramente tomando partido do discípulo e declarando guerra a mim.
O cavaleiro dourado suou frio, cerrando os dentes com força. Ares olhou para baixo, encarando as costas tensas do moreno, sorrindo por debaixo da máscara. Falou novamente enquanto voltava para seu assento.
- Infelizmente é um dos mais poderosos da ordem dos de Prata. Mas creio que dará um jeito nisso, Milo. – sentou-se calmamente, apoiando os braços nos apoios ricamente decorados com pedras brilhantes – E lembre-se que não há misericórdia àqueles que se revoltam contra Athena. – disse firme, a voz ecoando nos seus ouvidos – Parta o mais breve possível para a Ilha de Andrômeda, há um servo esperando-o lá fora com instruções.
O cavaleiro sobressaltou-se, a ar subitamente lhe faltando nos pulmões, Andrômeda ele dissera? Ficou em silêncio, acreditava que até o homem a sua frente podia ouvir seu coração pulsar violentamente contra o peito. Kyoko esperou pacientemente por sua resposta, sentiu o peso de seu olhar, ainda que estivesse encoberto. O que poderia fazer? Certamente se recusasse mandaria outro cavaleiro de ouro em seu lugar, como acabara de acontecer.
- Sim, meu lorde.
Droga! Sua voz tinha vacilado, fora pego de surpresa. Cerrou os olhos e baixou mais a cabeça, antes de se erguer e voltar-se para a porta rapidamente, evitando encontrar a máscara fria.
oOo
Saga observou o cavaleiro se afastar e sumir pelas pesadas portas, esperou até que o som de seus passos nos corredores próximos silenciasse. Retirou a máscara e o elmo, mirando um dos cantos do imenso salão.
- Pode sair...
A voz ecoou, e logo após uma figura andrógena de cabelos claros surgiu de uma das portas. Seu perfume de rosas invadiu o aposento, usava uma túnica branca que mal cobria as longas pernas, os longos cabelos úmidos e a pele clara rosada pelo banho recém tomado. O grego fez um gesto para que se aproximasse, a bela criatura sorriu sedutor, obedecendo.
Ajoelhou-se a seus pés, apoiando os delicados braços e o queixo nas pernas encobertas do manto escuro. Ergueu os imensos olhos azuis adornados por cílios longos, fitando o rosto que pertencia a Saga, mas possuía olhos vermelhos e era emoldurado por cachos acinzentados.
- O homem que mencionaste, não é Albiore?
- Por certo que o é.
Acariciou a face corada do cavaleiro de Peixes, que franziu as finas sobrancelhas, voltando a falar com sua voz suave.
- Se não me engano... Este não foi o adversário de Milo na luta de posse pela armadura de Cefeu?
Saga sorriu, segurando o queixo delicado do rapaz.
- É bem aí que você entra, belo Afrodite.
oOo
Vestido em sua reluzente armadura dourada, postava-se a frente do barco de braços cruzados, mirando ao longe o vulcão inativo. Depois de um ano, voltava para aquela ilha. Fora inevitável lembrar das circunstâncias em que saíra na última vez.
Entre os cinco que desafiavam o mestre, estava o cavaleiro da armadura de Andrômeda, a princesa que dava nome à ilha. Recordou-se do frágil garoto de cabeleira verde, do cavaleiro de prata o apresentando orgulhoso, dizendo que possuía uma força inacreditável. Seria bom que fosse verdade naquele momento, ou não sobreviveria, não quando os cavaleiros de ouro estavam entrando na jogada.
Fechou os olhos com força, franzindo o cenho, não acreditando no que estava prestes a fazer. Ares sabia de sua relação com o mestre daquela ilha? Queria crer que não, que era apenas coincidência. Mas uma vozinha dentro de sua cabeça continuava a repetir que não, que ele sabia, que era proposital. Por quê?
Entreabriu os olhos, levando a mão para cima deles, protegendo-os do sol da Etiópia. Seria uma prova, um teste? Queria testar sua lealdade? E o que fizera até então se não obedecer-lhe a risca, executar cada pedaço de seus planos? Havia jurado servir a deusa sobre sua vida e honra, seu dever era obedecer-lhe qualquer ordem!
Recordou-se da sua ida a Sibéria, das suas próprias palavras e da resposta de Camus. Se ele seria capaz de matar o próprio discípulo, se era capaz de matá-lo. Sentiu-se nauseado, curvando sobre a borda de madeira do barco. O homem que guiava perguntou se estava bem, olhou-o sombriamente fazendo-o recuar de medo. Ignorando-o fitou o mar abaixo de si, vendo seu reflexo ser deformado pela água agitada.
Elevou a vista, agora se podia avistar a praia. A figura loira vestida com sua armadura de prata encarava a embarcação que se aproximava da praia, atrás dele, vários jovens se encontravam armados com correntes.
Deu ordens para que os marinheiros velejassem próximos à ilha e em hipótese alguma deveriam se afastar. Esperou até que o barco chegasse o suficiente próximo da praia, e então saltou, caindo graciosamente de pé na areia quente. Mais uma vez os dois se encaravam, só que dessa vez não haveria sorrisos ou abraços.
Apertando o punho Milo avançou, a fúria explodindo nos grandes olhos azuis. Os garotos atrás apertaram as correntes nas mãos, alertas e se preparando para atacar. Albiore fez um gesto para que não o fizessem. O grego parou a um palmo do loiro, trincando os dentes ruidosamente.
- Que merda pensa que está fazendo, Albiore? – rosnou.
- Estou fazendo a coisa certa, ao contrário de você, que está cego!
Devolveu-lhe a expressão severa com um franzir de sobrancelhas, ele sempre pareceu mais maduro que ele. O loiro deu um passo, aproximando-se e fazendo com que seus narizes quase se tocassem. Milo arregalou os olhos, tentando a custo controlar a agitação dentro de si, sua vontade era esmurrar o rosto a sua frente.
- Reconsidere Albiore. Pelos deuses, se redima antes que seja tarde demais! – sussurrou.
Viu o amigo sorrir tristemente, a expressão calma a qual estava acostumado nos anos de treinamento na Ilha de Milos. Os olhos calorosos e gentis, que caracterizavam o cavaleiro argentino. Escorpião abrandou, olhando-o suplicante, a pressão em seu peito ficando insuportável.
A mão do loiro apoiou-se em seu ombro, o rosto plácido. Conhecia aquela expressão, a vira muitas vezes quando eram crianças. Ele se desculpava, se desculpava pelo que iria fazer.
- Tente entender que não posso que já é tarde demais.
O grego rechaçou sua mão, ultrajado, a boca distorcida. Voltou seus olhos raivosos para os jovens que mantinham a guarda, alguns recuaram um pouco ante o ar agressivo.
- E vocês? Tomam o mesmo partido que seu estúpido mestre?
Aqueles que haviam recuado de medo se entreolharam receosos, parecendo reconsiderar. Mas uma jovem amazona virou-se para eles e então se mantiveram firmes. Oh quanta coragem, quanta estúpida coragem! Eles declaravam guerra contra o Santuário, na frente de um cavaleiro dourado. Por acaso sabiam da gravidade do problema que acabavam de arranjar?
Milo se afastou, esfregando a têmpora e andando a esmo. Sentiu vários olhos sobre suas costas. Seus ombros chacoalharam e então se precedeu uma risada baixa, que se elevou pouco depois. Os garotos apertaram as correntes em suas mãos, assustados com a reação.
Logo puderam ver o cavaleiro envolto por um brilhante cosmo dourado, e com exceção de Albiore, todos estremeceram. Era a primeira vez que viam de perto o poder de um cavaleiro de ouro. O cosmos se elevou e expandiu, agitando-se ao seu redor. A risada parou quando se voltou para eles, os olhos assassinos, a boca distorcida num sorriso de escárnio.
- Pois bem.
Cefeu já havia visto aquele rosto ameaçador antes, duas vezes na vida. Uma quando lutou pela posse da armadura que agora vestia, outra... Lembrou-se do estado do mestre e de como Milo saiu, após ter atacado o homem.
E então se manteve em posição defensiva, postando-se na frente dos alunos. Escorpião saltou para trás, o grupo exclamou vendo-o sumir para o interior da ilha. Com um aceno de cabeça, mandou que os garotos o seguissem, indo atrás dele.
Ouviram um estrondo e então se protegeram, pesadas rochas caíram sobre eles. A terra abaixo deles tremeu, olharam-se assustados pensando a mesma coisa, o vulcão! Estava destruindo a ilha, conseguiram alcançá-lo e tentaram atacar em vão. A expressão de um divertimento sádico estava estampada em seu rosto. Suas correntes foram rechaçadas facilmente, com um golpe foram jogados longe. Albiore conseguiu proteger apenas alguns. Postou-se na frente de Milo, brandindo a corrente em suas mãos. O grego riu.
- Aqui estamos novamente, depois de mais de dez anos, nos enfrentando. Ainda que as circunstâncias não me agradem. – murmurou as últimas palavras.
- Uma luta justa, Milo.
Entendeu, queria manter os discípulos salvos e fora daquilo, queria que se enfrentassem sozinhos. Ainda que seu poder não fosse o de um dourado, chegava próximo disso. Albiore era do tipo que apenas revelava sua força verdadeira em casos extremos, e esse era um deles.
A luta durou várias horas, os golpes não pouparam a ilha, rachando a terra e fazendo lava cobrir a superfície. Seria destruída logo, o vulcão não demoraria a explodir de vez. Ouviram ao fundo os gritos assustados dos garotos, alguns tentaram ajudar o mestre, mas este os impediu. Estava no seu limite, era visível, no entanto o conhecia o suficiente para saber que estava longe de sucumbir.
À metros de distância, Milo se encontrava ofegante, já sentindo os membros doerem um pouco, o homem a sua frente se encontrava em um estado bem pior. Tinha de acabar logo com aquilo, mas... Queria realmente fazer aquilo? Preparou-se pra desferir outro golpe, não estava certo se dessa vez conseguiria.
Milésimos de segundos depois de atacar, viu de relance os olhos vidrados do loiro, o golpe então o atingiu, em cheio. O corpo arrastou-se pela terra árida, inerte.
Silêncio. A poeira tomava todo o relevo deformado. O corpo de Albiore estendido no chão. Milo esqueceu-se de respirar, estupefato. O que...?
Seus pés deram alguns passos vacilantes, não querendo acreditar. Não queria, mas a imobilidade era real demais. E então seus olhos registraram uma rosa despedaçada, próxima ao corpo. Desde quando flores como aquela nascia na terra infértil da ilha?
Agachou-se de súbito, tocando um pequeno orifício no peitoral da armadura prateada, muito semelhante aos da agulha escarlate. Só que tinha certeza de que aquele não havia sido causado pelo seu golpe. O reconhecimento o atingiu com um baque, precedendo uma fúria. Ergueu-se olhando ao seu redor, os olhos tentando encontrar a causa. Foi impedido por uma jovem amazona ensandecida, avançando e gritando, desviou-se segurando o braço dela e torcendo atrás de suas costas. A menina choramingou de dor.
Suspirou resignado, segurando uma garotinha que tentava em vão se soltar. A largou, jogando-a no chão, ela se ajoelhou e se apoiou na terra. Estava próxima do corpo do mestre, desabou em lágrimas. Milo a observou de cima, não havia nada a fazer, seu cosmos havia abandonado a ilha.
Encarou o corpo inerte, a armadura prateada avariada depois de seus ataques. Não havia tempo para lamentar ou fazer um funeral decente, a ilha estava prestes a explodir em lava e desaparecer no oceano. Mas também não podia deixá-lo ali. Com um grito embargado pelos soluços, a amazona levantou-se e tentou atacar novamente. Sem se abalar muito, esmurrou o estômago dela, fazendo-a desmaiar em seus braços.
A carregou nos ombros, com o outro braço circulou a cintura de Albiore, levando ambos. Chegando próximo à praia, encontrou os perplexos discípulos. Fitou aqueles rostos assustados por alguns segundos, antes de falar-lhes.
- É o que acontece com os que traem o Santuário. – sua voz soou melancólica – Aqueles que não pretendem afundar junto com a ilha sugiro que entrem no barco rápido.
Acenou com a cabeça na direção da embarcação que se aproximava. Obedeceram e entraram, se arranjando como podiam no limitado espaço. Entregou a garota desmaiada a um de seus companheiros, depositando Albiore com cuidado no chão depois. Os jovens imediatamente cercaram o corpo do mestre.
O capitão do barco pediu que se aproximasse, e então se afastou deles.
- Avistamos outro barco se afastando da ilha, enquanto voltávamos.
- Sim, eu já imaginava.
Provavelmente chegara após eles, mas em um trajeto oposto. A presença dele só significava uma coisa. Fora realmente testado, e de alguma forma acreditara que falharia. Olhou mais uma vez para Albiore, as feições tranqüilas, cercado dos alunos. Uma onda de ultraje e fúria invadiu-o.
Ao fundo a ilha de Andrômeda mergulhava em lava e se destruía, enquanto a embarcação protegida pelo cosmos de Escorpião deslizava silenciosamente para o continente.
oOo
Deixara os garotos em terra firme, junto com o corpo do cavaleiro de prata. Não sabia se havia mais pessoas presentes na ilha além deles, recusaram-se a falar. Não importava, não tinha ânimo para interrogar-lhes e não havia necessidade para puni-los.
Seguiu para a Grécia sem demora. Seu mestre na ilha de Milos logo saberia o que aconteceu, tentou não visualizar o rosto marcado de quase cinqüenta anos. O olhar decepcionado, pesaroso ou talvez acusatório. Desde que aquilo tudo começara não o procurara, não sabia sua posição em relação ao Santuário em um momento delicado como o que passavam.
Sabia ele da resolução de Albiore? Costumava ser mais próximo dele, estaria apoiando-o? Lidaria com isso mais tarde, sabia que o homem lhe daria um bom funeral, era um dos seus favoritos e mais obedientes, coisa que Milo, nunca fora.
Mas agora tudo o que queria era resolver o caso de uma vez por todas. Avançava pelas escadarias antigas, ignorando os guardas e servos que se curvavam e saldavam respeitosamente o cavaleiro vestido com a sagrada armadura de ouro. Fervia, seus punhos cerrados estavam ansiosos por esmurrar e descontar toda sua fúria.
Ouviu seus próprios passos ecoarem pelas paredes e pisos de mármore, os guardas que se espalhavam pelo templo de Athena se sentiam incomodados. Emitia um cosmos agressivo, criando mudanças no ar.
Encontrou seu alvo a alguns metros e aumentou o ritmo de seus passos duros, a capa e os cabelos ondulados agitando-se atrás de si, assim como seu cosmos que se intensificava. O viu virar-se para si, piscando e fixando os grandes olhos azul piscina, como se o esperasse há muito tempo. Seu cosmos também expandiu, preparando-se para a colisão. Que nunca aconteceu.
- Afrodite! – rosnou.
Viu-se sendo paralisado por um par de mãos, Máscara da Morte estava na sua frente, segurando seu pescoço e seu punho, que ainda possuía a força concentrada para o golpe. O italiano o impedia com muito custo, usava a armadura de Câncer.
A frente deles, em situação parecida, estava Shura nas vestes de Capricórnio, abraçando Peixes por trás e segurando o pulso direito do pisciano. Havia uma rosa branca entre os dedos dele, pronta para ser desferida no peito do grego. A voz furiosa do espanhol ecoou pelas paredes.
- Estão loucos? Somos proibidos de lutar uns contra os outros, querem por acaso criar uma destruição por aqui?
Milo agitou-se, fazendo com que ficasse cada vez mais difícil para Máscara mantê-lo. Xingou-o na sua língua materna, mandando o escorpiano acalmar-se. Mas tudo que via na sua frente era Peixes. Ele permanecia quieto, ainda que atento com a flor pronta para o ataque, as finas sobrancelhas contraídas.
- A missão era minha, não havia porque interferir!
- Nós dois sabemos que não ia concluir, Milo! – a voz fina rosnou de volta, a expressão grave contrastando com o rosto suave – Albiore era um adversário difícil, mas era apenas um cavaleiro de prata! A luta prolongou-se por demais!
- Isso era problema meu!
- E meu também, estava cumprindo ordens!
Sua voz sobressaiu a de Milo, o grego parou, relaxando os músculos, baixando o punho e diminuindo o cosmos agressivo. O italiano murmurou dizendo que já era hora. Peixes o imitou, abaixando a rosa branca. Através de sua farta franja, olhou do sueco para os outros dois cavaleiros.
Então, havia algo de verdadeiro nos rumores. A adolescência lhe parecia milhas e milhas distante no tempo. Afrodite não era mais o garoto com rosto de menina de ar inocente, que sabia chantagear e ser perdoado com um simples sorriso encantador. De alguma forma agora era amargo e estava mergulhado em perdição. O jovem ambicioso Máscara colecionava cabeças, dizia-se que matava até crianças.
Shura. Apesar de cruel nos treinamentos e castigos, considerava-o muito. Era um ótimo cavaleiro como Aioros e Saga, a sua maneira, claro. Sempre fora considerado o mais leal a Athena. Parecia cansado e pesaroso, duas grandes olheiras marcavam o rosto orgulhoso.
E ele... Havia atacado Albiore, propiciado sua morte, destruído Andrômeda. Olhou para as próprias mãos, como se estivesses sujas de sangue. Era pela deusa? Era esse tipo de batalha que haveriam de travar em seu nome?
Subitamente ergueu o rosto, recuando alguns passos, sentindo sua armadura reagir a algo. Através das sombras do salão onde se encontravam os cavaleiros um a um se revelaram. Seus olhos percorreram o ambiente, vendo rostos que há muito não via. Vendo a confusão nos olhos do grego, Shura esclareceu.
- Kyoko recebeu uma carta da menina que se diz ser Athena, virá até o Santuário com seus cavaleiros. Ares nos convocou, fomos ordenados a proteger as doze casas.
Soltou uma exclamação, enquanto observava aqueles rostos, mais maduros do que os que lembrava. Aioria tinha olhos estranhos, Shaka havia se movido da Índia, e até o considerado traidor, Mu, encontrava-se ali. Virou-se para o último que se juntou a eles, completando o grupo. Vinha andando de cabeça baixa, o som dos passos ecoando sobre suas cabeças.
Parou e lentamente ergueu a cabeça com o elmo dourado, os olhos azuis encontraram os de Milo.
"Camus".
oOo
O jantar no templo de Athena foi pontuado por um longo e sufocante silêncio constrangedor. Lembrava nada a época em que aqueles mesmos cavaleiros, não passando de adolescentes, sentavam-se na mesma mesa. Apenas havia silêncio quando Shion discursava antes do jantar, tendo onze pares de olhos atentos em sua direção. Assim que lhes dava permissão, não demorava pra que a mesa virasse um pandemônio de vozes altas, prataria se chocando e briga por comida.
Daquela vez quem discursava era seu sucessor, Ares. Não tinha todos os olhos atentos a si, pelo canto dos olhos, Milo viu Mu encarar seu prato vazio, os lábios ligeiramente retorcidos. Apesar de querer aparentar sua calma característica, podia jurar que o tibetano estava prestes a explodir, e evitava a todo custo encontrar o novo Kyoko à cabeceira da mesa.
De alguma fora, compartilhava de sua atitude, também tinha vontade de levantar e gritar, enfrentá-lo como na vez em que tinha treze anos, quando seguiram ao salão do mestre, após saberem de Aioros. No entanto seu duro discurso sobre os próximos dias não foi interrompido, retirou-se a seus aposentos e os cavaleiros hesitaram um bom tempo antes de começarem a se servir.
Observavam-se uns aos outros de esguelha, apenas o som suave do tilintar da prataria sobressaindo. A atmosfera era estranha, como se estivessem entre inimigos. Constantemente o olhar do escorpiano era atraído para Camus, do outro lado da mesa, mexendo preguiçosamente na comida com o garfo. O francês percebeu e forçou-se a comer.
Após o jantar partiram para seus templos. Desciam as escadarias que os ligavam, lado a lado. Passaram reto por Aquário, Camus o seguia até Escorpião, assentindo sem dizer nada ao seu pedido que o seguisse. Observou-o discretamente, vendo a luz fria da lua tornar a pele pálida em um tom azulado. O cabelo mais escuro, deslizando pelos ombros e costas, emoldurando o rosto e o tornando mais inumano. Tal como ele, usava uma longa túnica cerimonial, as mangas longas e largas escondendo as mãos, a capa presa por duas fivelas douradas nos ombros. Ao invés da capa, Milo tinha um manto vinho envolvendo os ombros, preso por uma só fivela com desenhos ricamente trabalhados.
Geralmente usava várias jóias com as vestes cerimoniais, e Camus, o menos possível. Um contraste entre luxuria e sobriedade. O aquariano subitamente parou, virando-se para ele, sentiu-se preso nos olhos azul escuros até perceber que estavam na frente de seu templo. Esperava que entrasse primeiro, em respeito ao seu dono. Milo quase riu, não resistindo em sorriu ligeiramente seguiu na frente.
Foram para a parte habitável. Perguntou sobre seu servo, Andréas, notando a falta de alguém ali. Respondeu-lhe que o havia dispensado por alguns dias. Ocultou o fato de que, sendo também discípulo de seu mestre, partira para a ilha de Milos, deixando apenas um bilhete formal informando. Em seu íntimo ficou aliviado, sabendo que encontraria seu rosto amargo, com certeza tendo conhecimento do que fizera.
Jogou-se na cama de braços abertos, Camus permaneceu na porta por uns instantes, antes de entrar e começar a acender as lamparinas espalhadas pelo quarto. Quando terminou sentou-se em um divã de couro, Milo endireitou-se nos lençóis vermelhos, vendo o jogo de sombras na figura do outro lado do aposento. Virou o rosto para si quando falou.
- Ele tem razão, eu não ia matar Albiore. – referindo-se a cena com Afrodite.
- Gostava dele? – perguntou, após alguns segundos.
- De certa forma. – deu de ombros – Nunca fomos grandes amigos, o jeito extremamente obediente dele me irritava. Era uns anos mais velho que eu, e era obcecado em conseguir a armadura de Cefeu. Sempre me repreendia quando podia, achava que era sua responsabilidade por seu mais velho.
Permaneceram quietos, Camus sabia dessa história, dessa e de outras, quando ainda eram amigos inseparáveis. Conheciam-se, seus medos, suas infâncias. Ainda se conheciam? "Pessoas mudam, Milo."
Aquário virou o rosto, fitando um ponto cego na tapeçaria. O rosto impassível, o que estava pensando, o que estava sentindo? Nos dias seguintes estariam guardando as doze casas, esperando cinco adolescentes vestindo armaduras de bronze. O que os fazia querer vir até o Santuário, tendo sido constantemente atacados por cavaleiros de prata nos últimos meses?
Provavelmente não sabiam o que iam enfrentar, não estavam a par dos cavaleiros de ouro. Não se surpreendia, eram como armas secretas, não se sabia quantos havia, se estavam vivos, se existiam. Existiam para batalhas divinas, e o que significava deter seis crianças? Não podiam ter alguma razão no que diziam, podiam? Podiam estar em posse de Athena?
Shion tinha garantido que a menina fora resgatada, que Aioros estava morto. A deusa reencarnada estaria sob seus cuidados, e ele era o único que respondia por ela. Tantos anos acreditando, não podia ser tudo mentira. E Saga, desaparecido após tudo aquilo?
Esquadrinhou a figura de Camus, a posição relaxada no divã, com a cabeça levemente tombada para o lado, deixando à mostra parte do pescoço e começo do ombro pálido.
- Sinto muito.
Milo murmurou, mas ele o ouviu, endireitando a cabeça para encará-lo. Entendeu de imediato. Cinco cavaleiros de bronze, um deles capaz de produzir o "pó de diamante". Sem receber resposta de sua parte, continuou:
- O que vai fazer?
Então o viu suspirar cansado e deixar os ombros caírem.
- O que eu tenho de fazer, Milo. O que é preciso fazer.
Escorpião entrelaçou os dedos das mãos, mordiscou nervoso o lábio inferior, o que era preciso fazer? Realmente falara sério na Sibéria? Por acaso tinha consciência do seu estado há um ano atrás?
Parecendo perceber sua perturbação, ergueu-se do divã antes que pudesse falar, postando-se no meio do quarto, na sua frente. O grego o olhou confuso, quando com um gesto pediu que fizesse o mesmo. Ficou a dois passos de distância dele, os olhos na mesma altura. Riu, lembrando-se de algo. O outro franziu as sobrancelhas, perguntando qual era a graça.
- Quando tinha dezesseis, eu era um palmo mais alto. – ergueu a palma da mão acima da cabeça, para ilustrar.
- Oh bem, acho que dei uma crescida depois. – sorriu, mostrando que se recordava também.
- Mas continuo sendo o mais alto. – Constatou, colocando as mãos na cintura.
- Alguns milímetros não contam! – fingiu um ar ofendido. – É o seu cabelo!
Riram, dissipando o clima que carregara a noite até aquele momento. Admirou o rosto do francês, o riso fazendo-o perder a máscara fria, parecendo mais com o garoto de tempos atrás. Seis anos haviam passado, próximos e iluminados pelas lamparinas se permitiu um exame da mudança desses anos. Ainda possuía o porte elegante, mas mais severo, os ombros largos indicando possuir uma estrutura forte. A pele mais pálida do que nunca, o rosto mais maduro.
Instintivamente levou a mão a uma das faces, Camus parou de rir e piscou. Mas permaneceu como estava, deixando-se ser analisado. Então deu um passo a frente, diminuindo perigosamente a distância entre os dois. Milo não teve tempo de registrar o que acontecia, as mãos do francês já haviam se movido até a fivela dourada, soltando o manto, que caiu ao chão.
Admirou a pele bronzeada a sua frente, antes de avançar e colar a boca entre pescoço e o ombro. O escorpiano cambaleou para trás, o choque dos lábios frios e a língua quente causando-lhe um arrepio. Em reflexo o afastou, encarando-o assustado.
- O que está fazendo?
- Não me quer?
Piscou várias vezes, sentindo o lugar onde tocara queimar. A voz rouca e a pergunta atingindo-o.
"Porque não olha para mim?"
"Eu não te agrado mais?"
Era o que queria, sonhara em ter, por aqueles anos. Ultrajado pela recusa, pela frieza. E agora, ali estava o mesmo, perguntando com olhos febris. Não estava certo, algo não estava certo.
Atrás do olhar lânguido de luxúria ele via, traços que só ele podia ver. Porque o conhecia, melhor do que ele e que a si mesmo. Traços de melancolia e de redenção. Tocou com a ponta dos dedos a pele tocada, balançando ligeiramente a cabeça, desnorteado.
- Por quê?
Conseguiu perguntar em um fio de voz. Camus venceu novamente a distância de seus corpos, envolvendo seu pescoço com os braços, trazendo sua cabeça. Colou seus lábios aos dele, movendo-se sobre, gemendo extasiado quando a passagem foi permitida. Sem pensar mais, Milo devolveu-lhe o beijo, tocando a língua cálida, o gosto a muito perdido, apenas em lembranças.
Deixou os próprios braços enlaçarem sua cintura, aproximando mais, as roupas de repente incômodas. Ele o prendia, segurando sua nuca. Parecia desesperado, ambos estavam.
Separaram-se em busca de ar, deu-lhe beijos ofegantes pelo rosto, pescoço, abaixo da orelha, antes de sussurrar:
- Porque esperamos muito, Milo.
Antes que pudesse replicar, teve sua boca tomada.
CONTINUA
Setembro/2005
