Tempestade

Capítulo 13

"What I really meant to say
Is I'm sorry for the way I am
I never meant to be so cold to you

And I'm sorry about all the lies
Maybe in a different light
You could see me stand on my own again
Cause now I can see
You were the antidote that got me by
Something strong like a drug that got me high

I never meant to be so cold"

Crossfade – "Cold"

Por instinto, a primeira coisa que fez ao acordar foi percorrer a mão para o travesseiro ao seu lado. Encontrou a maciez da seda rubra, entreabrindo os olhos para constatar o que seus dedos já sabiam. Frio, vazio. E não o calor e a proximidade, as carnes cheias que tivera e apertara entre seus braços a noite inteira. Até que praticamente desmaiara saciado, embalado por seu abraço.

Respirou fundo e afundou a cabeça nos travesseiros, recriminando-se. O que esperava? Que ele ainda estivesse na mesma cama, no mesmo quarto quando acordasse no dia seguinte? Não era o que acontecia antigamente, era?

Mas então um som o fez franzir as sobrancelhas e erguer-se, apoiando os cotovelos na cama. Virou a cabeça na direção da porta, e esta se abriu. Com certa dificuldade, o francês equilibrava uma bandeja e abria a porta com as costas. Milo endireitou-se na cama, sentando com as pernas cruzadas em estilo indiano. Piscou várias vezes seguidas, como se acreditasse estar tendo alguma visão.

O cavaleiro parou ao vê-lo acordado, mas recompôs-se rapidamente, depositando a bandeja próxima da cama. O escorpiano estava nu e nada fazia para esconder ou cobrir-se. Camus pegou-se embaraçado, mesmo sabendo que não deveria ficar depois da noite anterior.

Os olhos de Milo percorreram o corpo do aquariano. Trajava uma de suas roupas de treino. A camisa e as calças grossas, gastas, um cinto de couro velho. Estava descalço e seus cabelos úmidos. Incomodado com a inspeção, Camus ocupou-se em tirar um amontoado de bandagens e enrolá-las nos pulsos e punhos.

- Espero que não se importe. Usei seu banheiro e peguei algumas roupas. – disse em tom casual, apontando para as vestes cerimoniais cuidadosamente dobradas em uma cadeira.

Nenhuma resposta veio, mas o olhar intenso continuava sobre ele. Não tinha coragem de encará-lo, e agora que havia terminado de enrolar as bandagens, mesmo que se demorando mais que o necessário, pôs-se a andar pelo quarto. Deteve-se na frente de uma familiar redoma de vidro, sorriu levemente ao ver os pequenos escorpiões negros.

- Ainda tem eles...

- Camus. – a voz firme fez um arrepio percorrer sua espinha.

- Andreas anda cuidando bem deles? Soube que tem tido muitas missões ultimamente, e mal pára no templo.

- Camus!

O grito o fez sobressaltar, os olhos ainda presos nos animais, os lábios pressionados com força um contra o outro.

- Este não parece ter sido bem alimentado. – disse com a voz fria – Está agressivo.

Milo cerrou as pálpebras, suspirando longamente. O francês cruzou os braços e recostou-se a uma parede, seu olhar ainda o evitando. Suavizou sua voz.

- Camus, o que está acontecendo?

- Acontecendo? – deu uma curta risada – Nada, o que o faz pensar assim? – mas seu olhar baixou.

- Olhe para mim!

Continuou longos segundo encarando o chão de mármore, apertando os antebraços com os dedos brancos. Sua tensão era praticamente palpável. Relutante, o cavaleiro de gelo ergueu os olhos azuis, encarando-o com receio.

- Eu te conheço, Camus. Por favor, não minta para mim, não mais.

Aquário arregalou os olhos, surpreso. Sua voz era suave, mas com uma nota cansada. Os olhos suplicantes. Ele devia ter ido embora antes que acordasse, mas não conseguira. Passou as mãos pela franja, despenteando ligeiramente os fios escuros. Umedeceu os lábios algumas vezes, andando de um lado para o outro no imenso quarto.

- O que acontece? Não está sentindo? Essa não é nossa luta – não a que estamos destinados a travar. Alguma coisa muito grande está acontecendo em Asgard, e não me deixam que veja a regente deles. Meu mestre não responde aos meus chamados. – deu uma pausa.

- Está preocupado? – franziu as sobrancelhas – Então porque deixou que ele viesse? Como um traidor!

Elevou a voz, subitamente nervoso com a atitude do francês, erguendo-se nu e se aproximando. Apoiou as mãos em seus ombros e os apertou, seus olhos tentando descobrir o que havia nos dele.

- Ele não está pronto, mesmo tendo conseguido a armadura de Cisne, ainda falta. Possui algo que o prende, que o limita, impede de ser um cavaleiro completo. Algo que eu nunca tive. – a voz de Camus falhou – E fui escolhido por isso.

- Pretende testá-lo? – sacudiu seus ombros – Não vai tomar nenhuma atitude drástica, vai?

Camus virou a cabeça para o lado, então o fitou de esguelha. Milo o soltou, os olhos eram terrivelmente frios.

- Não o disse uma vez? Se for preciso, farei.

Afastou-se com um safanão, saindo do aposento. O grego caiu sentando no chão de pedra, os olhos enevoados focando um ponto cego a frente.

oOo

E então havia chegado o momento.

Era uma manhã, nesse período o Santuário deveria já estar em plena atividade. Sons de luta nas arenas, cheiro de comida sendo preparada pelas servas nas cozinhas, chibatas estalando no lombo de trabalhadores nas ruínas. Mas não naquela manhã.

Amanhecera em um mórbido silêncio, iminência de uma batalha. Batalha? Milo sacudiu levemente a cabeça, enfrentar um punhado de garotos era considerado um massacre.

Fitou de cima da escadaria da primeira casa o horizonte, recortado pelas montanhas de pedra, características da Grécia. Havia grande possibilidade de chuva pesada no mais tardar, podia sentir no ar.

Colocou o capacete na cabeça, acompanhando os demais cavaleiros que começavam a subir, cada um para seu respectivo templo, ao qual foram incumbidos a proteger quando receberam suas armaduras douradas. Um a um fora parando nas casas, o grupo diminuía a medida que subiam. Milo parou na entrada de Escorpião, ficando próximo a escadaria, voltado para as sete casas abaixo.

- Camus? Porque parou?

- Gostaria de permanecer um pouco aqui.

O cavaleiro de escorpião virou-se assim que ouviu as vozes, com o cenho franzido. Camus encontrava-se de costas para si, Shura estava na frente dele, os olhos negros e rasgados encontraram os do grego. O espanhol suspirou e voltou a encarar o francês, acenando com a cabeça e virando-se para encontrar Afrodite, que estava mais a frente.

Esperou até que ficassem a sós, então se virou e avançou até ele. Milo adiantou-se, cortando a distância em passadas largas. Pararam a poucos centímetros um do outro, e então Aquário fez algo que o desconcertou. Sorriu, os olhos sem a camada de gelo que sempre os cobria.

- Desculpe.

O cavaleiro de gelo levou suas mãos até seu rosto, segurando-o com gentileza, roçando os lábios nos dele. Milo levou suas mãos até as dele, segurando-as, mas não afastando.

- Estão frias.

- Desculpe.

Sorriu, indo encontrar novamente seus lábios frios, os dedos tocando a pele fria do pescoço, roçando nos frios fios do cabelo.

oOo

Um avião pousara nas terras do Santuário, trazendo sua suposta deusa e seus desafortunados defensores. Os dois se separaram e seus olhares foram atraídos para além da entrada da morada de escorpião. Havia começado.

Milo pôs-se a falar, Camus o ouvia em silêncio. Escorpião sabia no que estava pensando. Hyoga.

- Como imaginei, Mu os deixou passar, sua posição para com o mestre é clara. Uma luta foi travada na segunda casa, mas o que deu em Aldebaran para deixá-los passar? Achei mesmo que não os mataria ou os machucaria mortalmente... ele tem um grande coração.

Deu uma pausa e olhou para o outro. Mas Camus permaneceu quieto, os olhos voltados para as casas abaixo.

- Eles se dirigem agora a casa de Gêmeos, ali não há nada que os possa prejudicar. Há um labirinto, mas só pode ser controlado pela força de...

O francês finalmente o olhou, o grego abriu a boca mais uma vez, mas tornou a fechá-la. Era-lhe difícil dizer o nome, ele sabia, sentindo um desconforto. Milo desviou o olhar e continuou.

- Câncer... Máscara da Morte realmente é um problema. Não importa quem é a vítima, ele quererá suas cabeças para juntar à sua coleção. – cruzou os braços – Aioria nunca seria capaz de fazer algum mal a eles. – balbuciou não muito certo do que dizia, uma vez que vira o leonino e o achara estranho – E Shaka! – riu animado – Não irá prejudicá-los.

Aquário o encarou com fúria a menção do nome do indiano loiro.

- O que faz acreditar nisso? Seu convívio com ele afinal foi tão bom e intenso a tal ponto de afirmar tal coisa?

Estremeceu, ouvindo as palavras duras do francês. Não esquecera daquele dia, do que ouvira através da boca de Máscara da Morte. Se havia alguém ali parecido com Camus, esse era Shaka. Os dois adolescentes eram calmos, estudiosos, esforçados, de aparência esguia, delicada e elegante. Mas ainda assim eram opostos. Shaka era um monge budista, Camus era alguém desprovido de fé.

E Milo havia procurado a companhia de Virgem, compartilhando de sua cama, de seus segredos.

Camus avançou, com o dedo em riste para ele, a raiva estampada no rosto.

- Deixe-me dizer uma coisa, Milo. Aquele monge é tão frio e cruel quanto eu. – apertou os punhos – Talvez seja até pior. Ele confia cegamente naquele homem.

- Que... de quem está falando? – franziu o cenho.

Mas a pergunta do grego foi interrompida, o quarteto agora adentrava a moradia de Gêmeos, e logo que o fizeram, um cosmos se manifestou no templo. Milo avançou para além da entrada de sua casa, seguido do outro. Não podia ser, era impossível. Quem poderia estar no terceiro templo?

Era tão poderoso quanto o de um cavaleiro de ouro. Em certo momento ele explodiu, em um golpe. O grego estremeceu, sentindo o peito apertar. Fazia anos que não via esse golpe. Explosão Galáctica.

- Saga.

Olhou para Camus quando o ouviu chamar seu nome, incrédulo. Não, não podia ser. Sumira por tantos anos. Porque agora?

- Impossível. – disse em um fio de voz.

Camus o fitou, a expressão fria. O grego balançou a cabeça em negativa, sem conseguir acreditar.

- Não é impossível, Milo. Ele sumiu, mas não há provas de que ele esteja morto, há?

Recriminou-se por mais uma vez ocultar-lhe a verdade. Estava vivo, e o atormentara por quase cinco anos, rondando a Sibéria com seu cosmos. Ele sabia, e havia desaparecido junto com Issac. Não contara porque ver a esperança nos olhos do grego, amor novamente para com o cavaleiro de gêmeos, era algo que não suportaria.

- Não está escondendo algo de mim, está Camus?

Avançou alguns passos, fazendo-o recuar um pouco. Mentalmente, o francês implorava, "não, não me pergunte". Mas então Milo cerrou os olhos, concentrando-se e expandindo seu cosmos. O cavaleiro de gelo o imitou, tentando localizar o dono da energia que se manifestava em Gêmeos.

Havia só dois garotos no templo, um deles era Hyoga, que estava desmaiado.

- Quem quer que seja, está há anos luz daqui, entre dimensões paralelas. Não há tempo de localizá-lo.

Escorpião trincou os dentes, apertando os punhos e as pálpebras, expandindo mais seu cosmos. Houve mais um golpe, e um buraco foi aberto para outras dimensões. Esse buraco foi fechado, alguma distração o fez perder a concentração e fechá-lo.

Abriu os olhos, desistindo. Sem o cosmos não poderia localizar quem havia dominado o templo de Gêmeos. Camus do seu lado continuava concentrado, uma energia fria pairava ao seu redor. Instintivamente esfregou os braços, afastando um passo. Chamou-o, duas, três vezes, mas o cavaleiro não respondia.

Parecia estar em um transe profundo, a energia ondulando como vento, carregando cristais de gelo cintilantes. Houve mais uma explosão na casa de Gêmeos, mas durou alguns minutos, até que a presença ali desaparecesse por completo. Milo andou mais para além da entrada da casa, socando uma das colunas que a sustentavam.

O que ele fazia ali? Não era um traidor como Aioros, era? Lembrou-se das palavras do mestre Shion naquela noite, garantindo-lhe que estava tudo bem. Não, nunca esteve!

Franziu o cenho, uma breve luz relampejou na casa de Libra. Virou-se alarmado para Camus, que diminuía o cosmos e abria os olhos. Sem demora ele andou para a escadaria, Milo segurou seu braço, parando-o.

- Aonde vai?

- Para a casa de Libra. – fez um sinal com a cabeça – Hyoga ficou preso em uma dimensão, mas felizmente consegui resgatá-lo, ele se encontra na sétima morada.

Tentou se soltar, mas Escorpião apertou mais a mão em seu braço. Lançou-lhe um olhar de desagrado.

- Camus... – sussurrou.

Permaneceram se olhando por longos segundos, até que o aquariano se soltasse. Sem olhar para trás, desceu com pressa a grande escadaria que ligava Escorpião a Libra. Milo deu alguns passos adiante, pensando em segui-lo, mas estacou, cerrando os punhos. Não podia abandonar o templo.

oOo

O guardião da oitava casa andava de um lado para o outro, estralando e esfregando os dedos. Olhos pregados na casa de Libra, a ansiedade explodindo dentro de si. A cada momento que sentia o cosmos de Camus se manifestar, ele ameaçava alguns passos para a escadaria, voltando em seguida.

O que estava acontecendo? A distância era longa o bastante para que se ouvissem apenas ecos de golpes se chocando, ecoando pelas paredes de mármore da sétima casa. Mas então eles pararam e o último cosmo que sentiu fora de Camus. Não havia uma fagulha que fosse do cosmos da vida do cavaleiro de Cisne.

Milo apoiou-se em uma coluna, sentindo-se subitamente zonzo. Ele não podia ter feito! Era mentira! Não podia!

Uma pessoa saiu de Libra, começando a subir a imensa escadaria ladeada por rochas antigas. O grego espiou, o cavaleiro dourado voltava sozinho, subindo pesadamente as escadas. Não podia ver seu rosto, sua cabeça estava baixa, a franja farta cobrindo as faces. Esperou pacientemente até que alcançasse o topo da escada, dando alguns passos adentro do imenso salão do templo de escorpião.

Receoso, Milo se afastou da coluna onde estivera aproximando-se e baixando sua cabeça, tentando ver seu rosto. As pontas dos seus dedos tocaram seu queixo, erguendo-o. Gelou, ofegando e colhendo o rosto pálido entre suas mãos.

Seus dedos sentiram a pele úmida, escorrendo livremente pelos olhos, a íris azul perdida na vermelhidão que eles eram agora. Camus franziu o cenho, vendo a expressão de assombro de Milo, levando suas próprias mãos até seu rosto, tocando por sobre as dele. Sentia o mesmo que ele, o terror tomando conta de si.

Achava que nunca mais pudesse chorar. Que elas não passavam de pedras de gelo em seu coração. Cobriu a boca, um soluço escapou por ela, as lágrimas não paravam de escorrer pelas faces brancas.

- O que você fez? O que fez, Camus?

Aquário sacudia a cabeça energicamente, as mãos ainda pressionadas contra a boca. Milo o forçou a tirar elas, os soluços rasgando sua garganta. Ele caiu de joelhos e o grego foi junto, segurando sua cabeça contra seu peito. As armaduras impediam o contato quente e confortante.

- Eu não pude... não pude...

Camus murmurava em seus braços, parecendo estar a ponto de simplesmente quebrar em pedaços. Os soluços cortavam sua garganta, fazendo com que as palavras saíssem truncadas.

- Eu o prendi no gelo eterno...

- Você o que?

Encarou Milo, apertando os olhos. As lágrimas embaçavam sua vista, o desespero alcançava-lhe. Hyoga afinal não era capaz, morreria ao enfrentar um cavaleiro de ouro. Ele estava certo, quem deveria vestir a armadura de bronze era Issac. Mas estava perdido, estava tudo perdido.

- Não está morto. – passou os dedos pelos olhos, se acalmando um pouco – Ele acordará, um dia, quando todas as batalhas acabarem. Salvo, são e salvo.

- Camus, por favor... que cavaleiro de Athena quer se ver salvo de sua batalha?

- Cavaleiro? Ele não é, Milo. É só um garoto que não se desprendeu da mãe morta. Eu falhei... com os dois.

Permaneceram assim, o grego o mantinha em seus braços, acariciando o cabelo liso. Sabia o que aconteceria, Camus era apenas humano, afinal. E talvez fosse realmente melhor desse jeito, mantê-lo congelado até que ficasse salvo.

Que tipo de aprendiz Hyoga era? Se fosse um discípulo de Camus, não desistira fácil de uma luta. Mas o medo do cavaleiro eram os sentimentos do garoto. Era-lhes proibido sentir raiva, ódio ou amor? Que deusa permitia uma coisa dessas?

Mas eles estavam ali para servir ela, para amar apenas a ela. Dedicar completamente sua vida e honra em seu nome. Foram as palavras de Shion quando recebeu os jovens cavaleiros de Ouro em seu serviço.

Um dos cavaleiros de bronze estava na casa de Câncer, podia sentir a energia decrépita do italiano que a defendia. A morte sempre foi o cheiro daquela morada. O outro se dirigia a Leão. Quanto tempo se passara? Quantas tochas do grande relógio já haviam se apagado?

Esperava que Aioria ou Shaka os fizesse parar, para que não houvesse mais tragédias. O que os fazia avançar com tanta vontade pelas casas?

- Preciso ir.

O francês apenas falou sem se mover, Milo apertou-o mais nos seus braços, querendo-o assim mais um pouco. Finalmente ele moveu um ombro, colocando a mão no peitoral da armadura de escorpião, o afastando. Os olhos evitaram os seus, mirando o chão. Desajeitado, passou as palmas pelo rosto, limpando vestígios de sua vergonhosa recaída.

Olhou para elas, achando uma amarga graça ao descobrir que ainda podia fazer aquilo. Ele se ergueu pesarosamente, apoiando-se nas colunas que sustentavam o templo, andando como um ébrio.

Sua mão tocou os macios fios azuis e ondulados do topo da cabeça do grego, este elevou os olhos para si. Uma nota de confusão estava estampada em seu rosto redondo, não passava de um garoto crescido de corpo. Em sua língua materna, francesa, cantarolou uma música infantil. E então acariciou os fios escuros, dizendo:

"Seja um bom menino, seja um bom menino."

- O que é isso? – balbuciou, reconhecendo algumas palavras.

- Os padres costumavam passar a mão em nossas cabeças, dizendo isso e por fim beijando nossas testas. – inclinou-se um pouco, as mãos afastando a franja e seus lábios tocando longamente a testa bronzeada - Antes de dormir.

Antes de deixá-lo.

Milo, ainda sentado no chão o observava se afastar, a capa ondulando nas suas costas. Sua vontade era levantar-se e correr até ele, tomá-lo em seus braços e impedir que fosse. Mas continuou paralisado ali, deixando mais uma vez que se fosse, para longe de si. Deixando que se afastasse das suas mãos que tanto desejavam possuí-lo por completo.

"Você é meu..."

- Eu menti.

O cavaleiro do gelo parou, mantendo-se ainda de costas para ele. Milo soltou o ar com um ofego, não percebera que o prendera dentro do seu pulmão. O outro se virou lentamente, os olhos errantes percorrendo o salão vazio, antes de finalmente pousar no escorpiano.

- Aquilo que impede Hyoga de atingir o sétimo sentido... É verdade que ele me escolheu para ser portador da armadura dourada, porque eu não possuía o mesmo. Desde que me lembro eu sou vazio... – ergueu levemente um dos cantos dos lábios finos, em um triste sorriso – É quase cômico, não sou mais o que era antigamente, afinal...

Ele lhe deu as costas novamente, a voz recomposta, mas ainda um pouco embargada pelos momentos atrás.

- Gostaria de saber o que meu mestre acharia disso. – sussurrou para si mesmo - Não o deixe passar. – disse rapidamente.

Seus passos ecoaram por Escorpião, deixando-o em silêncio, digerindo suas últimas palavras.

"Sim, você sempre mentiu... para si mesmo."

oOo

Havia feito, havia deixado-o passar. Por quê?

Ele havia pedido para que não o deixasse passar, mas não foi capaz de impedir. Aqueles olhos determinados. Eram tão parecidos com os dele, era um digno discípulo de Camus de Aquário, ele nunca falhara.

"Ele é como você. Não aceitou ser salvo, não aceitou se render."

A criança parecia estar lutando por algo verdadeiro. E eles, estavam lutando pelo que? Por uma deusa que nunca viram? Não, eles lutavam pelo Kyoko. Não pelo homem cruel que agora ocupava o posto máximo entre os defensores da deusa, mas pelo homem que ocupara esse posto antes.

Milo fitou ao longe o grande relógio, faltavam apenas três tochas.

Em seu íntimo gritava para que Camus o reconhecesse. Havia prendido o garoto em um esquife de gelo, que nenhum cavaleiro dourado seria capaz de quebrar, esperando que só saísse dele quando estivesse a salvo. Mas algo lhe dizia que não esperava por isso, esperava que Hyoga vencesse sua fraqueza e viesse enfrentá-lo.

Sim, uma parte de Camus clamava por isso, a outra, suplicava que o garoto que criara por seis anos não se ferisse. Havia dois se debatendo dentro dele – o cavaleiro que saiu da Sibéria aos treze anos carregando a armadura sagrada e o homem que se tornara.

oOo

A última luta entre discípulo e mestre acontecera na décima primeira casa, dois cosmos terrivelmente frios se chocaram. Dois cosmos que se anularam.

Milo olhou para o céu, franzindo o cenho. Estava nevando?

Esticou seu braço, um floco tocando a palma de sua mão e se desfazendo.

- Camus...

Nenhuma resposta, nenhum som da sua voz.


CONTINUA

Novembro/2005 – Três anos de "Tempestade"