Até a Eternidade
Cap V
Sesshoumaru caminhava a passos largos pelas ruas, enegrecidas pela noite. Havia esquecido do tempo, enquanto cuidava das crianças. Consultou rapidamente um relógio, e constatou que realmente estava mais tarde do que ele imaginava. Maldição. A coordenadora tinha mesmo que chamá-lo para confirmar sobre um passeio das crianças ao zoológico, sendo que ele iria somente como responsável? Ele nunca conseguiria pegar o supermercado aberto para comprar as coisas que Sango lhe pedira pela manhã.
Passou apressado por uma distinta praça de bancos brancos, que ele conhecia demasiadamente. Não olhou para as árvores que uivavam em reação ao vento gélido da noite. Não olhou para os pássaros que agitaram-se quando seus passos firmes ecoaram na pavimentação.
Não olhou para a forma sentada que fitava a negritude do céu.
- Não vai chegar à tempo. - Disse-lhe uma voz feminina, com uma dose de escárnio.
Ele estacou automaticamente. Suas veias pulsaram energicamente, sua respiração parou e um nó subiu por sua garganta. Seus olhos atônitos fitavam o nada, enquanto ele tentava afirmar em sua sabeça que não podia estar tão louco quanto imaginava. Ele virou-se, de sobressalto, para a praça atrás de si. De pé, com seus olhos castanhos fitando seu rosto pálido, estava ela.
Ela. Que reinava e dominava seus sonhos e pesadelos.
Ela. Que estaria sempre em sua mente, mesmo quando não quisesse.
Ela. Que jamais iria voltar.
Kikyou olhava-o friamente, indiferente à incredulidade do rapaz. Na verdade, parecia satisfazê-la. Como ele era patético. Então o tal 'túnel escuro' em que a vida dele havia entrado era aquele pavor pela sua presença? Patético. Hipócrita. Ele não a queria de volta. Um sorriso sarcástico delineou seus lábios.
- Assustado, Sesshoumaru? - Perguntou, com a voz prazerosa. Era cômico de uma forma estranha como tudo o que ela acreditava apesar de saber ser mentira era realmente mentira.
Sesshoumaru piscou, aproximando-se da jovem. Era como se ele tivesse ido ao espasso e voltasse, ainda trôpego pelo impacto dos pés com a Terra.
- Ki... - Um gemido rouco escapou de sua garganta. Não podia ser ela. Ela estava no banheiro, com os pulsos jorrando sangue, dentro do caixão de madeira escura... Não podia ser ela.
- Não vai chegar à tempo. - Repitiu ela - Não chegou da outra vez. Também não chegará desta.
Ela ignorou a sensação adormecida de coração batendo descompassado. As medonhas sensações que fantasiava ter ao reencontrar-se com aquele par de olhos que lhe fora ruína e salvação eram nada, diante da atual.
- Hmpf, nasceu brindado com o dom do atraso. - Ela disse, com tom sarcástico - É um irresponsável que nunca soube lidar com aquilo que possuía. - Os olhos dela estreitaram-se, e sua voz saiu em tom de acusação - Sempre foi sua a culpa de eu morrer...
Ela sabia que era o mais esperto de se fazer. Ela não jogaria-se nos braços de quem lhe causara tanto sofrimento por benefício próprio. Ela não se rebaixaria a esse ponto, de vender o seu orgulho por nada. Sesshoumaru tinha coração fraco, se ele realmente se sentisse culpado, não seria difícil pedir-lhe a alma.
- É realmente isso que você acha? - Ela surpreendeu-se, ao vê-lo alguns metros diante de si, com o olhar calmo e sério que sempre tinha. - Acha mesmo que a culpa é minha?
Kikyou não hesitou. Se deixasse transparecer seu nervosismo, poria seu orgulho em jogo e isso era algo terminantemente fora de cogitação.
- Não pense que eu sou um anjo, Sesshoumaru. - Ela disse, com malícia. Seus olhos brilharam num vermelho profundo durante alguns instantes, mas Sesshoumaru sequer piscou - Você deveria ter vergonha. Foi a única coisa que eu realmente amei e a última a me deixar.
- Eu tive vergonha. - Ele disse, tranqüilamente - Muita. Sempre me culpei pela sua morte. Sempre, claro, como força de expressão. - Ele riu, apaticamente - Minha primeira reação foi a de culpa. Mas não custou a passar. Eu tinha a consiência de ter amado você durante cada segundo.
Ela ergueu a cabeça. Ele não a comoveria.
- Você levou tudo o que havia de valioso na minha vida. Você me condenou a viver sozinho, afinal, você sabia que eu amaria você para sempre. É esse o seu modo de vida? Obrigar as pessoas a amar você para depois forçá-las a esquecer? Você me confunde. Fala de falso amor, egoísmo, traição e vergonha quando a culpa maior é sua, e você sabe disso. Eu fiquei ao seu lado durante cada milésimo após a descoberta da sua infertilidade, e até sugeri que adotássemos uma criança. Eu fiquei ao seu lado, quando as meninas lhe pediram desculpas pela brincadeira, e você as rejeitava, ferindo-se por isso. Eu estava com você, estudando dia e noite para que suas notas melhorassem, mas você não se esforçou. Eu apoiei você, quando sua avó morreu. Ajudei, estive lá, apoiei. - Ele apertou os olhos, e disse em tom baixo - E você ainda me acusa de não amar você?
Kikyou baixou a cabeça, mordendo os lábios. Ele não poderia ver seus olhos marejando-se à medida que ele falava. Ela sabia que era verdade. Sempre soube que era verdade. Por mais que quisesse negar, ela era mesmo responsável por sua escolha.
- Não era você que não me amava o suficiente, Kikyou? - Ele perguntou, em tom calmo.
Ela sorriu para o chão. As lágrimas já haviam secado. Ela olhou, com um sorriso melancólico no seu rosto de pálpebras baixas, para Sesshoumaru, que permanecia impassível.
- O que você quer? Desculpas? - Ela perguntou, com sarcasmo.
Passaram-se mais alguns segundos se silêncio, até que a voz baixa de Sesshoumaru rompesse a quietude do lugar com um "Não."
Kikyou ouviu os passos de Sesshoumaru aproximando-se dela. Seu coração parou, ao sentir os braços dele envolvendo seu corpo, e o coração dele batendo contra o seu. Ele a havia abraçado, e não dissera nada. A mente de Kikyou latejou uma ordem de 'Saia daí' e 'Não mais uma vez', mas o corpo não obedeceu. Lágrimas tornaram a umedecer seu rosto, criando duas finas linhas que percorriam seu rosto.
- Eu só quero que você saiba disso. - A voz baixa dele soou em seus ouvidos, como um sussurro - O maior medo que eu tinha, era que você morresse sem saber o quanto eu me importava com você. Você mesma disse, eu fui o último a abandonar você, mas você errou. Eu serei o último. - Ele apertou o abraço - Foi difícil aprender a conviver com a sua ausência, mas eu estou tentando. - Já não imploro mais que você volte... Eu só quero que você esteja bem... Onde você estiver...
Um soluço escapou de sua garganta. Ela não estaria bem jamais, se não lhe levasse a alma, mas...
Ela não fugiu do abraço de Sesshoumaru. Era sim, a coisa que ela mais queria. Mais até do que se vingar sem motivo. Ela o amava, e sabia disso. Ela jamais se mataria se não pensasse que ele já não mais permitiria que ela o amasse.
- Você jura... - Ela começou, com a voz baixa e embargada - Que só quer que eu esteja bem?
Ele sorriu, apesar de ela não estar vendo.
- O tempo todo. E sempre. Eu poderia morrer, para ver você sorrindo.
A convicção com que Sesshoumaru afirmara aquilo deu-lhe um nó no peito. Ela poderia pedir-lhe a alma. Poderiam ficar juntos no Inferno para sempre.
Não. Ela fora o ser sórdido que abandonara a vida por um motivo banal. Fora ela quem escolhera desistir da única coisa que um dia lhe valera a pena.
E ele não pagaria por isso.
- Poderia... - Ela afastou-se lentamente do abraço dele e sorriu - Mas não o fará. Por mim, eu imploro que não o faça.
Ele nada disse sobre o pedido da moça.
- Não o farei. Contanto que me prometa que estará bem.
Ela mordeu os lábios, com um sorriso. Era mais uma piada de humor negro que o destino lhe pregava.
- Isso eu não posso...- Disse, com a voz falhando.
Sesshoumaru sorriu. Tocou seu rosto com gentileza.
- Faça o que puder.
Ela retribuiu o sorriso, e aproximou seu rosto do dele da mesma forma que ele fazia. Pronto. Lá estava a vida que ela tanto almejava em sua morte, que era nos braços dele. Não importava mais a solidão, ele estava com ela. Não importava mais os medos e fraquezas, ele estava com ela. Não importava mais o mundo que os dois estavam juntos.
Quando tudo parou.
Ela estranhou, a silentidão à sua volta. As aves já não mais se mexiam, o vento já não mais uivava e sequer as grades do balanço emitiam som. Silêncio. Ele sobressaltou-se, quando o Sesshoumaru diante de si parou, com os olhos vagos. Imóvel como uma estátua.
- Você é muito esperta. - Disse-lhe uma voz atrás de si, firme e dura.
Ela virou-se. Era Lúcifer, e ele não estava sorrindo. Seu olhar sério faiscava em seu rosto, enquanto ela olhava de Sesshoumaru para Lúcifer e vice-versa.
- O que você fez... O que você fez com ele! - Ela perguntou, exasperada.
- Nada, sua estúpida. O tempo parou, somente isso. - Ele respondeu, com rispidez. Ela notou a falta de sarcasmo em sua voz, e isso por alguns instantes a assustou - Não se faça de espertinha comigo, garota. Acha que o trato foi apenas um encontro que promovi para o casal se encontrar? Você deu a sua palavra de trazer a alma do garoto. E não pense que para mim você pode dizer algo e voltar atrás.
Kikyou sentiu seu corpo arrepiar-se de medo, mas misteriosamente, o medo logo passou. Ela havia reencontrado aquele que tanto amava. Ela havia descoberto que ele realmente a amava. Ela já não tinha mais medo de nada.
- Você não pode tocar nele. - A audácia de Kikyou vez os olhos de Lúcifer saltarem com o ultraje, queimando em fúria - Eu sou a única que pode ajudá-lo a ter a alma dele, e eu não o farei. Ele não descerá ao submundo ao qual você faz parte, e se imundificar com a podridão daquele lugar.
- ... O quê?... - Um sorriso doentio surgiu no rosto de Lúcifer, igualando-se ao seu semblante e voz baixa e ameaçadora. - Como você ousa...
- Eu faço parte daquele mundo nojento e sórdido. O sangue azedo e asqueroso característico de lá já ensopou minhas mãos e roupas, eu não tenho como fugir. Por isso, contente-se com somente um brinquedinho, que ele você não terá. - As palavras saíram da boca de Kikyou com um fluência que ela jamais pararia para admirar-se. Ela não tinha mais medo. De nada. Nem de ninguém.
- Como você se atreve, menina...- A voz de Lúcifer saiu grave e monstruosa, Kikyou deu um passo para trás - Comigo não se brinca e agora você vai descobrir por quê!
Kikyou sentiu uma forte vertigem, e o ar novamente parando se circular em seus pulmões. Logo, sentiu sua pele voltar a queimar. Seus pulsos voltarem a jorrar sangue. Não precisava abrir os olhos para saber que estava no Inferno, e muito menos para perceber que estava num lugar muito pior do que o anterior. Mesmo assim, sentia-se aliviada. Sorriu, imaginando o sorriso sincero de Sesshoumaru ao pôr flores em seu túmulo, ao dizer "bom dia" para os amigos, ao brincar com as crianças... Sua memória refrescava-lhe a mente, e ela já não receava mais sofrer.
Num instante, ela parou de sentir calor. Medo. Fome. Dor. Sentiu como se uma delicada brisa viesse-lhe beijar o corpo. Uma paz desigual, que ela jamais havia sentido. Sentiu-se leve, como antes jamais havia se sentido.
Abriu os olhos lentamente, como se estivesse dormindo o tempo todo. Arregalou-se. Não era o Inferno. Era um lugar adornado por nuvens azuis e brancas. Com lindos palácios de arte gótica. Com risadas doces soando em seus ouvidos. Com uma música tranqüila que a acalmava.
- Vejo que acordou. - Disse uma voz branda e doce, que ela assustou-se ao reconhecer.
Virou-se, incrédula, para de cara com uma senhora de cabelos compridos e prateados. Um sorriso delicado nos lábios. Duas asas grandes encolhidas em suas costas.
- Vovó... - Sibilou, incrédula. A mulher continuou sorrindo.
- Você é uma pessoa tão boa, Kikyou... - Respondeu, com um olhar sereno sobre a neta - Ao mesmo tempo que me entristece saber que você precisou passar por coisas tão difícieis para compreender isso, me alegra. Seu espírito é forte como o de muitos não é.
- Eu... - Kikyou olhou para si própria. Havia apenas duas pequenas cicatrizes em seus pulsos. Estava usando um vestido creme preso com uma corda dourada. Tinha em suas costas um par de asas brancas como ela jamais imaginaria ter algum dia. - ... Não entendo, eu...
A avó apontou-lhe o dedo indicador, a indicando a se calar.
- Existem várias portas para o Paraíso. Várias. Mas a maioria poucos encontram. Você, encontrou a maior de todas elas, e que pouquíssimos conseguem ver.
A mulher sorriu mais uma vez, dozendo, com a voz rasteira.
- Sacrifício.A opção da tormenta pelo bálsamo do semelhante.
Kikyou olhou para as pequenas cicatrizes novamente. Um sorriso abriu-se em seu rosto, como há muito não fazia. Sesshoumaru estava bem então. Ele ainda estava na Terra, e com a alma magnífica que somente ele possuía.
- Você é um anjo tão puro quanto todos aqui. - A avó disse, docilmente. - Abra as suas asas, Kikyou. Você é livre agora.
... Pois é, nem eu acredito XD Esse capítulo foi consideravelmente fácil de ser feito. Não por fluir fácil, sinceramente, não tive essa sorte n-n/ Mas por ser simples... Sei lá, tá aqui e pronto 8D
O epílogo tá todo na minha cabeça. Eu já comecei a escrever várias vezes, mas sempre esquecia de salvar e não adiantava de nada 9-9 (baka mor) Mas podem levantar as mãos para os céus, que finalmente eu terminei uma história o/ (trovões)
Thanks pelos reviews n-n
bai bai o/
