Capítulo Oito: O amigo que não pude esquecer

Nayouko corria sem direção pela mata fechada. Não entendia mais nada do que estava acontecendo, nem mesmo do que fazia. A missão que a levara a conhecer aquele grupo era muito importante. Praticamente toda a sua vida fora dedicada a vingar a morte de sua família, destruindo aquele que pensara ser um dos mais cruéis Youkais que já existiram.

Parou à beira de um abismo, onde, abaixo, a floresta se alastrava até onde seus olhos conseguiam enxergar. Muito acima do horizonte verde, a grande Lua Cheia se destacava em meio ao breu do céu. As constelações de estrelas, que muitas vezes guiaram-na de volta ao seu destino, brilhavam com intensidade, tornando a escuridão da noite polvilhada de luzes poéticas e ao mesmo tempo misteriosas.

"Eu gostaria que elas pudessem me guiar daqui para a frente..."

O vento frio passou por seu corpo, zumbindo ao encontrar os troncos das árvores atrás dela, e fazendo com que seu rabo-de-cavalo tremulasse livremente. Ela ergueu a cabeça para o vento, como se o desafiasse a dizer qual era a sua próxima opção.

Olhou outra vez para o horizonte de árvores. Seu lugar não era esse. Nunca fora a tribo de youkais Panteras Negras, nem no vilarejo onde vivera com seu pai. Ela sustentava a esperança de que, destruindo o causador de todas as suas infelicidades, pudesse encontrar algum novo caminho, um motivo pelo qual lutar e sentir-se bem. Mas não. Isso também fora tirado dela, o direito de vingar seus entes. Agora, não era mais InuYasha que estava em sua mira, e sim o maldito Naraku. Ela teria que vencê-lo.

Mas como, se nem sabia onde encontrá-lo?

De uma forma ou de outra, haveria de continuar sua busca com os companheiros de InuYasha. O hanyou também parecia nutrir um profundo ódio pelo mesmo ser que ela procurava. No entanto, na sua busca solitária, ele encontrou o que acreditava ser amigos verdadeiros. Aquela humana que podia detectar os fragmentos da Jóia -pensou em Kagome gritando seus muitos "Oswari!" para o hanyou- a exterminadora de youkais -Sango lutando bravamente com seu Hiraikotsu- o monge pervetido -Miroku usando o Kazaana para proteger seus companheiros e passando a mão em Sango- e o pequeno youkai Shippou. Fora com ele que simpatizara mais, a pequena criança youkai-raposa. Tão pequeno, e já sofrera a perda de seus pais, na luta pelos fragmentos da Jóia de Quatro Almas. Até quando isso iria continuar?

Pessoas que passavam por cima de princípios, afetos ou desafetos, tudo para ter aquele poder amaldiçoado. Ela ajoelhou-se na relva, e curvou-se sobre o próprio corpo, socando a grama com força. Malditos! Malditos, todos aqueles que perseguiam inocentes sem dó nem piedade para seu próprio regozijo! Não se importavam com quantas famílias destruíam, quantos lares eram desfeitos e quantas vidas aniquiladas, apenas se importavam com sua própria fome de poder! Malditos!

Nayouko apertou a grama entre seus dedos até que suas garras deixassem marcas vermelhas na palma de sua mão, lutando consigo mesma para não derramar duas lágrimas, ao lembrar da chacina cometida contra sua tribo. E de Naraku, numa das curvas da trilha florestal, dizendo-lhe que deveria vingar a morte de sua família destruindo o youkai InuYasha. Ele mentira, desde o começo! Engara-lhe durante anos a fio!

-Naraku...Eu juro que você vai me pagar, pelo que fez às Youkais Panteras, ao meu pai e a mim...- ela murmurou, olhando fixamente para a Lua Cheia, como se pudesse levar seu juramento até seu inimigo.

A Lua Cheia inspirava em Nayouko as mais diversas sensações. Podia experimentar sentimentos que em qualquer outra parte do mês consideraria repudiosos a um youkai digno de sua espécie. Experimentava o auge de sua raiva por Naraku, a profunda tristeza de estar sozinha no mundo, apenas com um objetivo incerto em suas mãos. E depois de cumpri-lo? O que faria? Para onde iria?

Olhou novamente para a Lua. Desejava que alguém a orientasse. Mas, desde que fora viver com o mestre de Richard, num templo na montanha para concluir seu treinamento, logo após a morte de seu pai, ela não era orientada por ninguém. Assim como seu pai avisara, chegaria uma hora em que ela precisaria seguir seus próprios instintos.

No templo, Richard e ela recebiam o mesmo tipo de treinamento. Eram horas do dia usadas até a exaustão, para que os alunos do mestre Ni-Shai aprendessem as complexidades das artes marciais. Foram seis anos de duras batalhas simuladas e controle do seu próprio ser. Claro que nas aulas em que o sansei ensinava como controlar seu próprio temperamento, canalizando-o para a concentração na batalha, Nayouko sempre tinha de repetir mais de duas vezes o exercício, para que chegasse no ponto de concentração que o mestre queria. Ficar sentada de pernas cruzadas, com os braços esticados, o dedo polegar e o indicador formando um círculo e ainda murmurando o mantra indicado, não era muito a sua área. Ela sempre se distraía, movendo a cauda de um lado para o outro e fazendo-a envolver seu pescoço, provocando cosquinhas que a faziam rir. Pena que isso desconcentrava tanto o sansei quanto Richard, que eram obrigados a parar sua meditação para repreender a hanyou. Ela, emburrada, forçava a sua mente a se concentrar, o que raramente obtinha resultados.

Mas eram anos felizes. O sansei muitas vezes concedia uma ou duas horas livres, para que seu pupilos pudessem aproveitar quando a neve caía na montanha, e até ele mesmo participava das guerras de bolas de neve que ela e Richard faziam. Nessas guerras, ela sempre levava a melhor, por que, além de atacar com mais velocidade, podia usar sua cauda para espatifar as bolas que lhe eram lançadas.

Nayouko, então, lembrou do dia em que seu treinamento terminara. Seu sansei estava muito, muito velho. Apesar de toda a sua vigoridade, não era páreo para as muitas décadas de vida que já enfrentara. Certo dia, em que ele estava de cama, tossindo muito, ordenara-lhe que seguisse seu caminho, em busca de seu objetivo. Nayouko relutara. Ali fora o único lugar onde se sentira bem, isso incluindo as Colinas da Lua e o vilarejo onde vivera. Não queria ir embora, mesmo sabendo a que viera. Na verdade, Ni-Shai não queria que sua aluna o visse deixar este mundo. Aquela menina já sofrera muito, pensava. Não era necessário que sofresse pela morte de mais um ente. Era preferível, antes, que a deixasse ir. Sua mórbida perspectiva de vida o entristecia, mas não podia fazer nada para mudar a decisão da garota. Então, tendo como base que seu treinamento já estava completo -a hanyou lutava melhor que todos os seus antigos alunos, desenvolvera tal força e habilidade inigualáveis, a não ser talvez pelo seu sobrinho-aluno, Richard- decidiu que era a hora dela ir.

Flashback:

"Mas...Mas e o senhor, sansei? E Richard?" ela perguntava, em busca de algo que pudesse mantê-la ali.

-Richard ficará aqui comigo, Nayouko, até que eu me cure desta doença. E logo que isso acontecer, mandarei que vá atrás de você -um breve acesso de tosse o interrompeu- Ah... Vá, Nayouko. Cumpra seu objetivo. Mas lembre-se: sempre haverão duas opções. Vocês sempre terá duas escolhas na vida, Nayouko. Basta que saiba escolher a melhor para você e os que quiser bem.

-Sim -a hanyou olhava tristemente para seu mestre. Não chorava, nem demonstrava nenhuma grande emoção. Apenas deixava a tristeza esvair-se por seu olhar impassível.

-Vá. E que Buda a proteja -foi a última frase que escutou de Ni-Shai, antes que ela se levantasse e caminhasse para a porta do templo, ainda com o olhar fixo em seu sansei e Richard.

Ela saiu correndo, para fora do templo, para fora das vistas daquelas pessoas que mais estimava no mundo. Para fora do único lugar onde se sentira bem até então, onde encontrara migalhas da paz que nunca tivera antes. E então, quando já estava a dez metros do templo, correndo sobre a neve da montanha, Richard veio atrás dela.

-NAYOUKO! -ele, antes um menino magrinho e tímido, e que agora evoluíra para um rapaz definido, forte e corajoso, viera atrás dela, o mais rápido que podia, com seus cabelos castanhos-claros e quase louros voando ao vento, seu quimono branco com dois bordados -um amarelo e um azul- de cada lado das longas mangas, sendo salpicados pela neve que caía, calma e apaziguadora. Impassível à paz do ambiente, ele continuava a correr e chamar -NAYOUKO! Espere!

Nayouko parou, a cinco metros dele, e virou-se devagar.

-Richard... O que você está fazendo aqui fora? Deveria estar com o sansei! -ela dissera. Não o encarava.

-Eu achei que poderia te alcançar -ele parou perto dela, e, depois de um momento de silêncio, pôs a mão na parte interna de seu quimono. De lá, tirou um pingente no formato de uma lua minguante prateda de finos ornamentos e minúsculas pedrinhas de rubi, preso a uma linha trançada de lã verde -E te dar isto -sem reparar no olhar subitamente surpreso da menina, continuou -Fui eu mesmo que forjei, há algum tempo atrás... Esperava uma oportunidade para dá-lo a você, mas... -ele parou a frase, oferecendo o pingente na palma de sua mão para a garota.

-Ruchard...Eu...! -ela dissera, um tanto sem palavras. Nunca ninguém havia lhe dado um presente desses. Nunca, em toda a sua vida.

Antes que ela pegasse o colar, ele abriu o cordão de linha verde com as mãos, e colocou-o em seu pescoço, afastando-se para ver o efeito causado.

Nayouko segurou o pingente já em seu pescoço com a ponta dos dedos, e, escolhendo bem as palavras, dissera:

-Eu vou sempre guardá-lo comigo. -ela finalmente erguera o rosto para encará-lo. O rapaz a olhava, como se quisesse guardar cada detalhe dela em sua mente. Ela sentiu que o olhava da mesma forma.

-Nayouko, eu...- de novo, perdera as palavras. E, na expressão de ansiedade que a hanyou fizera para saber o que ele diria, Richard decidiu poupar palavras. Pôs as mãos nos lados do corpo da garota, e puxou-a para seus braços.

Aquele gesto pegou a hanyou interamente de surpresa. Pela segunda vez em muito tempo, a sua primeira reação foi ficar mais aturdida do que comovida. Ela sentiu o rapaz envolver-lhe o corpo com os braços de uma forma gentil, mas firme, como se não quisesse deixá-la ir, e apoiar o queixo no topo de sua cabeça. Ela não sabia como deveria reagir. Apenas sentiu que encostava a cabeça no peito de Richard, e que assim poderia ficar por muito, muito tempo, sem que se importasse com nada.

Ficaram assim, sentindo o vento gelado tocar levemente seus corpos, e a neve caindo muito vagarosamente, acalmando-lhes o coração.

-Nayouko, nós vamos voltar a nos ver. Eu prometo -ele disse, baixinho, ainda abraçado à hanyou. Então, a afastou levemente pelos ombros. Nayouko sentiu o choque do frio que fazia ao redor deles, quando se afastou do calor do abraço de Richard. Levantou a cabeça, apenas para ligar sua mente aos profundos olhos acinzentados do rapaz. Não poderia duvidar de sua promessa enquanto se atesse àqueles olhos gentis e intensos. E que lhe davam a certeza de que tudo iria terminar bem.

Ela começou a se afastar lentamente dele, ainda sem deixar de encará-lo. Finalmente, quando sentiu que bons metros os separavam, virou as costas e começou a correr sem destino, sem nem olhar para trás, para ver que Richard ainda a observava, até que seus olhos não pudessem mais alcançar sua querida hanyou.

Fim do flashback.

As mágoas no coração de Nayouko se acentuaram quando ela lembrou da despedida de Richard. Procurava não pensar naquilo constantemente, porque só fazia colocar mais dúvidas na sua cabeça: Por quê sempre sentia aquela pontada de dor quando lembrava de Richard? Que nome, pelos deuses, que nome aquilo tinha? Aquela dor fina, porém que lacerava aos poucos o corredor mais oculto do seu coração?

Ela levantou-se, e segurou o pingente em forma de Lua prateada que agora pendia de seu pescoço. Os pequeninos fragmentos de rubi brilhavam na luz da Lua, iluminando o pingente de um jeito mágico.

Ocorreu a Nayouko que o brilho dos rubis pareciam estrelas-cadentes, iluminando a Meia-Lua prateada. Ela gostou da comparação. Voltou a olhar a Grande Lua, que se distendia pelo horizonte de árvores. Já haviam lhe contado: rezava uma lenda que, se um pedido fosse feito à luz de uma estrela cadente, seja lá qual fosse, seria realizado.

Em dúvida se estaria traindo seus princípios de youkai, ela levantou o rosto e olhou mais atentamente o breu do céu. Pontos brancos e alaranjados indicavam a presença de muitas estrelas, mas nenhuma que aparentasse cair. Todas estavam muito firmes no espaço infinito.

Nayouko estava prestes a voltar seu rosto, julgando-se uma idiota por acreditar nem que por um segundo numa lenda de humanos, quando, súbito...Ali! Passando veloz pelo branco imaculado da Lua, e ficando assim em destaque; ali estava uma estrela cadente, traçando seu risco dourado e vivo pela noite.

Nayouko apressou-se em abaixar a cabeça e contrair os olhos o mais que pôde, esperando assim que seu desejo ganhasse força. Quando abriu os olhos, um tanto embaçados pela pressão, viu que o dourado da estrela já havia sumido do céu. Agora só faltava esperar que se realizasse.

Sentindo-se um pouquinho melhor, ela levantou, disposta a voltar para a clareira e ver que destino haviam tomado InuYasha e os outros. Quando começou a andar em direção à trilha que ela havia aberto na floresta, sua audição aguçada avisou que não estava sozinha.

Ela virou a cabeça de um lado para o outro, procurando detectar de onde viera o som. O vento não parecia querer ajudar; as folhas farfalhavam demais para que o mais simples ruído entre os arbustos pudesse ser ouvido. As brisas noturnas finalmente colocaram-se ao seu favor: perscrutando todo centímetro do lugar com os olhos, silenciosamente; ela pôde sentir o cheiro de seu acompanhante. Entretanto, Nayouko distraiu-se com aquela prova de que não estava sozinha: por incrível que pareça, aquele cheiro lhe era familiar. De alguma forma, ela já tinha...

Virando-se mais do que a rotação natural de seu pescoço podia suportar, ela viu o vulto da pessoa que menos esperava esquivar-se por entre as árvores, ágil e oculto nas sombras. Mas não tão oculto que ela não pudesse entender de quem se tratava.

"...Ah, não...Não pode ser!"

Ele viera de longe. De tão longe quanto poderia lembrar-se já ter ido em qualquer momento de sua vida. Enfrentara a fúria das tempestuosas noites de neve na direção Ushitora de seu lar. Vento, neve, chuva, "Raios e Trovões", como costumava dizer seu mestre, de ocasião. Mas resistira. E nada poderia ser comparado à sensação de que sobrevivera a tudo aquilo para que afinal pudesse cumprir o seu destino. O seu objetivo.

Sabia que ela poderia estar mais longe do que ele suportaria caminhar. Que poderia já ter cumprido a sua missão, e nunca mais viesse a vê-la. Sabia que poderia até estar morta. Mas persistira. Se havia uma coisa que aprendera e bem, foi que a Esperança é a última guerreira a se deixar morrer nas batalhas do corpo e da mente. Enfrenta todos os obstáculos, tudo o que lhe for proposto, e mesmo assim, mantêm-se de pé, pronta e entusiasmada com o próximo embate.

Era assim que ele se sentia. Não, a esperança que tinha dentro de si próprio não havia sido apagada. Ainda estava ali, mantendo-o vivo. E manteria os dois, se fosse preciso.

Quando saiu do templo, semanas depois que ela se fora; ainda não havia parado para pensar no que isso significava. Sempre vivera com o tio-sansei, desde que seu pai, morto na guerra, e sua mãe, prisioneira dos adversários de seu pai, se foram. Ele não se atormentava com isso. Seus treinamentos lhe ensinaram a manter a calma nos momentos mais difíceis e conturbados, e a ver o mundo da forma mais pacífica o possível. A guerra fora uma grande desgraça, a todos que conhecia. Deixara seqüelas muito grandes em pessoas inocentes. Vítimas que muitas vezes nem sabiam do que se tratava. E soldados, que lutavam pela integridade de sua família, e a desgraça da família de seu próximo. Pois o que era o dito "adversário", senão um próximo? Aos olhos dos grandes Deuses, não deveriam ser todos unidos? Por que combatiam entre si, então? Pessoas que largavam suas família ao relento, para combaterem por uma causa maior...Maior do que sua prórpia compreensão. Maior até, talvez, do que a própria compreensão de quem iniciava tudo aquilo.

Era uma grande pena que seu pai tivesse sido um desses combatentes. Sentia, pois fora essa a causa de sua morte e da morte de sua mãe. Por outro lado, se não fosse esse trágico acontecimento, ele talvez nunca viesse a ter conhecido seu sansei, e provavelmente seu destino seria tornar-se soldado para seguir o exemplo de seu pai, e morresse da mesma forma que este.

Não. Ele aprendera, com o tempo, a compreender o que as pessoas, em suas vidas banais, não compreendiam. O conhecimento de seu tio lhe seria mais útil do que qualquer espada ou arma que colocassem nas suas mãos.

E até nisso se desenvolvera. Aliando a mente ao corpo, descobrira como manejar a espada com perfeição. Poderia ter escolhido entre o Nunchaco, a Espada de duas lâminas, a Espada de três lâminas ou mesmo o bastão de bambu, como seu mestre. Dentre todas as opções, a que lhe pareceu mais fascinante foi mesmo a Espada. Mas não uma comum, dessas que qualquer espadachim iniciante poderia fazer uso, com lâmina simples, punho sem qualquer adorno e bainha de um pano mais resistente que lã. Não. Não era uma espada que o fascinava, e sim A Espada, aquela que seu mestre detinha na parede do quarto de orações, desde que se conhecia por gente: tinha a lâmina do prata mais reluzente que conseguia imaginar, aparentando nunca ter sido maculada por sangue de outrem... O suporte para o punho era, ao invés de horizontal e dourado como todas as outras, no formato de uma estrela com seis pontas, translúcida como cristal, porém resistente como nenhuma outra pedra consegue ser: veio a informar-se, depois, que se tratava de diamante.

O punho era vermelho como fogo e, em letras prateadas, que pareciam terem sudo riscadas ali muitos e muitos anos antes, estavam as inscrições. O que significavam, ele nunca viera a saber. Achava que a caligrafia pertencesse a algum samurai antigo, que outrora teve a chance de manejar a arma. Mas, sem dúvida, com ou sem inscrições, aquela era a espada mais bela que ele já vira na vida.

Seu interesse pela espada o levou à mais profunda dedicação aos treinos e combates. Estudou cada passo que seu sansei ensinava. Aprimorou-se de tal forma que até ele mesmo surpreendia-se de que pudesse executar aqueles golpes e manejos. Enfim, todo esse esforço foi recompensado, quando, em suas últimas horas de vida, foi presenteado pelo sansei com a tão cobiçada espada.

E foi com ela que ele prosseguiu caminho.

Richard parou a certo ponto da trilha da floresta para apalpar a espada, que pendia da sua cintura. Ela ainda estava ali, irradiando força e esperança. Pensou em quanto tempo já tinha se passado desde que começara sua jornada. Um ano inteiro... Um ano inteiro de busca. Um ano inteiro dependendo de si mesmo. E um ano inteiro sem encontrá-la.

Ao pensar que ainda não havia alcançado seu objetivo, Richard continuou a caminhar. A noite estava quente, a brisa saturada de calor soprava em seus cabelos claros como trigo novo. Apesar de ser acostumado com o frio do templo, e daquilo o estar desagradando um pouco, viu que a lua estava clara o suficiente para iluminar o restante da trilha, então tornaria a caminhar. Contrariando o calor, ele ajeitou em torno de si o manto escuro que não impedia seus cabelos de agitar-se ao vento. Ouviu boatos de que um meio-youkai passara por ali, acompanhado de duas humanas, um monge e um filhote de youkai raposa. Richard pensou que, onde o hanyou chamado InuYasha estivesse, Nayouko também estaria. Ele era o seu objetivo.

Olhou mais atentamente para a lua. Uma idéia surgiu-lhe na cabeça, que dia exatamente seria hoje? Se era Lua cheia, e se estávam no final do verão...Mais precisamente no início do outono, então hoje era...

O segundo dia do mês. Segundo dia de Lua cheia. O dia em que a Lua desaparece completamente dos céus das Colinas da Lua. O dia em que Nayouko nascera, juntamente com o único dia do mês em que ela seria totalmente humana.

Richard, alertado por essa lembrança, escalou a mais alta árvore que tinha ao seu redor. Sobrepondo-se ao ventos quentes que naquela altura eram mais fortes, perscrutou todo o ambiente ao seu redor, procurando, procurando incessantemente por qualquer indício de pertubação que pudesse indicar-lhe a localização de Nayouko. Mas nada via. Olhou por toda parte, até onde seus olhos podiam alcançar, porém nada lhe indicava de um ou uma hanyou pudessem ter estado naquela região. A noite reinava calma e serena naquele mar de árvores, apenas interrompida pelo declínio de terra que dava num penhasco. Era a parte mais vazia daquela região, daonde se podia ver todo o esplendor da Lua. E uma figura pequena e singela, vestida de preto, justo ali contemplava o luar. Por Kami! Seria possível?

Nayouko passou um momento inteiro parada. Um momento inteiro livre de toda a tensão que nutrira naqueles últimos segundos. Se fosse mesmo...Se fosse mesmo quem estava pensando, significaria que essa pessoa não estava morta. O pensamento de que tal pessoa não havia definhado com o passar do tempo a aliviou profundamente, e por um segundo pôde respirar em paz. Mas essa curta segurança dissipou-se como o vento naquele instante. Ela já fora enganada uma vez, mas não seria de novo. Conhecia um ser que podia tomar a forma de outros seres, e não se deixaria lograr outra vez por essa vil criatura.

Foi com base neste motivo que Nayouko disparou na direção do vulto com suas garras já prontas. Seu faro não a enganava. Mesmo pensando diferente, ela decidiu-se que Naraku poderia muito bem ocultar seu podre cheiro por um de sua memória.

Consciente disso, ela atacou:

-SAIA AGORA DAÍ, COVARDE! LÂMINAS EXTERMINADORAS!

As Lâminas apenas retalharam em cinco pedaços o tronco de uma das árvores. Ele conseguira se desviar!

-Raios...Venha aqui me enfrentar! Diga, quem é você? -ela falava, enquanto saltou para cima do vulto, desferindo-o um chute. Ele usou a bainha azul-marinho da espada para defender-se e amparar o golpe.

O cheiro agora era mais intenso. Não podia ser. Ou podia?

Querendo afastar qualquer tipo de especulações quanto a isso, ela continuou atacando, e o ser, defendendo-se. Não passavam disso. Ela não podia ver seu rosto, estava coberto por um capuz que, por mais que tentasse, não caía durante a luta. O combate prosseguia numa velocidade impressionante. Sua força extra originada do sangue youkai e todo aquele treinamento ainda nítido na sua mente a ajudavam bastante, mas não tanto que o adversário não suportasse e bem seus poderosos ataques. Isso, e mais o alarmante sinal de que conhecia os movimentos de defesa do sujeito, a deixaram furiosa. Intensificou os golpes, e como o homem apenas se defendesse, eles recuaram floresta adentro, sem se importar de quantos galhos eram partidos. "Ele é rápido", pensou Nayouko, enquanto pulava numa árvore mais alta para depois tornar atacar o estranho. "Mas eu posso ser mais!"

Ela surpreendeu-o quando saltou para trás dele, depois de ter pulado mais uma vez numa árvore. Ela desferiu outro chute giratório, mirando o rosto de quem quer que fosse. Em contra-ataque, e aparentemente cansado daquela luta sem nexo, o desconhecido agarrou o seu pé, e, numa rápida inversão de posições, a jogou no chão, prendeu seus pulsos com mãos fortes e simplesmente a mirou.

E nesse exato instante o capuz negro caiu, revelando quem se escondia sob ele.

Nayouko poderia tê-lo chutado para longe. Poderia ter partido o rosto daquele sujeito ao meio com apenas um único golpe. Poderia fazê-lo se arrepender da ousadia de enfrentar uma meia-youkai, poderia ter feito tudo isso, se não visse um vislumbre daqueles olhos cinzentos que ela conhecia tão bem. Neste instante, ele não era mais o inimigo, nem qualquer outra pessoa adversa, porque tinha ninguém mais naquele mundo poderia olhá-la da mesma forma como aqueles olhos cinzentos faziam. Uma única pessoa fazia aquilo.

-Richard?

-Nayouko...

As palavras saíram de chofre, ninguém sabia se deveriam pronuciá-las. Apenas foi mais forte que a vontade de controlá-las, e a identificação foi completa.

Richard continuou a encarar a hanyou. Seu rosto não mudara muito desde a última vez que a vira. Continuava com os mesmo traços angelicais, a mesma auréola de cabelos negros e rebeldes a enfeitar-lhe a fronte. Os olhos cor de violetas transmitiam as mais misteriosas sensações que um humano poderia sentir...Mas, naquele momento, estavam abertos numa surpresa atordoada, tanto quanto a sua. Sem dúvida, um ano só servira para tornar Nayouko mais bela, naquela sua singularidade que misturava feições humanas e youkais. Ninguém poderia dizer que aquela fascinante garota escondia um vulcão dentro de si, entrando em erupção com freqüência.

Ele deixou que o capuz deslizasse completamente por seus cabelos, dando a Nayouko a certeza de quem era.

Os dois ficaram assim, sem reação, por um tempo que não puderam determinar. Como num sonho, apenas se encaravam, sem dizer palavra até que uma nuvem passou enconbrindo a Lua, e quando a luz que iluminava os dois rostos deu lugar à escuridão por um instante, Nayouko foi a primeira a acordar.

Sem desviar dos olhos cinzentos que a encaravam, fixos, ela disse:

-Richard...

-Hum?

-Sai de cima de mim.

-Ah!

O rapaz, mesmo em seu porte de guerreiro, pôs-se de pé, largando dos pulsos da hanyou. Ele estendeu a mão para que ela se levantasse, o que ela aceitou sem ligar para seu conceito de independência. Mantendo um bom espaço de um metro e meio separando-a do rapaz, ela manteve seus olhos nos pulsos, que massageava para aliviar a dormência.

-Ahh..Pronto -disse ela, movendo o pescoço de um lado para o outro. Indiferente, colocou a mão na nuca enquanto continuava o exercício de descontração -Foi uma boa luta -falou, parando por completo o movimento, mas ainda de olhos fechados -Mas agora...POR QUE FOI QUE VOCÊ NÃO ME AVISOU QUEM ERA?

Abrindo os olhos, Nayouko deixou escapar a chama crescente que havia sob eles. Richard viu aqueles olhos lilases tomarem vida, uma vida tão pulsante e furiosa que não pôde evitar um sorriso. Essa sim era a Nayouko que conhecia.

Ela avançou devagar para ele, em longos passos, enquanto gritava: "Por que não me avisou que era você? Eu estava pensando que ela o Naraku! Seu idiota! Aposto que quis me pegar desprevinida, você sempre faz isso, não entendo por quê, desde que não passava de um garoto com um pedaço de bambu na mão você sempre quis me surpreender dessa forma vil, seu sórdido, seu, seu..."

Nayouko provavelmente teria continuado sua enxurrada de palavras se Richard não a tivesse interrompido, pegando uma de suas mãos que desfilavam em gestos largos e puxando-a para seus braços.

-Também fiquei com saudades -murmurou ele, apoiando com a mão a cabeça de Nayouko em seu peito. Sentiu a hanyou aconchegar-se em seus braços, e envonver-lhe as costas com as mãos tímidas.

-Eu achei que tivesse morrido... -ela murmurou em resposta, sentindo-se aliviada o suficiente para fechar os olhos e apenas sentir a fragrância de Richard -Achei que...

-Estou aqui agora -ele disse, baixinho. -Com você.

Aquele simples gesto foi o suficiente para deixá-los em silêncio, abraçando a segurança que dividiam naquele momento, o alívio pela pessoa que lhes era mais cara no mundo estar viva.

Continua...

N/A: Enfim, chegou o capítulo 8 ! \o\ \o/o/ Ufa, demorou mas chegou! Achei que iria ficar empacada nesta parte até o final do ano, mas... A luz se fez! Andei lendo Nora Roberts novamente, e os romances dessa monstra da literatura norte-americana soltam a criatividade de qualquer um! Li Doce Vingança... Gente, muito bom, altamente recomendável para quem gosta de romances com uma pitada de aventura e suspense. Estão incluídos nessa lista O Legado dos Donovan e Três Destinos. Meu próximo alvo agora é Nudez Mortal, da mesma autora, que escreveu sobre o pseudônimo de J.D Robb. É romance policial, estou me viciando nisso!

Abraços da Carol S.M. )

Vocabulário:

Kami:Deus

Próximo capítulo: Retomando caminhos