Capítulo V – Préparations.

A neblina estava cerrada durante todo o caminho da carruagem que sacudia com o terreno descontínuo. Já estavam chegando e não foi preciso observar muito para ver as enormes construções, incluindo um castelo imenso, que o esperava. Uma chuva fininha e gelada escorria pelos vidros, dando um toque mais sombrio aos labirintos que guardavam a frente. Mikael o fitava, evitando a todo custo as duas pedras de gelo em sua frente. Parecia não ter fim, aquela coisa, trepadeiras escondendo qualquer resquício de pedras que poderia ter sido a base, dando um toque ainda mais vivo aquilo tudo, estranhamente vivo. O menino podia sentir o labirinto respirar. Foi tirado de seus devaneios quando sentiu parar a carruagem e uma voz com forte sotaque escocês abrir a porta. Cumprimentos, apresentações, algo banal sobre política e já estava no hall da construção secundária, os dormitórios, como o escocês chamava.

- O senhor ficará no quarto de sempre, mas ainda não sei o que fazer com isso. – meneou a cabeça em direção ao pequeno que estava parado em frente à escada de pedra bruta, sem se dar o trabalho de diminuir a voz rouca.

- Ficará no quarto contíguo ao meu. Não se preocupe, não dará trabalho, Nanny cuidará dele.

- Ela estará um pouco ocupada com as outras coisas, mas acho que dá um jeito... Aquela adora crianças, meu velho... – uma risadinha abafada dos dois.

- Não tanto quanto a maioria dos hóspedes, Elric... – Malfoy tossiu para disfarçar o sorriso e se dirigiu para Mikael. – Highwind, venha, vamos para o quarto.

Ordem obedecida, os dois subiram, deixando o criado para seus afazeres. Viraram algumas esquinas, a mansão parecia ser bem mais recente que o castelo, as paredes em um tom de creme chapado, com alguns quadros à moda trouxa e lamparinas, o carpete marrom felpudo silenciando os passos dos dois, mas o mais curioso eram as portas. Cada uma delas era enfeitada com o desenho de um torturador ou assassino famoso, a maioria da comunidade bruxa, mas Mikael conseguiu ler "Báthory" e "...the Ripper" enquanto andava. Lúcio parou em frente a um dos últimos quartos do 3º corredor, pegando um molho de chaves da maleta. "Vlad Tepes", em caligrafia vinho. Queria perguntar o porque dele, um dos mais orgulhosos pure blood que já havia conhecido, tinha a porta do quarto enfeitada com o desenho de um sanguinário trouxa, mas foi empurrado para dentro do cômodo e sentiu seu queixo cair. As paredes eram de pedra bruta, com numerosas tapeçarias turcas pendendo do teto em vários tons de vermelho e dourado, penduradas desorganizadamente pelos metros e metros de pedra. O piso era de um tipo de carpete branco e felpudo, provavelmente pele de animal. À pouca luz, o menino conseguia distinguir vários incensários, acomodados em escrivaninhas de madeira muito escura, todos adornados com desenhos intricados, provavelmente uma fortuna em ouro. Uma enorme cama de dossel, fechada por cortinas de veludo vinho escuras, enfeitadas com bordado dourado luxuoso. Quatro divãs e vários récamieres pelo cômodo, todos forrados de veludo e com as partes em metal dourado, maciço e fosco, muito bem detalhados. Algumas mesinhas baixas, com objetos antigos em sua maioria da cor dos incensários. As mesas de cabeceiras faziam um conjunto com a cama e o enorme armário em um canto. Havia também um biombo de madeira e seda pintada com motivos chineses. As grandes janelas eram totalmente encobertas por cortinas de um tecido negro muito pesado. A fumaça de incenso era espessa e tomava conta do local, deixando o garoto mais tonto do que já estava, vindo inclusive de uma enorme lareira acomodada na única parte da parede nua. Lúcio deixou a maleta na cama e pegou Mikael pelo ombro, o guiando até uma parte da parede, perto da cama, onde havia um tapete particularmente grande.

- Quero que preste atenção, sim, Highwind? – ante a afirmação meio assustada, continuou, tocando de leve uma das lamparinas a óleo da mesinha de cabeceira. – A porta de seu quarto só abrirá deste jeito. – e torceu o regulador até a luz quase se apagar. O enorme pedaço de tecido turco se enrolou, revelando um tipo de porta de metal, sem qualquer tipo de maçaneta ou fechadura. – Mina. – e o metal derreteu, parecendo ser absorvido pelo carpete fofo. – Esta é a senha de seu quarto. Até aqui, fui claro? "timo. Nanny cuidará de você e lhe dará as instruções. A contra-senha é 'Sing, para refazer a porta. Até mais. – falou a última frase empurrando o garoto contra o portal, o metal começando a se formar debaixo dos pés. Os olhos azul-acinzentados percorreram o cômodo abobadado, as paredes eram nuas, a não ser por duas janelas compridas, com vitrais em motivos religiosos. Uma cama também de dossel, em cores frias, armário, baú e escrivaninha de madeira quase negra de tão escura e uma senhora de sorriso tão simpático que fazia toda aquela atmosfera parecer um poema barroco. Era baixa, um pouco cheinha, com a pele morena marcada pela idade, os cabelos alvos trançados meticulosamente, usando um vestido negro de mangas compridas e decote fechado, que acabavam em uma barra de renda branca, roçando os tornozelos cobertos por botas baixas. Ela suspirou ainda sorrindo, se aproximando.

- Mikael Highwind? – a voz meiga e quase sussurrada era quase como música aos ouvidos do menino.

- S-sim, senhora Nanny?

- Por favor, somente Nanny. Terá de chamar muita gente de senhora nesta semana, então descanse um pouco, criança. Eu cuidarei de você enquanto estiver aqui, tudo bem? – era um pouco difícil entender o sotaque baixo e gentil da senhora. Não era forte como escocês e sim algo pausado e contido, como se tivesse algo na garganta que não pudesse falar, e isso há muitos anos. Séculos de escravidão. – Vamos sente-se e lhe trarei chá e então conversaremos com calma. – sorriu, apoiando levemente a mão no ombro do garoto que prontamente atendeu o pedido enquanto a via fazer o sinal do crucifixo em uma pedra gasta. Outra passagem secreta que se desfez bem mais rápido que a porta dourada.

Se tivesse algum relógio no cômodo, ele marcaria exatas 5 horas da tarde quando Nanny voltou, trazendo uma bandeja e o mesmo sorriso calmo. Enquanto o menino tomava o chá devagar, a serva o explicava as regras do castelo e de tratamento. Aos poucos Mikael foi entendendo o que se passava no chateau, longe de tudo, inclusive e especialmente das leis, sejam elas trouxas ou bruxas. A cada palavra que a senhora bondosa falava, seus pensamentos iam analisando e reforçando uma conclusão nada confortável.

- Meu filho, agora eu preciso lhe perguntar algo muito sério. Você acredita em Deus? – a voz de Nanny reboou em sua mente. Desespero.

- Então é ele? Jurava que Malfoy iria escolher alguém mais velho desta vez... – palavras e comentários sem importância, em um tom que Mikael teria de se acostumar. As empregadas o vestiam com o mesmo cuidado e atenção que um ourives tinha ao trabalhar com suas jóias, o tratando do mesmo modo. Objeto, precioso, mas ainda assim apenas um objeto. Levantaram seu braço para enfiar-lhe luvas de um material que parecia plástico, preto e brilhante, enquanto uma das aias fechava a cinta-liga de renda vinho. Fizeram vestir um short de vinil também, por cima da lingerie e prenderam no cós dele uma saia de tafetá preta e vinho, artisticamente rasgada, sendo que na frente batia bem no início das coxas e atrás a cauda se arrastava por mais 30 centímetros pelo chão. Hora de amarrar o espartilho. Uma peça quase rígida, coberta do mesmo tecido do short, com uma fileira de fivelas horizontais, que deixava as costas quase nuas, por onde se trançava uma fita de cetim vinho. Prontas as roupas, Mikael sentou para fazerem o penteado. Após alguma discussão, uma aia prendeu seus cabelos com um tipo de coroa prateada, em um coque alto, deixando alguns cachos emoldurarem seu rosto. Alguém bateu a porta, confiscando o garoto.

O menino acompanhou-o, até um dos inúmeros quartos do 5º andar, onde foi deixado. A porta bateu.

- Hora dos sapatos de cristal, Cinderela... – murmurou uma voz baixa e fria. Um rapaz de longos cabelos ruivos estava de costas, como que preparando alguma coisa. – Sabe... – disse, se virando de frente para o menino. Feições delicadas, olhos de um verde-azulado escuro que contribuíam para a frieza das palavras. – Você tem realmente muita sorte de ter conhecido a pessoa que me implorou para não te machucar muito. Do contrário... – e se aproximou de Mikael com algo que parecia ser feito de vinil nas mãos longas e enluvadas de branco.

- Alguém... pediu isso? – voz fraca, olhando para o objeto que acabara de ser posto no chão. Botas.

- Se você não conhecesse Ganymede, depois destas festas não poderia andar por alguns meses. – Pegou a varinha num dos bolsos do jaleco imaculadamente branco. – Accio poção! – uma garrafinha que continha um líquido transparente passou das mãos do ruivo para as de Mikael. – Beba isso.

Se não soubesse que era uma poção, o menino teria pensado que era água, mas, depois de alguns segundos, começou a sentir uma dormência nas pernas. Depois de um minuto, não as sentia mais.

- Por..?

- Accio agulha e linha.

- que você..?

Um suspiro do ruivo, enquanto ajeitava a bota na perna esquerda do moreno. Era de cano até o meio das coxas, com uma grande fenda que se afinava mais e parava no tornozelo. Plataformas de quase dez centímetros, salto agulha.

- Tente não olhar... apesar da poção ser forte, ela não tira toda a sensibilidade.

Mikael entendeu tudo quando viu Blood segurar a parte esquerda do vinil junto a sua pele e virou o rosto, fechando muito bem os olhos. Uma fisgada na coxa esquerda. As luvas do ruivo se mancharam de sangue, enquanto ele costurava, lenta e precisamente, o vinil na pele de Mikael.

Um, dois, sete pontos. Sangue pingando no chão de mármore. Dentes alvos pressionando os lábios. Dez, onze, dor maior, joelho, treze, quatorze. Uma pequena poça vermelha. Lágrimas. Quinze, dezesseis, dezessete. Para, lava as luvas já escorregadias de sangue. Recomeça. Um, dois. Cristal manchado de escarlate. Língua pelos lábios finos do médico-fada. Sete, nove. Mãos de vinil segurando forte a cadeira. "Quase lá". Treze, quatorze, quinze. Mais dois pontos e íris azuis fitam o teto. Ainda falta mais um sapatinho de cristal, Cinderela.