Capítulo V

Devaneios Deprimentes

-Por quê? –A pequena finalmente balbuciou, depois de alguns segundos a contemplar, ainda indecisa de Kamus a Milo. Sua voz não era maior que um sussurro e seu tom tão leve e escasso quanto uma brisa quente no inverno- O senhor... Matou ele... Por quê, oncle?

A menina carregava muito mais na pergunta do que a simples vontade de saber o por quê daquilo. Ela quase inquiria uma resposta, enquanto seu olhar se tornava duro, tão pesado como ele jamais vira nos olhos verdes que só costumavam carregar adoração dirigida a ele. A frieza em mescla com aquela ponta de decepção, foi algo que desestabilizou o belo aquariano. Naquele segundo ele começou a duvidar se realmente valera a pena matar Milo. A vida daquele espúrio não valia o olhar que a pequena lhe lançara. Como ele podia ter conquistado a criança? Ainda mais com atitudes tão... tão... repulsivas?

-Você não tem idade para compreender! –Kamus respondeu forte e grosseiramente, de forma que a pequena não pudesse contestar. Era verdade que se perturbara, no entanto, por mais que o estivesse, não podia deixar que isso transparecesse, transpondo a grossa camada de gelo que cercara o mundo exterior de seu âmago, onde tudo o que importava era apenas seus pensamentos e impressões e nada além disso. Um pensamento um tanto egocêntrico com toda a certeza, no entanto ele sabia que era assim que tinha que pensar, tendo em vista que ninguém além de si próprio priorizaria a sua existência.

-Eu já sou grande o suficiente! –A pequena inquiriu, tomando fôlego e esticando-se ligeiramente tentando mostrar a ele que ela não era apenas uma criança e sim uma mocinha- Posso saber agora!

-Não discuta, Kamila! –Kamus disse com uma frigidez espantosa dirigida a uma criança, como se fosse um daqueles homens sem um coração, sem sentimentos, que não entendia o quão verdadeiro era um sorriso ou um choro de criança. Porque elas sabiam mostrar quando algo lhes agradavam ou não, sem toda a complicação dos adultos de esconder seus sentimentos. Provavelmente ele era um desses homens. Intocado pelas emoções, andando inadvertido pelo mundo de sensações oprimidas, de emoções jamais sentidas e oportunidades perdidas. Pertencia a algum pequeno e secreto paraíso em declínio, onde cada vez era reduzido o número de seres intactos, assim como ele, onde sentir já não era o primordial, onde viver não significava aproveitar todas as sensações e sim servir a um propósito maior. Propósito maior... Era tudo o que sabia dizer e pregar, sem nunca saber a que objetivo fora designado, sem nunca saber se estava lutando pelo motivo certo...

Por um momento permitiu-se duvidar se realmente a sua intenção era sempre voltada ao bem. Obviamente isso depende do ponto de vista de quem analisa os fatos. Se a ótica é de alguém que ameaça a integridade global pensando em governá-lo não importando o meio de conseguir o objetivo, esse não é um mau e sim um bem para a tal pessoa. Já pela visão de um Cavaleiro de Athena que protege o Santuário, o ser é simplesmente malvado e deverá ser dizimado em nome da paz mundial.

Paz mundial... Sempre procurando preservá-la! Sempre buscando o que é melhor para os habitantes do planeta, por mais que estes não soubessem da existência deles. Provavelmente porque era melhor assim, no anonimato. Se todos soubessem sobre os cavaleiros certamente iriam se sentir inferiorizados, muitos até viriam desafiá-los, numa amostra medíocre de ignorância em busca de inflar o próprio ego e estabelecer sua masculinidade perante os outros seres, para que o venerem como a um Deus. Desconfiava até, que muitos ali no Santuário iriam gostar muito da idéia de serem adorados. E outros, usariam-se de sua posição para arranjar companhia nas noites mais gélidas. Algumas destas noites, como o próprio Kamus fazia com que se tornassem ali no Santuário.

Sorriu com leveza ao se lembrar do Natal anterior, onde produzira um pouco de neve, no intuito de aproximar a celebração dos Cavaleiros o mais próximo possível dos estereótipos pregados pelos filmes americanos e europeus. Muitos dos pupilos que participaram da confraternização, por virem dos trópicos, sequer haviam visto neve. Lembrava-se dos risos e brincadeiras vindo dos mais jovens. Será que esses risos eram o da verdadeira felicidade? Ela estava contida mesmo nos menores gestos da vida? Qualquer mesquinharia já é motivo de felicidade e por menos ainda eles choram.

O choro! Ato anódino de representar seus sentimentos. E expressão mais imbecil e baixa a que um humano pode chegar. Pois as lágrimas nunca ganharam e nem ganharão batalhas! Nunca trarão um ente querido de volta, como ele aprendera ainda quando jovem, quando perdeu o contato com Caprice.

Lágrimas... Pequenas gotas salgadas de amargura e decepção. Apenas mais uma forma do homem ficar ressecado, exalando água por algum poro a mais de seu corpo. Lágrimas nada resolviam, apenas atrasavam a vida de quem quer que fosse que as derramassem.

Uns diziam ser sinal de pureza, mas desde quando a pureza era de grande valia na vida? Era só mais uma fraqueza. Uma entre várias. Apenas mais um nicho por onde uma pessoa mais esperta pode alcançar e derrubar quem a possui.

O ser humano é extremamente imperfeito, talvez tanto quanto nenhum outro ser que pise sobre a face do planeta. Porém sua imperfeição é tamanha que os leva a acreditar que são seres inatingíveis e inabaláveis, que são perfeitos! Cada um dos erros que cometem durante a sua vida são justificado por meio de argumentos extremamente banais ou até sem qualquer lógica. Guerras e mortes no Oriente Médio era ditas "em nome de Deus". Matar é sumário se por uma força maior. Assim como eles, Cavaleiros. Por um instante perguntou-se sobre qual seria a diferença que discernia os fanáticos religiosos de um Cavaleiro de Athena...

Como ele pensara anteriormente, era tudo apenas uma questão de ponto de vista. Porque lá no Oriente, eles achavam que estavam combatendo uma raça imunda que quer dominar o mundo...

Por Zeus! O que é certo? O que é errado? Tudo é realmente absoluto? Ou será que a verdade é relativa? As caixas de cereais vinham com tantas informações inúteis, por que uma vez na vida, elas não podia trazer em seu rótulo a resposta para seus questionamentos?

Talvez por que ele sabia que não daria atenção. Desde quando ele era um homem que lia as informações inviáveis que uma caixa de cereais trazia?

Quem sabe deva ser porque a massa dominante não tenha dúvidas tão complexas quanto as suas...

- ONCLE! –Kamus ouviu os berros de sua afilhada e sacudindo a sua cabeça no intuito de afastar tais pensamentos, fitou os olhos verdes da pequena, que ainda tinha suas vestes agarradas as mãos pequenas. No mínimo estivera a puxá-las para chamar lhe a atenção- Você não vai descongelá-lo?

-Você enlouqueceu? –Kamus perguntou olhando-a repreensivamente- Por que eu faria isso se eu mesmo o pus daquele jeito?

-Talvez porque VOCÊ o congelou sem qualquer motivo aparente! –Kamila respondeu pulando feito uma louca ao redor dele. Depois de notar que tal estratégia não surtia efeito algum, tentou puxar a mão dele- Vamos, oncle! Se você correr e tirá-lo dali ainda consegue salvá-lo! O coração dele pode ainda estar batendo! Anda!

-Pela última vez, Kamila! Ouça com atenção, porque se eu tiver de lhe dizer de novo, vai ser durante o seu castigo! –Kamus lançou um olhar mortal a afilhada que chegou a desconcertá-la e até chateá-la por ele se mostrar tão indiferente. O francês emanou uma energia fria e fez com que a mão dela adormecesse, ao congelá-la levemente, como se lhe desse uma lição por questioná-lo. Ele começou a dizer pausada e articuladamente, de forma que não restasse dúvidas sobre suas palavras- Eu-Não-Vou-Salvá-lo!

-Ótimo! –Kamila disse finalmente soltando a mão dele. Devia estar com uma vontade grande de gritar devido a sensação ruim de ter a mão dormente devido ao que ele fizera, mas apenas mordeu o lábio inferior. Devia saber que não podia reclamar, não na frente de Kamus. Não queria se mostrar vulnerável. Kamus sorriu ao notar que a pequena aprendia rápido! Escondera seus sentimentos muito bem naquela situação. Não demoraria muitos anos para que ela se tornasse tão gélida quanto ele!- Você não fará nada pra consertar a besteira que você próprio fez, mas eu não posso ficar aqui parada! Entenda, oncle! Se Athena descobrir o que você fez com Milo, não vai te perdoar! E ainda é capaz de te sentenciar a morte! E eu não quero isso! Você é a única pessoa que tenho agora que a mamãe se foi!

Kamus olhou-a atônito. Ele entendera bem, ou Kamila queria protegê-lo? Ele se enganara! Ela não reclamara por ser gélida, e sim por que queria que ele pensasse na situação de seu maldito impulso. Por mais decepcionada que ela estivesse por tê-lo visto matar o grego, ainda queria ajudá-lo! Como essa criança ainda podia ter adoração por ele? Era algo além de sua compreensão! Aquilo servira também para mostrar a Kamila o quanto era impiedoso e capaz, tentando retirar dela o estereótipo de bom-moço ou super-herói que ela certamente enquadrara o seu padrinho Cavaleiro. Entretanto, ainda era uma criança e ele sabia que estas precisavam de um "modelo" para se espelharem e buscarem dentro de si alguma semelhança mínima com as pessoas que escolhem. Como explicar a uma criança que não existe ser perfeito, como o pró´rio Platão dizia? Que os heróis são invenções humanas para tentar despertar o que acreditam ser o melhor de si ou meramente acreditar a juventude em um suposto mundo melhor? Por alguns segundos apenas ficou olhando para o rostinho angelical da jovem, incapaz de compreender. Poucos haviam demonstrado tamanha consideração por ele. E ela fora uma dessas pessoas. Por mais que quisesse desfazer aquilo em consideração a sua bela afilhada, era demasiado tarde. Seu orgulho não permitiria. Preferia a morte a algum dia ter de escolher entre desfazer e admitir um erro seu. Era mais que orgulho, era mais que um capricho. Fazia aquilo na busca incessante de se tornar um homem de moral e princípios ativos. E um homem de moral e princípios jamais desfazia o que havia feito e sim assumia o que fizera e agüentava as conseqüências como um homem impávido age. E ele era assim. Sempre fora.

Tal ar de homem inflexível, ou como Luck, seu pupilo americano, costumavam dizer: "Wethered" (Invariável). Luck dizia que ele era tão invariável e rígido quanto o gelo nos pólos. Um ser de duras opiniões, sem nunca se transformar ou aceitar outro meio se não o seu. O gelo era assim. Sempre sólido e frio. A frieza que fazia até mesmo o mais bravo dos seres viventes tomar precauções perante ele, pois sabe simplesmente que o gelo é imponente e letal, por mais que pareça belo ou convidativo durante alguns momentos. Ele seduz com a beleza, sem sequer medir esforços para isso. É agraciado com a sutileza lhe conferida pelos Deuses, mas com voracidade proporcionais a sua beleza. Quanto a sua periculosidade não poderia haver maior. Sempre lá, a espreita, sem implicar com ninguém, apenas vivendo... Contudo, quando se atrevem a brincar na "neve", ganham muito mais do que procuravam.

Seu pupilo era esperto! Descobrira uma forma inteligente de chamá-lo de intransigente e perigoso sem ofendê-lo. Devia começar a parte do treinamento em que se aplicava a inteligência. Provavelmente esta tarde o faria. Isso se não tivesse um encontro maravilhoso com a guilhotina.

-Sinto muito, Kamila. –Ele disse olhando friamente a pequena que tentava por tudo quebrar o gelo com uma pedra pontiagudo- O que está feito já não pode ser mais mudado. Eu o congelei e pagarei por este ato, como um homem adulto faz.

-Pra quê, oncle? –A pequena parou por um instante de bater contra o gelo compulsoriamente, para apenas encará-lo com tristeza profunda nos grandes olhos verdes- Todo esse seu orgulho extremista tem alguma utilidade funcional a não ser inflamar seu amor próprio? Vocês adultos complicam tudo! Vivem dizendo a nós, crianças, como agir, a pedir desculpas quando erramos e a corrigir nossos erros. Mas e vocês? Por que não ensina? Não nos dá o exemplo?

-Por que, Kamila, quando se é infante, todos perdoam o que você fez por acreditarem que você é apenas uma criança e não tem consciência do que é certo ou errado. –Kaums respondeu com um ar cansado, pouco se importando em deixar a menina sem resposta como normalmente fazia- Quando se é adulto e erra, e acredite isso é tão comum quanto como uma criança, você não pode admitir que errou, pois assim estaria se comparando a idade mental de um garoto e perderia o respeito dos outros.

-Isso é...! –Kamila começou a responder indignada, mas sendo interrompida por um grito vindo de algum lugar atrás de si. Ela olhou para as mãos já calejadas e depois para os céus, voltando ao trabalho logo em seguida, talvez ainda não fosse tarde. Confessava-se frustrada por não conseguir ao menos arranhar o gelo.

Kamus virou-se para trás, na direção dos gritos e viu o cavaleiro de Peixes a meio caminho, esbaforido, certamente viera correndo. Este tinha uma expressão um tanto nervosa e preocupada. Seu grito fora tão alto e agudo que certamente não passaria despercebido pelos demais cavaleiros que estavam a treinar por perto. É, Kamus já podia começar a xingar a execrada Deusa. Era tudo culpa dela! Queria não ter encontrado a Sacerdotisa! Tinha a ligeira impressão de que ela o envenenara contra Milo e como boa marionete fizera ele era, executara o plana exatamente como ela queria. Droga! E o pior é que não tinha como provar! E mesmo que tivesse, não o faria! Há pouco tempo, prometera a si que jamais seria subjugado pela vontade de Deuses caprichosos e olha onde eles estava!

-KAMUS! –Afrodite gritou histérico correndo até ele- Tire o Milo dali! NÓS ESTAMOS SENDO ATACADOS!

-Não estamos sendo atacados. –Kamus disse friamente, uma tanto tenso por dentro, contudo, incapaz de se mostrar dessa forma.

-Então como? –Afrodite olhou para ele incapaz de perceber a real situação. Talvez não o fizesse por acreditar que Kamus jamais o faria. Não ele! Com tanto tempo de serviço prestado a Athena, ele jamais ousaria traí-la de tal forma. Não por um bom motivo!- CÉUS! Não interessa o que ou como aconteceu! KAMUS, TIRA ELE DAÍ!

-Ele não pode! –Veio uma voz de traz deles. Era uma voz imperiosa, cortante e bastante grave, tão severa quanto as ironias que o destino costumava desferir sobre todas as criaturas. Ambos viraram para encarar a face alva do loiro, que mantinha-se tão impassível quanto o tom que usara. Atrás de Shaka, estavam todos os outros, deviam ter escutado algo do diálogo, ou quem sabe apenas a última frase de Afrodite, sendo capazes de avaliarem a situação por si mesmos, sem influência da venda que a teia grossa de sentimentos tece sobre os olhos das pessoas sentimentais, como no pisciano.

-O que quer dizer com isso, Shaka? –Afrodite perguntou parecendo afrontado pelo ar de superioridade de Shaka e pela a expressão de ambigüidade perante a vista de Milo aprisionado. E também por este estar obviamente inferiorizando sua capacidade de pensar.

-O trabalho é de um profissional! –Máscara da Morte disse saindo do meio dos outros, aproximando-se do gelo e tocando levemente a superfície lisa e perfeita, tal qual um cubo- Vêem? É perfeito! Um caixão de gelo "a la" Kamus! Ninguém no mundo além dele consegue algo tão perfeito com gelo, a menos que fosse um escultor, o que está fora de cogitação. Já que escultores inocentes não atacam Santuários.

-Kamus? –Afrodite olhou para ele assustado- Não! Ele é do tipo que "ladra, mas não morde"! Ele jamais faria isso com um companheiro que luta pelo mesmo objetivo que ele! Ainda mais uma cavaleiro de ouro! Não é mesmo, Kamus?

Kamus manteve-se calado! Sua imagem íntegra sempre fora bastante elogiada e respeitada. Era estranho ver assim, ruindo por completo. Ainda mais ele, que sempre andara no caminho mais reto possível, para que ninguém tivesse motivo de duvidar de seu caráter. Ficava feliz por alguém acreditar tanto naquilo que criara, mas ao mesmo tempo, ficava triste por não poder responder o que o sueco queria ouvir.

-GANHEI! –Shura gritou lá do fim da aglomeração, recebendo uma cotovelada de Saga e um pedido de silêncio de Kanon- Ai!

-Sossega! –Kanon murmurou de forma que somente o capricorniano e o geminiano pudesse ouvir- Depois a gente conversa sobre isso!

Shura assentiu. E voltou a assistir o desenrolar da história, que sinceramente, parecia mais uma novela mexicana do que qualquer outra coisa.

-Fui eu! –todas as atenções se voltaram de súbito para a figura pequena e triste que tinha as mãos sangrando e manchando o gelo puro onde Milo repousava para a eternidade. A pedra ainda bem segura em suas mãos, a obstinação era visível nos olhos verdes, enquanto ela prosseguia seu trabalho.

Os cavaleiros se entreolharam, com caras estranhas, pareciam tentar se abster de alguma coisa. No segundo seguinte, Kamus descobriu do que se tratava. Os cavaleiros começaram a gargalhar incessantemente da situação.

-Certo! –Aldebaran deixou escapar em meio a risos- E fui eu quem coloquei a boneca inflável no quarto do Aiolos que foi encontrada na semana passada!

-O QUÊ? –Aiolos perguntou virando-se de imediato para Aldebaran, indignado- Então foi você, seu Paraíba de cabeça chata?

-Claro que não! –Aldebaran disse indignado, enquanto observava Aiolos tentar alcançá-lo, com Aiolia o segurava firmemente. A situação apenas causou mais gargalhadas aos presentes. Excetuando-se Shaka e Mu, que mantinham-se impassíveis- Semana passada estava no Brasil, não teria como ter sido eu! E não sou paraibano! Que isso fique bem claro! E também não tenho cabeça chata!

-Vocês deviam se envergonhar! –Mu repreendeu os cavaleiros que haviam se entretido na situação, um Kamus um tanto abatido, contudo com pose pétrea, olhava de forma cortante para Kamila, queria fazê-la acovardar-se- Estamos numa situação de crise! E devemos dispor de toda a calma para averiguar a situação e não de brincadeirinhas que a nada nos levarão. Deixem pra discutir sobre a boneca inflável do Aiolos em outro momento.

-A boneca não é minha! –Aiolos reclamou veemente.

-Mu está certo! Desculpem-me! –Dohko anuiu firmemente, parecia um tanto duro demais, o ar de gravidade extrema era similar ao que ele conserva durante uma batalha- Temos de averiguar a situação.

-Averiguar? Para mim está mais que transparente! Kamus é o culpado! Ou vocês acham sinceramente que uma criança seja capaz disso? –Shura perguntou sarcástico, Kamus o achou propenso a lutar por sua condenação. Parecia que havia mais de um motivo para que ele questionasse o sistema padrão de investigação a um traidor. Uma intenção. Certamente era isso o que ele tinha.

"As intenções! Sempre as intenções! Os seres humanos são tão volúveis, quando se tratam do interesse próprio… As vontades parecem sempre serem superiores a uma amizade, um amor, ou o que quer que seja, afinal quando uma pessoa se aproxima de outra é sempre com um objetivo. Seja porque o outro é bom em matemática, ou porque é forte, bonito. Um mundo cheio de frivolidades é onde vivemos! As pessoas não amam o que a outra é, mas o que ela pode oferecer." Kamus avaliou lentamente.

-Eu estou dizendo que fui eu! –Kamila virou-se chateada para fitá-los. Devia no mínimo estar com raiva por eles sequer acreditarem em suas palavras. Ela mesma odiava ser considerada uma mentirosa, e isso Kamus bem sabia. Então, por quê? Ela estava mentindo sim! Como ele sabe que ela não gosta de fazer. Devia ser uma tortura para ela, pois ele, de certa forma, sabia que os Cavaleiros pouco creditavam qualquer pessoa que fosse pega com uma mentira- Eu posso provar!

-Chega desse circo! –Kamus disse nesse momento. A voz era baixa e perigosa, parecia que desferiria a qualquer momento, pontas de gelo que voaria direto no coração de todos e ele não podia negar que esse teria sido seu real desejo. Tudo o que queria era pegar a pequena menina e sumir com ela dali. Recomeçar a vida em algum lugar bem distante, onde ele a pudesse educar em paz. Onde ela jamais precisasse passar por cima dos próprios valores por culpa dele. Onde ele fizesse o papel de responsável dela, não o contrário. Céus! Como ele pudera deixar a cosia ir tão longe a ponto de Kamila mentir para livrá-lo daquilo que ele próprio fizera? Devia ter agido antes! Devia ter assumido logo de cara e não ter deixado Afrodite adivinhar! Não devia ter ficado tão sem-graça! O que adianta a um homem a capacidade de executar atos, de qualquer espécie, se é incapaz de responder por eles? Se põe o orgulho ou a integridade a frente? Ele devia não ter se importado com isso! Ele devia ter esquecido a opinião alheia sobre sua pessoa! Nossa! Tanta coisa que ele devia ter feito, mas que no fim não fez! Ele até envergonhava-se de si próprio. Sua postura fora ridiculamente patética, pusilânime. Não se sentia como cavaleiro de ouro. Nem mesmo sentia-se um homem. Sentia-se como "o resto", que ele sempre desprezara tanto! Kamus achara-se um ser pensante, diferente das pessoas que mantém seus pensamentos na sociedade escravista na qual vivem, entretanto descobriu que não passava de "um outro covarde qualquer"! Incapaz de se livrar da corda em volta do pescoço sem envolver um inocente. Sem deixar que alguém corresse em sua defesa por causa de uma imagem. Imagem que via pelo espelho todos os dias, refletida. Imagem que não passava de apenas isso: um reflexo de seu ser.

Imagem que se dissolveu perante todos naquele momento. Ele tentou juntar o melhor de si e mostrar a todos, mas como a água que se retêm nas próprias mãos, vagarosamente ela se esvaiu deixando apenas o resto, um pequeno emaranhado de rudes grãos de areia, sendo as impurezas e imperfeições no fundo. Pois os seres humanos não eram cem por cento puros, ou perfeitos. Nenhum era e Kamus desafiava alguém a encontrar a perfeição. O próprio Platão acreditava que nosso mundo era imperfeito, apenas uma sombra do que "o mundo das idéias" podia nos oferecer. Este mundo era onde todas as formas eram culminantes e perfeitas.

Que ele saiba, não existe um paraíso assim na terra e talvez nunca exista. Não enquanto houver um homem a manchar este mundo com todas as suas imperfeições, que inconscientemente ou não, depredam o ambiente em que vivem.

Ele, pela primeira vez, sentia que fazia parte desse grupo de pessoas que destroem todos os bons sentimentos existentes e que em seguida se destroem. Porque ele fizera igual! Dissimulara, fingira, enganara! E logo os companheiros com quem passara grande parte de sua vida.

Questionou-se se esses sabiam um pouco sobre ele. Apenas um pouco. Se sabiam que ele adorava torta de limão com merengue. Ou que gostava de ouvir Celine Dion cantando em sua língua natal.

Não! Ele tinha certeza que não! Pois toda vez em seu aniversário, eles levavam álbuns de cantores variados, de forró a heavy metal, contudo, nunca da Celine. Todos os seus bolos de aniversário eram coco, que ele não fazia questão nenhuma de comer. E no entanto, ninguém parecia reparar, pois quando lhe perguntavam se ele gostara, ele sempre respondia positivamente. Parte disso tudo é culpa dele. Tanto não quis demonstrar sua fragilidade que se tornou vulnerável. Vulnerável a própria mentira.

Ele ergueu a cabeça, inspirando longamente. Era hora de se recuperar! Hora de deixar a máscara de lado e agir como o homem que ele realmente era. O homem que morava por trás do gelo, em algum recanto da sua lúgubre carapaça, metamorfoseando-se em si próprio. Exatamente como a larva de uma borboleta, com um corpo tão rudimentar quando ainda é jovem e imatura, contudo, por dentro de si, sempre contendo o material genético que um dia a transformaria no mais belo e gracioso dos seres. Talvez assim fosse todo o ser humano. Está tudo dentro de cada um. O potencial de se tornar um animal belo e gracioso, apenas dando um pouco mais de tempo ao tempo, estava ali, dentro dele. Se pudesse dizer que sua metamorfose estivesse em algum estágio, ele certamente diria que estava passando pelo estágio de pupa, onde o animal está preso em seu próprio mundo, protegido pelas paredes que ele mesmo construiu, incapaz de fugir até que estivesse pronto pra abandonar a segurança de seu casulo e se mostrar ao mundo. E ele estava nesse casulo. Mas estranhamente, por mais que cobrasse de si mesmo uma atitude, não queria tirar sua máscara. Não queria abandonar seu lar. Sua mente era seu guia e sempre seria assim. Se as paredes de seu casulo eram sua mente, então por que tinha de abandoná-la? Só porque tinha de assumir um erro? Quer dizer, ele podia assumir um erro sem por tudo abaixo não poderia?

Uma fina linha de respeito que ele tecera por anos ruindo por um erro que mal durou três minutos? Parecia que sim! Era estranho a capacidade humana de estragar tudo em segundos. Todas as atitudes comedidas e por um momento de ódio, tudo ruía. Contudo, ele não fora o errado fora? Quer dizer, Milo era o pedófilo e ele ainda se dava ao trabalho de se arrepender?

Bem, é verdade que fora longe demais. Entretanto, se Milo não tivesse feito o que Kamus sabia que ele faria se ele não tivesse chegado antes, não teria sido morto. A culpa era toda de Milo! Por que estivera se culpando? Ele só fizera o necessário! Lavara a honra de sua afilhada!

Aprumou-se e lançou um olhar gélido a estátua pétrea de Milo, dentro do gelo. Sentia novo vigor para admitir. Fora defesa. Sim, apenas isso! Uma defesa! Jamais teria feito isso se soubesse que Milo não estava indo tão longe quanto parecia. Entreabriu os lábios, sentindo-se tão sólido quanto o gelo e tão inflexível quanto o diamante.

-Fui eu! –Com o queixo erguido aos céus e um olhar duro e frio, tanto que sequer podiam decifrar seus pensamentos, Kamus respondeu com aspereza e pouco caso. Ele pode ouvir um suspiro incrédulo de Afrodite, ao mesmo tempo que levava as mãos aos lábios, numa tentativa de conter tal expressão. Bem, agora estava feito. Tivera tempo o suficiente para pensar no que faria e agora fizera o que considerara melhor. Fizera o que tinha que ser feito. Admitira um ato errado que cometera. Era uma novidade para si, contudo ele achava que o executara com perfeição.

-Por quê? –Shion perguntou, encarando-o bem de perto, assumindo de imediato o controle da situação, tal como um Grande Mestre devia fazer. Seu olhar era desolado e ele podia ver a decepção manchando o olhar duro dele. Sentia-se mal por ver um olhar tão grave quanto este dirigido a si. Jamais esperara que um dia um olhar como este fosse dirigido a ele. Não ao Kamus de Aquário, o cara que sequer saía do Santuário na noite sem avisar o Mestre que assim faria, isto é, nas raras vezes que deixara sua moradia para ter alguma espécie de diversão idiota. Shion, olhava-o com profundo desagrado, e de certa forma, incredulidade. O Grande Mestre jamais teria se imaginado tendo que conversar com algum dos Cavaleiros de Athena, em especial o Kamus, por algo como isso.

-Sinto muito, Senhor, mas este não é um assunto que compete a nenhum dos presente. –Kamus respondeu friamente, sem mostrar qualquer sentimento, por mínimo que fosse- Este assunto era apenas entre Milo e eu.

-Sinto ser eu a lhe informar, Kamus. –Shion começou, mantendo seu ar magistral e autoritário, sem deixar transparecer o choque que pudesse ter sentido ao ouví-lo proferir tais duras palavras, como se eles estivessem falando de qualquer assunto corriqueiro e não de um assassinato. Com o canto dos olhos, Kamus pode observar que os outros Cavaleiros pareciam não ter tanta paciência ou imparcialidade quanto o Grande Mestre. Viu claramente Saga ou Kanon, ele não podia dizer com exatidão, cerrar um pulso e bater na palma da mão com violência, como se fizesse questão de mostrar que era nele que ele queria bater. Aldebaran parecia estar mais rígido que ele jamais vira e com um olhar um tanto diferente da doçura habitual que dirige a todos- Mas qualquer assunto que envolva a morte de um Cavaleiro pelas mãos de outro que jurou proteger Athena, me compete.

-Perdon moi, mas acredito não ter absolutamente nada a dizer a nenhum vocês. –Kamus respondeu indiferente. Neste momento, ele pôde ouvir um soluço vindo dali de perto. Um soluço infantil e decepcionado. Kamus olhou em direção a pequena, com um sentimento horrível de culpa invadindo-o, dilacerando seu coração em pequenos pedaços. Sentiu uma enorme vontade de correr até ela e abraçá-la, jurando que tudo estava bem. Contudo, não podia! Jamais poderia! Ele não podia deixá-la perceber seus sentimentos. Faria parte do treinamento dela ser tão fria quanto ele. E para isso ela devia receber o mínimo possível de afeto. Ele a viu socar o gelo mais uma vez, com toda a força que tinha, ele pudera observar e dessa vez ele só ouviu um estalar alto. Certamente ossos se partindo. Entretanto, a pequena sequer gemeu. Agüentou a dor em silêncio, como se soubesse que aquele não era um momento propício para desviar a atenção de todos com urros de dor. Era para o bem dela que ele não diria. Era para manter a integridade de sua pequena intacta. Algo tão desprezível quanto isto não merecia ser proferido!- Esta imagem é capaz de fornecer todas as informações que precisam. O que importa o motivo se o que está feito é irreversível?

-Sabe bem qual é a pena por traição, não sabe? –Shion questionou-o com um ar paciente que Kamus sabia estar além de sua compreensão.

-Sim. –Kamus sussurrou com firmeza. Jamais diria qual o motivo que o levou a matar Milo. Jamais diria o que Milo tentou fazer com sua criança!- Sei! E estou disposto a cumprir se assim decidirem.

-Está disposto a omitir sua real intenção e pagar com sua vida por isso? –Shion perguntou um levemente admirado com a força que Kamus revelava quanto sua resolução de não partilhar seu motivo!

Kamus hesitou, fechando os olhos com firmeza. Uma única palavra. Apenas uma afirmativa e toda a sua vida acabaria. Estranhamente, não sentia nada. Nenhum pesar, nenhum pequeno remorso. Pouco o importava o que aconteceria agora. Uma resposta que tiraria a capacidade de seu sangue frio correr por suas veias, que tiraria seu poder de absorver o oxigênio, que era necessário a sua existência, que pararia os impulsos elétrico de seus nervos e assim calariam de vez toda a sua existência. Toda a sua cega servidão fora inútil. Logo estaria tudo acabado. E não mais teria de ser correto o tempo todo, não mais teria de comer bolo de coco no aniversário, onde não teria mais de fingir que não se importava com a morte da mãe de Kamila e agir como se nada tivesse acontecido realmente. Ele podia sentir suas pestanas se umedecerem, embora não soubesse exatamente por que. Seria por estar partindo ou por finalmente ter pensado no único elo que o ligava com a maldita vida que levava? Seria por Kamila que ele sentia seus olhos, pela primeira vez em anos, lacrimejarem? Ele não podia deixar a pequena sozinha, podia? Não seria uma perda muito grande para a jovem? A mãe e "tio" com um dia de diferença. Quis abrir os olhos e fitá-la, mas sabia que se o fizesse, agiria como um covarde. Queria pedir desculpas a Kamila pela escolha que faria, queria que ela entendesse seus motivos... Não havia jeito, ele teria de honrar com sua vida a atrocidade que cometera. Ele conhecia o esquema e assim o executaria.

-Estou! –Kamus confirmou, ignorando o grito fino que viera de perto do corpo sem vida de Milo. O grito foi tão agudo, profundo e desesperado que fez com que ele fechasse os olhos, sentindo-o entrar por seu ouvido e ir diretamente ao cérebro, como se quisesse acordá-lo do transe que o fazia seguir. Algo dentro de si que agia roboticamente, como se estivesse previamente programado. Programado para sangrar. Programado para sofrer. Programado para cair e desvanecer como poeira ao vento. Programado para fazer com que as lágrimas de uma criança inocente rolassem sobre seu corpo impuro e completamente inerte.

Kamus fitou o lugar, desejando gravar cada pequena nuance do último lugar que veria em vida. Como pudera imaginar que no momento em que se levantara da cama estava caminhando rumo a sua condenação de morte? Que fora a última noite que passara em seu leito, na casa de Aquário?

Era exatamente como ele pensara. Um belo dia dado pela maldita Deusa como um deboche por seu fim. Ele soubera que, de certa forma, este seria um dia ruim, contudo, não quisera acreditar em seus presságios. Não quisera acreditar que aquele seria seu último dia entre o mundo dos vivos, que amam e dissimulam pra viver.

O céu azul, contrastando com a impureza de uma morte, cometida por ele próprio, bem debaixo da mais bela imagem da generosidade divina. Gelo branco, esplêndido como mais nada, carregava a vítima de seu crime e ainda o sangue inocente de uma criança que sentia mais que simples amor por seu tio, provavelmente adoração, que ele próprio jurara protegê-la pra todo o sempre. A culpa manchando todo o ambiente com seu enorme peso, ao invés de dar vazão a brisa fresca que devia estar por ali, abrandando a indignação de todos os presentes.

-NÃO! –Kamila gritou com a voz mais firme do que ele pensou que ela jamais pudesse ser capaz de produzir. Ele apenas sentiu quando os pequenos braços dela vieram se fechar exatamente ao redor de sua cintura. As lágrimas grossas e tão quentes quanto uma tarde de verão grega, incidindo contra o seu corpo- Não! Não, tio! Não faça isso! Você não pode me deixar! Não! Você não pode! Você prometeu que cuidaria de mim! Prometeu que me contaria histórias todas as noites, como a mamãe. Prometeu que me cobriria, caso eu me revirasse. E que me daria um beijo na testa, antes que eu dormisse. Tio Kamus, eu só tenho você. Eu preciso de você! Tio Kamus! Não faça isso! Foi algo que eu fiz? Eu disse algo errado? Eu... Eu... Juro que vou melhorar! Eu juro que nunca vou fazer nada que você não queria! Por favor, só não me deixe sozinha! Eu tenho medo! Muito medo!

-Acalme-se, Kamila! –Kamus disse abaixando-se para fitar os olhos verdes e inchados da pequena. Estavam tão rubros quanto o sangue que escorria de suas mãos. Kamus simplesmente não conseguira ficar indiferente a insegurança dela. Por Zeus! Ela era sua sobrinha! Ele a vira crescer e a amava muito, mesmo que não demonstrasse isso abertamente. Com a ponta dos dedos, limpou as lágrimas grossas e desesperadas que maculavam o rosto da jovem. Céus! Como se sentia culpado por estar abandonando uma criança tão pura e inocente quanto esta a mercê do mundo. Zeus, por quê? Por que tinha de ser tão difícil escolher? Por que não era apenas a sua vida e mais nada? Por que ela tinha que sofrer por culpa de um ato impensado dele? Era melhor simplesmente tentar tranqüilizá-la e tentar explicá-la seus motivos- Escute! Eu não estarei te deixando, petit! Toda vez que precisar de mim, você me encontrará. Você jamais... Está ouvindo? Jamais, vai se ver livre de mim! Sempre que você quiser falar comigo, minha criança, você me encontrará te escutando. Sempre que quiser me ver, você verá. Não importa quanto tempo se passe, quantas pessoas te digam o contrário ou quão longe estejamos, eu sempre estarei bem aqui, do seu lado! Te apoiando e te dando forças para o que quer que seja. Eu sempre estarei aí, dentro de seu coração. Com você! Não importa o que aconteça! Sabe, por quê, Kamila?

Ela meneou a cabeça negativamente. Ele jamais planejara falar coisas assim, tão sentimentalistas, na frente de todos. Contudo, já não se importava mais! Dentro de meia-hora, ele não passaria de um corpo completamente sem vida, atirado no chão, pronto para ser dilacerado e tragado pela terra. Ao menos tinha como consolo que o último rosto que veria, seria o de sua pequena, o único ser que o amara sem restrições e interesses. Ele devia tal demonstração de afeto a ela. Talvez porque seria a primeira vez em sua vida que ele apenas seria ele mesmo, sincero consigo, dizendo a verdade sobre o que sentia e a última vez que olharia nos olhos de alguém dissimulando algum sentimento, como fazia-se de tranqüilo agora, para acalmar a sua petit! Era um ciclo vicioso. Por mais sincero que tentasse ser agora, havia a necessidade de fingir. Fingir a sua pequena que estava tudo bem e que nada de ruim aconteceria. Céus! Como ele queria acreditar nisso!

-Por que, acima de tudo e qualquer coisa, você deve saber que eu te amo! –Kamus disse secando com carinho e um sorriso uma outra lágrima que caíra do rosto dela ao ouvir essas palavras- E quem ama, Kamila, jamais abandona! Há apenas uma coisa que quero que guarde e mantenha com carinho como uma lembrança minha. –Ele tirou do pescoço o próprio medalhão. Era uma fina corrente de prata, onde em seu extremo tinha um medalhão trabalhado em cristal, que se abria exatamente no meio da pedra e revelavam-se a foto de duas pessoas. Uma do próprio Kamus adolescente e outra de uma jovem muito bonita.- Esse é um medalhão que sua mãe me deu de presente de aniversário, há muito tempo atrás, antes mesmo de você nascer e quero que o guarde como se fosse o seu maior tesouro.

-Eu não preciso disso! –A pequena respondeu empurrando as mãos de Kamus para longe de si e olhando-o fixamente- Meu maior tesouro é ter você como meu tio! Não quero nada além disso! Um medalhão bonito com duas fotos, nunca serão como ter você do meu lado, me dizendo para não falar com estranhos, ou para prestar atenção no que você diz. Um medalhão jamais vai poder me dar conselhos, jamais vai me dar um beijo na testa, jamais vai me abraçar e dizer que está aqui comigo, não importando o que acontecer. Não entende, oncle? Eu posso até beijar o medalhão, por mais macio e quente, não será como o seu rosto. Eu posso até contar a ele meus problemas, mas ele jamais vai responder de volta. Eu posso até dizer que o amo, mas seria uma inverdade, uma vez que é apenas um objeto e que não pode me abraçar quando eu acordar depois de sonhar com minha mãe. Isto é porque eu também te amo, oncle!

Kamus sentiu sua visão turvar-se, misturando em sua frente todas as cores em meio a pureza das lágrimas que ele mal podia controlar. Queria devolver aquela declaração, queria prová-la que sentia tanto quanto ela. Contudo, palavra alguma parecia capaz de expressar a intensidade dos sentimentos que pela primeira vez ele provava. Jamais tinha sentido algo assim. Seu coração estava aos pulos, muito apertado, como se fosse capaz de sufocá-lo e matá-lo ali mesmo. O francês sentia uma aflição que sabia que nunca antes apareceu em si. Pois esta o esmagava lenta e prazerosamente, como que zombando do fato de seu primeiro sentimento intenso, ser o ultimo que teria em vida. Neste momento, Kamus teve a ligeira impressão de ter visto um brilho dourado ter cruzado os céus límpidos, entretanto estava certo de que se tratava apenas de mais imagens se confundindo em sua visão trêmula, uma vez que ainda lutava para não desabar e chorar, não querendo de forma alguma passar a insegurança que sentia a sua pequena sobrinha.

Num gesto rápido ele a abraçou fortemente, como nunca fizera antes. Nem mesmo para consolá-la da morte da mãe. Ele sempre achara que tais demonstrações de afeto acabariam por estragar a menina. Quase desistiu de sua decisão ao sentir o corpo da menina tremendo tanto. Ele sabia que não era por que ela passara tanto tempo do lado do gelo tentando ajudar Milo, mas obviamente pelo medo violento que a assaltava. A respiração dela estava irregular. Muito mais forte devido a influência funesta da súbita crise de choro que a acometera.

Era ruim quando se perdia um ente querido sem prever que isso fosse acontecer. No entanto, era ainda pior saber o exato momento que este deixaria o mundo dos vivos, como ocorria com ela. Era assustador, pois quando não se tinha conhecimento de que algo fatídico ocorreria, o ar não pesava tanto, massacrando-os com a pressa que o tempo impunha, tirando-os os últimos momentos, para dizer-se tudo o que devia ter sido dito em vida, como acontecia agora. Era estranho constatar que a vida é muito curta. Que o tempo que vivera até o presente momento, não fora o suficiente para se fazer tudo o que ele queria ou tinha que fazer. Mas inegavelmente se sentia um pouco melhor, se é que assim ele podia dizer em uma situação como essa. Sentia-se um pouco mais aliviado porque ao menos, ele pudera dizer tudo o que queria a ela. Ele tinha brincando entre os vãos de seus dedos, fechados em concha, a chance de se despedir.

-Shhh... –Kamus sussurrou tentando acalmar a criança. Sabia que seria impossível. Como pedir a uma criança para se acalmar quando a situação era desesperadora?- Acalme-se, Kamila. Tudo vai ficar bem... Amanhã, tudo lhe parecerá melhor. Quando você acordar, vai ver que não é tão rim assim. Não existe nada que uma boa noite de sono não cure.

Quisera ele que fosse assim! Estas palavras só serviram para que os braços dela se apertassem ao redor de seu corpo com mais veemência. Ela parecia dizer que duvidava disso.

-Eu não vou... dormir, tio Kamus. –Ela respondeu tentando manter uma voz firme, mas era um tarefa inútil, pois o choro copioso fizera-a perder o controle de sua própria voz. Os soluços irrompiam automáticos, como se viessem do fundo de sua alma, num atropelo de dor e tristeza, misturando-se a sua voz infantil e incerta- Como poderi... a? Eu não quero... dormir! Eu quero... ir com você! Por favor! Eu não... vou ficar aqui... sozinha! Eu... Não sou nada... sem você! Tio Kamus... Me leva também... Eu quer...o ir com você!

Neste momento, as lágrimas com as quais ele tanto lutara, venceram a batalha, rolando impiedosas por seu rosto pálido e sorumbático. Vinham coroar o amor que uma criança tão pequena sentia por ele. O único ser que parecia ainda querer seu bem. A única que via-o como ele era, apesar da máscara que o separava de todos os outros seres humanos. Como se finalmente percebesse o que acarretava o pedido dela, ele separou-a de si pelos ombros, como se tivesse se queimado fortemente. Como se fios de alta tensão o tivesse atingido e eletrocutado-o.

-Droga, Kamila! –Kamus disse gravemente, em tom repreensivo- Jamais diga isso de novo! Prometa-me que você viverá! E viverá por muito tempo, de forma que veja seus bisnetos se criarem! Que será uma boa menina e respeitará a pessoa que cuidará de você. E acima de tudo! Prometa-me que jamais vai servir a um Deus! Entendeu bem? Jamais!

-Eu não... entendo, tio Kamus! –Kamila respondeu olhando-o nos olhos escurecidos pela tristeza. Ela obviamente estava lutando com os conceitos que sempre lhe foram ensinados sobre a bondade divina e o que seu amado tio a pedia no momento.

-Não é pra entender, minha pequena! –Camus respondeu pensando em como tentara proteger a sua pequena. Contudo, em vão! Agora só dependia dela mesma. Ela teria de se proteger da servidão, da escravidão e da volubilidade divina por si só- Lembre-se que eu jamais faria que você prometesse algo que não fosse para o seu próprio bem! Vamos, Kamila! Prometa!

-Certo. –Kamila respondeu fechando os olhos demoradamente, enquanto outra lágrima rolava deles- Eu prometo!

-Ótimo! –Kamus disse respirando aliviado. Não que confiasse que uma promessa infantil fosse livrá-la do destino ao qual ele próprio se atara. Ele servira a um Deus e agora, lamentava profundamente por tê-lo feito, pois estes estavam a brincar com sua vida, com sua existência e com o futuro da menininha em sua frente, que seria apenas ela zelando por si mesma. Ele apenas queria uma desculpa para deixar de sentir-se tão culpado em deixá-la ali- Então vá! Chegou a hora. Adeus, minha eterna petit!

-Oncle, me dê ao menos um último beijo. –A menina pediu olhando para os próprios pés, parecendo inconsolável com suas palavras, mas um pouco menos histérica que antes- Um que eu possa levar comigo e me lembrar de você sempre que me sentir só. Um que seja algo que nos una, de coração, e nos faça ligados mesmo além das barreiras da vida e da morte.

-Claro, Kamila. –O aquariano respondeu ternamente, aproximou seus lábios da pele macia e rosada da menina, tal qual um pêssego, e beijou-lhe a testa com uma tenacidade jamais vista por algum dos presentes. Um contato carinhoso e tão paternal, que para ele, foi como se depositasse sua alma ali, naquele pequeno momento, que duraria a eternidade, pois estariam irremediavelmente ligados, como um pai a uma filha daquele momento, até o mais longínquo que a palavra "sempre" queira significar. Infelizmente, Kamus teve a sensação de que este se rompeu com uma rapidez enorme. Agora, o único elo que o mantinha atado a própria vida, já não mais existia. A verdade, era que ele, não queria ter de se afastar dela. Não queria, mas já não tinha outra escolha. Fizera o que achara certo e agora era hora de assumir. Sua alma ficaria com sua menininha. Cuidaria dela de onde quer que estivesse!- Eu te amo! Jamais se esqueça disso! Estarei olhando por você.

Kamus levantou-se fechando os olhos com força e abaixando a cabeça. Com as costas das mãos, limpou discretamente os resquícios de lágrimas que ainda lhe banhavam o rosto. Um gesto simples, mas que significava mais do que aparentava. Fora o sinal dado a ele, afirmando subliminarmente que estava pronto. Pronto para ter sua vida extinta e a chama brilhante de sua alma, apagada.

-Shura, aproxime-se! –O Grande Mestre pediu ao cavaleiro, que estranhamente, viera da direção onde estava o corpo de Milo. Contudo, Kamus não desafiou-se a olhar. Não queria ter que encarar o erro que cometera e perder o último segundo de sua vida se lamentando, rogando a tudo e todos para que pudesse voltar atrás e desfazer o que não podia ser desfeito, por mais que soubesse que nada e nem ninguém poderia realizar seu desejo. Queria que seu último pensamento fosse algo bom. Algo que ele realmente quisesse levar consigo pela eternidade- Kamus, cavaleiro de Aquário, sob a acusação de traição a Deusa, eu, Shion, Grande Mestre deste Santuário, através dos poderes a mim conferidos, deponho-te de teu cargo como protetor de Athena e excomungo-te com a pena máxima atribuída ao crime de traição. Perderás o bem mais precioso que o homem possui, justamente por privar um companheiro de usufruir de tal bem. Condeno-te de imediato à morte!

Kamus abaixou a cabeça, ciente do que estaria por vir a seguir.

-Quem vocês pensam que são? –Ouviu a voz de sua garotinha gritando para o nada em alto e bom som. A voz continha um quê de fúria incontrolável- Deuses? Como podem tirar a vida de um ser humano como se cortassem laranjas? A vida é sagrada! Devia ser preservada! E daí que ele errou? Todos erramos, não é? Mas nem por isso pagamos com a vida! Estão todos loucos! Onde está Deus agora? ONDE ESTÁ A MERDE DO PERDÃO DIVINO?

Kamus teve o forte instinto de se virar e perguntar a menina onde aprendera este linguajar tão inadequado a uma criança. Contudo, compreendia perfeitamente a revolta dela. Não podia culpá-la por xingar, e muito menos por questionar a divindade dos Deuses, uma vez que, por capricho destes, perdera a mãe e agora perdia o padrinho em um curto espaço de tempo. A menininha ficaria só. Assim como ele ficara. Estava fadada a seguir o mesmo rumo que ele, senão um pior.

-Acabe com isso de uma vez! –Kamus pediu ainda olhando o chão, segurando as lágrimas que inconvenientemente vinham assolá-lo. Não podia deixar essa criança só! Pedia de todo o coração que a menina de meigos olhos verdes, fosse criada por alguém digno e justo. Concentrava toda a sua alma neste derradeiro pedido.

-Se assim você quer... –Shura assentiu, erguendo seu braço com lâmina de excalibur, de uma só vez. Daria um único e fatal golpe em Kamus, talvez assim, poupasse-lhe da dor e da angústia. Um serviço rápido doeria muito menos que fazê-lo sofrer com golpes em regiões distintas, onde sangraria até morrer.

-Je t'aime, petit... –Ele disse fechando os olhos fortemente, a espera do golpe final. Do golpe que tiraria de si a única coisa que sempre possuíra e que um dia tivera a prepotência de acreditar que nunca seria tirada pela vontade de qualquer Deus. Ali, estava ele. Murmurando a última declaração de sua vida. Palavras que ecoavam pelo campo em completo silêncio. Respirações suspensas e o ar pesado açoitando os presentes. Todos os malditos na expectativa de sua morte. Também ele prendeu sua respiração, poupando seus pulmões deste último esforço e inútil, já que o oxigênio apenas entraria, uma vez que, jamais chegaria novamente a todas as partes de seu corpo.

Ouviu o ar ser cortado pelo braço de Shura. Brevemente, não seria apenas o ar que ele cortaria, seria uma vida, que estaria ao chão estilhaçada, em meio ao sangue. Em breve, seria o corpo dele ao chão, a meio caminho de algum lugar. Algum lugar onde não mais precisaria enganar, não precisaria se esconder... Algum lugar que o proporcionaria o descanso eterno. Algum lugar, onde nunca mais ouviria a voz de sua pequena. Onde nunca mais sentiria o sopro do gelo e o uivo do vento. Algum lugar, completamente vazio e morto. O lugar onde ele pertenceria deste momento em diante.

XXXCONTINUAXXX

NA: Isso aí! Me xinguem! Me joguem na parede e me prendam! Me torturem, mas o Kamus eu não ressuscito! Não ao menos que me deem um bom, ou melhor, ótimo argumento... Caso contrário, nossa fic vai começar a se passar no céu, com epílogo lá tbm. Bem, gente, achei meio exagerada a demonstração de afeto do Kamus, mas pensando bem, até entendo... ele sabiaque ia morrer e precisava dizer... Achoque foi lindo... Eu mesmo chorei quando escrevi essa parte... E olha que eu nem sou tão manteiga derretida pra isso... Bem, espero que vocês tenham chorado comigo... Eu espero ter conseguido passar todo o sentimentos que queria...

Meus agradecimentos vão à:

Cardosinha: Bem, se antes era o Milo... Agora foi o Kamus... Será que eu os matei? Bem, isso nem eu sei porque ainda não decidi... Claro que bons argumentos me ajudam... eu tõ meio que guiando essa fic de olhos vendados, só decido quando escrevo... Quanto a Elyon... Ela realmente é uma filha da p... Fiz inspirada em uma "amiga" minha... Minha irmã ajudou (ela odeia essa menina em quem me inspirei). A crise do Kamus acabou... Pena que com a vida dele! Espero que continue acompanhando e mandando reviews!

Carola Weasley: Calma! Eu sei que você deve estar querendo meu pescoço (agora mais ainda)... Bem, se ele morreu ou não... Depende dos argumetnos de vocês... Tente proteger o Milo sim... Mas quem zelará pelo kamus? Pode me encher do jeito que quiser... Porque você nunca vai me encher... Sabes que te adoro, né? Você já pode se considerar minha cobaia.

Shakinha: Olá! Bem, seo Milo morreu ou não, a gente só descobre no próximo... Mas será mesmo que eu vu ter coragem de ma´tá-lo... Nem eu sei...POde deixar que vou continuar e fazer o possível para atualizar logo... Bjks... Valew pela força, viu?

Nana Pizani: NANA! Miga querida e adorada! Não se preocupe, Nana... Eu entendo... eu tbm vivo as voltas e enrolada... Eita vida! É assim, mesmo... Mas você leu e isso é o que importa... Ainda mais pra mim, que consigo um pouquinho de sua atenção, pois você é uma excelente pessoa e fico feliz por vc ter um tempinho pra pessoas tão... trash... como eu. São pessoas como vc que fazem desse mundo um lugar melhor...

Realmente a Sini é realmenteA garota! Ela me ajuda muito... essa fic talvez nunca estivesse vindo a público se não fosse por ela... Foi a primeira a ler e a apoiar... Era só algo pra que eu me divertisse, meio egoísta isso, mas acabei mostrando a ela e bem, ela me apoiou pra caramba...

Puxa, que bom que você achou que o texto foi esclarecedor. meu medo era justamente o de ficar meio estranho na hora de se explicar porque Camus aprontou... Mas que bom que você gostou! Fico feliz mesmo! Principalmente porque eu realmente me acho um lixo de escritora...

Beijões pra você também...

Sini: Quando eu que eu vou escrever um capítulo sem deixar um recado pra você? NUNCA! Você não via se livrar de mim com tanta facilidade! Gostaria de te agradecer pro revisar essa fic até o presente momento e me ajudar sempre com esta e com muitas outras... Muitas das quais eu te enrolo (SLF), mesmo com você me alertando constantemente sobre ela... Eu realmente agradeço sempre por ter começado a comentar na caixinha da Hteca... Por falar nisso, Hteca devia voltar, né? Pelo menos a ser como era antes... Bons os tempos, não? Bem, eu sei o que você me alertou sobre esse capítulo... Mas eu não consegui mudar... Sei que foi radical. Eu tentei muito mudá-lo, mas quem disse que saía alguma coisa? Prometo que vou tentar consertar isso do jeito que der... E adivinha quem vai me ajudar?

Te adoro muito, miga! Brigada por tudo! Bjks!

Beijos especiais á Angel que acompanha a fic pelo SSYaoi e ao povo de lá tbm, por me darem o que fazer nos domingos a tarde e me deixarem alegre pra caramba lá! Sem dúvida é um fórum e tanto... Adoro-vos... E ao povo do Panbox tbm... Tenho andado sumida... mas isso eu conto depois, queridos...

Bye, amores... Continuem comentando... Lembrem-se que a vida dos dois está nas mãos de vocês... E se você lê e nunca comenta, essa é a hora de defender os personagens...

APERTÕES!