Olá. Aqui está o segundo capítulo de O TEMPO NÃO APAGA. Desculpem-me por não esperar mais para postá-lo. Sei que muitos não tiveram tempo para ler, mas como o término dessa fic está ligado à continuação de O DESTINO DE MUITOS, achei que não podia esperar demais.

Observações:

1) Peço que perdoem qualquer deslize meu quanto à geografia. Estou tentando usar o Atlas da Terra Média da nossa saudosa Karen Wynn Fonstad como apoio, mas cartografia não é meu forte. Tenho um pouco de dificuldade para calcular a quantidade de tempo que separa uma região da outra, andei estudando, mas nunca se sabe. Além disso, não consegui encontrar ao certo os limites do reino de Thranduil ao norte da Floresta Escura, se por acaso meu grupo estiver onde não deveria, por favor, me avisem para que eu corrija o absurdo.

2) As "aranhas negras silvestres" são pura invenção minha, sequer tenho noção do tamanho exato de tais criaturas.

3) Um pequeno deslocamento temporal fez-se agora e estamos por volta do ano 2934 da Terceira Era.

Queria agradecer às amigas queridas Nimrodel (espero que esteja se sentindo bem, irmãzinha), Lali, Kiannah, Larwen, Cauinha, Priscila, Kika, Chell, Nininha, Phoenix, Lele, Carol, Giby, Lene, Gio, Bê, Dani, Ju que decidiram acompanhar essa minha short-fic e conseguiram mandar uma review. Agradecer também a Lore pelos votos de boa sorte (quem sabe um dia você consiga ver algo de bom no meu Las, ou ao menos o tolere a ponto de ler meus textos). Também agradeço às gêmeas Leka e Cris e a Nanda, que não tiveram tempo de deixar uma review, mas me disseram que leram e vão acompanhar.

Peço desculpas mais uma vez por não poder esperar pela review de todas as pessoas de quem costumo receber um retorno. O tempo passa depressa e, sem terminar esta fic, DESTINO não tem como prosseguir.

Quero agradecê-las de coração. Espero que continuem gostando e que novas leitoras apareçam.

Beijos

Sadie


Reencontro

Uma certeza íntima inteligível
pode ser a prova de um "reencontro",
sensação opondo-se à razão,
mas impondo-se feito raios solares,
que a despeito da noite,
invade-nos com inteira alegria reluzente,
num renascer em límpida manhã de vida.

Moacir Sader


II - O CONFLITO NA FLORESTA

Vez por outra, certas imagens de infância voltavam à mente do arqueiro louro, cenas do passado, sons de risos, olhares de aprovação, sentimentos de saudade. Isso principalmente ocorria quando ele cavalgava com sua patrulha perto dos limites da Floresta Escura, observando o rio Anduil de longe, ouvindo o caminho das águas, presenciando cenas que não vira quando vivera na clausura do palácio. Aquelas linhas imaginárias de demarcação eram quase um convite para que o passado abrisse suas portas. Quantas vezes ele quisera cruzá-las. Quantas vezes ansiara por descobrir alguns trajetos, algumas emoções e, especialmente, alguns paradeiros.

"Sinto cheiro de chuva." Pensou alto, perdendo-se distraído naquelas cenas misturadas que via.

"É o Anduil." Thavanian esclareceu do cavalo ao lado. "Sempre diz isso quando passamos por aqui. O rio tem cheiro de chuva."

"Já viu chover, Thavanian?"

O elfo curvou os lábios em um belo sorriso.

"Quando cruzamos o rio, certa vez. Ficamos ensopados até os ossos."

Legolas perdeu-se em pensamentos mais uma vez, tentando criar aquela imagem que nunca vira. Ouvira a chuva muitas vezes, vira os pingos fazendo marcas efêmeras no rio em dias de calor, mas fora tudo o que vivenciara. Nunca 'vivera' a chuva de fato, sentira a água fria e límpida em seu corpo, saboreara o arrepio agradável que ele julgava que lhe traria, escondera-se em algum canto aquecido para apreciá-la de perto. Aquilo não era justo. Thavanian, apesar de poucos anos mais velho que ele, vivera muito mais experiências marcantes.

O soldado olhou seu capitão de soslaio. Lendo-lhe os pensamentos.

"Você é o príncipe, Legolas. Sabe que antes que atingisse a maioridade não era seguro para o rei deixá-lo afastar-se do palácio. Ainda tinha que aprender a defender-se."

Legolas estalou os lábios deixando a palavra "prisão" escapar por eles em um murmúrio contido, enquanto acariciava a crina de seu animal.

"Isso é injustiça sua." Protestou o amigo. "Se a intenção do rei fosse de fato mantê-lo enclausurado, não estaria aqui agora, exercendo o papel que exerce."

O príncipe voltou a estalar os lábios, pressionando-os em uma linha fina de insatisfação e Thavanian sorriu-lhe complacente.

"Pense pelo lado positivo, mellon-nin." O guarda-costas desceu o tom de voz para que se permitisse um tratamento mais íntimo com o amigo. "Agora você é capitão e sem qualquer interferência de seu pai. Conseguiu o posto ao mostrar seu valor e na metade do tempo que qualquer um chegou a tal patente. O rei não teve escolha senão deixar que o promovessem e dar-lhe uma patrulha. Não há, em soldado algum, tenha este a vivência que for, experiência que se equipare com a que você desenvolveu, Legolas, abraçado aos livros e mapas durante a suposta clausura na qual viveu."

"Os livros não trazem todo o ensinamento de Arda, Thavanian." Queixou-se o arqueiro, sem olhá-lo nos olhos.

"Pelo que vejo trazem o que você precisa, pois até hoje não houve situação que não soubesse resolver." Discordou o outro elfo. "E seus argumentos eram sempre esses: 'li certa vez que um tal elfo agiu assim.' Ou então 'pelo que li se misturarmos tais ervas podemos combater esse ou aquele mal.'."

Legolas se pegou sorrindo então, mesmo sem querer. Thavanian era um bom amigo, sempre disposto a fazê-lo ver sua vida triste com outros olhos. Eles cavalgaram em silêncio então, até sentirem o entardecer. A Floresta acima se escurecia ainda mais.

"A noite cai." O soldado observou, girando as órbitas com atenção. "Acredito que não haverá como chegarmos ao próximo ponto de parada antes do anoitecer. Talvez devamos acampar por aqui mesmo. Qual sua opinião, capitão?"

"Não me agrada." Legolas franziu o nariz, olhando agora para as árvores que faziam as margens do atalho pelo qual seguiam. "Caminhamos a lentos passos dessa vez ou então devo ter errado em meus cálculos, não sei. Esse caminho estratégico está se mostrando mais longo do que o original."

"Admiro-me com a facilidade com que se esquece de nossos infortúnios." Thavanian sorriu, balançando a cabeça. "Ou julga que nosso encontro pouco amistoso com aquela aranha e sua cria não se classifica como empecilho? Perdemos um bom tempo naquele infeliz conflito".

Legolas fechou os olhos por um momento, revivendo a indiscutível e desagradável cena, depois os reabriu, continuando a olhar a sua volta.

"Bem o disse, mellon-nin" O príncipe comentou com um suspiro. "Classificar de infortúnio tal encontro é tudo o que podemos fazer."

"A sorte lhe foi favorável. Afinal, conseguiu atingi-la com o punhal quando a infeliz caiu sobre você."

"Defendia sua cria." Legolas lembrou com pesar.

"Filhotes do mal, isso é que eram, outras criaturas que cresceriam para sugar as vidas dos nossos."

O arqueiro apertou um pouco mais os dedos que envolviam a crina de seu cavalo.

"Nosso mundo tem coisas que ainda fogem da minha compreensão." Ele comentou pensativo e triste.

"Decerto." Concordou o soldado, olhando agora o cavaleiro a seu lado com atenção. "Como se sente?"

"Ainda não surtiu efeito algum." Legolas tranqüilizou o amigo, sabendo bem o propósito daquele questionamento. "Nem sei se houve tempo para que veneno suficiente fosse administrado, sequer senti a dormência característica da picada."

"Mesmo assim, depois quero que me deixe ver como está." Pediu o outro, pouco convencido. Ele conhecia bem o líder e o péssimo hábito que tinha de amenizar até o pior dos conflitos com palavras evasivas.

Legolas assentiu distraído. Sua atenção estava ainda em outro lugar, em sensações que o estavam incomodando. Era como se todos os poros de seu corpo sentissem o perigo a espreita. O problema é que ele olhava insistentemente para os lados e nada via de concreto que justificasse tal temor.

"Vamos acampar por entre aquelas nossas conhecidas ali." Thavanian sugeriu, apontando para um conjunto de grandes árvores, entre as quais uma pequena clareira havia surgido com o tempo e sem grandes explicações. A Floresta Escura tinha os seus caminhos modificados nos últimos anos e muitos deles não faziam sentido nem mesmo para os elfos silvícolas agora.

A idéia despertou Legolas de suas apreensões.

"Que assim seja." Ele concordou contrariado, baixando finalmente a cabeça e suspirando. Devia ser alguma bobagem o que o estava incomodando, talvez estivesse sentindo a presença de algum animal menor e, devido ao mal estar causado pela picada que levara, aliado ao cansaço comum da viagem, estivesse crendo ser algo pior.

Mas o talvez nem sempre se resume a uma possibilidade que fica para trás. Às vezes desperta como um futuro que se converte em um presente aterrador.

Quando Legolas e seus elfos perceberam estavam cercados por um grande grupo orc. Seu cavalo ergueu-se assustado e quando o arqueiro deu por si caia brutalmente no chão. Legolas virou-se para tentar erguer-se e deparou com uma criatura já descendo a espada em direção a seu peito. O orc, porém, foi transpassado por uma grande flecha e caiu sem que pudesse completar suas intenções. O príncipe olhou a sua volta. Não sabia de qual de seus elfos viera a ajuda, mas agradeceu mentalmente por todos eles, pedindo para cada um a segurança e a sorte que precisavam ter para que a batalha não levasse ninguém. Ele se ergueu com aquela emoção a encher-lhe o peito e puxou a primeira flecha, para acertar em cheio um outro ser repulsivo que lhe avançava.

"Capitão!" A voz do guarda-costas surgiu de algum lugar. Pobre Thavanian, sequer sabia ou podia ver onde o amigo estava em meio aquele pandemônio todo. Provavelmente o bom elfo e soldado estava preocupado com ele, algo que, além de sua obrigação na função que o rei lhe atribuía, era uma atitude que tomava desde pequeno. Legolas sempre dizia que o amigo não fora convocado para ser seu guarda costas, ele apenas fora assumido como tal, haja vista que desempenhava gratuitamente essa tarefa desde que ambos eram pequenos.

Uma, duas, três e as contas de suas flechas lhe fugiu do controle, enquanto corria por entre as árvores. Não demorou muito para que, na aljava em suas costas, não restasse mais nenhuma.

"Mais de vinte?" Ele calculou incrédulo ao término de suas flechas. Sozinho dera fim em vinte e quatro flechas e ainda havia muitas criaturas a correr pela clareia e digladiar-se com os membros de sua patrulha. Cores negras invadiam enfim aquela imagem que lhes servia de cenário.

Legolas escondeu-se atrás de uma grande árvore e apertou o arco com ambas as mãos, analisando o campo de batalha que enfrentavam. A poucos passos já reconheceu os corpos de dois de seus soldados imóveis no chão. Ele encheu o peito para encarar a dor daquela cena, mas o calor da batalha não lhe possibilitava parar para verificar se podia fazer algo por eles.

Gritos ecoavam pela mata, outros orcs pulavam das árvores por sobre os elfos.

"Elbereth." Ele clamou incrédulo. "De onde estão vindo esses monstros?"

A noite avançava no céu, logo estaria escuro demais e o confronto ganharia outros aspectos ainda mais difíceis. Ele tinha que fazer algo. Olhou novamente para os corpos dos amigos e correu em direção ao primeiro, atirando-se ao lado dele e passando a usar as flechas do soldado. Como não podia retirar a aljava do corpo de seu dono, passou a atirá-las de onde estava, acertando os inimigos a uma distância razoável. A distância na verdade não era problema para ele, porém, o fato dos membros de seu grupo estarem mesclados aos inimigos no quase breu daquela batalha desvantajosa, lhe enchia o coração de temor. Se por um descuido, uma desatenção ou ilusão qualquer, viesse a acertar um de seus companheiros, ele não se perdoaria.

Mas esse momento não se deu, e o bom Legolas conseguiu encontrar o rumo certeiro de suas flechas, levando ao chão mais alguns oponentes com a pouca munição que restara na aljava do amigo. Terminada esta, ele passou a arrastar-se para perto do outro soldado. Entretanto, naquele momento, a sorte não se repetiu. O segundo elfo, cujo corpo sem brilho jazia por sobre as raízes de uma enorme árvore, estava sem qualquer armamento disponível.

Legolas fechou os olhos, apoiando a mão nas costas frias de seu soldado.

"Espero que Mandos nos receba com misericórdia, mellon-nin." Ele lamentou em um tom baixo, sentindo no peito que o rumo daquela batalha estava mais do que traçado. Eram inimigos demais para seu pequeno grupo, agora ainda mais reduzido.

Não restava alternativa então, senão puxar seu punhal e levar a luta para um corpo a corpo. Ele cairia provavelmente, mas não seria antes de tentar reverter sua sorte.

Ergueu-se então e, em poucos instantes, surgiu uma imagem que vinha intensificar sua certeza do que fazer. O amigo Thavanian estava caído, mas brandia sua longa espada contra três orcs que o cercavam. Legolas não pensou duas vezes, ele avançou quase cegamente, atirando a arma que tinha em mãos. O punhal girou quase como um bumerangue, devido à força com que fora arremessado e acertou em cheio no centro das costas de um dos inimigos. Thavanian, aproveitando-se da surpresa que o grito da criatura atingida despertou nos outros dois orcs, conseguiu reerguer-se e decepou-lhes as cabeças em um único giro de espada, chutando a que caíra próximo a ele com uma ira que lhe era característica quando desempenhava seu papel de guerreiro. Legolas apertou os lábios de onde estava, admirando por rápidos instantes a incrível habilidade de seu guarda-costas e Thavanian lançou-lhe um breve olhar de agradecimento.

Estavam novamente lutando como podiam. Legolas com uma adaga um pouco mais longa que encontrara em uma mão e o próprio punhal em outra, e Thavanian com a espada. Eles faziam um giro no centro do conflito, as costas de ambos coladas, movimentando-se como se fossem um só corpo. A desvantagem, porém gritava-lhes seus riscos e receios, por mais que tentassem não dar atenção ao fato. A sua volta os brados de seus companheiros desapareciam junto com a luz de seus corpos e o conflito caminhava para um fim aterrador.

"Capitão, precisa ir. Tem que sair daqui." Thavanian finalmente aceitou os conselhos que a situação em si lhe propunha. O príncipe precisava ser salvo. Ele não pereceria com seus elfos em uma emboscada. Não enquanto ele estivesse ali. Sua função era proteger o filho do rei a qualquer custo. As instruções de Thranduil foram muito claras.

Legolas ignorou, ou fingiu ignorar a frase já esperada do amigo, enquanto defendia-se como podia do grupo que os cercava.

"Vá, Legolas... Está acabado... Não cairá nesse chão..." Insistiu o guarda-costas, procurando ao máximo encontrar forças para lutar e convencer o príncipe do que devia agora fazer.

"Não gaste sua energia... nem tome minha atenção... com tolices." Legolas queixou-se com dificuldades, enquanto ambos giravam seus corpos como podiam para protegerem-se dos inimigos que, com a queda dos outros membros do grupo, se avolumavam agora ao redor deles.

"Tem que ir. É a regra!" Thavanian gritou então, recebendo os golpes que podia e rangendo os dentes de ódio. Aquelas criaturas estavam em uma vantagem assustadora. "Dar-te-ei cobertura. Pule em uma das árvores assim que uma brecha surgir."

"Cale-se, Thavanian. Não irei à parte alguma."

"Legolas!"

"Não me... faça... repetir..." O capitão enraivou-se então. Havia tantos oponentes e Thavanian roubava-lhe os sensos com aquele discurso irritante.

Legolas sentiu o elfo bufar em suas costas como resposta, passando então a empurrá-lo para mais próximo das árvores maiores.

"Vá!" Thavanian ordenou com veemência. "Ou nossa morte não terá sentido. Não me desonre, capitão. Deixe-me cumprir minha função."

Legolas apertou os lábios com força, dividido entre o que desejava e o que tinha por obrigação cumprir. Se não seguisse as instruções de Thavanian seria o mesmo que desobedecer claramente uma ordem de seu pai, e ele sabia muito bem o que isso significava. Mas se não o fizesse, se ignorasse tais ordens, logo estaria morto, pois suas chances eram praticamente nulas. Isso o fazia pensar no quão tola era aquela dúvida que lhe surgia.

Porém, antes que conseguisse fazer cérebro e coração trabalharem juntos, em prol de uma resposta específica, o grito agonizante de Thavanian foi ouvido e Legolas sentiu que perdera seu apoio. Ele voltou-se rapidamente e viu o amigo já caído de joelhos. A espada do opressor cravada em seu abdômen, mas os olhos deste já voltados para a nova presa. O orc ergueu o punhal que tinha na outra mão, mas em instantes estava no chão, com a adaga do príncipe em sua garganta.

Legolas puxou de volta sua arma em tempo de acertar o adversário ao lado deste e começou a desferir vários golpes a sua volta, apenas para tentar afastar um pouco os inimigos que restava, enquanto coloca-se em pé em frente ao guarda-costas. Tudo o que fazia agora era procurar defendê-lo como podia dos golpes de um outro orc, cuja arma era tão curta quanto a sua, porém ligeiramente encurvada. Um armamento diferente, mas que para Legolas não foi empecilho. Ele recebia o ataque com firmeza, procurando usar o corpo para proteger o amigo caído ainda de joelhos.

"Vá..." Ele ouviu a voz fraca de Thavanian pedir. "Estamos... derrotados..."

Legolas encheu o peito, aquela expressão doía-lhe mais do que a cena que presenciava, inundava-o de um ódio profundo. Com o canto dos olhos ele tentava acompanhar o desenrolar do restante da luta, mas não conseguia. Já estava bastante escuro e a ausência do brilho de seus elfos era um sinal alarmante.

O orc a sua frente finalmente caiu, mas outro já se aproximava, porém a ação deste segundo não foi tão feliz e logo sua arma estranha passou para as mãos do príncipe. Legolas brandiu-a com ferocidade contra os inimigos restantes. Em sua mente já era certo que seu grupo havia perecido. Sim, seus elfos caminhavam agora para se encontrarem com Mandos, mas fizeram um trabalho digno. Ele não os deixaria perder sua glória.

Girou o corpo com a pequena espada que tomara em uma mão e a adaga branca na outra, imaginando-se ser um outro alguém, ele não tinha experiências com esse tipo de arma, muito menos com esse tipo de luta, mas aquelas criaturas asquerosas não pareciam ter um conhecimento muito diferente do dele.

Em alguns instantes, ou mais - Legolas, em sua crise de ira não conseguiu conceber - o que restava do inimigo agora tinha a face colada ao chão de terra seca e ao redor do príncipe havia uma grande pilha de cadáveres. Um cenário composto de restos de guerra.

"Elbereth." Legolas caiu em seus joelhos, soltando as armas que tinha. Estava exausto, sentia frio, calor, medo, angústia, mágoa, ódio. Ele embriaga-se daquelas emoções sem saber como contê-las ou controlá-las, enquanto girava desolado o rosto, vendo em cada direção o corpo inerte de um seus elfos, todos sem o brilho da existência a lhes agraciar mais.

De todos aqueles bravos soldados, restaram apenas ele e Thavanian, e o bom guarda-costas estava muito ferido.

"Devia ter... ido, elfo... teimoso." Dizia agora o soldado por entre os dentes enquanto Legolas fazia o que podia para conter-lhe a hemorragia.

"Não fale mais." O príncipe aconselhou em um tom triste, colocando na frente dos lábios do amigo uma folha avermelhada. "Mastigue isso aqui."

"Se... se quer... me fazer dormir... Pode esquecer..."

"Mastigue, Thavanian." Legolas olhou-o com urgência. "Não me retruque ao menos dessa vez."

O elfo suspirou, desprendendo os lábios e aceitando a oferta. Sabia que a erva era uma erva de sono e que dormir seria deixar Legolas sozinho naquela floresta, mas o príncipe estava tão abalado que contrariá-lo naquela situação não parecia ser a melhor das sugestões.

"Faça um talan, Las." Ele disse com carinho, segurando a mão do amigo. "Acha que pode fazê-lo sem ajuda?"

Legolas baixou o rosto, sentindo-se incapaz de responder. Estava tão amargurado que as palavras pareciam ter-lhe abandonado. Ele apenas assentiu levemente com a cabeça.

"E... tome... tome o antídoto..." O guarda-costas lembrou, já com as pálpebras semicerradas. "Se... se a febre vier... virá menos... intensa..."

Legolas assentiu novamente, observando os olhos do amigo se fecharem. Ele então se sentou por alguns instantes em seus calcanhares e cobriu o rosto com as mãos manchadas. Ilúvatar, ainda tinha tanto a fazer. Precisava construir um abrigo e ainda enterrar seus mortos. Ele ergueu os olhos úmidos, voltando-os para o que tinha a sua volta, para os cadáveres que em breve estariam apodrecendo se não fizesse algo a respeito.

"Ah Elbereth..." Clamou então, voltando a olhar para o amigo adormecido. O ferimento de Thavanian era muito grave e ainda havia uma chance grande da arma estar envenenada. "Guie-me agora também, estrela de nossa sorte."

Tudo o que desejava naquele momento era aceitar o pranto que queria explodir-lhe o peito. Cair ali mesmo e deixar-se morrer, acompanhar seu grupo. Por todos os Valar, o que havia acontecido? Como perdera toda a patrulha assim, tão longe das zonas de risco? Como um mal tamanho podia ter acontecido?

"Minha sina... A má sorte dos que me seguem." Ele apertou o rosto entre as mãos. "Passo adiante o que seria justo ser destinado apenas a mim... a mim mesmo... Eu devia ter tido mais cautela... Ouvido meus instintos... Eu... Eu não posso liderar... Sou... Sou a desgraça de meu povo..."

Mas Ilúvatar parecia não aprovar vê-lo entregue assim, pois em instantes o cansado e abatido príncipe sentiu a pressa crescer-lhe no peito, ao lembrar-se do integrante que ainda não se fora e que, se a sorte resolvesse agraciá-lo pelo menos dessa vez, poderia ser salvo.

O arqueiro respirou fundo e ergueu-se então, enchendo a mente com outros pensamentos mais úteis, enquanto dividia as dúvidas que tinha em uma balança imaginária de valores e riscos. Primeiro conjeturou se poderia acender uma fogueira. Thavanian precisava de calor. Entretanto, sozinhos ali, seriam um alvo fácil se tivessem luz como chamariz. Porém, no escuro e rodeados de carne e sangue, sem o fogo que lhes valesse, seriam também atrativos para outros animais.

Legolas optou então pela fogueira. Faria-a e a manteria apenas até terminar o talan. Pedindo a Ilúvatar que nada de imprevisto e desagradável acontecesse nesse ínterim.

Devagar ele executou a primeira de suas tarefas, juntando gravetos soltos e fazendo com que o fogo surgisse deles. Trouxe então Thavanian para mais perto, checou as bandagens improvisadas que fizera e fez uma preocupante descoberta: a temperatura do amigo subira consideravelmente, mesmo com as folhas que lhe dera. Legolas procurou não se desesperar, ele ainda tinha alternativas, o amigo precisava tomar um outro medicamento e para isso era necessário esquentar um pouco de água. Sim, a fogueira decididamente tinha sido uma decisão acertada.

O arqueiro deixou então o rumo de suas atribuições para cuidar um pouco mais do ferido. Colocou a caneca no fogo, ferveu a erva necessária, esfriou o chá e gastou um tempo significativo tentando convencer o já entorpecido e febril Thavanian a beber a nova mistura.

Apenas quando a febre mostrou estar cedendo suas forças com a ação do medicamento, foi que Legolas voltou a organizar seus afazeres. Tinha que construir um abrigo, mas não podia simplesmente deixar o campo daquela forma na qual estava. Aqueles focos de sangue espalhados compunham diversos riscos. O que faria primeiro?

Ele decidiu-se então, ainda sem saber se era o mais sensato a fazer, ergueu-se e caminhou cambaleante por entre a mata, juntando as pilhas de cadáveres em dois grupos iguais em desgraça, mas diferentes no sentimento que despertavam. Em uma extremidade do acampamento improvisado, ficaram os cadáveres enegrecidos de seus inimigos, do outro, a triste visão do que fora sua patrulha.

Quando terminou seu rosto estava inundado de suor e lágrimas. Sequer percebera que chorara e que ainda chorava silenciosamente, sentindo o caminho das lágrimas por seu rosto. Ele sentia uma dormência estranha em seu corpo, como se a dor o estivesse dominando devagar, tomando o controle até das sensações que tinha, anestesiando-o. Legolas encostou-se em uma árvore e respirou fundo até conseguir retomar seu controle.

Ainda não podia dar-se ao luxo de se deixar levar pelo desespero. Nem sabia se esse instante chegaria de fato. No momento uma outra dúvida lhe acometia. O que faria com os corpos? Colocaria fogo nos cadáveres? Ali? Sem qualquer auxílio? Naquela hora da noite? Isso era muito arriscado, porque, além de atrair de forma mais definitiva a atenção, ainda havia o risco do fogo tomar algumas de suas amigas árvores.

Legolas fechou os olhos novamente, listando os prós e contras e não sabendo como agir. Reaproximou-se e jogou outros gravetos na fogueira, imaginando o fogo e a ação perigosa que exercia. Não. Decididamente aquela não era uma idéia aconselhável. Como conseguiria conter a grande fogueira se esta resolvesse tomar outros rumos?

Ele voltou-se angustiado para as árvores próximas e, pensando na possibilidade macabra de um acidente maior, foi acometido por uma outra conclusão não menos preocupante. Não havia nenhuma árvore ali que favorecesse um talan e ele não teria coragem de cortar os galhos que se faziam obstáculos para forçar tal favorecimento.

"Elbereth." O arqueiro soltou os lábios e o ar de dentro do peito aflito. Por que se fizera capitão? Onde estavam as qualidades que Thavanian dissera com tanta ênfase ter visto nele?

Foi quando algo que julgava ainda pior aconteceu. Ele ouviu um barulho na mata. Ergueu o punhal imediatamente, mas sua mão começou a tremer, mesmo contra sua vontade. Ilúvatar, outro ataque não. Não teria chance alguma. Ele caminhou inseguro pelo campo, procurando distanciar-se da fogueira para não ser visto com tanta facilidade. Se fosse ser atacado, ao menos ele não seria um alvo fácil.

"Paz, soldado." Surgiu então uma voz da floresta, mas o rosto de seu dono não a acompanhou. "Somos elfos. Dividiria conosco seu espaço e sua fogueira?"

Legolas baixou um pouco a arma então, tentando reconhecer aquela voz familiar, mas não conseguiu.

"Peço que venham para luz então. Para que os veja."

"Certo." O outro respondeu e o arqueiro pode ver um vulto acenar e atrás dele sair um grupo de aproximadamente dez integrantes.

"Foi atacado, soldado?" O elfo indagou, olhando em direção às pilhas que o príncipe armara.

"Sim, senhor."

"De onde vem? De onde é?"

"São vocês os que chegam." Legolas deu um passo adiante, ainda apertando os dedos ao redor da arma. Estava insatisfeito por não conseguir ver o rosto do recém chegado. "Peço que se identifiquem primeiro."

O outro se silenciou e Legolas pode ver-lhe o corpo enrijecer, mas depois o elfo voltou a olhar a sua volta e soltou os ombros, parecendo compreender o porquê da apreensão daquele soldado.

"Somos de Valfenda." Ele disse em um tom sereno e sua voz soou ainda mais familiar, como quando se ouve uma canção antiga, daquelas que remetem a um passado tão longínquo que a infância chega a ser palpável. "Uma patrulha como a sua, pelo que vejo."

Legolas inquietou-se mais. Seu coração recusava-se a desacelerar seu frenético ritmo.

"É o capitão?" Ele indagou, procurando preencher suas dúvidas. Mas na verdade ainda não conseguira tecer o que mais o intrigava.

"Sim. Posso me aproximar? Meus elfos ficam onde estão até que me veja e conversemos."

Legolas mordeu o lábio inferior, receoso e o silêncio fez o papel de sua resposta involuntária.

"Deixo minha arma aqui." Ofereceu então o elfo, puxando a espada e entregando-a ao vulto que estava a seu lado. "Meu irmão fica com ela enquanto conversamos."

Meu irmão fica com ela. O príncipe repetiu a frase em sua mente e a palavra irmão ganhou cores estranhas, tal qual portas que se abrem devagar, mas ainda nada revelam de seus cômodos escuros.

"Que assim seja." Legolas enfim concordou, sentindo-se sem alternativa melhor. "Da forma que me oferece."

"Certo."

O elfo então deu um passo adiante, caminhando devagar pela mata. Legolas viu que, na verdade, aquele líder parecia mais preocupado em reconhecer o território do que propriamente com o suposto inimigo que o estranho poderia vir a ser. A figura, que ainda era um vulto por evitar o caminho da luz, deteve-se alguns instantes diante das pilhas de mortos e apoiou a mão no peito, depois se voltou para ele.

"É o capitão?"

Legolas prendeu o ar nos pulmões.

"Não." Ele mentiu, como as regras lhe exigiam. "O capitão está ali. Está ferido."

Foi então que o elfo aproximou-se de Thavanian e da claridade.

"É grave?" Ele indagou, agora de costas para o arqueiro. "Temos um curador em nosso grupo. Posso pedir que venha olhá-lo?"

Legolas apertou os lábios e o incômodo de ainda não reconhecer aquele guerreiro foi substituído por uma preocupação maior. Ele não pudera fazer a sutura no ferimento do amigo. A presença de um curador seria por demais conveniente.

"Ou você é curador?" O elfo indagou, voltando seu rosto para ele. Porém, de costas para a fogueira como estava, aquela posição não favoreceu muito mais seu reconhecimento. "Vejo que já fez nele os primeiros socorros com destreza."

"Não. Não sou." Legolas apressou-se em responder. "Sou apenas um soldado e sequer pude suturar o ferimento. Uma arma orc foi a causadora e temo que pudesse estar envenenada."

"Pois então me deixe vê-lo." Uma outra voz surgiu da direção de onde o primeiro elfo viera, uma voz idêntica a do recém-chegado.

"Paz." O líder, ainda próximo da fogueira, repetiu ao ver Legolas reerguer instintivamente o punhal que ainda segurava. "É meu irmão. Um dos melhores curadores de Imladris. Peço que o deixe aproximar-se."

Legolas franziu o cenho, sentindo uma cascata de recordações finalmente brotar em seu peito. Meu irmão... curador... Imladris... Aquelas palavras ganhavam um sentido, somando-se enfim em uma idéia que o príncipe visualizou com um misto de enternecimento e insegurança, de expectativa e temor.

"Agradeço..." Ele apenas disse e o vulto deslocou-se de onde estava a passos largos. Passos largos que ele conhecia bem.

"O que deu a ele, soldado?" Indagou o curador, já agachado diante de Thavanian.

"Ervas de primeiro socorros." O príncipe respondeu receoso agora, cavalgando devagar o animal arredio de suas sensações. "E um sedativo leve. Não carregamos muitos medicamentos e tínhamos acabado de sair de um conflito com uma grande aranha negra."

O curador ergueu o rosto impressionado.

"Uma silvestre negra?"

"Sim, senhor..." Legolas respondeu.

O elfo olhou-o por mais alguns instantes, depois voltou a tratar de Thavanian, tirando as ataduras que Legolas improvisara para verificar o estado do ferimento.

"Fez um bom trabalho, soldado." Ele disse, sem se voltar.

Legolas soltou os ombros e o capitão do grupo finalmente tomou sua direção. Ao ver que se aproximava dele agora, o príncipe recuou um passo.

"Paz." O elfo ergueu-lhe uma mão. "Deixe-me ver seu rosto. Não sou ameaça, soldado."

Ver meu rosto e que eu veja o seu. Legolas pensou, embora a certeza de suas lembranças já lhe tivesse adiantado a resposta que confirmaria. Ele sabia muito bem quem era aquele que se aproximava agora dele, com a tocha que acendera na fogueira.

O elfo ergueu o fogo e Legolas apertou os olhos diante do brilho que se fez.

"Perdoe-me." O outro se desculpou, afastando a chama. "Esqueço-me que os silvestres têm os olhos mais sensíveis a luz. É um silvestre, não é?"

Silvestre. Ele disse para si mesmo. Mestiço. É o que sou. É do que as crianças me chamavam quando pequeno.

"Sim." O príncipe apenas respondeu, erguendo finalmente os olhos e reconhecendo linha a linha o rosto diante dele.

"Sou Elrohir de Valfenda. Filho de Elrond Peredhel, o senhor de Imladris. Aquele é meu irmão gêmeo, Elladan."

"Olá." Elladan saudou-o sem tirar os olhos do que fazia.

"São-me conhecidos." Legolas disse receoso, pensando na melhor maneira de mentir o mínimo possível. Ainda não sabia se o que fazia era certo ou não.

"Conhece-nos de onde, soldado?"

"Visitavam o palácio em tempos passados." O arqueiro principiou sua resposta, indeciso sobre que rumo tomar se algo mais lhe fosse indagado. Porém os cantos dos lábios de Elrohir se ergueram como se tivesse sido tomado por uma lembrança prazerosa.

"Sim. Fazíamo-lo nas primaveras." Ele respondeu com os olhos perdidos em imagens do passado. "Mas você é jovem, não?" Indagou então, voltando a encarar o arqueiro. "Isso faz alguns bons anos. Visitávamos o palácio em uma época de suposta paz que na verdade era um puro engano."

"Bem o sei." Legolas respondeu. "Eu e Thavanian conhecemos o som da vida nesse período. Ele é pouco mais velho que eu."

Elrohir voltou-se para o ferido e Elladan ergueu os olhos imediatamente, como se compartilhassem a mesma lembrança.

"Pois veja." O curador olhou para o rosto de seu paciente. "Lembro-me de um Thavanian, amigo do príncipe Legolas. Trata-se desse nosso ferido aqui?"

"Sim." Legolas respondeu estremecendo e logo os olhos de Elrohir estavam sobre ele novamente.

"É também você amigo do príncipe?"

"Eu?"

"Sim."

"Não." Ele apressou-se em responder. "Quero dizer... nem tanto quanto Thavanian o é."

Elrohir sorriu, voltando a olhar para o elfo a quem Elladan dispensava seus cuidados.

"Espero que fique bom logo para nos falar sobre ele. Temos grande apreço por seu príncipe, soldado."

"Fico... fico feliz por sabê-lo." Legolas respondeu, passando a se sentir a pior das criaturas.

Elrohir soltou os ombros e sacudiu levemente a cabeça, como se espantasse alguma idéia que o incomodava.

"E você? Como o chamam?" Ele se voltou novamente para o príncipe com um sorriso cortês.

"Sou apenas um soldado, meu senhor." Legolas baixou então a cabeça e Elrohir aproximou-se mais, apoiando a mão em seu ombro, mas estranhando ao sentir o corpo a sua frente estremecer.

"Está tudo bem." Ele disse, dando-lhe uma leve sacudida. "Admira-me a precaução que vejo em você. Provavelmente é parte de suas habilidades de soldado e o que fez com que se saísse vencedor."

"Não fui vencedor..." Legolas baixou mais a cabeça.

"Está de pé, não está? Enquanto o grupo todo sofreu sina pior. Não tenho dúvidas de que estou diante de um excelente soldado."

Legolas respirou fundo, olhando com o canto dos olhos para a pilha de corpos sem vida que armara e que sabia que o perseguiria por muito tempo como o pior dos pesadelos. Elrohir arrependeu-se das lembranças que levantara.

"Foi um conflito difícil." Ele disse. "Lamento que não tenhamos chegado antes para que fôssemos de alguma ajuda."

"A ajuda que me dão agora não tem preço, capitão." Legolas respondeu com sinceridade, olhando preocupado para o gêmeo curador, que ainda mantinha-se concentrado no tratamento que oferecia ao paciente.

Elrohir acompanhou o gesto, em seguida voltou a olhar para Legolas, sacudindo-lhe o ombro que segurava mais uma vez.

"Ele vai ficar bom. Não se preocupe mais. Elladan é um dos melhores curadores de Imladris, equipara-se mesmo a nosso pai."

"Meu irmão exagera." Elladan retrucou de onde estava. "Mas ele tem razão ao dizer que seu amigo ficará bom e que não precisa se inquietar por ele. Só precisa de alguns cuidados e muito descanso."

Legolas assentiu levemente com a cabeça, mas afastou-se de Elrohir. Estar próximo a ele lhe trazia recordações que não queria ter. Quando os gêmeos não voltaram, sua mente se encheu de angústia e dor. Passava dias pensando no que havia dito ou feito de errado, enquanto seus amigos ironizavam, dizendo que o grupo vinha apenas visitar a rainha e, uma vez a rainha morta, não havia mais a quem ver.

O gêmeo observou curioso o elfo, que agora caminhava na direção da pilha de amigos mortos que fora obrigado a criar. O sofrimento que estava no coração daquele soldado era tão forte que ele podia senti-lo em seu próprio peito.

"Uma fogueira não é aconselhável." Elrohir aconselhou, lendo os pensamentos do elfo louro agora. O soldado olhava preocupado para os corpos e para as árvores, parecendo tentar organizar pensamentos deveras misturados. "Se não se importa, os membros de minha patrulha podem ajudá-lo a enterrar seus amigos. Infelizmente é tudo o que podemos fazer na situação na qual nos encontramos."

Enterrá-los. Sim. Era a única opção. Devolver à terra seus filhos. Legolas repetiu a idéia em sua mente, mas nem essa doce poesia ajudou a abafar o sentimento que cresceu em seu peito, apenas por visualizar a possibilidade de jogar os corpos de seus amigos em uma vala aberta, todos juntos, como se não significassem mais nada. Ele ergueu as mãos e cobriu o rosto, segurando o soluço que queria brotar em seu peito. Ilúvatar, tudo, menos chorar diante dos filhos de Lady Celebrian.

Uma mão pousou em seu ombro então e ele sobressaltou-se.

"Deve acalmar-se." Era Elrohir, que sentira o desespero chegar as portas do coração daquele bravo soldado e viera oferecer-lhe algum conforto. "Não está só. Nós ajudaremos no que for preciso."

Legolas assentiu com a cabeça, tentando calar a emoção misturada que crescia em seu peito. Elrohir apoiou a outra mão em seu ombro esquerdo agora e sacudiu-o com um pouco mais de ênfase.

"Você é um bravo soldado. Bem se vê. Fez o que podia, tenho certeza. Agora deve descansar. Permita-nos fazer esse trabalho final. Tem minha palavra que trataremos os seus com dignidade."

Legolas fechou os olhos comovido e engoliu o nó que se formou em sua garganta.

"Sou-lhe grato, capitão. Mas meu descanso só virá depois do deles."

Elrohir não pode deixar de sorrir admirado. Já conhecera muitos soldados, mas nenhum com um espírito assim tão forte. Ele soltou os braços sem ação ao ver o elfo voltar a se afastar, empurrando com os pés as folhas secas, provavelmente em busca de um lugar apropriado para o túmulo que criariam. O capitão moreno fez então um gesto para seus elfos e o grupo surgiu respeitosamente, ajudando o soldado solitário na difícil tarefa que destinara a si mesmo.

Em poucas horas o amanhecer despontava suas cores e sons, e só então a pequena clareira mostrou-se finalmente limpa. Sequer parecia ter sido cenário de tão horrendo conflito. Elladan aproximou-se do grupo, parando ao lado do irmão. Elrohir, que coordenara os esforços daquela noite, ainda observava em silêncio o soldado colocar algumas pedras no túmulo que fizeram, cantando uma canção doce e triste na antiga língua silvestre.

"Esse idioma parece o canto dos pássaros." Comentou ao perceber a chegada do gêmeo.

"É verdade." Elladan concordou.

"Trabalhou sem trégua." Elrohir suspirou, ainda olhando para o arqueiro, ajoelhado naquela terra remexida. "Ganhou minha admiração."

"E a minha." O primogênito acrescentou. "Contudo meu coração dói demais por esse soldado." Ele revelou cruzando os braços e pendendo a cabeça, como se analisasse um quadro triste em busca de respostas difíceis. "A grandeza de seu espírito salta aos olhos e toca os sentimentos de qualquer um."

Elrohir soltou forçosamente o ar dos pulmões. Concordava inteiramente com as palavras e sentimentos do irmão. Ele queria fazer mais, mas não sabia como, não sabia o quê.

"Como está o capitão?" Indagou ao irmão.

"A febre cedeu." Elladan respondeu ainda com os olhos no jovem louro, que agora estava sentado sobre as pernas dobradas, visivelmente esgotado. "Thavanian é um sindar, são elfos muito fortes. Acredito que não custará para que esteja de pé."

"Então talvez devêssemos tentar fazer com que esse soldado descanse agora."

Elladan assentiu, caminhando alguns metros e ajoelhando-se ao lado do príncipe. Legolas envolveu imediatamente o corpo com ambos os braços ao sentir a presença do gêmeo e essa atitude em si já despertou em Elladan um estranho e incompreensível sentimento.

"Seu amigo se recupera bem." Disse o curador, recebendo os olhos claros daquele jovem soldado imediatamente nos dele. Queria buscar algo que o animasse. "Creio que todo o risco já passou."

Legolas ofereceu um aceno de cabeça e um suspiro.

"Devo-lhes." Ele apenas respondeu.

"Deve-nos nada."

"Surgiram nessa clareira fechada e nos ajudaram. Não teria conseguido sem os senhores." O arqueiro baixou a cabeça, cravando os dedos na terra solta e sentindo suas próprias mãos desaparecerem nela. Elladan acompanhou o gesto intrigado.

"Esqueça isso." O curador respondeu, ainda observando o soldado mover os mãos mansamente sob aquela terra escura. Ele não entendia porquê, mas aquela atitude estava lhe dando calafrios.

"Sou-lhes grato." Legolas respondeu e sua voz pareceu estranhamente perdida, com se estivesse em uma espécie de sonho.

"Precisa descansar agora."

O arqueiro não respondeu, ele apenas fechou os olhos, sentindo as mãos cobertas por aquela terra, aquele chão que o pai defendia, a mesma terra que cobria agora os corpos de seus amigos. Sentimentos estranhos então inundaram sua mente. Talvez ele também pudesse ir, agora que tudo estava calmo e Thavanian tinha quem lhe socorresse. Ele podia acompanhar seus amigos e ter aquela terra por sobre seu corpo, como desejava secretamente desde que a mãe se fora. Elbereth ele queria tê-la acompanhado.

Mas Elladan tocou-lhe o ombro, fazendo-o estremecer, despertando-o de suas sensações. Ele voltou-se e ao ver-se preso aos olhos acinzentados e sábios do filho mais velho de Lady Celebrian, primeiro empalideceu, depois se sentiu envergonhado, como se o curador estivesse conseguindo ler suas intenções. Estaria?

Elladan o olhava com seriedade, os lábios fortemente colados e o rosto sem traço de qualquer emoção. O curador então estendeu ambas as mãos e retirou as de Legolas de onde estavam, segurando-as entre as suas.

"Estão sujas." O príncipe tentou soltar-se de imediato, mas o gêmeo agora o encarava com olhos mais sérios ainda, adornado por contraídas sobrancelhas.

"Tem febre. Está ferido?" Ele indagou, erguendo imediatamente a mão e apoiando-a na testa de Legolas. O arqueiro quis esquivar-se, mas Elladan segurou-o pelo braço e apoiou a mão inteira no rosto dele. "Por quê está febril? O que me esconde?"

"Não é nada. Deixe-me, por favor, Lorde Elladan."

O gêmeo suspirou insatisfeito, passando a mão por trás do pescoço de Legolas para mantê-lo quieto e fazer com que olhasse para ele. A outra mão ainda segurava um dos braços do arqueiro.

"Por favor... Não... Não é nada..." Legolas sentiu-se ainda pior por perceber a preocupação evidente nos olhos do primogênito da senhora de Imladris. Como Elladan podia se importar assim com alguém que sequer conhecia?

"Não há vergonha em se estar ferido, soldado. A guerra fere nossos corpos e nossos espíritos. Temos que nos deixar ajudar." Elladan disse com uma seriedade contundente e Legolas se viu congelado diante daquelas palavras.

"Eu... Eu fui picado há dois dias." Ele informou em uma voz tímida, sem saber o porquê da necessidade de tamanha sinceridade que sentia agora. Puxou levemente o braço então e Elladan deixou que se afastasse dessa vez, mas manteve os olhos nele. "Sou alérgico. Demoro algum tempo para me estabilizar."

"A aranha negra de que me falou?"

"Sim, senhor. Não é serio, senhor, eu..."

"Mas é das mais venenosas."

"Matei-a antes que injetasse toda a sua carga de fel." Legolas disse, apoiando instintivamente a mão no abdômen, movimento este que Elladan acompanhou de imediato.

"Mas foi alvo dela?" Ele indagou, adiantando-se em abrir a túnica do soldado. "Deixe-me ver."

Legolas esquivou-se mais uma vez e Elrohir que se afastara para atender ao chamada de uma de suas sentinelas, reaproximou-se, vendo que algo se passava entre os dois.

"Qual o problema, Elladan?" Ele indagou ao irmão.

"Esse soldado foi picado. Diga a ele que me deixe ver em que condições está o ferimento, Elrohir."

O gêmeo mais novo franziu o rosto. Não queria forçar o temperamental e já abatido rapaz a fazer algo que não o agradasse.

"Permita-nos, mellon-nin." Ele pediu, procurando ser gentil. "Elladan não lhe fará mal algum."

"Não é necessário que o nobre Lorde Elladan gaste seu tempo comigo." Legolas esclareceu, procurando parecer melhor do que na verdade se sentia. Precisava de seu antídoto, ele sabia, mas temia o efeito que faria, temia dormir naquele lugar sombrio.

"Está cansado, soldado." Elrohir lembrou-o pacientemente. "E também precisa de cuidados. Não há vergonha alguma em ser ajudado." Ele repetiu inconscientemente a mesma idéia do irmão.

"Já fui ajudado o suficiente hoje para esquecer-me do conceito do que seria vergonha ou não, capitão." Legolas disse com tristeza e Elrohir sacudiu a cabeça em desaprovação. "Mas bem vejo que todos, incluindo o senhor e seu nobre irmão, também estão cansados."

"Foi picado." Elladan lembrou-o.

"Sim, senhor. Mas trago o antídoto aqui e, se me permitirem, beberei-o e procurarei meu descanso em uma de minhas amigas ali." Ele respondeu, olhando para as velhas árvores que se entrelaçavam, deixando escapar os novos raios do amanhecer.

Elladan soltou um leve suspiro de reprovação, mas seus lábios se ergueram em um pequeno sorriso.

"Agradeço sua consideração e respeito, soldado." Ele afirmou, tocando novamente o ombro de Legolas. "Mas com certeza sabe que um curador não é capaz de descansar sem a certeza de que não é mais necessário".

Legolas fechou os olhos, permitindo-se sentir a energia que emanava do toque do elfo. Elladan tinha de fato mãos de curador, tão eficiente quanto às de Faernestal, o curador do palácio de seu pai.

Elladan sorriu então, vendo finalmente que o rapaz relaxara e parecia deixar-se levar. Ele percebera preocupado a pouca energia que restava no corpo daquele soldado e sabia da urgência que se fazia um tratamento.

"Uma aranha." Legolas repetiu de olhos fechados, como se revisse a cena em sua mente. "Defendia sua cria."

"Seres das trevas." Elrohir agachou-se exausto ao lado do irmão.

"O mal seduz alguns e faz de outros ferramentas." Legolas comentou tristemente.

"Deixe-me ver." Elladan repetiu, arrastando-se para mais perto.

Legolas reabriu os olhos e engoliu em seco, ele ainda esperou alguns instantes, mas ao perceber que o jovem curador não desistiria, acabou cedendo e desfazendo os laços de sua túnica, evitando porém olhar para os dois irmãos. Elladan aproximou-se mais, analisando as linhas arroxeadas que se formavam no abdômen do príncipe.

"Terá febre por mais tempo." Ele previu e Legolas estremeceu. Aquela não era a melhor das notícias, embora já fosse esperada. "Tem que ter ou não se curará."

"Eu sei..."

"Disse que era alérgico."

"Sim. Sou. Mesmo tomando o antídoto apropriado custo um pouco a fazer erguer minhas defesas. Mas a picada de aranha é uma rotina em nossa terra, muito mais freqüente do que gostaríamos. Sei que ficarei bem."

"E tomou o antídoto?" Elladan insistiu.

"Ainda não."

"Por quê?"

"Porque me traz um sono profundo. Não muito apropriado à situação na qual estávamos. Mas não há pressa. Não foi veneno suficiente. Hoje, se os senhores me permitirem, tomo e me deito. Com sorte estarei melhor amanhã."

Elladan assentiu, ainda apalpando o calor que emanava da região afetada do elfo louro.

"Então comerá algo e se deitará ali ao lado de seu capitão, soldado. O antídoto pode atacar-lhe o estômago, precisa ter algo nele." Ele informou. "Quero olhar por vocês dois está noite."

Legolas agradeceu, mas sacudiu a cabeça, erguendo-se em seus joelhos como se quisesse se levantar.

"Não quero ser inflexível, mas prefiro dormir em uma de minhas amigas, se não se importam." Ele disse olhando novamente para a entroncada floresta.

"Não é conveniente." Opôs-se Elrohir.

"Não há inconveniências nessas árvores." Legolas afirmou, tentando agora se levantar e surpreendendo-se por ver o quão pouco colaboradoras suas pernas estavam se mostrando. "Eu as conheço todas. Sempre acampamos aqui."

"Como se chama, soldado?" Elladan enfim indagou, erguendo-se também e auxiliando-o a ficar em pé.

Legolas empalideceu.

"Chamo-me... Ainion." Ele respondeu após um momento de hesitação, usando o nome de um dos seus soldados mortos.

"Então jante conosco e depois conversamos sobre onde dormirá, Ainion. Quero que tome o antídoto com o estômago preparado e o quanto antes. Esses remédios são fortes demais." O elfo convidou, puxando devagar o arqueiro louro em direção à fogueira. Legolas cambaleou alguns passos e os irmãos tomaram cada qual um lado do arqueiro para ajudá-lo em seu curto trajeto.

"Estou bem." Ele afirmou prontamente, procurando afastar-se, mas os gêmeos não permitiram. "Não... não tenho fome, meus senhores."

"Não somos seus senhores, Ainion." Elrohir advertiu-o. "E você tem que comer algo. Está em meu grupo agora, e eu sou um líder muito austero."

Elladan não pode conter o sorriso, enquanto ajudava agora o jovem guerreiro a se sentar diante da fogueira, próximo a Thavanian. Legolas percebeu que o gêmeo mais novo já estava dando os ares de suas máscaras, algo que ele fazia com destreza.

"É mesmo, Ainion." Elladan lhe sorriu, sentando-se ao lado dele. "Elrohir gosta de tudo a moda dele. E nós fazemos o possível para que assim o seja."

Legolas lançou um olhar cansado aos dois irmãos, mas não comentou o que ouvira. Não entendia muito bem o que estavam insinuando.

"Menos a comida. É claro." Elladan apressou-se em completar e Elrohir o golpeou no braço esquerdo. "Ai." Ele queixou-se, esfregando a região atingida. "Mas é fato. Diga a verdade para este soldado, capitão." Provocou um pouco mais o primogênito. "Se a comida fosse a do seu agrado não teríamos conseguido passar tantas eras com nossos estômagos intactos. Ele gosta que seus pratos tenham o sabor da vida que leva. Gosta-os deveras apimentados."

"Não é verdade. O cozinheiro de nosso grupo é que é um incapaz. Ele consegue fazer um caldo que não tem absolutamente gosto algum."

Legolas sorriu agora, baixando, porém o rosto para que os gêmeos não vissem e o gêmeo mais velho assentiu para o irmão, parecendo satisfeito com o progresso que tiveram.

"Tome um pouco e tire suas conclusões, Ainion." Elladan propôs, olhando os elfos em volta da fogueira. "Elrohir, busque um pouco para nós, sim, toron?"

O irmão ergueu-se então e Legolas acompanhou admirado o movimento do elfo mais novo. Ele se aproximou do grupo, empurrando alguns de seus soldados e fazendo-os rir. Elladan sorria também, aguardando o retorno do gêmeo. Pelo menos a magia que coloria a amizade dos filhos de Celebrian com cores e sensações tão belas ainda estava presente. Foi o que Legolas pensou, ao fechar os olhos como se quisesse manter aquela sensação viva dentro de si. A única sensação feliz que lhe tocara. Ele respirou fundo e soltou os ombros, esquecendo-se enfim de reerguer as pálpebras cansadas. A imagem dos gêmeos em seu quadro ressurgiu, misturada às cenas do passado próximo e distante. Caíam todas tal qual pétalas levadas ao vento. Ele também caía agora, sentindo-se leve, como uma folha seca de outono.

"O que ele tem?" Ouviu agora o som longínquo e preocupado da voz de Elrohir.

"Parece que a quantidade de veneno não foi tão insignificante assim como fez-nos crer nosso soldado." Elladan respondeu em um mesmo tom de angústia e Legolas sentiu a palma do gêmeo em seu rosto. "A febre agravou-se, aquece-o demais agora".

"Faça algo, Dan!"

"Segure-o então."

Os braços de Elrohir o envolveram e ele pode ouvir o bater apressado do coração do elfo moreno. Às vezes, quando brincavam juntos, e Elrohir o perseguia pelos corredores do castelo, mesmo com o conhecimento da repreensão que a rainha e Lady Celebrian lhes dariam, Legolas conseguia ouvir o bater do coração do gêmeo. Ele descobrira naquela época que corações só se aceleravam de fato por alegria, ou por medo tremendo. Agora Elrohir temia por ele, mesmo sem saber sua verdadeira identidade. Como podia odiá-lo? Jamais pudera e agora podia ainda menos.

"Pronto." A voz ansiosa de Elladan surgiu.

"Está forte. Tem tudo o que precisa?" Elrohir indagou nervoso.

"Confie em mim." O gêmeo respondeu e Legolas sentiu uma mão erguer-lhe a cabeça. "Ainion, deve beber esse chá. Acorde, por favor."

A tom do gêmeo era urgente e ele sabia que devia obedecer, mas estava cansado e sentia frio. As imagens do dia fatídico que tivera somavam-se agora às outras em um turbilhão, um ir e vir que o entontecia.

"Acorde, Ainion. Vamos. Ajude-nos." Legolas ouviu, em seguida sentiu uma caneca colar-se a seus lábios e um líquido amargo descer por sua garganta. Ele aceitou a oferta, reconhecendo o gosto do antídoto que costumava tomar, somado a algumas outras ervas.

A realidade então se converteu novamente em escuridão.