Olá. Espero que todos estejam bem.
Aqui posto a terceira parte de O TEMPO NÃO APAGA.
A fic provavelmente ficará entre cinco ou seis capítulos e procurarei não me exceder no número de páginas. Esse capítulo III é uma extensão do II, como se fossem um só, divididos apenas para destacar dois acontecimentos que julguei importantes.
Mais uma vez peço desculpas se escorreguei na geografia. Espero não estar cometendo nenhum absurdo.
Esse capítulo traz alguns esclarecimentos, mas também alguns mistérios que serão esclarecidos depois. Não se preocupem.
Quero agradecer às pessoas que começaram agora ou continuam acompanhando a saga do meu complicado elfinho louro (Olha só? Já estou dizendo que ele é meu! O mestre que me perdoe)
Meus agradecimentos à: Nimrodel, Lali, Kiannah, Larwen, Cauinha, Priscila, Kika, Chell, Nininha, Phoenix, Lele, Carol, Giby, Lene, Gio, Bê, Dani, Ju, Nanda, Leka, Crika, Thaissi, Greyhawk, Paulinho, Veleth, Denise.
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
"A um ausente" - Carlos Drummond de Andrade
III - SAUDADES
Legolas abriu os olhos e piscou algumas vezes, a luz o atingia em cheio por entre os galhos acima. Ele voltou a cerrar as pálpebras e cobriu o rosto com as mãos, tentando se lembrar de onde estava e do que havia ocorrido. Não custou muito para que toda a dor da véspera lhe inundasse como uma torrente fria e forte, que trazia imagens distorcidas e misturadas, imagens agonizantes. Ele apertou um pouco mais as mãos, afastando como pôde aquelas sensações e suspirou, voltando a olhar o mundo a seu redor. Havia claridade nos galhos acima. Claridade no topo das árvores. Um brilho alto lhe indicando que já se passara mais da metade do dia. Restava apenas saber a metade de qual dia era aquele que vivia no momento.
"Shhh. Agora você vai com calma." A voz de um dos gêmeos alertou-o ao vê-lo erguer-se em um dos cotovelos, forçando-o gentilmente a se deitar. "Não fará mais passeios à floresta por enquanto."
"Passeios à floresta?" Legolas indagou confuso, para só então perceber que sua garganta estava seca e a voz praticamente não conseguia chegar até a boca.
"Acordou, Elrohir?" O outro gêmeo tomou o lado direito do irmão, olhando também para Legolas.
"É o que parece, toron. Pelo menos entendeu minhas palavras. Os delírios devem ter passado."
"Delírios?" Legolas procurou levantar-se novamente e Elladan auxiliou-o, sentando-se atrás do elfo e permitindo que se encostasse a ele.
"Agora vai melhorar." O curador afirmou em um tom satisfeito, oferecendo-lhe uma caneca de água, a qual Legolas aceitou de bom grado, entornando rapidamente seu conteúdo.
"Devagar." Elrohir aconselhou, tomando-lhe a caneca das mãos. "Não coloca nada no estômago desde ontem."
"Dormi desde ontem?" Legolas repetiu incrédulo. "Dormi um dia e uma noite inteiros?"
"Eu não diria isso." O elfo atrás dele comentou. "A febre não te deu paz. Poucos foram seus momentos de descanso. Precisa repousar um pouco mais."
O arqueiro olhou confuso a sua volta. O acampamento ainda estava montado, a fogueira ardia no centro dele e, à volta dela, alguns soldados estavam sentados, cantarolando melodias em um tom reservado apenas à capacidade de ouvidos élficos. Legolas girou o rosto alguns graus e encontrou quem procurava. O guarda-costas continuava onde ele o havia colocado, envolvido agora em mais alguns cobertores e dormindo profundamente com os olhos fechados.
"Thavanian..." Ele arregalou os olhos, procurando erguer-se novamente, mas sentindo-se ainda incapaz de realizar movimento tão amplo. Elladan conteve-o com cuidado.
"Seu capitão está bem, Ainion." Elrohir garantiu, apoiando uma mão na perna de Legolas. "Você tem que descansar, como bem lhe disse meu irmão."
"Durmo desde ontem, se entendi bem." Lamentou-se o elfo louro com um suspiro, observando ainda o pálido rosto do adormecido amigo.
"Não dormiu de fato, soldado." Elladan explicou, saindo agora de trás de Legolas e forçando-o a deitar-se novamente. "A febre ocupou seus sentidos, até saiu a andar pela floresta em um momento de distração minha. Nunca vi nada igual."
Legolas arredondou os olhos e os dois gêmeos se puseram a rir.
"Brincam comigo, bem vejo." Desacreditou o arqueiro.
"Não mesmo." Elrohir garantiu, sacudindo a cabeça e ainda rindo. "Levantou-se e saiu pela mata a dizer palavras que não compreendemos. Provavelmente falava a língua de seus antepassados. Seu povo ainda se comunica com o dialeto silvestre na mata escura?"
Legolas uniu as sobrancelhas, acompanhando a sentença do elfo moreno com toda a atenção que conseguia despender, mas não compreendendo muito bem ainda o que de fato ocorrera.
"Dizem-me que eu daqui sai e pus-me a vagar pela mata?"
Os irmãos voltaram a rir e Elladan sacudiu a cabeça.
"Parecia com aquelas almas penadas das quais os edain nos falam vez por outra." Ele disse. "Principalmente com as estrelas a te favorecer."
"Almas penadas?" Legolas indagou sem entender. Ele ainda não conhecia bem as tradições e crenças dos numenorianos.
"Espíritos que vagam e assombram." Elrohir esclareceu, pondo-se a rir com mais intensidade então e Legolas finalmente enrubesceu. Ele ainda não compreendia o que fizera, mas, pelo ar que os gêmeos lhe lançavam, devia no mínimo ser algo muito constrangedor.
"Fiz algo do qual me envergonharei?" Ele por fim questionou receoso. "Ou apenas andei pela mata?"
Elladan e Elrohir trocaram olhares indecifráveis e o gêmeo mais novo ergueu-lhe então ambas as sobrancelhas.
"Bem." Ele disse, contendo o riso agora. "Apenas andou sem nenhuma má intenção pelo que percebemos. Parecia na verdade a procura de algo, ou alguém... Mas..."
"Mas?"
O gêmeo baixou a cabeça, cobrindo os lábios para esconder o sorriso que queria voltar a eles e disse:
"Se perceber seu estado por sob estas cobertas, talvez compreenda..."
O olhar de Legolas se perdeu, como se ele estivesse tentando entender o que o gêmeo lhe dizia. Ele então baixou os olhos, sentindo o corpo ainda dolorido e enfim compreendeu o que despertara o riso dos irmãos.
"Ilúvatar." Clamou o jovem elfo e enrubesceu terrivelmente, fechando os olhos e franzindo as sobrancelhas no mais completo embaraço.
Os gêmeos então não se contiveram, voltando a rir muito.
"Perdoe-nos, Ainion." Foi Elladan o primeiro a encontrar o fôlego perdido. "Tive que despi-lo, pois a febre inundara suas vestes."
Legolas não respondeu, cobrindo agora a rosto com ambas as mãos e sacudindo a cabeça. Elbereth, tudo o que ele esperava é que essa cena, cuja imagem sua mente lhe escondera, não lhe viesse à tona um dia desses.
"Vamos, deixe disso." Elrohir puxou-lhe enfim as mãos do rosto, sentindo a graça das palavras que dissera perder então seu efeito. "Não foi tão ruim assim. Agora até rimos, porém na hora ficamos deveras preocupados. Todos nós."
Legolas virou o rosto e voltou a fechar os olhos. Graças a Ilúvatar os gêmeos não sabiam quem ele era. Decididamente não era essa a impressão a seu respeito, que ele queria ver gravada na memória daqueles poderosos guerreiros..
Elladan soltou mais alguns risos contidos, depois balançou conformado a cabeça e acenou para um dos elfos próximos a fogueira. Este pareceu entender o recado, apanhando uma vasilha e enchendo-a com a comida que estava no fogo.
"Agora coma algo." O gêmeo disse, passando a tigela para que Elrohir segurasse. "Nós o ajudaremos." Ele completou, voltando a erguer o soldado e colocar-se como seu encosto.
Legolas franziu o rosto com o cheiro da comida. Tinha certeza de que estava saborosa, mas seu estômago ainda não parecia preparado para receber coisa alguma.
"O que é isso?" Elrohir arrastou-se para mais perto, com um sorriso matreiro e ergueu-lhe uma colher cheia. "Não está ruim. Você nos proveu carne orc suficiente para fazer sopa por semanas."
Então, a careta que o príncipe procurava evitar, tomou-lhe a face de forma tão acentuada, que o elfo sentiu os nervos de sua face doerem. Ele virou o rosto automaticamente e percebeu que ia colocar o nada que tinha para fora do estômago.
A pior parte de tudo, entretanto, era que sentia não ser esta a primeira vez que o faria.
Elrohir soltou uma gargalhada musical.
"Deixe de crueldades, toron." Elladan reprovou-o. "O estômago do infeliz ainda está comprometido."
"Pudera. Vomitou as próprias tripas de ontem para hoje. Nem sei como consegue falar."
"Elrohir!" Elladan enfezou-se enfim, tomando a caneca das mãos do irmão. "Vá arrumar o que fazer. Bem sei que não gosta de cuidar dos feridos, mas não precisa deixá-los em estado pior do que se encontram."
O gêmeo sorriu, torcendo o rosto para que pudesse fazer com que Legolas o visse.
"Só estou retribuindo o favor." Ele disse, oferecendo ao arqueiro um olhar irônico, quase cruel. Uma face do gêmeo que o arqueiro conhecia bem. Elrohir sabia, como ninguém, desconcertar uma pessoa até o mais completo embaraço.
"Retribuindo o favor?" Legolas ousou perguntar, mesmo sentindo que se arrependeria profundamente.
"Sim." O elfo moreno respondeu com uma certa arrogância que também era conhecida do príncipe. Como Elrohir conseguia ter um espírito tão voltado para a tortura como tinha? "Não consegui comer ontem por tua causa."
Legolas franziu novamente o rosto, procurando compreender mais esse pedaço fragmentado de informação. Então o cheiro da comida voltou a virar-lhe o estômago e ele finalmente concluiu porquê talvez o filho de Celebrian houvesse tido problemas para jantar. Ele envergonhou-se ainda mais, pressionando o maxilar em sua inquietação. Na certa fizera cenas mais constrangedoras do que sua caminhada sob as estrelas.
"Lamento." Ele respondeu cabisbaixo. "A febre nos transforma em seres repulsivos."
Elladan torceu os lábios insatisfeito e lançou um olhar repreensivo ao irmão, que ignorou, continuando a encarar o constrangido elfo louro.
"Seres engraçados, você na certa quis dizer." Continuou o gêmeo mais novo, parecendo acompanhar os pensamentos do príncipe como se Legolas os pronunciasse em voz alta. "Você vomitou as próprias tripas ontem. É verdade." Ele concordou, fazendo com que Elladan estalasse os lábios de indignação. "Mas não foram os acessos do seu estômago que me impediram de comer. E sim seu passeio pela floresta. Você desapareceu e todos saímos em sua procura. Então o cozinheiro deixou o jantar por tempo demais no fogo e tivemos que comer frutas silvestres até que o dia clareasse e pudéssemos caçar."
Legolas desprendeu os lábios, sentindo o queixo cair devagar, depois voltou a enrubescer. Valar, ele na certa jamais conseguiria apagar a imagem de si mesmo que morbidamente oferecera ao grupo.
"Peço... Peço que me desculpem." Lamentou-se então, amaldiçoando-se por não encontrar nada melhor para dizer. Elfo tolo ele voltou a se sentir, lembrando-se amargamente de que parecia não saber fazer nada além de desculpar-se por toda a sua vida.
"Já te desculpei." Elrohir respondeu com um sorriso irônico de quem não parecia de fato incomodado e voltou a tomar a tigela das mãos de Elladan, erguendo uma colher cheia. "Só perdôo um fato depois do revide. Acostume-se e agora coma. Está com sorte do desajeitado cozinheiro não ter queimado novamente o caldo."
Legolas olhou então para a comida e seu estômago tornou a dar voltas.
"Há carne aí, senhor?" Ele indagou inseguro e Elrohir franziu os lábios.
"Não sou seu senhor. E já te disse que brincava contigo. Não há carne orc nessa sopa."
"Mas há alguma carne?" Legolas insistiu, esticando ligeiramente o pescoço para tentar ver o que havia de fato na caneca.
"Por que quer saber?"
"Não como carne, Lorde Elrohir. Peço que me desculpe."
"Não fala sério, fala?"
"Sim. Se há carne aí, terei que agradecer, mas recusar sua boa vontade. Talvez indagar se sobraram algumas das frutas silvestres que mencionou, pois a fome me desperta agora."
Elrohir sacudiu a cabeça inconformado e colocou de lado a caneca. Elladan sorriu sereno.
"Os silvestres não são vegetarianos, Ainion." Ele comentou. "A família real tampouco que eu o saiba, e creio que os conheça bem. Por que você adota tão estranho cardápio? Não está na tradição de seu povo, nem do povo do seu rei."
"Não sigo tradições, Lorde Elladan." Legolas respondeu com o olhar perdido de quem na verdade não se surpreende com o questionamento. "Apenas faço o que julgo bom para mim, desde que não me desonre."
O gêmeo mais velho sorriu, erguendo significativamente as sobrancelhas para o irmão, que olhava o paciente agora por cima do queixo erguido. Ele sabia que Elrohir apenas encenava mais uma de suas peças de capitão, lição muito bem aprendida com o tutor Glorfindel.
"Pegue um pouco de pão de viagem para ele, toron." Pediu então e o gêmeo assentiu, esticando-se e vasculhando uma das mochilas próximas da fogueira. Em instantes tirou dela pedaços de lembas embrulhados em folhas muito verdes.
"Isso você come, assim espero." Elrohir ironizou, passando o pão para as mãos do arqueiro. Legolas assentiu agradecendo, depois partiu um pedaço e colocou-o na boca, mastigando devagar.
"Thavanian está de fato bem?" Ele indagou e Elladan assentiu no mesmo instante, voltando seus olhos atentos para o paciente.
"Está sim." O gêmeo respondeu com um suspiro de cansaço, porém satisfação. "Recupera-se com uma velocidade invejável. É um soldado muito forte esse teu comandante."
"Sim, ele é." Legolas concordou pensativo, deixando de lado o pão que comia depois de dois pedaços. A preocupação, porém, não desaparecera de seu semblante. "Eu creio que não... não os agradeci devidamente."
"Deixe disso." Elrohir sacudiu a cabeça.
"Não posso." Legolas baixou os olhos, tentando ao máximo não se deixar levar pela tristeza que sentira na véspera. "Se não tivessem chegado eu não sei o que..."
"Ainion." Elladan chamou-lhe a atenção em um tom grave, porém compreensivo. O gêmeo sentia e lamentava pela dor sentida, mas sabiamente queria encerrar aquele assunto que julgava sem serventia para o momento. "Não pense mais no dia de ontem. Não até estar recuperado."
Legolas concordou em silêncio, tentando fingir que esvaziava sua mente daquelas recordações.
"Mas ainda há o dia de hoje." Ele comentou, reerguendo os olhos. "E sinto que estamos prendendo o grupo aqui. Por isso lamento."
"Fariam o mesmo se a situação fosse contrária, tenho certeza." Elrohir comentou bastante sério também e Legolas não pôde deixar de se admirar com as mil faces daquele elfo.
"Sou-lhes grato mesmo assim. Espero que não estejamos causando um transtorno muito grande. Além de minhas andanças vergonhosas pela floresta." Legolas comentou embaraçado e os gêmeos voltaram a sorrir. Era exatamente essa a intenção do arqueiro, que lamentava o transtorno causado por seu grupo.
"Nada incontornável." O gêmeo mais novo enfim comentou.
"Se me ajudarem a construir um talan e me emprestarem armamento e provisões, poderei ficar aqui com meu amigo até que melhore e o grupo dos senhores poderá seguir o caminho proposto. Prometo mandar-lhes o pagamento assim que retorne ao palácio do rei."
"Isso é tolice sua." Elrohir afirmou, depois de estalar os lábios e sacudir a cabeça.
"Mesmo porque, estávamos voltando a nossa terra." Elladan esclareceu. "Nossa idéia é aguardarmos até amanhã, quando acredito que seu capitão já poderá ser transportado. Faremos uma maca e estaremos em Valfenda em uma lua no máximo. Lá acredito que Thavanian terá chances de uma recuperação mais efetiva."
Legolas empalideceu.
"Propõe que cruzemos o rio?"
"Sim. Nós o fazemos com freqüência."
"Não posso. Eu... não posso sair da mata."
"Por quê?" Elrohir indagou intrigado. "Já encontramos silvestres como você na outra margem. Nunca passou pelo Velho Vau, seguindo a Estrada Velha da Floresta? Ainda é um caminho seguro. Devemos apenas nos cuidar quando passarmos pelo Passo Alto. Ainda há alguns orcs que insistem em ficar naquela região, por mais que tentemos mostrar a eles que cometem um grande erro. Criaturas estúpidas."
"Restam poucos destes lá." Elladan comentou, fazendo com que Legolas se deitasse novamente ao perceber que o rapaz não tinha intenção de comer mais. "Sonho com o dia em que não haja mais nenhum."
"Vamos dar um jeito nisso. E não vai demorar. Nossa caça anda rendendo bons resultados."
Legolas olhava de gêmeo para gêmeo agora, procurando entender sobre o que falavam.
"Caçam orcs?" Ele concluiu.
"Sempre." Elrohir confirmou, enchendo o peito.
"Saem de casa apenas para isso?"
"Surpreende-se?"
"Sim... Pois os senhores não eram diplomatas e mercadores? Cruzavam as terras em busca de conhecimento e acordos que favorecessem sua região?"
"Como sabe disso?" Elrohir indagou e Legolas estremeceu.
"Eu... me lembro... Thavanian certa vez comentou sobre os senhores e..."
"Ah sim!" O elfo moreno pareceu aceitar a meia explicação. "Contávamos sempre as histórias de nossas viagens ao príncipe."
"Pois sim. Legolas com certeza as recontava a todos." Elladan sorriu.
"E acrescentava grandes feitos a elas, decerto."
"Não duvido." Elladan riu então. "Ele nos considerava os melhores guerreiros da Terra Média."
"É verdade."
"Por que nunca mais voltaram?" Legolas sentiu a pergunta escapar-lhe. Fora de hora ou não, ele não conseguia mais conter o desejo de fazê-la e a oportunidade, mesmo arriscada, pareceu-lhe ser aquela.
Elladan e Elrohir calaram-se imediatamente e o semblante alegre desapareceu de seus rostos. Uma palidez mortal tomou-lhes as faces e eles sequer se entreolharam, apesar de parecerem compartilhar o mesmo pensamento amargo. Legolas desprendeu os lábios, raras foram as vezes em que os vira tristes ou angustiados. Ele se arrependeu imediatamente.
"Peço que me perdoem a indiscrição. As vidas dos senhores não me dizem respeito." Foi tudo o que sua surpresa o possibilitou dizer, embora seu coração se desesperasse ainda mais pela resposta não concedida.
Elladan suspirou então, virando ligeiramente o rosto e erguendo os olhos para as árvores distantes, um emaranhado confuso e escuro que parecia refletir os pensamentos do primogênito de Celebrian.
"Apesar de tudo, essas matas ainda têm uma certa magia." Ele disse e Legolas percebeu que o gêmeo queria fugir do assunto proposto.
"É fato." Elrohir esticou as pernas e o tronco, apoiando ambas as palmas no chão e jogando a cabeça para trás com um longo e ruidoso suspiro. "Estou com saudades de casa."
"Há quanto tempo estão distantes?"
"Não muito." Elladan respondeu, já atento aos sinais de cansaço do irmão a seu lado. Eles se conheciam como ninguém. O curador apegou-se às suas conclusões que chegou e puxou-o mansamente. Elrohir cedeu, esticando-se e apoiando a cabeça no colo dele agora.
"Duas estações." Ele informou, fechando os olhos e parecendo aceitar o que lhe era proposto fazer. Não dormia de fato há dias e o cansaço o estava castigando.
"É bom voltar para casa." Legolas suspirou, erguendo-se e apoiando-se em um cotovelo para poder olhar o gêmeo deitado, ver se de fato ele estava bem. "Vejo que estão muito cansados." Ele comentou. "Se me permitirem, fico perto de meu capitão agora e velo por seu sono, para que possam descansar."
"O descanso só nos vem quando estamos em casa." Elrohir afirmou, ainda de olhos fechados. "Dormindo sob as graças de nosso bom pai."
O príncipe baixou os olhos e um personagem dos livros que lia surgiu em sua mente. Nunca o vira. Como seria seu rosto?
"Lorde Elrond." Ele lembrou.
"Conhece-o?" Elrohir redirecionou seu olhar para ele.
"Não. Apenas a fama que o ilumina. O que já é o bastante para me fazer admirá-lo."
"Seu rei e ele não se dão muito bem." O gêmeo mencionou e Elladan cutucou-o no mesmo instante. As verdades eram definitivamente as estruturas mestras do discurso daquele guerreiro elfo e ele não parecia se importar em propagá-las.
"Eles têm seus motivos." Legolas não se mostrou ofendido. "Motivos mais antigos que eu e até que os senhores também."
Elladan sorriu.
"É muito sábio para alguém tão jovem, Ainion."
O príncipe enrubesceu levemente, baixando o rosto agora e mexendo distraidamente na manta sobre a qual estava deitado. Eram de fato qualidades as que a ele eram atribuídas?
"Mas a senhora de Imladris sempre visitava a rainha." Ele colocou timidamente e as faces dos gêmeos voltaram a perder seu brilho. Legolas tornou a arrepender-se, mas o grande aperto em seu coração e a idéia de que a boa Celebrian pudesse ter tido o mesmo fim triste de sua mãe começou a se tornar insuportável, movendo-o a fazer algo que não lhe era habitual.
"Peço que me desculpem, mas..."
Os dois elfos idênticos fixaram seus olhos escurecidos nele e Legolas engoliu como pôde suas dúvidas e temores, pedindo a Ilúvatar que não estivesse indo longe demais com sua busca pela verdade.
"Sei que não me diz respeito..." Ele iniciou em voz branda, movendo seu rosto para longe dos questionadores olhos que o encaravam. "Mas Lady Celebrian era uma presença que a todos encantava... então eu fico a me perguntar... mesmo sabendo que não devia e..."
"Nossa mãe agora nos espera em Valinor." Elladan respondeu prontamente, com a rapidez de quem quer ver um assunto encerrado o quanto antes e esvaziando os pulmões ao fazê-lo.
Legolas empalideceu sem poder se conter, sentindo um misto de alívio e tristeza difícil de ser contido. Aquela era uma meia história, mais um fragmento cujo começo e fim lhe eram desconhecidos, mas o fato de saber que a luz da bondosa Celebrian ainda brilhava lhe era de certa forma um consolo.
Elladan, porém notou a reação, no mínimo estranha, daquele elfo.
"Ainion? Sente-se bem?" Preocupou-se. "Está pálido novamente."
"Sim..." Ele balbuciou, esfregando o rosto para tentar tirar dele os traços que intrigavam o curador. "Eu... Eu apenas lamento... Faz... faz muito tempo que ela se foi?"
Elladan franziu o cenho e Elrohir inclinou levemente o rosto, olhando o arqueiro com desconfiança e fazendo-o perceber que precisava oferecer alguma explicação para aquele questionamento. Os gêmeos tinham bons corações, mas também eram conhecidos por sua extrema discrição no que tangia a suas próprias vidas.
"Nossa rainha nos deixou... nos deixou de forma triste." Legolas então se abriu, expondo uma ferida que para ele ainda não havia cicatrizado, mas que podia ser o único caminho para amenizar a desconfiança que via nos olhos dos irmãos. Ele sentia que, diante de tantas meias-verdades, tinha que oferecer um porquê, um porquê muito verdadeiro. "Ela tomou um rumo diferente... mas... a sensação de perda... Ela... nos faz uma... uma grande falta..."
Ele quis continuar, mas percebeu que não seria tão capaz de falar naquele assunto quanto precisava ser. Apenas por citar o ocorrido, sem sequer atribuir os detalhes que o enegreciam ainda mais, já sentiu seu corpo perder o calor e seus olhos quererem denunciar todas as suas farsas.
"Nós lamentamos." Elladan e Elrohir disseram em uníssono, parecendo receber as respostas que precisavam, para o alívio do elfo louro. "Perder a companhia da dama de Imladris foi uma grande dor para o nosso povo, mas todos concordariam comigo que a escolha que sua rainha se viu obrigada a fazer foi inigualável." O mais velho completou.
Legolas fechou os olhos, há tantos anos ele desejava ouvir aquilo. Todas as primaveras ele esperou por aquele apoio, por aquelas palavras de consolo que sabia que só os filhos da dama de Imladris seriam capazes de lhe dizer. Mas tal dia nunca chegou. No entanto, estranhamente, a sentença dos irmãos surtiu em seu coração o mesmo efeito que surtiria em sua infância e o príncipe percebeu que, mesmo com todos os desencontros, ele ainda amava demais aqueles dois guerreiros.
Então Elrohir esticou o braço de onde estava, segurando a mão do elfo louro e os olhos dos dois se reencontraram. O gêmeo mais novo franziu levemente o cenho, parecendo buscar uma informação que não sabia ao certo qual seria.
"Nossa mãe... Ele disse então. "Nossa mãe tinha um apreço de irmã para com Lady Elvéwen..."
"Por isso ela... ela nunca mais voltou? Por que nossa rainha faleceu... e ela..."
"Ela se sentiu constrangida." Elladan explicou pacientemente, parecendo não compreender as insinuações do arqueiro. "Queríamos voltar, mesmo com a ausência de Lady Elvéwen. Queríamos porque o príncipe Legolas era especial em nossos corações... Mas o rei Thranduil não respondia nossas cartas... Nem ao menos as mensagens de nossos pássaros. Julgamos então que não éramos mais bem vindos... Nossa mãe relevou, dizendo que o rei buscava apenas um espaço para si, para que pudesse sofrer sem ser visto ou recriminado... Então aguardamos... na esperança de que o tempo não apagasse nossa amizade... Mas nunca mais reencontramos nem o rei, nem seu filho".
Legolas ouviu o relato em silêncio, um nó enorme criava-se em sua garganta, amarrando suas palavras, porém, uma tristeza antiga se desfazia devagar em seu peito. Então seus amigos lhe diziam inverdades, estavam tão enganados quanto aqueles que acreditavam no mal? Então os gêmeos não o haviam esquecido? Ele era importante e não fora nada que fizera que afastara os amigos do palácio?
"Então Lady Celebrian se foi..." Legolas disse com um tom muito triste. Lamentando o que aquela dúvida lhe causou desnecessariamente. "E a oportunidade de retorno dos senhores à Floresta encerrou-se."
"Legolas é um elfo adulto agora." Elrohir lembrou, voltando a fechar os olhos. "Um elfo adulto que com certeza sequer se lembra de nós, ou se o fizer, provavelmente nos odeia."
"Não. Não odeia!" Legolas explodiu e Elrohir foi quem se ergueu agora em um dos cotovelos para olhar diretamente para ele. O arqueiro empalideceu então e seus olhos brilharam estranhamente. Elladan arrastou-se para perto dele, fazendo-o voltar a se deitar.
"Está cansado demais, Ainion. Deve descansar. É o que te aconselho e verei feito."
Legolas deixou-se ficar então, enquanto Elladan puxava a manta que o cobria para ver o caminho que as linhas roxas faziam em seu abdômen. O curador apoiou a palma por sobre elas e mostrou-se insatisfeito por sentir que a febre voltava.
"Sou alérgico." Legolas desviou os olhos, como quem se desculpa ou lamenta. "Ela vai te enganar várias vezes, Lorde Elladan. Mas não voltará com tanta força agora. Pelo menos nunca volta."
O gêmeo estalou os lábios, erguendo-se decidido e apanhando umas ervas de sua mochila, em seguida apressou-se em colocá-las em uma caneca de água e pô-las no fogo.
"Essas aranhas silvestres são outra raça que deveria ser extinta." Queixou-se, mexendo as folhas dentro do recipiente com uma colher.
"Estamos em seu território." Legolas justificou o incidente. "Mas confesso que não consigo deixar de nutrir revolta contra elas também."
Elrohir, porém, ainda tinha uma dúvida não esclarecida em sua mente. Ele se arrastou para perto do príncipe, olhando-o nos olhos.
"Por que acha que Legolas não nos odeia?" Indagou com olhos de quem sofre e o príncipe sentiu que a verdade queria lhe escapar pela boca.
"Porque... porque ele... ele não odeia ninguém..."
O gêmeo franziu os lábios e a decepção tomou a forma de seu rosto. Provavelmente não era essa a resposta que gostaria de ouvir.
"Fale-me dele." Pediu então, os olhos baixos presos nos dedos entrelaçados das mãos.
"Que quer que fale, meu senhor?"
"Não sou seu senhor, Ainion." Elrohir suspirou com força, em seguida franziu os lábios.
"Pare de chamar-me assim, elfo bobo."
Não havia como aquela frase, que era uma marca registrada do tratamento que o gêmeo usava para com os que lhe eram caros, passasse desapercebida pelo príncipe. Legolas apertou o maxilar e seus olhos ficaram marejados. O elfo moreno olhou-o com preocupação e segurou-lhe uma das mãos, apertando o maxilar ao sentir que estavam quentes de novo.
"A febre voltou mesmo."
"Não se preocupe, senhor. Vou ficar bem." Legolas assegurou, apertando os olhos fechados. Subitamente não se sentia mais preparado para encarar os gêmeos.
Elrohir, porém, não parecia disposto a deixar suas instruções caírem por terra.
"Ainion." Ele chamou e Legolas viu-se obrigado a reerguer as pálpebras. "Chama-me Elrohir apenas. Pois somos iguais."
E nunca, nunca em toda a sua vida Legolas quis estar tanto em um lugar quanto estava agora, mesmo com tudo o que ocorrera e ainda ocorria a sua volta. Nunca ele sentira tamanha confusão de sentimentos em seu peito, mas nunca também, sentira tamanha esperança de desfazer-se de certas mágoas.
"Chama-me Elrohir, elfo bobo." O gêmeo lhe sorriu, vendo a estranha emoção que seu convite despertara e apreciando o fato mais do que imaginava.
"Elrohir." O príncipe rendeu-se a saudade que sentia e seus olhos voltaram a arder demais. Ele não queria mais mentir, não queria que o passado se perdesse, que mal entendidos se cristalizassem a tal ponto que não houvesse mais retorno. Virou o rosto e puxou a mão que o gêmeo segurava cobrindo a face com ambas.
"Elladan." Elrohir chamou preocupado pelo irmão. "Faça algo por ele. Parece que sofre agora novamente."
"É pronto." O gêmeo ajoelhou-se então, erguendo com cuidado a cabeça de Legolas. "Ande Ainion, faça-se de bom paciente e tome esse medicamento."
Legolas descobriu o rosto então, segurando a caneca com ambas as mãos e tomando o chá em doses pequenas. Seja o que fosse que Elladan quisesse lhe dar, ele estava disposto a aceitar, pois sabia que era a atitude mais prudente a ser tomada. Uma febre alta poderia sempre colocá-lo em situações muito arriscadas e ele não se referia apenas a estranhos passeios na floresta.
"Sei que o gosto não é dos melhores." Elladan explicou, voltando a baixar a cabeça do paciente e cobri-lo. "Fiz um pouco mais forte agora e acrescentei outras ervas. Sua febre não vai te castigar como antes, ou perderei o título de curador que tenho."
"Sou-lhe grato, Lorde Elladan." Legolas respondeu, virando um pouco o rosto sobre o manto que lhe servia de travesseiro.
"Elladan." O gêmeo mais velho disse. "Não tenho opinião diversa da de meu irmão."
"Elladan." Legolas repetiu e fechou os olhos.
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Mas o período entre fechar e reabrir os olhos pareceu-lhe deveras curto.
"Ele acordará em breve." Legolas ouviu a voz de um dos gêmeos dizer.
"Mas está bem, não está?" A voz de Thavanian indagou.
"Está, está sim. A febre veio bem mais leve. Mas dei-lhe um sedativo junto com a última medicação para que dormisse. Estava cansado demais."
"Ele é um elfo muito teimoso. Vez por outra me vejo obrigado a recorrer a esse tipo de artifício para fazer com que descanse. Ele que não o saiba nunca."
O gêmeo riu.
"Vejo que nossos capitães não têm tanta autoridade quanto deveriam." Ele disse e Legolas ouviu o som de desapontamento do outro gêmeo.
"Não use o pronome plural." Queixou-se Elrohir. "Eu sou muito bem atendido em minhas instruções."
"Sei sei..." Elladan provocou. "Mas me diga como se sente agora que despertou, Capitão Thavanian."
Legolas percebeu o silêncio de resposta do amigo e logo previu o estado de total incompreensão em que Thavanian provavelmente estava. Ele forçou-se a abrir os olhos, antes que o elfo colocasse sua montanha de mentiras, muito mal equilibradas, abaixo.
"Thavanian." Ele chamou, erguendo-se e Elladan apressou-se em ir a seu encontro.
"Fique deitado, Ainion. A febre ainda não cedeu." Ele disse, mas Legolas agora tinha os olhos fixos e austeros em seu guarda-costas. Thavanian primeiro franziu as sobrancelhas sem compreender o que se passava, depois relaxou o rosto, percebendo que deveria ter cautela com o que quer que fosse falar antes de ter uma conversa boa com seu príncipe.
"Como ele está, Elladan?" Indagou finalmente ao gêmeo.
"Recupera-se bem." O curador respondeu, oferecendo-lhe uma caneca de água. O príncipe apanhou-a e bebeu devagar. "E você, como se sente, mellon-nin?"
Legolas parou alguns instantes com a caneca a poucos centímetros da boca. Os fatos dos gêmeos o estarem tratando de forma tão amável só tornava as coisas mais difíceis. Ele não podia ir adiante com aquela farsa. Foi sua conclusão. Teria que encontrar uma maneira de contar-lhe e teria que ser logo.
"Bem, obrigado." Ele forçou-se a dizer. "Só gostaria de me banhar."
"Creio que ainda não poderá fazê-lo. O rio próximo está distante pelo menos um dia. Precisamos passar os pântanos. Conseguirei-lhe umas roupas e uns óleos de limpeza. Então aguardará um lugar seguro para que faça o que deseja."
"Mas Thavanian já despertou, Elladan. Não há necessidade que te acompanhemos."
"Não seja teimoso, Ainion. Precisa vir conosco. Mesmo porque não poderão, apenas você e seu capitão, cruzar o caminho todo de volta a seu reino por sua conta e risco. Não podemos permitir. Virão agora para Imladris e meu pai proverá escolta para que retornem a sua terra."
Legolas apertou os lábios inseguro, depois voltou seus olhos para Thavanian, que acompanhava o raciocínio do gêmeo mais velho com cautela.
"Mesmo porque não é você quem decide, elfo." Elrohir provocou, olhando firmemente para Thavanian desta vez. "Agora seu capitão está acordado."
O guarda-costas empalideceu.
"Eu... Eu creio..." Balbuciou o elfo, totalmente pego de surpresa. Ele entendia o que se passava, mas não sabia ao certo até onde seu papel naquela farsa poderia ir.
"Crê que seja possível um retorno seguro de dois soldados feridos e debilitados?" Elrohir questionou enfático.
"Eu... creio que não... Capitão." Respondeu o guarda-costas, olhando para para seu príncipe e amargando alguns sentimentos contraditórios. "Mas não temos permissão para cruzarmos o rio. Não importa a situação na qual estejamos."
"Isso é absurdo. Terão escolta e estão sem escolha."
"Podemos ficar aqui até que eu e Ainion estejamos mais bem recuperados. O seu grupo pode partir."
"Ah, vejo que você ainda é pior que esse seu soldado, Thavanian." Elladan aborreceu-se então. "Pois saiba que vamos levá-los, quer queiram, quer não. Está em meu juramento de curador jamais deixar um paciente sem atendimento adequado."
"E o fez, Elladan. Somos gratos."
"Não o fiz." O gêmeo discordou. "E não vejo como, mesmo se eu mesmo ficasse para ajudá-los na recuperação, vocês possam de fato recobrar aqui as forças que necessitam para uma jornada tão longa."
"Mesmo que conseguissem." Lembrou Elrohir. "Cruzar a mata em um grupo de apenas dois integrantes, por melhor armados que estejam, é loucura. Seu rei há de entender."
"Meu rei nada tem que entender." Thavanian irritou-se então, sentindo-se subitamente encurralado. "Ele não quer entender nada que saia dos limites de suas ordens. E são essas ordens que eu verei cumpridas."
"Pois então o levarei desacordado." Elladan sacudiu a cabeça inconformado. Malditos elfos Sindars, mais teimosos que uma mula, e, para ajudar ainda mais, com uma incompreensível devoção a um rei autoritário.
"Thavanian." A voz insegura de Legolas interrompeu o argumento e os três elfos olharam para ele. "Julgo que possamos conversar com o rei quando chegarmos." Ele propôs e recebeu um olhar deveras insatisfeito do guarda costas.
"Não podemos, Ainion."
"Sabe que podemos. Ele vai compreender se explicarmos o que houve."
Thavanian quis protestar, mas ele conhecia bem aquele olhar escurecido de Legolas. Ele queria fazer aquela loucura, muito mais do que qualquer outra coisa. Ele estava disposto a enfrentar o risco da ira de seu pai, apenas pela oportunidade de conhecer o cenário que visitara apenas em seus sonhos.
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Haviam finalmente cruzado o pântano e o rio e caminhavam agora pelo fim do Velho Vau, direcionados ao Passo Alto, onde pretendiam acampar. Thavanian, que se mostrara bem melhor na manhã seguinte à que despertara, optou por viajar em um dos cavalos e Elladan decidiu levá-lo no seu, onde poderia acompanhar seu estado. Legolas cavalgava sozinho, mas o gêmeo o mantinha perto a si, oferecendo-lhe sempre um olhar clínico.
"Ele parece muito impressionado." Elladan comentou a seu acompanhante, observando a maneira com que Legolas olhava para tudo a sua volta, desde as pequenas flores, até o amplo céu azul acima.
Thavanian, que se deliciava com a mesma imagem, sorriu. Há tempos ele aguardava uma oportunidade de mostrar ao amigo príncipe a natureza diversa da outra margem, só lhe faltava coragem. Estava feliz que aquele acontecimento triste pudesse ao menos presentear Legolas com uma experiência diversa de tudo o que vivera.
"Ele foi criado na mata fechada." O guarda costas respondeu. "Não conhece nada além do verde escuro da Floresta das Trevas".
"É muito inteligente e perspicaz mesmo assim." Elladan observou, retribuindo o pequeno sorriso tímido que Legolas lhe lançou ao sentir-se observado. "Não parece com um simples camponês."
"Teve boa educação."
"Qual é sua origem?"
"Silvestre."
"Silvestre puro? De todos os antepassados?"
"É claro." Thavanian mordeu os lábios apreensivo, sabia que o único elfo Sindar a se unir a uma Silvestre fora o rei, por isso não podia fazer com que os gêmeos desconfiassem da origem mestiça do amigo.
"É fato?" Elladan estranhou, voltando a olhar o elfo no outro cavalo. Seus instintos lhe diziam o contrário. "Pensei que fosse mestiço. Há algo nele que..."
"Ele é Silvestre." Thavanian apertou o maxilar. "Não misturamos nossas raças como vocês Noldors."
Elladan franziu o cenho diante da súbita indelicadeza do capitão Sindar.
"Seu rei tomou uma silvestre como esposa." Ele sentiu-se compelido a dizer.
"Foi por razões políticas." Thavanian respondeu, esperando que nunca chegasse ao ouvido do amigo príncipe aquele comentário no qual, na verdade, ele sequer acreditava.
Elladan soltou os lábios surpreso, porém indignado. A posição na qual aquele capitão Sindar estava se colocando, tanto de comando quanto de julgamento, não o agradava. Ele silenciou-se, porém, julgando que a diplomacia era a melhor arma nesses momentos, Como bem dizia seu pai, em certas ocasiões da existência, tal diplomacia se traduzia apenas como uma total ausência de palavras.
Thavanian, notando a tensão que criara, arrependeu-se do tom usado.
"Certos assuntos nos são delicados." Ele procurou explicar-se. "Peço que não leve minha devoção para um lado pessoal."
"Compreendo." Elladan suspirou pacientemente. "Lamento pela conversa que levantei. Não imaginava ser um assunto que os aborrece."
"Não... o fato é que... que..."
"Não se preocupe, volto a repetir." Elladan desconversou, olhando o céu acima. Não valia a pena discutir com aquele capitão. Não havia um porquê em seu espírito que o motivasse para isso e, diferentemente do irmão impulsivo, ele não apreciava entrar em qualquer conflito sem um bom argumento para isso.
"Eu lamento, mesmo assim." O elfo louro enfatizou.
"Não lamente."
Silêncio.
"Espero que atinjamos o Passo antes do anoitecer." O gêmeo comentou, apenas para que seu paciente não se estressasse com conclusões que não eram verdadeiras. Ele queria paz com o capitão da Floresta.
"Tem certeza de que é um bom lugar para acampamento?" Indagou o guarda-costas, olhando a sua volta preocupado.
"É um lugar a nós conhecido. É onde somos conhecidos. Não acredito que um grupo orc ali se aloje."
"Isso é bom." Thavanian disse, respondendo com um aceno de cabeça agora o cumprimento que recebia de Elrohir. O capitão moreno reduzira a marcha de seu cavalo e colocava-se ao lado do de Elladan.
"Ajuda-me com notícias, Capitão Thavanian?" Ele pediu.
"Claro. Em que posso ser bom informante, Capitão Elrohir."
"Gostaria de saber como está o príncipe."
Thavanian empalideceu, olhando discretamente para Legolas, que acelerara o passo de seu animal ao perceber a distração de Elladan e estava agora junto com o batedor, olhando ainda tudo a sua volta.
"Ele está bem." Respondeu com um pequeno sorriso ao ver o batedor apontar algo para Legolas e ele acompanhar a direção, apontando também seu indicador e fazendo novas perguntas. Ele conhecia bem seu príncipe e sabia que muito além de pura empolgação envolvia tal comportamento. Legolas era um líder de guerra nato, como seu pai, por mais que muitos se fizessem opositores a tal idéia.
"E como ele é?" Elrohir indagou mais uma vez, trazendo a atenção do guarda costas para si.
"Como acha que é, capitão?" Thavanian olhou Elrohir nos olhos. Por que aquele elfo que desaparecera durante os piores momentos da vida de Legolas levantava aquelas aparentemente inocentes questões? O guarda-costas pensou indignado. Ele mesmo guardava mágoas do que a ausência dos gêmeos despertou no amigo de infância.
Elrohir franziu o cenho.
"Acho que ele é um príncipe. Um príncipe forte e poderoso com Thranduil com certeza. Já tinha muito poder emanando dele quando era um elfinho. Hoje deve ser um elfo muito amado por seu povo." Ele disse em uma carreira desatada de idéias. Ficou claro que não gostara do tom do questionamento do capitão.
"Ofendeu-se, Capitão?" Thavanian disse então.
"Deveria?" Elrohir respondeu. "Ou teve intenção de fazê-lo?"
"Acha que tive?"
"Não sei mais o que acho ou deixo de achar Thavanian. Você é amigo de infância de Legolas, não sei o que te disse ele ou que tipo de sentimentos nutri para conosco. Mas, seja qual for tal sentimento, julgo que apenas ele tem razão de nutri-lo e ninguém mais por ele."
"Elrohir. Acho que está na hora de tomar a dianteira novamente." Elladan aconselhou, sentindo os ânimos se exaltarem. "Assim pode acompanhar Ainion para mim. O elfo teimoso já me desobedeceu e está longe de minhas vistas."
O gêmeo ainda manteve seus escurecidos olhos nos de Thavanian, que retribuiu com igual intensidade.
"Se pergunto por ele. É porque o quero bem." Ele disse ainda.
"Com todo o respeito, Capitão." Thavanian disse entre os dentes. "Nem você nem seu irmão agiram como alguém que quer bem ao príncipe."
"Não sabe da história." Elrohir ergueu seu tom.
"Nem me interessa ou cabe sabê-lo." Thavanian o acompanhou. "Mas o que sei me basta. Sei que um elfinho que já sofria, sofreu ainda mais." Ele disse e Elrohir empalideceu. "Sei que Legolas ficou anos sem falar com ninguém, sem sequer sair do quarto, mesmo a pedido de seu pai. Isso é o que sei."
"Ele perdeu a mãe. Você torce os acontecimentos para recriminar-nos."
"Não se faça de desentendido. Sabe como foi, não sabe, Elrohir? Sabe o que a rainha Elvéwen fez. Não passa por tua cabeça o que Legolas pensava de si mesmo desde então? Não acredita que o fato de tua família desaparecer também acentuava tal pensamento? Se não consegue ver o fato diante de teu nariz arrogante, isso só comprova a mim a teoria que sempre tive. Que vocês Noldors só pensam em si mesmos. Até aqueles que nem Noldors puros são. Meu rei tem razão."
"O que se passa?" A voz de Legolas surgiu antes que Elrohir, que enrubescera de ódio, pudesse defender-se dos argumentos.
"Chegue até aqui, Ainion." Thavanian gesticulou, afastando-se de Elladan. Legolas obedeceu, confuso e mais confuso ainda sentiu-se ao ver o guarda-costas passar, mesmo com seus protestos, para seu cavalo.
"Thavanian. Vai cavalgar comigo?"
"Disse que estava melhor." O sindar franziu o rosto, visivelmente incomodado com o movimento que fizera, mas mesmo assim apertou as pernas no animal, que disparou no mesmo instante, afastando-se dos irmãos de Valfenda.
"O que houve?" O príncipe indagou, sentindo o amigo envolvê-lo com os braços e deitar a cabeça em suas costas. "Ao menos me deixe levá-lo à minha frente. Não é seguro que cavalgue assim. Pode cair."
"Cale-se, Legolas." Ele disse com amargura e o príncipe uniu as sobrancelhas. "E não revele sua identidade para esses noldors."
"Como assim?"
"Não diga quem é?"
"Não dizer quem sou?"
"Você me entendeu. Cumpra as regras."
Legolas sentiu um estranho aperto no peito. A porta de saída para suas angústias parecia estar ameaçada.
"Por que diz isso, Thavanian?"
"Porque digo e você me obedece." O outro respondeu, apertando um pouco mais o abraço que oferecia, como se estivesse sentindo alguma dor. "Siga estritamente as regras de seu pai. Já estamos em um caminho perigoso por não podermos voltar para casa."
"Elladan e Elrohir são boas pessoas, Thavanian. Eu os conheço desde pequeno e..."
"Os conhecia quando pequeno. O que é diferente e bem sabe disso. Já se deixou ferir por eles uma vez. Não abra mais seu coração cicatrizado."
"Mas..."
"Prometa-me, mellon-nin."
"Thavanian..."
"Prometa-me ou contarei a verdade a seu pai quando voltarmos. Contarei a ele que poupou o ninho de aranhas por piedade e por isso foi atacado por ela. Contarei que impediu-nos de atear fogo àquele antro negro de desordem e morte."
Legolas indignou-se, virando o rosto em direção do amigo atrás dele.
"Não faria isso. Recebi meu castigo, fui o único atacado."
"Foi. E esse único é realmente quem interessa ao rei."
Legolas partiu os lábios, inconformado.
"Você é cruel. Não acredito na chantagem que me faz. Estou me sentindo como quando éramos crianças e me obrigava a fazer o que queria."
"Sempre foi para seu bem. E não mudou agora."
"Sempre foi para que eu nada conhecesse e não mudou agora."
Thavanian estalou os lábios insatisfeito e Legolas apertou os seus.
"Aja como quiser então. Mas esteja de sobreaviso. Farei o que lhe prometi e seu pai lhe dará a punição que merece, o deixara no palácio por muitos anos. Pode crer. Farei com que ele tenha motivos para fazê-lo."
