Olá. Espero que todas estejam bem.
Esse é o capítulo 4 de O TEMPO NÃO APAGA (essa fic está rendendo) e é o capítulo mais denso em minha opinião. Acho que tinha muito a esclarecer e mostrar. Sensações, sentimentos, explorar alguns lados das personagens que ainda não havia explorado.
Então, peço desculpas se ficou um tanto carregado, cansativo de ser lido. Não foi intenção. Pensei até em reduzir os diálogos, ir logo aos finalmentes, mas vocês conhecem essa minha turminha, ninguém consegue fazê-los seguir o caminho que a gente quer.
Mais uma vez fica o pedido de desculpas por qualquer deslize de qualquer gênero que venha a surgir (nem tive tempo de revisá-lo propriamente, então vocês sabem o que os esperam...). E ficam também os sempre inadiáveis agradecimentos a todos que fizeram a enorme gentileza de dar uma passadinha na página de reviews. Muito obrigada à:
Nimrodel, Lali, Kiannah, Larwen, Cauinha, Priscila, Kika, Chell, Nininha, Phoenix (Layla), Lele, Carol, Giby, Lene, Gio, Bê, Dani, Ju, Nanda, Leka, Crika, Thaissi, Greyhawk, Paulinho, Veleth, Annie, Stephanie, Denise (Tenira)
normal ser outra
a esfinge; também que
o desenho perca
aquilo que quer figurar;
igual ao acaso que nasça,
não importa
(se há Minas
e pedras sobre ela)
entre a verdade que foge
e os que ficam
algo difere sem
que se saiba, um pouco
e já
quase insuportável
Tarso de Melo
IV – OBSTÁCULOS QUE REVELAM
Haviam cruzado o riu, os pântanos e o Vau, logo estariam em Imladris. Durante os três dias de viagem poucas palavras foram trocadas entre os elfos de Valfenda e os da Floresta Escura. Legolas os olhava de longe, ainda sendo observado por Thavanian, com quem continuava a dividir o mesmo cavalo. Vez por outra Elladan se aproximava e perguntava sobre o estado dos dois pacientes que ainda estavam em recuperação e Legolas agradecia, dizendo que se sentiam bem. Thavanian, porém, resolvera se dirigir o mínimo possível a qualquer dos gêmeos e Legolas, por sua vez, mantinha o silêncio mesmo quando estavam apenas os dois.
"Magoa-se com a pessoa errada." Queixou-se finalmente o guarda-costas, após quase um dia sem palavras que o amigo príncipe lhe reservara. "Não é justo de sua parte castigar-me assim e sabe bem disso."
Legolas não respondeu, apenas passou a acariciar a crina do animal no qual estavam. Atitude muito conhecida pelo guarda-costas, pois o jovem príncipe só a tomava quando estava nervoso ou ansioso.
"Sabe que estou certo." Ele insistiu. Sempre se surpreendia com a capacidade que o amigo arqueiro tinha de passar horas e até dias sem dizer uma única palavra.
Capacidade esta que o persistente elfo continuava a demonstrar com eficiência.
"Não posso crer nisso. Vai mesmo negar-me até uma simples palavra?"
"Não quero discutir, Thavanian." Legolas finalmente respondeu, mas não voltou o rosto para o amigo atrás dele.
"Não é o que parece." Comentou o outro com pesar. "Seu silêncio é mais do que um incentivo para o princípio de qualquer discussão."
"Nunca está satisfeito, não é? Com meu silêncio ou meus argumentos. Nada te satisfaz a não ser que eu faça exatamente o que você julga ser correto. Parece meu pai."
"Está se fazendo de vítima novamente." Thavanian respondeu, não se intimidando com o tom de revolta tão incomum presente no discurso do amigo. "Prefere isso a usar seu tempo para analisar o que lhe disse. Se o fizesse veria que estou com a razão."
"Deixe-me em paz, Thavanian." Legolas irritou-se enfim. Elfos Sindars. Apesar de viver na Floresta Silvestre tudo o que o rodeava era a bendita autoridade Sindar. Seu pai, seu curador, seu guarda-costas. Todos Sindars. Prepotentes e egocêntricos elfos Sindars.
"Como posso? Se esse teu silêncio não me é garantia alguma de que vai fazer o que é correto?"
"Já disse que não quero discutir. Já me deu suas ordens, apesar de eu estar no comando. Tudo o que posso fazer é cumpri-las. Só não me peça que goste da situação na qual estou."
"Cumpre ordens de seu pai e não minhas."
"As ordens de meu pai são para estranhos. Não para Elladan e Elrohir."
"Nunca vi seu pai fazer tal distinção. As ordens eram para todos, estranhos ou não. Afinal, se não lhe reconheceram, são de fato estranhos."
Legolas encheu o peito, mordendo com força o lábio para conter a ira que aquelas palavras, tão próximas da verdade, faziam despertar nele.
"Salvaram nossas vidas." Foi só o que foi capaz de responder e a frase saiu quase como um sussurro.
Thavanian sentiu, na rigidez do corpo do amigo, o quanto suas palavras o estavam ferindo. Ele lamentou ter que fazer tão amargo papel. Sua função decididamente não era das melhores.
"Você salvou nossas vidas, Las." Ele disse em um tom amável então. Buscando um caminho para que o coração do amigo voltasse a se abrir para ele. "Eles apenas chegaram depois. Pelo que me disse já havia se encerrado a luta quando a patrulha chegou. Você já havia vencido e estava apenas às voltas com problemas operacionais. Tudo o que fizeram foi aparecer e nos impedir de regressarmos para casa."
Legolas soltou os lábios e um som de indignação saiu deles.
"Ingratidão não faz seu gênero Thavanian." Ele disse severo. "Elladan cuidou de nós. Está ainda cuidando de nós, mesmo como tratamento que você reserva a ele. Eu tive febre todas as noites, dei-lhe trabalho o bastante."
"Teríamos nos virado de alguma forma. Bem sabe que já tivemos situações semelhantes."
Legolas bufou, enlaçando os macios pêlos da crina do cavalo malhado no qual estava com mais vigor. O animal ergueu levemente o pescoço em protesto e o príncipe apressou-se em acariciar-lhe arrependido.
"Tira-me do sério. É o que faz." Lamentou para si mesmo, embora endereçasse suas queixas ao amigo atrás dele.
"Assim que chegarmos, nós aceitamos a bendita escolta e regressamos. O rei não gostará nada dessa história." Thavanian atestou, ignorando o que ouvira.
O príncipe bufou uma segunda vez, agora com a imagem do impaciente pai a lhe lançar um olhar que ele conhecia mais que bem. Ilúvatar. Ele nunca teria paz.
"Parece que o mundo não tem imprevisto pare ele." Queixou-se, ainda em voz baixa.
"Por que nosso líder age sempre com exatidão e cautela." Dessa vez Thavanian decidiu não fingir que não o havia ouvido. Ele amava Legolas como a um irmão, mas sua devoção para com o rei era algo que não conseguia ver posto a prova. "E você sabe disso. Por isso é assim tão severo conosco. Pensa de fato que uma patrulha por ele dirigida teria se encontrado na situação em que a nossa se encontrou?"
Legolas engoliu em seco, fechando os olhos como se o guarda-costas o houvesse apunhalado. E aquela verdade escorregou-lhe intragável garganta abaixo, inundando seu corpo com um sentimento que a ele parecia estar sempre destinado. Então sentiu seus olhos queimarem e umedecerem, e uma nublada imagem que ele procurava esquecer, mas que sabia que não conseguiria, surgiu diante dele. A imagem de uma desoladora pilha de mortos que pouco a pouco a mãe terra cobriu.
"Legolas..." Ouviu enfim a voz arrependida do amigo atrás de si, mas aquelas palavras que sabia que se seguiriam não era o que precisava ouvir. Ele não queria paliativos para sua dor, não queria mentiras. Sabia bem o que tinha acontecido e quem carregava a responsabilidade por aquilo.
Por isso, antes que Thavanian pudesse completar sua sentença, o arqueiro passou a perna por sobre o cavalo e deixou-se cair de pé no chão. O amigo olhou-o intrigado, consciente ainda mais da grande bobagem que havia feito. Querer o bem de alguém não implica em ter-se um passe livre para agir ou dizer o que se julga correto.
"Leg... Ainion! O que vai fazer?" Thavanian indagou em voz alta, bastante preocupado, ao ver o príncipe afastar-se do cavalo.
"Esticar as pernas." Legolas respondeu com frieza, acelerando o passo em direção aos cavalos que iam à frente.
"Que insensatez!" Protestou o outro. "Volte."
"A marcha está tão lenta aqui que posso ir a pé e poupar um pouco esse amigo de carregar a nós dois." Legolas ainda respondeu antes de passar pelo meio de dois outros cavalos que caminhavam bastante próximos.
Thavanian abriu a boca para protestar novamente, mas não havia mais como, Legolas já desaparecera do alcance de sua visão, caminhando para a dianteira do grupo. O guarda-costas franziu a testa descontente, mas decidiu ficar onde estava por alguns instantes. Sabia que, mesmo nervoso, Legolas não desobedeceria às regras.
Os gêmeos agora cavalgavam lado a lado, observando o sol que se escondia agora por trás da pequena cadeia de montanhas pela qual teriam que passar. Elladan moveu-se desconfortável sobre seu cavalo e enlaçou o corpo, esfregando ligeiramente os antebraços.
"Talvez devamos acampar na próxima clareira." Ele aconselhou. "A noite promete ser mais fria do que a da véspera."
"Por mim tudo bem." Elrohir concordou. "Gostaria mesmo de chegar mais descansado a nossa casa. Sempre me atiro na cama e durmo dois dias direto quando chego, para no fim acordar super arrependido."
Elladan riu então. Lembrando do quanto aquilo era fato, e o irmão só acordava depois de muita insistência. Ele pensou em proferir as mesmas velhas recriminações, mas sua atenção foi chamada pelo andar rápido do arqueiro da Floresta Escura.
"Ainion." Ele chamou e Legolas reduziu o passo, sem, no entanto erguer a cabeça para olhá-lo. Elladan pôde vê-lo esfregar rapidamente o rosto, enquanto continuava caminhando agora mais devagar. Parecia deveras aborrecido. "Aonde vai com tanta pressa? O que houve com seu animal?"
"Nada, senhor." Ele respondeu e os irmãos se olharam insatisfeitos. "Estou apenas caminhando um pouco. A marcha está lenta e posso poupar o amigo eqüino que o senhor gentilmente me cedeu. São três dias que carrega dois elfos ao mesmo tempo."
"Nada pesam. Isso é tolice." Elladan recriminou-o de imediato. "Não devia estar se excedendo assim."
"Sinto-me bem, senhor. Agradeço sua preocupação."
"Não somos seus senhores, Ainion." Elrohir intrometeu-se, batendo as pernas em seu animal e aproximando-se do elfo. "Venha cavalgar comigo então."
"Não obrigado, meu senhor. Quero andar." ·
"Não sou seu senhor, Ainion." O gêmeo mais novo irritou-se enfim, passando a perna por sobre o animal e caindo levemente em pé ao lado do elfo louro. "Quando vai me chamar pelo meu nome?"
"Quando souber quem o senhor é." Legolas respondeu amargamente. "Não consigo distinguí-los e não parecem fazer qualquer esforço para que alguém consiga fazê-lo."
Elrohir franziu a testa, olhando rapidamente para o irmão que se mostrou também bastante intrigado.
"O que houve que lhe tomou a paz e os modos, mellon-nin?" Indagou o curador, descendo também de seu cavalo e tomando o outro lado do elfo louro.
Legolas envolveu o corpo com os braços e baixou a cabeça, acelerando o passo, mas Elrohir apoiou uma mão em seu ombro, desencorajando-o.
"Peço que me desculpem." O arqueiro disse imediatamente, seus ombros, porém ainda enrijecidos. "Não tinha a intenção de ser desrespeitoso para com os senhores."
Elladan uniu seu olhar ao do irmão mais uma vez, depois voltou a analisar a figura rígida que caminhava a seu lado.
"O que houve? Diga-nos, Ainion." Ele insistiu, apoiando também a mão no outro ombro do jovem elfo e apertando-o sutilmente. "Tem certeza que não está sentindo nada? Sabe que deve me dizer se estiver sofrendo algum mal estar. A febre passou, mas esses venenos ainda deixam seqüelas por alguns dias."
"Estou bem, senhor. Não se preocupe comigo." Legolas respondeu prontamente, sem sequer olhar o elfo a quem a resposta se dirigia.
"Elladan." O gêmeo disse em um tom paciente. "Eu sou Elladan. Agora que já me distingue de meu irmão pode tratar-nos por nossos nomes, Ainion?"
"Sim, senhor." O arqueiro respondeu em um instinto. Depois balançou a cabeça como se estivesse confuso e corrigiu-se. "Sim, Lorde Elladan."
"Apenas Elladan, Ainion." O gêmeo apertou-lhe mais uma vez o ombro, curvando-se ligeiramente para que pudesse ver melhor os traços agoniados de seu paciente.
"Perdoe-me..." Legolas suspirou então, virando o rosto e fugindo do olhar inquisidor que recebia. Estava irritado e precisava ao máximo tentar disfarçar aquela sensação. Thavanian tinha razão. Eles sequer o haviam reconhecido. Decerto imaginavam-no um elfo forte e poderoso como seu pai, decerto o imaginavam como todos os sindar também queriam que ele fosse. Ele suspirou mais alto involuntariamente, lembrando-se dos inúmeros olhares que os lordes sindars, amigos do rei, lhe lançavam, todas as vezes que ele cometia o terrível engano de entrar na sala de reuniões, sem indagar se o pai estava acompanhado. Ilúvatar, ele sem dúvida era a maior decepção daquele povo. Pudera os El não o reconhecerem como filho do rei também.
Elrohir apertou seu ombro também, parecia preocupado com ele e isso só o irritava mais. Por que tinham que parecer tão nobres e gentis? Tão eficientes e benevolentes? Porque não podiam despertar nele a mesma revolta que sentia por aqueles elfos sindars, amigos do rei?
"Então, Ainion." Elrohir chamou-lhe a atenção. "Quais são suas sensações sobre a natureza aqui do outro lado? Thavanian disse a Elladan que você nunca havia saído da Floresta Escura."
Legolas franziu os lábios insatisfeito. Para quem não gosta dos gêmeos o guarda-costas teve oportunidade de revelar-lhes sua maior vergonha. Pudera os dois elfos de Valfenda o estarem tratando com tantos cuidados, decerto o julgavam uma criança que recém largara a mão do pai.
"Está mesmo amargurado hoje, mellon-nin. Por que não divide conosco o que lhe incomoda?" Elladan lhe ofereceu, tentando novamente ver-lhe a face, ler-lhe os traços que a tristeza desenhara, fazer o verdadeiro papel de curador. Elbereth, e como o filho mais velho de Celebrian sabia fazer tal papel! Mas Legolas baixou o rosto envergonhado. Sentia-se um livro aberto e isso o preocupava. O sábio e habilidoso primogênito era de fato assustadoramente eficiente.
"Está preocupado?" Elrohir foi quem arriscou. "Porque seu grupo sofreu aquele ataque cruel? Está preocupado com seu capitão?"
Legolas olhou-o diretamente nos olhos então e Elrohir constrangeu-se um pouco, o que não lhe era peculiar, mas foi tudo o que demonstrou, sequer desviando o olhar do dele.
"Sabemos que seu rei é... duro com os soldados que o servem." Ele explicou-se então.
"Ele precisa ser, Lorde Elrohir. Sabe onde vivemos e o que enfrentamos." Legolas pegou-se defendendo o pai, como sempre fazia. Defendia-o em qualquer circunstância, até diante de si mesmo.
"Não o culpo." Elrohir concordou, depois de uma careta de desagrado por ouvir-se chamado de Lorde pelo jovem elfo. "Seu rei não está em julgamento aqui. Quem somos nós para fazê-lo. Apenas queremos saber o que o incomoda."
"Nada me incomoda. Apenas quero caminhar." Legolas baixou o rosto e suspirou com força, procurando retirar de si qualquer sentimento que o estivesse sufocando, fosse bom, fosse mal. "Sou um selvagem conhecendo outros territórios." Ele disse por fim e sua voz soou diversa da que usara, tinha um tom que lembrava o desespero.
Elladan franziu o cenho imediatamente e Elrohir tomou a frente de Legolas, caminhando de costas agora.
"Selvagem? Como assim? É o que pensa que achamos de você, Ainion?"
Legolas deu de ombros.
"Estão no direito dos senhores." Ele respondeu, engolindo com força a agonia que se embolara em sua garganta. "Mesmo porque não é novidade. É o que todos acham. Eu não me importo mais."
"Como assim?" Elrohir parou estupefato, quase pálido diante daquelas palavras, e seu movimento fez com que o arqueiro também não pudesse continuar. "Enfrenta preconceito em sua própria terra? Onde a maioria é silvestre como você?"
Legolas fechou os olhos e ele sentiu o sangue ferver nas veias como jamais sentira. Ilúvatar, nunca estivera tão irritado. Sentia-se dividido. Dividido não, sentia-se despedaçado na verdade. Agora, diante dos seus heróis de infância, começava a pesar-lhe demais ser quem era, pesava-lhe demais não ter o que exibir a eles, não ser um príncipe de fato, um grande guerreiro.
Elrohir apoiou ambas as mãos nos ombros dele então e Legolas sentiu-se pior do que a mais desprezível das criaturas. Ótimo, agora o gêmeo estava se apiedando dele. O que mais iria acontecer? Como poderia erguer sua cabeça com o peso que tinha por sobre ela?
"Estou falando demais. Falando sobre assuntos que não devo." Ele disse em tom de desabafo, sacudindo levemente os ombros para que o gêmeo o soltasse e dando a volta nele para continuar caminhando. "Peço que se esqueçam de mim. Que não me perguntem mais nada. Sou só um servo estúpido do rei, alguém que ainda não aprendeu qual é o seu lugar."
Os irmãos se entreolharam atônitos, depois acompanharam a figura franzina que seguia rapidamente adiante, braços fortemente cruzados diante do corpo e passos firmes, porém difíceis no chão de pedra e pó.
"Pobre infeliz." Elrohir sacudiu cabeça enfim, erguendo o braço para retomar seu cavalo. Não se sentia motivado a pressionar aquele jovem elfo novamente. "Ele parece viver um pesadelo."
Elladan ainda o olhou por mais alguns instantes e depois fez o mesmo, em silêncio.
"Sofre demais." Elrohir teve que comentar, apoiando a mão no peito e massageando-o lentamente como que para aplacar alguma dor, que não física, mas emocional.
"Talvez esteja somente abalado com o que aconteceu." Elladan finalmente ofereceu uma opinião que julgava sensata. "Pense bem. O grupo pereceu, seu capitão parece rigoroso e o rei Thranduil não é dos mais complacentes. Ele é um silvestre sob as ordens de um sindar. Não sei... Talvez deva estar apenas preocupado, julgando-se quiçá culpado de algo. Penso que deve ser muito difícil estar entre os poucos sobreviventes."
Elrohir balançou a cabeça em concordância, sem tirar os olhos da figura que caminhava adiante. Então encheu fortemente os pulmões e manteve o ar dentro deles por algum tempo, para finalmente esvaziá-los e soltar os ombros.
"Vamos acampar." Gritou então em seu inconfundível tom de liderança, fazendo o grupo diminuir a marcha devagar.
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Agora os soldados dividiam as tarefas, revendo os postos de guarda e procurando caça. O cozinheiro acendeu uma fogueira e Elladan fez com que o teimoso Thavanian se deitasse perto dela. Ofereceu-lhe então alimento e depois uma caneca de chá, a qual o elfo relutantemente aceitou, descendo as pálpebras em pouco tempo e adormecendo.
Legolas buscou o que fazer, algo para manter-se ocupado. Ele aliviou os cavalos de suas cargas e passou a escová-los carinhosamente. Depois de uma jornada como a que tinham, os animais também mereciam algum descanso, algum afeto, e poder proporcionar-lhes tal regalia fazia-lhe bem, fazia-lhe esquecer os próprios conflitos. Ele então começou a cantarolar baixinho uma cantiga qualquer que lhe veio à mente, apenas para tornar aquele momento mais especial. O bom cavalo pareceu aceitar com grande prazer o som da voz e o toque das mãos do príncipe, aquietando-se prontamente em complemento àquela paz.
Elladan, que se aproximava devagar, viu-se obrigado a parar onde estava. A cena toda o extasiava. Legolas desfizera-se de suas armas, deixando-as no chão próximo e parecia perdido em um mundo que o gêmeo não compreendia. As roupas que Elrohir lhe emprestara e que lhe ficavam largas, davam a ele uma fragilidade ainda muito maior. Os cabelos muito claros brilhavam mesmo sem qualquer raio de sol ou brilho de estrela a favorecê-los. Porém, acima de tudo isso estava aquela voz, o som que, mesmo sem a compreensão das palavras, atribuía àquela figura intrigante uma posição de nobreza que Elladan não compreendia.
Ele permaneceu perto então, mesmo depois que a canção terminou, mesmo depois que o ato de escovação se tornou desnecessário, mas Legolas o continuava por puro prazer. O gêmeo limitou-se apenas a esperar que o elfo o visse, pois não queria assustá-lo ou incomodá-lo. Em alguns segundos o arqueiro voltou-se para ele, olhou-o por meros instantes com olhos profundamente azuis, depois continuou o que fazia.
"Meu senhor?" Ele indagou de costas agora, deslizando ainda a escova macia pelo lombo do eqüino, mas toda a magia da ação havia desaparecido, restando apenas a tensão inicial que não o abandonara.
"Elladan." O gêmeo lembrou sutilmente.
"Elladan." Legolas repetiu sem se voltar. "Posso ser útil?"
"É o que parece estar tentando fazer." O gêmeo deu um passoà frente. "Apesar de não ser aconselhável."
"Estou me sentindo bem e quero ser de alguma ajuda. Além disso, gosto de cavalos."
"Eles parecem gostar de você." Comentou o elfo moreno, aproximando-se mais agora e acariciando a crina do animal que recebia os cuidados do arqueiro.
Legolas não respondeu, tentava manter os olhos e a mente no que fazia, mas estava cada vez mais difícil. Elladan o olhava com o canto dos olhos agora, absorvendo a sensação de que o rapaz sentia-se de alguma forma incomodado com sua presença. Isso o entristecia. A um curador não deveria ser possível despertar um sentimento negativo em alguém, mas ultimamente essa regra parecia estar se mostrando falha.
"Seja sincero comigo, Ainion, por favor." Ele pediu enfim e os olhos azuis do arqueiro se voltaram questionadores em sua direção. "Seu povo tem alguma coisa contra nós?"
"Contra quem?" Legolas franziu a testa. "Contra os noldors? Contra o povo de Imladris?"
"Contra nós, Ainion. Contra Elrohir e eu."
"E por que teríamos?"
Elladan silenciou-se então, amargando mais uma vez, como o fizera infinitas vezes durante os últimos dias, as terríveis palavras de Thavanian sobre o passado. Infelizmente, o que elas escondiam o preocupava mais do que o que haviam revelado.
"Eu não sei" Ele procurou esclarecer, mesmo sem encontrar as palavras corretas. "Thavanian... Ele não parece nos ter em grande apreço... Você também não parece muito à vontade em nossa companhia."
Legolas parou por alguns instantes, sem saber o que responder, depois voltou a desviar o rosto para o que fazia. Sentia que não poderia discutir aquele assunto alicerçado em mentiras como se encontrava.
"Não sei da vida de meu capitão." Ele respondeu com amargura. "Mas nada tenho contra você ou seu irmão."
Elladan suspirou descontente, encontrando-se perdido em um labirinto escuro sem que alguém estivesse disposto a lhe oferecer uma pista qualquer. Ele puxou devagar o arqueiro para que se voltasse para ele. Legolas empalideceu. Não podia evitar.
"Abra a túnica para mim, sim, Ainion." O gêmeo pediu em um tom triste, os olhos fixos agora na região da picada de seu paciente, coberta pela larga túnica que Elrohir lhe emprestara.
"Estou bem melhor, Elladan." O jovem soldado deixou que as palavras se suavizassem em seus lábios secos, não queria aborrecer mais seu benfeitor do que ele já parecia estar . O que será que Thavanian havia-lhe dito ou feito?
O gêmeo balançou a cabeça em uma concordância que Legolas não entendeu, mas ergueu as mãos e ele mesmo passou a desfazer os laços que o separavam do ferimento que queria ver. O arqueiro sentiu um ímpeto de protestar, mas não o fez.
"Dói?" Ele indagou, apoiando a palma inteira na região ainda arroxeada, e Legolas acenou negativamente com a cabeça. "Diga a verdade, por favor."
"Não me incomoda mais em nada, Elladan. Narro-lhe os fatos com franqueza."
"Mas a temperatura ainda não está normal." Queixou-se o gêmeo.
"É a febre... Ela vem e vai, mesmo enfraquecida... Mas estou me sentindo bem e o ferimento cicatrizou-se."
"Não está cicatrizado de fato." Elladan olhou o grande corte da ferroada, ainda levemente inchado nos cantos. "Se a febre existe é porque ainda há veneno a ser combatido."
"A febre é um incômodo passageiro. Acredite-me. Eu já passei por isso. Eu sou..."
"Alérgico." O elfo completou com um suspiro cansado. "Já me disse, mas isso não me serve de consolo."
Legolas silenciou-se, observando ainda o hábil curador olhar atentamente a ferida, apoiando ambas as palmas ao lado dela. A sensação das mãos de Elladan era indescritível, só em tê-las em sua pele dolorida e frágil já lhe fazia tanto bem quanto qualquer bálsamo. Como um curador tão talentoso poderia ser um guerreiro tão temido e admirado era uma dúvida que livro algum jamais lhe responderia. Aquilo só lhe confirmava o que sempre pensara dos gêmeos. Eles eram elfos à parte, heróis que contrariariam todas as regras, e que com certeza seriam lembrados.
"Deve sofrer muito todas as vezes que acontece." O gêmeo exprimiu os pensamentos que lhe povoavam agora a mente, depois estalou os lábios. "Isso é uma incógnita para mim." Ele sacudiu a cabeça insatisfeito. "Faz-me pensar que ainda tenho muito que estudar e discutir com meu pai."
"Fez exatamente o que era devido, por isso me recupero com rapidez..." Legolas procurou consolá-lo. "Nosso curador também custa algum tempo a me ver livre da febre quando estou em casa."
O gêmeo suspirou então, apoiando uma mão no ombro do rapaz e tomando-lhe a escova que segurava.
"Já fiz seu capitão comer e dormir." Ele informou, jogando a escova no chão. "Embora ele pareça ter desenvolvido uma grande aversão para com a minha pessoa, como já lhe disse. Não o culpo, meu chá não é dos melhores e meus métodos de convencimento também não os mais ortodoxos." Completou e Legolas sorriu. Era bom ver o rumo da conversa alterar-se e o sério Elladan mostrar-se um pouco aquele elfo bem humorado que sempre fora.
"Ele é teimoso. Característica intrínseca do povo sindar." O arqueiro ofereceu ainda com o canto dos lábios erguidos, buscando preservar o leve clima que Elladan instaurara. "Mas com certeza não tem nada contra vocês. Ele lhes é grato, assim como eu."
O gêmeo sorriu também, mas seu rosto parecia intrigado.
"Você não sorri com freqüência." Ele comentou fazendo o elfo a sua frente voltar a baixar o rosto. "Mas quando o faz. Lembra-me alguém."
Legolas empalideceu novamente.
"Deve ser algum outro elfo silvestre." Ele apressou-se em esclarecer. "Somos todos muito parecidos."
Elladan pendeu pacientemente a cabeça, apoiando a outra mão no ombro de Legolas.
"Você deve ter sofrido muito, Ainion."
"Por que diz isso?" Surpreendeu-se o elfo louro.
"Porque se defende sempre menosprezando a si mesmo no lugar de enaltecer suas obras. Quem fez isso com você? Quem lhe tirou a fé que deveria ter em si mesmo? No guerreiro valoroso que é?"
As palavras sumiram da boca do príncipe, que ficou com o queixo solto, os lábios descolados como se, mesmo assim, houvesse resposta para aquela questão. Na verdade havia uma resposta para tudo. Mas talvez a pergunta não estivesse bem formulada.
"Você quer dizer, quem me fez ver o que sou?" Ele corrigiu, encontrando finalmente forças para retrucar.
"O que sou, Ainion?" Elladan sacudiu de leve a cabeça. "Nem ao menos usa a palavra 'quem' quando fala de si mesmo?"
E usava? O arqueiro apertou os lábios. Nunca pensara no vocabulário que empregava. Talvez porque não falasse com ninguém sobre si mesmo. Não havia ninguém a quem confiaria qualquer desabafo.
"Como se vê, Ainion?" Insistiu o jovem curador, apertando-lhe ambos os ombros e olhando-o nos olhos. "Que falsidades pintam a imagem que tem de si mesmo?"
Legolas franziu o rosto, seus olhos presos aos de Elladan como se o gêmeo quisesse sugar a verdade do seu ser, através de suas próprias órbitas se não por suas palavras. Ele inquietou-se então. Estufando o peito e respondendo em um tom bem mais amargo.
"Eu não tenho, nem quero guardar falsas ilusões sobre qualquer coisa. Já aprendi que ilusões são artifícios dos poderosos e que eles raramente as usam consigo mesmos, muito pelo contrário, usam-nas sempre para enganar o próximo. Eu não me iludo e não iludo ninguém. Não participo desse tipo de jogo. Não participo de jogo algum."
Elladan franziu o cenho e Legolas chegou a perceber os olhos do gêmeo escurecerem-se devagar. Sim. Talvez fosse mais fácil se eles o odiassem, se lhes virassem as costas definitivamente. Mas o elfo moreno apenas soltou um suspiro fraco e deslizou suavemente suas mãos pelos braços dele, segurando-lhe firmemente ambas as mãos.
"Eu não vivo de ilusão." Ele disse, sem desfazer o vínculo que o olhar de ambos havia criado. "Eu sei bem o que vi. Eu vi um guerreiro com uma simples adaga na mão diante de um rio de mortos, eu vi esse mesmo guerreiro, no mesmo dia, cavar o chão e enterrar seus irmãos, eu o vi dedicar-lhes suas últimas forças, mesmo cansado, mesmo ferido, mesmo doente. Eu vi um grande guerreiro e não precisei criar nada a mais em minha mente para me surpreender e me admirar com o que vi."
E era finda sua tentativa. Legolas sentiu seus olhos arderem e as lágrimas fizeram por eles o caminho que queriam desde aquele dia que o gêmeo narrara. A cena criava-se novamente diante dele, dessa vez com as belas cores que Elladan usara para retratá-la, mas ainda era a mesma cena, a mesma cena que ele carregava nos ombros e cujo peso parecia estar aumentando a cada dia. Ele quis soltar suas mãos, mas Elladan segurou-as com redobrada firmeza.
"Deixe que venham, mellon-nin." Ele aconselhou em uma voz de paciência profunda, como um pássaro que canta na madrugada, no momento que menos se espera ou acredita. "Tem direito de derramar lágrimas por eles, de lamentar essa perda, a injustiça que houve. Ninguém tem mais direito do que você e não vou permitir que lhe seja negado tal direito. Não vou permitir, compreende? Nem que aquele a negá-lo seja você mesmo."
Legolas baixou a cabeça então, se vendo sem forças para reagir agora e Elladan, depois de percebê-lo entregue de fato, soltou-lhe e o trouxe para perto de si, permitindo que se encostasse a seu peito. Quando Legolas o fez, pousando inseguro a cabeça em seu ombro e tentando conter os soluços que queriam saltar-lhe garganta a fora, o gêmeo entristeceu-se mais ainda, sentindo uma recordação muito dolorosa querer despertar-lhe com aquela situação, mas não conseguindo distingui-la de fato.
"Está com muito em seu peito. Precisa se libertar." Ele decidiu esquecer o que quer que o estivesse incomodando. Precisa agora fazer seu papel, aquele ao qual estava destinado. "Deixe esse mal sair de você. Sobrará assim o espaço que precisa para respirar e encontrar as forças que necessita. Sofrerá menos."
Elrohir, que vinha se aproximando, estagnou-se a alguns passos, ouvindo a voz suave de Elladan proferir palavras que ele mesmo já ouvira dele, palavras de consolo que não tinham preço. O gêmeo mais novo sorriu aliviado por ver que o irmão tinha conseguido derrubar uma barreira importante daquele angustiado elfo e pensou cautelosamente como agir. Não queria colocar todo o trabalho do irmão a perder. Elladan virou levemente a cabeça para ele então, gesticulando para uma xícara que estava próxima da fogueira. Elrohir apressou-se em apanhá-la e trazer-lhe.
"Agora você bebe isso." Propôs o curador, assim que Legolas conseguiu voltar a se controlar e quis afastar-se dele.
"Estou bem..." O arqueiro discordou em um tom baixo e fraco, apressando-se em enxugar o rosto úmido. "Eu..."
"Ainion..." A voz de Elladan endureceu-se então e ele sequer precisou completar sua sentença, cujo tom era mais o de uma ordem do que de um pedido. O elfo louro aceitou a caneca das mãos do gêmeo e só então percebeu o outro gêmeo olhando-o a alguns passos dele. "Beba, vamos. É só um antialérgico leve, sequer vai fazê-lo dormir se estiver realmente bem."
Legolas ainda manteve seus olhos nos de Elrohir por alguns instantes, como se o outro gêmeo o estivesse hipnotizando de alguma forma, depois bebeu o conteúdo da caneca e estranhou o gosto que tinha. Era muito bom. Talvez Elladan estivesse lhe falando a verdade e de fato não fosse dormir com aquele medicamento. Ele passou a sentir seu corpo leve, não sabia se era devido ao chá ou ao fato de ter derramado finalmente algumas de suas lágrimas. Elrohir aproximou-se devagar então e sorriu-lhe. Legolas retribuiu timidamente.
"Sou um elfo ingrato." Ele disse, baixando a cabeça, as mãos ainda segurando a caneca do chá. "Peço que me perdoem meus maus modos..."
"Nada de pedir desculpas." Elrohir achegou-se então e Elladan retomou cuidadosamente a caneca, pedindo com um leve gesto de cabeça que o irmão mantivesse seus olhos no elfo enquanto a devolvia para o lugar. Ele parecia prever o que viria a acontecer, pois em instantes Legolas sentiu seus joelhos fraquejarem sem sobreaviso e, se Elrohir não estivesse diante dele, teria ido ao chão.
"Faça com que se deite aqui, Ro." Elladan esticou um dos cobertores e Elrohir ajudou o arqueiro a se deitar.
"Agora você dorme quietinho." O gêmeo mais novo ditou, cobrindo-lhe e oferecendo um pequeno sorriso. "Nada de passeios por aí. Nem há árvores para você procurar."
Legolas sorriu e seus olhos brilharam por trás das pálpebras semicerradas que tentava impedir de se fecharem. Estava confuso, arrependido, mas acima de tudo estava muito, muito cansado mesmo.
"Perguntou-me o que eu... o que eu achava da natureza aqui... aqui fora da mata..." Ele lembrou e Elrohir sorriu, apoiando a mão por sobre sua testa.
"Isso. E o que acha?"
"Acho... acho que quero muito... conhecer... sua terra..."
"Quer?" O sorriso do gêmeo se alargou então e ele lançou um breve olhar de aprovação para Elladan. "Pois nunca mais vai querer sair de lá quando o fizer. É muito bela."
"Eu... imagino... De uma beleza... convincente..." Legolas deixou a palavra do passado escapar, depois pendeu a cabeça para o lado e adormeceu, deixando os gêmeos com uma estranha sensação a lhes perseguir.
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"Shh, beba vamos. É só um caldo verde. Não tem carne." Ele ouviu a voz mansa do curador e uma caneca morna estava em seus lábios. Legolas ergueu as pálpebras devagar, ainda estava cansado. Elladan o mantinha nos braços agora e sorria-lhe. "Beba e durma mais. Devia tê-lo feito comer antes de dar-lhe as ervas, mas você estava tão angustiado. Precisa comer agora um pouco, depois poderá voltar a dormir."
Legolas olhou a sua volta. Já amanhecera?
"É dia..." Ele disse tentando levantar-se.
"Não se preocupe." O gêmeo apertou um pouco mais o abraço que o envolvia. "Mal amanheceu. Beba vamos. Só alguns goles. Não pode passar os dias comendo apenas lembas e frutas silvestres."
Legolas sentou-se então, segurando a caneca com as mãos trêmulas. Elladan sentou-se atrás dele e ajudou-o a segurar o caldo, já que suas mãos tremiam ainda ligeiramente.
"A febre voltou durante a noite." O curador sacudiu a cabeça. "Não compreendo. Depois de duas noites normais você teve uma inteira de delírios."
Legolas fechou os olhos, sentindo a sopa descer-lhe forçadamente pela garganta.
"Fiz alguma bobagem novamente?" Ele indagou receoso.
"Não." Elladan sequer sorriu da insinuação. Parecia na verdade aborrecido. "A temperatura nem estava tão alta. Mas você ficou falando em sua língua nativa. Eu não compreendo o dialeto silvestre. Thavanian estava adormecido também, então seja lá o que o estava incomodando não saberemos a não ser que você se lembre."
Legolas tomou mais um gole, depois afastou a caneca de si. A sopa estava boa, mas seu estômago sentia ainda o peso da noite mal dormida. Ele olhou para o gêmeo, que parecia um pouco abatido. Elladan era conhecido por sua obstinação no que tangia aos processos de cura. Não era de se admirar que estivesse com o ar inconformado que lhe entristecia o rosto.
O príncipe doeu-se pelo amigo, pois sabia que seu sono não havia sido perturbado pela febre dessa vez. Fora o cansaço que, quando muito extremo, costuma fazê-lo perder-se em seus sonhos. Quando estava sem forças, as ditas visões, ou sonhos, como seu pai gostava de chamá-las, vinham-no incomodar. Graças a Ilúvatar ele sempre usava o silvestre quando estava se sentindo angustiado.
O arqueiro suspirou então, lembrando-se infelizmente muito bem das imagens que o perseguiram durante a noite. Eram as imagens do último quadro que pintara em sua infância, os gêmeos lutando bravamente em meio a um grande grupo inimigo. Legolas franziu o cenho preocupado, nunca sabia se eram fragmentos do passado ou do futuro os que via. Ele olhou a sua volta e sentiu o arrepio que sempre lhe era um aviso importante.
"Vamos levantar acampamento?" Disse então, procurando erguer-se.
"Não." Elladan segurou-o novamente, forçando-o a deitar-se agora. "Vamos deixar que descansem mais um pouco. Estamos em uma região que na qual não precisamos ter pressa. Volte a dormir. Thavanian fez o mesmo depois de comer algo."
Legolas olhou o amigo então.
"Ele está bem?"
"Sim. Está se recuperando, mas como estamos perto de casa e fora de perigo, não há porque usarmos da pouca força que seu capitão conseguiu acumular com a noite de sono. Durma um pouco mais você também, Ainion. Não teve uma noite tão tranqüila quanto à de seu líder."
Legolas deitou-se então, fingindo obedecer. Elladan sorriu-lhe, depois se ergueu esticando o corpo e caminhando a passos largos para a fogueira, onde se sentou ao lado de um dos elfos do grupo e tomou para si um pouco da comida que faziam.
"Visões... Sonhos..." O príncipe disse para si mesmo, tentando fechar novamente os olhos. Infelizmente ele não pôde voltar ao mundo dos sonhos, nem ao menos se deixar levar pelo sono curador. Seu coração estava acelerando-se descompassado e isso era um aviso que ele não podia ignorar.
Girou os olhos a sua volta enfim, decidindo buscar por seu armamento. O arco estava apoiado por sobre a mochila de Elrohir e a aljava estava cheia das flechas que recuperara quando enterrara os mortos. O problema é que não sabia o quanto podia confiar nelas, pois sequer as verificara depois disso. Ele ergueu-se então e arrastou-se silenciosamente para lá, puxando a aljava para seu colo e retirando as flechas uma a uma.
"Já acordado soldado?" Elrohir aproximou-se, falando em um tom tão alto que o irmão, ainda diante da fogueira inquietou-se no mesmo instante.
"Ainion!" Protestou descontente o gêmeo mais velho, erguendo-se e aproximando-se também. "Precisa dar paz a seu curador!"
"Só estou verificando minhas flechas, Elladan." Ele defendeu-se timidamente, sentindo-se como uma criança que justifica suas travessuras. Os dois irmãos ajoelharam-se diante dele. "Não vou me exceder, prometo."
"Deixe essas setas imundas de lado." Elrohir puxou a aljava do elfo, olhando enojado para o sangue negro que ainda tingia algumas delas. "Estamos em lugar seguro. Quando chegarmos a Valfenda eu lhe darei outras novas. Faço questão de dar um fim nessas aqui."
Legolas retomou-as das mãos do gêmeo em um instinto quase brutal.
"O que foi-nos salvação merece respeito, Elrohir." Ele protestou, segurando firme uma das flechas. "Não atira sua espada ao fogo porque carrega o sangue de seu inimigo, atira?"
Elrohir apertou o maxilar irritado.
"Já se zangou comigo novamente, Ainion. Parece que devo manter minha boca fechada quando estou diante de você. Ou terei sempre que lhe explicar que não tive a intenção de ofendê-lo com as palavras que disse e você fingiu não compreender." Ele ergueu-se então. "Diplomacia não é o meu forte."
"Elrohir, espere." Legolas levantou-se rapidamente, mas cambaleou e o gêmeo apressou-se em segurá-lo. "Desculpe... eu... não quis ofendê-lo."
"Droga Dan." O líder do grupo sequer ouvia-lhe mais. Estava tão preocupado com ele que parecia esquecido do desentendimento dos dois. "Não consegue fazê-lo sentir-se melhor? Já é quase uma lua!"
Elladan baixou a cabeça, disfarçando a irritação com as palavras do irmão.
"Estou tentando, Elrohir. Ainion precisa colaborar também."
"Desculpe." Legolas sentiu-se péssimo por estar sendo o centro da discussão dos dois gêmeos. "Estou melhor... É verdade... Eu..."
"Você precisa é aprender a obedecer um pouco, soldado." Elrohir passou a puxá-lo novamente para perto da fogueira. "Pudera seu capitão ser tão rígido. Se você fosse um dos meus elfos, acho que já teria lhe dado umas sovas."
Legolas baixou a cabeça, deixando-se levar de volta ao cobertor, ele não queria se deitar, mas também não queria despertar novos conflitos entre os irmãos. Elrohir ajudou-o a deitar-se e voltou a cobri-lo.
"Agora durma ou vou pedir que meu irmão lhe dê um sedativo horrível que nosso pai costuma nos dar quando estamos muito feridos." Ele sorriu maliciosamente então, como se estivesse cogitando a hipótese e Legolas cobriu o rosto com o cobertor.
"Já estou dormindo." Ele brincou por baixo do tecido e sua voz soou abafada, fazendo o gêmeo rir e sacudir a cabeça, pensando que já tinha tido uma experiência assim, mas não se lembrava quando. De qualquer forma, era bom demais ver esse lado leve do arqueiro da Floresta. Tinha algo de muito especial em vê-lo feliz.
"Acho bom mesmo." O elfo moreno brincou então, olhando o irmão que também sorria e levantando-se. "Estou falando sério. Nem queira ver-me apanhá-lo em uma desobediência, certo? Sou um guerreiro muito cruel."
Legolas sorriu, mas seu peito doeu ao ouvir uma brincadeira que lhe era tão familiar, ele decidiu que talvez não fosse conveniente mostrar o rosto agora e manteve-o coberto. Elrohir porém, puxou a manta, ainda em pé e ergueu-lhe as sobrancelhas.
"Durma." Ele repetiu a ordem, fingindo seriedade, e Legolas engoliu suas emoções e assentiu.
"Elrohir." O arqueiro chamou, porém, quando os dois gêmeos já voltavam para perto da fogueira e o mais novo voltou-se imediatamente. "Posso apenas... ficar com o arco e a aljava perto de mim? Prometo não mexer neles e..."
"Ainion, já disse que não há perigo..."
"Está bem." Elladan foi quem concordou, apressando-se em apanhar as armas e colocá-las ao lado do paciente. "Se eu te pegar com uma dessa flechas na mão vou cumprir o que meu irmão ameaçou. Entendeu bem, soldado?"
Legolas assentiu com um sorriso fraco e o gêmeo mais velho piscou para ele, movendo nitidamente os lábios em um 'comporte-se' sem som para o qual Legolas teve que rir, disfarçadamente. Logo os dois irmãos estavam diante da fogueira e de um prato de sopa e carne, comendo e conversando sobre assuntos de guerra.
O príncipe virou de lado, tentando achar uma posição confortável para ficar naquele chão duro. Antes houvesse uma árvore na qual pudesse subir. Ali não havia nenhuma, era um descampado de pedra dura e arbustinhos sem graça alguma. O céu sequer estava de um azul que valesse a pena ser admirado e, apesar de muito cansado, sabia que dormir, sem ao menos a ajuda das estrelas, não iria lhe fazer muito bem naquele momento. Mesmo porque seu coração continuava descompassado e aquele aperto no peito não tinha lhe dado nenhuma trégua.
Foi quando viu. Tinha certeza que vira, um oscilar estranho de um pequeno arbusto que crescia encostado a uma pedra enorme. Legolas uniu as sobrancelhas e se apoiou em um dos cotovelos. O arbusto então se mexeu novamente e um brilho suspeito refletiu-se por trás dele. Um brilho bastante suspeito. O arqueiro olhou a sua volta sem quase mover o rosto, contando devagar os elfos da patrulha. Naquela semana tratara de conhecer a todos, seus rostos, vestes, modos, não apenas para sentir-se um pouco parte do grupo, mas principalmente para criar o instinto suficiente para não feri-los em um conflito ocasional.
Contou mais uma vez para se certificar. Estavam todos lá.
E então a sensação voltou. Ele olhou para o grupo envolta da fogueira e no mesmo instante sentiu os ombros de Elrohir, agora de costas para ele, estremecerem, como se o elfo tivesse tido um calafrio. Quando o gêmeo voltou-se e seus olhos se encontraram como os dele, aquele que Legolas viu não era nem de perto o Elrohir que conhecia. Suas pupilas estavam escurecidas, e sua feição, de uma seriedade assustadora. Legolas moveu os olhos para a direção do arbusto e para o gêmeo novamente em um recado mudo e Elrohir ergueu os cantos dos lábios no sorriso exato do retrato que o arqueiro pintara, um sorriso idêntico ao que povoara o restante dos dias de sua infância.
Foram apenas segundos até o arbusto voltar a se mover e o brilho criar identidade, a identidade de uma arma fulgente, uma arma rutilante em mãos absolutamente inimigas. Legolas agarrou o arco e logo aquele brilho estava no chão, ao lado de seu dono, ambos caídos por trás do arbusto. Então tudo se transformou em conflito e o príncipe sequer viu por onde ao certo começou. Elladan saltou a fogueira e em instantes tinha um grande arco em suas mãos, disparando flechas para todos os cantos do acampamento. Elrohir avançava ferozmente, espada erguida e bem segura, dentes muito brancos a mostra, contra um grupo asqueroso que emitia grunhidos e sons repulsivos. As armas brandiam ecoando naquele beco de pedras e rochas.
"Ainion! Proteja Thavanian!" Legolas ouviu o gêmeo mais velho gritar, correndo agora pelo acampamento e acertando vários inimigos. Ele disparava duas e até três flechas ao mesmo tempo com uma destreza de causar admiração até no mais experiente dos silvícolas.
Então era verdade. Elladan era arqueiro. Legolas ainda teve tempo de pensar, antes de se arrastar para perto do amigo e apoiar o corpo por sobre ele.
"Legolas!" Thavanian despertou assustado.
"Shh." Legolas cobriu-lhe os lábios. "Estamos sendo atacados."
"E o que faz aqui sobre meu corpo assim?"
"Protejo meu capitão." Ele disse olhando preocupado a sua volta. "Cale-se."
"Isso é absurdo. Sou seu guarda-costas e..."
Mas o indignado elfo não pode terminar. Uma flecha pousou no chão de areia, fincada a exatos dois centímetros de seu rosto. Thavanian arregalou os olhos impressionado. Depois trocou olhares com o príncipe e ambos chegaram à mesma conclusão. Logo usavam também as armas que tinham naquele duelo de forças.
Legolas apoiou-se em uma rocha e passou a atirar, era o único modo que tinha para conseguir concentrar sua visão, já que mal conseguia ficar em pé. Já Thavanian mostrava-se bem recuperado, acertando em cheio sua adaga longa em um oponente que avançava sobre Elrohir. O gêmeo voltou-se surpreso, mas depois lhe ofereceu um leve aceno de agradecimento.
As flechas do arqueiro enfim acabaram e ele soltou um som de total desagrado, atirando o arco no chão. Perdera a maioria delas que, desgastadas ou desalinhadas pela função que exerceram anteriormente, recusavam-se a ir para a direção na qual seu dono as incumbia. Ele então puxou a adaga da aljava e caminhou em direção ao centro do conflito, logo Thavanian lhe tomava a frente.
"Não! Não está em condições de um corpo a corpo." Gritou o guarda costas, ainda com a espada erguida, mas sem enfrentar qualquer inimigo no momento. Então o puxou para trás de uma grande pedra.
"Thavanian." Legolas protestou, tentando se soltar. "Não vou me esconder."
"Vai. Vai e não vou me repetir. Tem que cumprir o regulamento. Não pode lutar."
Legolas puxou o braço, indignado.
"Não vou deixá-los. Há muitas criaturas lá."
Mas Thavanian, que sentia tão bem o conflito que se armava ao seu redor quanto o príncipe, não pensou duas vezes. O tempo era escasso demais para argumentos, por isso ele ergueu rapidamente o punho e acertou em cheio o queixo de Legolas. O arqueiro, sequer teve tempo de se defender, na verdade não esperava uma atitude dessas. Thavanian amparou-o quando ele caiu pesadamente, já inconsciente, e apoiou seu corpo escondido entre duas rochas, esperando que o amigo não acordasse e que qualquer um que o visse, o julgasse atingido.
"Perdoe-me, mellon-nin. É minha função protegê-lo." Ele pediu, acariciando rapidamente o rosto do príncipe e depois partindo para a luta que não cessara.
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Quando Legolas recobrou os sentidos havia um silêncio assustador no Vau. Ele ergueu a cabeça devagar e apoiou imediatamente a mão no queixo dolorido, lembrando-se incrédulo do que ocorrera.
"Thavanian." Ele disse para si mesmo, apertando os olhos de dor ao esfregar o rosto. "Não acredito que você fez isso. Eu vou tirar a sua pele."
Mas o sentimento de revolta que o assolou logo foi substituído por uma estranha inquietude. O silêncio e o frio o atingiam de igual forma e ele passou a se preocupar tremendamente.
Ergueu-se com dificuldades e caminhou apoiando-se na grande rocha, contornando-a para tentar chegar de volta ao acampamento. O que viu então foi uma cena que não o agradou em nada. Em um dos cantos, dois elfos reuniam agora uma pilha de corpos cinzentos. Havia alguns outros ainda espalhados, entre eles alguns dos elfos que Legolas conhecera. O arqueiro sentiu uma grande tristeza em seu peito já amargurado e passou a procurar desesperadamente por seus amigos. Finalmente viu Elladan ajoelhado do outro lado do campo, diante de um ferido do qual parecia tratar com urgência. Ele aproximou-se, ainda olhando ao redor. Há alguns metros pôde ver Elrohir, que se virou no mesmo instante para ele e correu em sua direção.
"Ainion." Ele disse, envolvendo-o nos braços ao vê-lo pálido e cambaleante. "Está ferido?"
"Não..." Legolas respondeu confuso, olhando ainda tudo a sua volta.
"Seu rosto está inchado." O gêmeo comentou, apoiando um dos dedos por sob seu queixo para fazê-lo olhar para ele e ver melhor o ferimento. "Está sangrando também."
"Não foi nada. Acho que fui atingido e cai... Lamento não ter sido de grande ajuda. Há...muitos feridos?" Ele indagou e logo sentiu um calafrio ao ver cabeça de Elladan pender tristemente diante do corpo que tratava. Elrohir acompanhou o movimento e arregalou os olhos, correndo em direção do irmão.
"Vamos, Hérion! Vamos, reaja!" O gêmeo mais novo ouviu o tom desesperado do irmão, que agora apoiava ambas as mãos no peito ensangüentado de um dos guerreiros do grupo. Elrohir ajoelhou-se a lado dele e envolveu-o nos braços no mesmo instante, percebendo bem o que Elladan queria fazer.
"Deixe, Dan."
"Não."
"Deixe-o!" Elrohir apertou-lhe um pouco mais os ombros."Não respira mais, toron-nin." O gêmeo constatou, olhando com tristeza os olhos quase sem brilho do guerreiro caído. "Mandos já o recebe às suas portas."
Elladan sacudiu a cabeça então, baixando mais ainda o rosto e apertando os olhos.
Legolas, em pé atrás dele, sentiu uma sensação estranha. Olhou entontecido para o corpo imóvel do guerreiro e franziu dolorosamente os olhos ao perceber um brilho fraco ainda oscilar naquele peito que parecia inerte. Uma voz ao longe cantava uma triste canção, mas não era ali, não era naquele chão. Legolas moveu o rosto e seus olhos se fixaram no olhar perdido do guerreiro caído.
"Não se foi." Ele disse e os irmãos voltaram-se para ele.
Elladan uniu as sobrancelhas por alguns instantes, depois se virou confuso para o paciente. Não compreendia o que o arqueiro da Floresta queria dizer, pois não sentia mais vida alguma naquele corpo. Lançou então um olhar descrente para Legolas, ainda parado atrás dele. Entretanto, ao fazê-lo, sentiu algo. Os olhos do elfo louro pareciam claros como um rio em uma tarde de verão, quase sem brilho, mas estavam fixos nos de Hérion.
"Não desista, Dan." Ele disse em uma voz branda e Elladan ouviu-a como se houvesse soado de dentro de seu próprio peito, como se fosse a sua própria. O gêmeo soltou os lábios atordoado, mas a sensação desapareceu, transformando-se em uma grande e inexplicável certeza. Ele então se voltou para o ferido, tornando a apoiar ambas as mãos no peito do amigo, mas dessa vez, abandonando as ervas e os sais, e concentrando-se em sua própria energia de cura.
"Dan." Elrohir inquietou-se, sempre temia ao ver o irmão se abrir daquela forma.
Uma luz logo se formou nas mãos do gêmeo curador e ele fechou os olhos, concentrando sua energia, mas pedindo mentalmente que alguém, que não estava lá, mas de quem ele muito precisava naquele instante, lhe ajudasse a encontrar o caminho certo.
E então seu pedido, jamais ignorado, foi mais uma vez atendido.
Elladan sentiu a presença que lhe faltava e uma voz soou em sua mente, paciente e forte.
"O poder está em suas mãos, ion-nin. Emanando da força de seu espírito de cura. Não tenha medo de usá-lo... Estou com você... Tem todo o meu amor."
"Ada..." Ele soltou os lábios então e a palavra escapou-lhe, fazendo com que Elrohir estremecesse a seu lado, sem saber ao certo porquê. Então os olhos de Hérion reganharam o brilho perdido e seu peito voltou a mover-se em uma respiração leve.
"Toron..." A voz de Elladan soou fraca então e ele soltou o corpo, sendo amparado pelo irmão.
"Tudo bem, Dan." Elrohir balbuciou apreensivo, trazendo o gêmeo para apoiar-se nele. "Estou aqui... Tudo ficará bem. Você... Você conseguiu. Ele está de volta... Está bem... O sangramento parou."
"Precisa... Precisa... de curativos, Ro." Elladan tentou dizer, fazendo o possível para permanecer de olhos abertos.
Elrohir assentiu com a cabeça então, mas quando deu por si Legolas estava ajoelhado ao lado do guerreiro caído, colocando outras ervas no ferimento ainda aberto e embalando-o. Elladan sorriu agradecido e admirado por ver com que destreza o arqueiro da Floresta executava aquela tarefa de cura.
"É muito... muito eficiente... Ainion." Ele disse e Legolas lhe sorriu timidamente.
"Temos sempre muitos feridos..." Ele explicou e o gêmeo balançou levemente a cabeça, ainda sorrindo, depois fechou os olhos e encostou o rosto no peito do irmão. Legolas preocupou-se ao ver o corpo do curador relaxar e seu brilho reduzir-se consideravelmente. Ele olhou então para Elrohir, mas o gêmeo também lhe sorriu, apoiando agora a palma por sobre o rosto do irmão.
"Ele está bem, Ainion." Garantiu-lhe o elfo moreno. "Só se excedeu... está sem forças."
Legolas apertou os lábios, mas não respondeu. Então observou intrigado Elrohir respirar fundo e fechar também os olhos, sua luz enfraquecendo sutilmente. O gêmeo pendeu o rosto e aquele brilho que emanava oscilou como uma perfeita onda, fazendo com que ambos os irmãos o compartilhassem igualmente.
"Elbereth..." O príncipe exclamou para si mesmo, sentindo o queixo cair diante daquela cena de coragem e desprendimento. Decididamente aqueles não eram elfos quaisquer. Elrohir então reergueu as pálpebras, e seus olhos eram de cinza claro e brilhante, ele olhou mais uma vez para Hérion e depois sorriu para o impressionado arqueiro à sua frente.
"Somos gratos, Ainion." Ele disse e Elladan moveu-se levemente em seus braços, mas não despertou.
"Mas... nada fiz." Legolas respondeu confuso, ainda com os lábios soltos de admiração.
"Sabe que fez..." Elrohir baixou enfim a cabeça, apertando o irmão um pouco mais em seus braços e Legolas calou-se enfim, julgando que aquele momento era sagrado demais para ser interrompido por suas palavras vãs. Ele então olhou a sua volta, um novo pensamento o estava preocupando.
"Podem ficar sós por alguns instantes, Elrohir?" Ele indagou. "Preciso procurar por Thavanian."
O gêmeo olhou a sua volta. Parecia estar se recuperando com uma incrível rapidez.
"Sim." Ele uniu as sobrancelhas. "De fato não o vi... Foi-me de grande ajuda em um determinado momento. Mas agora..." Inquietou-se então, demonstrando intenção de se levantar, mas depois olhou o irmão, ainda com os olhos fechados em seus braços e hesitou.
"Eu o procuro." Legolas leu-lhe os pensamentos, erguendo-se um tanto cambaleante e caminhando com dificuldades por entre os corpos. "Fiquem aí, por favor."
Elrohir o acompanhou com olhos apreensivos. Esses eram os problemas maiores da guerra. Quando tudo parecia terminado e haviam feridos a serem tratados. Esses instantes eram os que Elrohir mais temia, pois neles é que se semeavam as últimas desgraças. O gêmeo olhou mais uma vez o arqueiro se afastando e agradeceu a Ilúvatar por aquela presença marcante.
Legolas caminhou então pelo campo, olhando preocupado para os lados. Alguns elfos estavam feridos, mas nenhum parecia estar em estado grave. O que o preocupava, no entanto, era o fato de Thavanian não estar em parte alguma.
"Por favor." Ele disse aos elfos que empilhava agora os corpos cinzentos e inundados do próprio sangue negro. "Viram meu capitão?"
"O outro elfo louro como você?" Um alto e sério soldado indagou, unindo preocupado as sobrancelhas e olhando a sua volta.
"Sim." Legolas respondeu agoniado ao perceber que aquele grupo parecia não saber do paradeiro de seu amigo.
"Não o vimos, soldado." Respondeu-lhe então elfo em tom solidário. "Espere, por favor, uns instantes e o ajudaremos a procurá-lo."
Legolas assentiu e agradeceu, mas afastou-se do grupo. Sabia que, como todo o trabalho que se fazia ali, provavelmente ainda levariam muito tempo até terminarem a tarefa. Ele mordeu os lábios apreensivo, caminhando sem rumo por aquela desordem.
"Ilúvatar." Lamentou-se, sentindo novamente o frio que não parecia querer abandoná-lo. "Que nada tenha acontecido com você, mellon-nin."
Deu mais alguns passos, voltando a olhar a sua volta. Os feridos agora eram tratados por seus companheiros e, no mesmo lugar onde os deixara, Elrohir ainda mantinha Elladan nos braços. O gêmeo curador continuava com os olhos fechados e o irmão lhe dizia algumas palavras que de sua posição ele não conseguia compreender.
O arqueiro parou no meio do acampamento e soltou pesadamente os braços, procurando enfim se render ao sentimento que queria aflorar-lhe. Estava tão gritante a sensação de perigo que sentia agora, apesar de nada lhe ser visível, que Legolas decidiu se arriscar a fazer algo que raramente fazia, pois temia demais. Ele fechou os olhos e abriu seu coração para o medo que sentia, para que as informações que o estavam rondando pudessem penetrar-lhe e, quem sabe, com sorte, fazerem algum sentido.
Legolas encheu o peito então e o frio o tomou poderoso, como jamais experimentara. Vivia seus dias sempre na expectativa de aprender algo novo, era fato. Mas por que as experiências novas tinham que lhe ser tão contundentes?
Ele estremeceu então e apertou os punhos, mas nenhuma imagem lhe veio, nem mesmo uma luz, uma sensação, um som. Tudo o que lhe acometeu foi aquele imenso frio, totalmente sem propósito em um dia no qual não se fazia necessário sequer um agasalho leve.
Legolas enervou-se com sua incapacidade. De que adiantava sentir-se portador de um dom raro se, quando precisava dele, tal dom se manifestava tal qual os pequenos pressentimentos sem serventia que qualquer elfo sentia? E depois, eu uma ocasião totalmente imprópria e desnecessária, lhe surgia aterrador, doloroso, e completamente insensato, como, por exemplo, durante seus momentos de sono e cansaço?
Pressionou os dentes cerrados, sentindo a inutilidade de seus atos, ali, estupidamente parado onde todos podiam vê-lo. Reergueu as pálpebras então, decidido a esquecer por vez daquela tolice.
Entretanto, naquele momento um outro calafrio lhe correu as vértebras da espinha, com a rapidez de uma cobra das selvas seguindo sua presa. Ele estremeceu como nunca e a imagem de um estranho trajeto a delinear uma grande rocha próxima rumo ao desconhecido chamou-lhe a atenção. O arqueiro enrijeceu o corpo e os impasses mudaram de tom. A dúvida lhe cresceu por uns instantes, mas foi logo sufocada. Ele enfim deu os primeiros passos, dando a volta no grande obstáculo com o corpo colado a ele, tomando devagar e precavidamente uma passagem estreita que dava para um acesso rochoso pequeno e escondido, e esperando estar fazendo o que era de mais correto.
Bem, se estava ou não, aquela foi outra dúvida que Legolas somou às muitas que já carregava em seu peito, principalmente no instante em que teve favorecido o campo de visão do que havia na passagem. Lá de onde estava, viu o que pareciam ser as pernas de um soldado. Ele agachou-se, arrastando-se pelos cantos até que conseguiu obter a confirmação que precisava. Tratava-se de fato de Thavanian. O bom e leal guerreiro estava jogado em um dos cantos da pedra e uma criatura robusta e um pouco maior do que sua estatura normal mantinha uma espada velha colada na veia de seu pescoço. A seu lado, outra igualmente grande, mas cujo tom de pele era ligeiramente mais escuro, amendoava os olhos em expectativa.
"Valar." Legolas voltou a lamentar. "Tinham que ser dois?" Ele olhou insatisfeito para a adaga que tinha na mão e com a qual parecia estar condenado a lutar eternamente, como única e exclusiva arma de apoio. Era um tolo, ele bem sabia, mas não tão tolo a ponto de tentar atacar dois seres como aqueles no estado físico que estava e com uma única adaga. Tinha que tentar traçar um plano rapidamente.
O arqueiro suspirou então, dividido. Aqueles seres pareciam mesmo dispostos a um tudo ou nada. E por que não estariam, já que estavam sozinhos e tudo o que tinham era um refém cuja identidade e o valor de negociação eles desconheciam?
"Eu me odeio." Legolas disse a si mesmo. "Sempre vou me odiar." Repetiu, apanhando uma pequena pedra e a atirando a alguns passos de si. O som infeliz ou felizmente cumpriu seus propósitos e as criaturas se entreolharam preocupadas. O mais escuro deles, que se encontrava ao lado de Thavanian, ergueu-se receoso então, empunhando sua arma torta e ensangüentada e tomando cautelosamente a direção do som que ouvira.
"Criaturas tolas." Legolas sacudiu a cabeça, pensando que nem mesmo ele, que muitas vezes era mais impulsivo do que gostaria, faria tamanha bobagem.
Será mesmo? Ele franziu o cenho, afastando mais aquela descrença que queria criar raízes em seu coração e concentrando-se no que teria que fazer. Isso se tivesse sorte, porque, se precisasse usar da pouca força que tinha, poderia ter uma surpresa desagradável.
"Volte Albashy" Legolas ouviu o outro inimigo sussurrar temeroso. "Deve ser uma armadilha."
Não tão estúpidos. O arqueiro pensou consigo mesmo. Sorte a dele que a consciência daquela outra criatura de pouco discernimento lhe gritou os riscos tarde demais. Ele já tinha o inimigo sob sua adaga e já fazia jorrar do pescoço dele um jato de sangue escuro. O corte foi tão rápido e profundo que sequer foram proferidos sons de protesto ou surpresa e o corpo caiu brutalmente naquele chão arenoso, com o tom abafado e tétrico que a morte muitas vezes tem.
Nem houve tempo para suspiros de alívio ou pensamentos mais concretos, pois quando Legolas se voltou, a cena que viu não foi exatamente a que pretendia. Em pé diante dele e mantendo Thavanian ameaçadoramente sob sua arma, estava o outro oponente.
"Elfo maldito." Rosnou o ser repugnante, inconformado ao ver o que o príncipe havia feito com o outro de sua espécie.
"Solte-o!" Legolas ordenou em voz firme. "Está cercado."
"Não me faça rir, criatura brilhante."
Legolas esvaziou os pulmões, procurando ignorar o olhar irônico e sádico que a besta a sua frente lhe lançava, enquanto pensava em como agir.
"Solte-o e eu o deixo ir." Ele ofereceu enfim.
"E quem confia na palavra de um ser desgraçado como você?"
"Não tem escolha."
"Tenho. Posso cortar a garganta dessa figura nojenta que tenho aqui." Ele ameaçou, forçando um pouco a arma que mantinha no pescoço do imobilizado Thavanian. "E depois eu e você decidimos o que acontece em um corpo a corpo. Duvido que seja páreo para mim."
Legolas sentiu o sangue subir-lhe tão rapidamente que sua cabeça passou a pesar-lhe quase o dobro do que o normal. Ele ponderou suas chances. Thavanian estava ferido, em sua perna corria um assustador veio de sangue de um corte imenso. Seu peito também tinha estranhas manchas vermelhas, o ferimento provavelmente reabrira. O guarda-costas fechou os olhos por alguns segundos, depois o olhou com um ar que dizia mais do que mil palavras. Ele queria que Legolas desistisse dele, estava claro, queria que desse um fim naquele inimigo ali, no exato instante no qual estavam, com o que tinha a lhe favorecer, mesmo que aquilo resultasse na perda do refém.
Sim. Era a atitude correta a fazer. A que seguia todas as regras.
Só restava ao príncipe da Floresta Escura, acreditar que aquela era de fato a única saída.
"O que propõe você?" O arqueiro arriscou e a criatura pendeu a cabeça incrédulo. Então aquele elfo queria negociar? Ele não ia fazer como todos os outros e simplesmente permitir que o soldado fosse morto para depois atacá-lo? Que elfo era aquele que temia a morte dos seus?
E foi naquele momento de hesitação que o enfraquecido Thavanian, atingiu em cheio o estômago de seu oponente, caindo em seguida de joelhos. Legolas atirou a adaga sem pensar duas vezes e ela fez um caminho tão exato quanto faria a melhor de suas flechas, atingindo em cheio a garganta do inimigo, que caiu soltando medonhos grunhidos e batendo o rosto no chão seco.
"Tolo. Elfo... tolo que negocia... com criaturas nojentas e... burras." Ele ainda ouviu o amigo se queixar, quando o colocou em seus braços e segurou o corte que a inimigo conseguira fazer em seu pescoço.
"Não acredito que vai zangar-se comigo." O príncipe desabafou inconformado, apoiando firmemente a mão no ferimento e olhando a sua volta. Aquele era um dia infeliz e ele só podia esperar que não terminasse pior do que começara.
"Eu... eu vou... vou fazer um relatório ao... ao... seu... seu pai... Seu... irresponsável... Não pode arriscar... arriscar sua vida... sua vida assim..."
"Cale-se Thavanian." Legolas bradou nervoso ao ver que não conseguiu conter a hemorragia. Ele então se ergueu e com uma força que não soube bem dizer de onde viera, carregou Thavanian nos braços, tentando trazê-lo de volta ao acampamento. Por sorte não fora tão longe e logo algumas mãos solidárias vieram ajudá-lo.
"Ainion." A voz de um dos gêmeos surgiu já quando os dois elfos que o ajudavam punham Thavanian em um dos cobertores. Legolas voltou-se para ele desesperado, sem saber se se tratava do curador ou do líder do grupo.
"Thavanian... está.. está ferido..." Ele limitou-se a dizer ofegante e os olhos do gêmeo se deslocaram imediatamente para o paciente. Em instantes o elfo moreno estava ao lado do guarda costas, verificando o ferimento e tomando as devidas providências.
Graças a Ilúvatar. Elladan estava recuperado.
Legolas deixou-se cair de joelhos ao lado do curador e aguardou por notícias, esperando que fossem positivas.
"Ele vai ficar bom." O gêmeo finalmente garantiu, depois de tratar das profundas feridas do guarda-costas. "É como eu digo. Elfos sindars são feitos de puro aço." Ele ainda brincou, sorrindo para o arqueiro a seu lado, para tentar tirar-lhe o semblante preocupado da face.
Legolas suspirou, deixando a cabeça pender para frente por um longo momento, os cabelos claros, quase completamente soltos, a cobrir-lhe o rosto. Depois a reergueu, olhando mais uma vez para o gêmeo curador.
"E você, Elladan?" Ele lembrou e um sorriso simples desenhou-se no rosto do elfo moreno. Ele de fato parecia bem, parecia em paz.
"Estou melhor." Ele respondeu, depois franziu o rosto. "Sua boca está inchando."
Legolas apoiou a mão por sobre os lábios, mais intentando escondê-los por vergonha do que ouvira do que por dor ou outro tipo de preocupação.
"Fui... Fui... Atingido de... surpresa." Ele balbuciou tolamente uma resposta, lançando por fim um olhar repreensivo para o ferido, mas em pouco se arrependeu, voltando a se comover. Apesar de tudo, estava feliz pelo amigo estar bem.
"Já já dou uma olhada." O gêmeo respondeu, checando mais uma vez a firmeza das bandagens que fizera no elfo sindar. Legolas assentiu, apenas por educação. Diante de tantos feridos jamais, usaria da atenção do curador por causa de um ferimento de tão pouca importância.
"Elladan." A voz do outro gêmeo surgiu e Legolas voltou-se para ele. Elrohir vinha caminhando em direção aos dois, acompanhado por um alto e forte elfo que o príncipe ainda não conhecia. "Parece que nosso pai pressentiu o perigo."
"Mas não fomos rápidos o suficiente." O estranho complementou e o gêmeo mais velho voltou-se no mesmo instante, já com um largo sorriso em seu rosto. Ele ergueu-se então e foi encontrar seu lugar nos braços já abertos do recém-chegado.
"Seja bem vindo mesmo assim, mellon-nin." Elladan disse e sua voz soou diferente aos ouvidos de Legolas dessa vez. Diferente de um modo que o arqueiro não conseguiu entender ou explicar a si mesmo. Ele olhou intrigado para o poderoso elfo louro que agora tinha cada gêmeo preso em um de seus fortes braços e os apertava com um sorriso nos lábios. Quem era aquele elfo?
Elladan enfim voltou-se para ele e sorriu.
"Ainion. Quero que conheça nosso mentor e amigo. Lorde Glorfindel de Gondolin."
