Olá. Desculpem o atraso.
Esse é o penúltimo capítulo de O TEMPO NÃO APAGA.
Eu tinha escrito uma apresentação comentando aquelas coisas de sempre, aquelas frases onde as palavras "dificuldades" e "desculpas" aparecem sempre juntas. Mas então apaguei tudo e comecei de novo, pensando no que escrever que fosse de fato produtivo nessa apresentação.
Então, cheguei a uma conclusão caridosa: não escreverei nada. Já não basta o capítulo que têm que ler?
Deixando a brincadeira de lado, ficam sim minhas desculpas pelos erros que deixei passar, ando meio distraída (mais do que o costume), por isso peço de me perdoem se algo ficou muito confuso ou se virem algum erro gritante.
Fora isso ficam também os agradecimentos de sempre pelas carinhosas reviews. Espero que gostem desse denso capítulo e que me digam o que acharam.
Queria dedicar esse capítulo às ELFINHAS VESTIBULANDAS que durante o mês de novembro, dezembro e até janeiro, se estou bem certa, estarão enfrentando um grande desafio. Boa sorte, elfinhas. Esse desafio não é maior do que vocês, ele só lhes indica um caminho a seguir.
Muitos beijos de agradecimento à:
Nimrodel, Lali, Kiannah, Larwen, Cauinha, Priscila, Kika, Chell, Nininha, Phoenix (Layla), Lele, Carol, Giby, Lene, Gio, Bê, Dani, Ju, Nanda, Leka, Crika, Greyhawk, Paulinho, Veleth, Annie, Stephanie, Denise (Tenira), Karina, Lika, Isa.
Verdade, Mentira
Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.
Alberto Caeiro
VI – QUEM É VOCÊ?
"Venha por aqui, por favor." O guarda que encontrara assim que subira as escadas da casa principal pediu-lhe, abrindo uma grande porta entalhada e esperando que o arqueiro passasse por ela. Legolas deu os passos esperados receoso, entrando em um ambiente que lhe tocou todos os sentidos no exato instante em que colocou seus pés nele.
"Elbereth." A palavra surgiu em seus lábios, reflexo exato da beleza que contemplava na imensa sala da casa principal. Candelabros, veludo vermelho, folhas e flores de todas as cores e formas, quadros e um perfume que ele jamais sentira. O contraste de luz e sombra adicionava ainda mais encantamento ao lugar.
"É um ambiente mágico." O elfo a seu lado comentou serenamente, cruzando as mãos atrás das costas e esperando que o recém-chegado despertasse do transe no qual estava. Guarda e sentinela da grande casa há anos incontáveis, ele já vira muitos elfos e outras raças também, mergulharem na mesma reação de êxtase que aquele jovem se encontrava.
Legolas uniu finalmente os lábios soltos e pressionou os dentes para que a sensação o fizesse voltar a si. Ele então desviou seus olhos e percebeu que o elfo moreno ainda o olhava com atenção.
"É de fato muito bela." Comentou enfim, procurando não parecer tão tolo quanto se sentia.
O guarda continuou encarando-o com um discretíssimo sorriso nos lábios, depois desceu rapidamente os olhos, analisando a figura que tinha diante de si.
"De onde vêm, senhor? De Lothlorien?" Indagou.
"Do norte da Grande Floresta. O reino do rei Thranduil." O príncipe respondeu rapidamente e o guarda moreno torceu um pouco o pescoço, tentando encontrar a verdade naquelas palavras.
"É um sindar?" Indagou descrente.
"Um silvestre." O arqueiro de pronto corrigiu.
"Um silvestre?"
O tom misto de surpresa e descrença daquele elfo só aborreceu ainda mais o jovem louro, que pouco pôde ou fez para disfarçar tal insatisfação.
"Não usa as cores de sua terra." O sentinela comentou, desapercebendo-se do mal estar do visitante, enquanto ainda analisava-lhe as belas vestes com atenção. "Na verdade nunca vi um silvestre em trajes tão finos."
"Não uso roupas minhas." Legolas respondeu em um indisfarçável tom de insatisfação agora. "Seu dirigente e anfitrião Lorde Elrond as cedeu-me para que eu participasse desse encontro. Sou soldado de uma das patrulhas da fronteira."
O guarda ergueu as sobrancelhas. Percebendo enfim o quão mal interpretado seu comentário havia sido. Ele observou o elfo mais alguns instantes, porém, pois ainda não conseguia encaixar o que ouvia com a imagem que tinha diante de si.
"Rogo suas desculpas se pareci rude, nobre soldado." Desculpou-se enfim, inclinando levemente o tronco para enfatizar seu pedido. "É que o amigo não parece de fato um silvestre. Eu quero dizer... Não são na verdade as roupas que traja... Os silvestres são... são diferentes..."
Legolas afinou os lábios, pressionando-os, e engoliu a resposta que lhe arranhava a garganta. Ficou apenas observando o guarda caminhar alguns passos. O soldado moreno já parecia arrependido do que dissera ou não soubera dizer e buscava se ver livre de um confronto desnecessário com um visitante, cuja importância provavelmente desconhecesse.
"É aqui. Venha, por favor." Disse o noldor, ao parar diante de uma porta e apoiar a mão na brilhante maçaneta.
O príncipe pousou seus olhos naquela passagem fechada, cuja imagem que escondia lhe incomodava profundamente. Ele recuou um passo, pensando em desistir, mas o elfo girou a maçaneta e a abriu, pedindo licença e parando embaixo do batente.
"Meus senhores, perdoem-me a interrupção," Legolas ouviu-o pedir, olhando para dentro do enigmático cômodo. "Mas o último convidado chegou."
"Obrigado Beinion." Soou a branda resposta do anfitrião e Legolas estremeceu mesmo sem querer. "Peça que entre, por favor".
"Sim, Lorde Elrond." O elfo fez uma pequena reverência, voltando-se para Legolas e oferecendo-lhe passagem pela larga porta. O arqueiro respirou fundo, sentindo-se uma presa entrando na toca de seu predador. Por que estava se sentindo assim tão vulnerável?
"Entre, Ainion." Ele ouviu então a voz melódica de um dos gêmeos enfatizar o convite.
Elrohir.
Legolas fechou seus olhos e imagens de sua infância voltaram a lhe visitar, como se a lembrá-lo do quão difícil seria seu papel naquele ambiente desconhecido. Ele enfim deslocou-se devagar, agradecendo e passando pelo guarda.
Sim. Idhrenniel tinha razão. O encontro estava se dando na biblioteca. Uma enorme estante forrada de livros foi a primeira visão que teve e seus olhos perderam-se nela, vagando redondos como duas grandes luas azuis por aquele lugar. Nunca havia visto tantos livros juntos como ali. Exemplares em sindarin, Quênia e outras línguas que desconhecia espalhavam-se, disputando o pouco espaço que sobrava naquelas prateleiras escuras. Por sobre uma mesa lateral antiga, uma dúzia ou mais de pergaminhos estava cuidadosamente empilhada. Ao lado dela, dispostos em pé dentro de um grande tubo de casca de carvalho, uma quantidade razoável de mapas irmanava-se em um emaranhado fascinante, no qual Legolas pagaria um bom preço para colocar as mãos uma vez que fosse. Ilúvatar, eleficaria horas ali se assim lhe fosse permitido.
"Pelas estrelas! Quem é você? Onde está Ainion? O que você fez com ele?" A voz debochada de Elrohir despertou-o de seu estado de admiração e ele olhou confuso a sua volta, para finalmente perceber que os integrantes daquela sala o olhavam com bastante atenção.
Lorde Elrond oferecia-lhe um sorriso sereno, porém enigmático, de uma grande poltrona rubra aveludada. Vestia um elegante robe de um azul claríssimo e adornos acinzentados. Os gêmeos estavam em um sofá na parede oposta, trajados igualmente, como lhes era o costume, sequer um fio de cabelo os diferenciava. Sorriam-lhe ambos em suas vestes também azuis, só que um tom acima do que o pai escolhera para si. Nas largas mangas de seus robes Legolas pôde ver, em um dourado suave, o desenho nítido do caminho das estrelas que se perdem no céu. Enfim, sentado no centro da sala, em um segundo sofá, estava o matador de Balrogs, o poderoso e temido lorde Glorfindel, em vestes muito brancas com folhas prateadas a enfeitá-las. Ao lado deste, um elfo moreno, em trajes tão negros quanto os longos e lisos cabelos, lhe oferecia um sorriso cortês.
"Gosta de livros, jovem Ainion?" Indagou o louro guerreiro de Gondolin com uma ponta de ironia em sua voz e Legolas uniu as mãos diante de si, baixando ligeiramente os olhos, enquanto sentia o olhar contundente do lorde elfo a percorrer-lhe todos os traços do rosto e do corpo sem alterar um traço sequer de sua austera expressão.
"Gosto sim, senhor." Ele respondeu em voz baixa, sentindo-se mais tenso do que se estivesse em um campo de batalha.
"É o único silvestre que conheço que gosta de livros."
Legolas moveu ligeiramente o rosto, erguendo os olhos agora, mas mantendo o queixo baixo enquanto olhava de soslaio para seu interlocutor.
"Precisa visitar a Floresta mais vezes, meu senhor." Ele respondeu com cautela e o lorde elfo finalmente riu, erguendo a cabeça para retribuir o olhar do elfo com um ainda mais provocador.
"Sim. Decididamente preciso visitar aquele emaranhado fechado e escuro mais vezes."
Legolas respirou fundo. Por que todas as boas sensações nos duram tão pouco? Ele lamentou consigo mesmo, ainda tentando manter a imagem daqueles grandes e maravilhosos livros em sua mente, mas sentindo que lutava agora contra o rosto daquele elfo provocador que não tirava os olhos dele.
"Aproxime-se, meu jovem." Elrond, que vinha acompanhando o intrigante diálogo, adiando um pouco sua interferência, finalmente convidou. "Acredito que o único estranho para você aqui seja meu conselheiro Erestor." Ele comentou, erguendo uma mão em direção ao simpático elfo moreno que ainda lhe sorria.
"É um prazer conhecê-lo, soldado." O lorde elfo saudou-o com um gentil aceno de cabeça. "Acho louvável de sua parte se dispor a nos ajudar a conhecer os caminhos do inimigo em suas terras."
Legolas assentiu em silêncio, observando o novo conhecido com admiração. Ele parecia ser o único a não olhá-lo como se quisesse tragar-lhe a alma e os segredos. Na verdade sequer olhava-o de fato, parecia mais interessado nas informações que ele teria a oferecer.
"O prazer é meu, Lorde Erestor." Retribuiu enfim o príncipe, apoiando a mão no peito e curvando-se ligeiramente.
"Sente-se aqui, Ainion." Elladan apoiou a mão no espaço vago a seu lado e Legolas voltou a sentir suas recordações de infância querendo assombrá-lo.
Difícil. Aquilo ia ser muito mais difícil do que ele imaginava.
"Vamos, venha." O jovem curador repetiu, parecendo reservar-lhe aquele exato sorriso que lhe oferecia há muitos anos.
Legolas deslocou-se silenciosamente para lá, sentando-se enfim, mas não conseguindo se sentir relaxado.
"Se eu o encontrasse na praça não o reconheceria." Provocou mais um pouco o outro gêmeo, esticando o corpo para olhar o amigo louro. Legolas sorriu timidamente e abaixou a cabeça para disfarçar seu embaraço.
Elrond permaneceu em silêncio por mais alguns instantes, olhando o recém-chegado com uma atenção disfarçada, enquanto Elrohir direcionava-lhe mais algumas provocações e lhe roubava tímidos sorrisos. Há muito tempo não via seus filhos assim, leves, afáveis. E ele não conseguia deixar de relacionar aquela súbita mudança de humor, ao fato deles estarem visivelmente tentando fazer com que o novo amigo se sentisse mais à vontade.
Aquele também era um outro grande enigma. Elladan e Elrohir não eram mais elfos jovens que se deixam levar por uma nova amizade, muito menos com a grande ferida que ainda estava aberta em seus corações. Desde a partida de Celebrian eles nunca mais participaram dos torneios de Valfenda, ou procuraram o grupo de amigos que lhes era familiar. Viviam para a caça que tomaram para si, o esporte feroz que lhes preenchia os dias, os instantes de ar. Passavam na terra que o pai protegia apenas tempo o suficiente para se recomporem, e logo estavam agarrados às suas armas e montarias, dispostos a mais uma perseguição.
Elrond suspirou, lembrando-se da pergunta que sempre fazia quando os filhos chegavam.
"Quanto tempo pretendem ficar, ionath-nin?"
Cuja resposta era sempre a mesma:
"Uma lua no máximo, ada."
E os perdia mais uma vez para a escuridão e solidão da mata.
Mas no dia da última chegada algo estava mudado. Os El lhe sorriam e olhavam tudo a sua volta como se fizesse uma eternidade desde a mais recente estada. E quando a pergunta foi-lhes oferecida, eles simplesmente deram de ombros e esqueceram de respondê-la, adiantando-se em contar ao pai algumas novidades que julgavam importantes.
E entre essas novidades surgiu, mais de uma, mais de duas, mais de três vezes, o nome daquele jovem louro sentado agora próximo a eles e procurando ao máximo disfarçar o embaraço saudável que estava sentindo diante das provocações dos novos amigos.
Tudo isso apenas, somado em uma mente sã, já era no mínimo envolvedor. Mas, além disso, ainda havia o fato do rapaz despertar um sentimento completamente contrário em Glorfindel. E, ainda além, estava o mais intrigante de todos os fatos: ele representava fielmente a caracterização de uma das imagens que povoava as intrincadas visões do lorde de Imladris.
Elrond suspirou enfim, sentindo que já dera espaço demais para descontração e retribuindo pacientemente o olhar incomodado que o amigo de Gondolin lhe lançara.
"Meu rapaz." Ele disse e Legolas voltou-se no mesmo instante para ele e empalideceu. O lorde elfo sorriu com paciência então, sentindo-se estranhamente incomodado por tragar o jovem elfo dos poucos instantes de paz que parecia estar vivendo. "Quero agradecer por sua presença." Ele então comentou, tentando assim oferecer a certeza de que nenhuma experiência negativa seria vivida ali.
"É um prazer ajudá-lo, meu senhor." O arqueiro respondeu com os olhos baixos e Elrond fez mais um pequeno movimento de agradecimento com a cabeça.
"Não pude deixar de perceber seu interesse por esse nosso pequeno cômodo de pesquisas e entretenimento." O senhor de Imladris comentou então, deixando o paciente sorriso que tinha nos lábios e percebendo os olhos de seu visitante oscilarem em um ligeiro vai e vem, para enfim voltarem a permanecer fixos onde estavam
"Sim, meu senhor." O elfo silvestre respondeu em uma voz quase inaudível.
"É como eu disse." Glorfindel continuou seu tom irônico. "Um silvestre que gosta de livros."
Legolas uniu então as mãos, entrelaçando nervosamente os dedos.
"Livros e mapas." Elrond completou. "Sabe ler mapas, meu jovem?"
"Sim, senhor."
"Isso tem grande valor." O curador comentou, pendendo ligeiramente a cabeça. "Poderia, por gentileza, comentar o quão longe vai sua habilidade com eles?"
O príncipe enfim ergueu os olhos e seu olhar ateve-se no grande tubo escuro de carvalho, no qual quedavam-se lado a lado, os grandes mapas do curador.
"Sou cartógrafo em minha terra, senhor." Ele informou, decidindo ainda jogar com as verdades como podia. "Um dos cartógrafos do rei."
Erestor ergueu os olhos então, parecendo finalmente disposto a concentrar-se em algo a sua volta. Um sorriso voltou a seus lábios.
"Cartógrafo?" Ele indagou em tom de entusiasmo. "Isso é deveras impressionante."
"Deveras." Glorfindel concordou com seu sarcasmo habitual.
Elrond sorriu novamente, o mesmo sorriso enigmático que começava a incomodar o arqueiro. Legolas sentia-se lido devagar, como um livro totalmente aberto. Precisava ser cauteloso.
"Essa informação é de fato positiva." Disse por fim o lorde de Imladris. "Creio então que pode nos ajudar mais do que imagino."
"Ajudá-lo?" O arqueiro questionou intrigado.
"Sim. De fato." Elrond respondeu pensativo. "Existem algumas regiões que desconheço. Pelo menos como estão agora. Nossas patrulhas pouco adentram a Floresta. Penso por isso na possibilidade da atualização de alguns de nossos mapas." Ele propôs enfim e Legolas olhou para os lados apreensivo.
"Apenas uma atualização geográfica?" Ele indagou.
"Sim, é claro. Sem dados militares." Garantiu o curador.
Legolas apertou os lábios, ponderando as possibilidades. Ainda assim havia muitos riscos.
"Posso levar os mapas para o quarto no qual me encontro?" Ele indagou, procurando afastar-se dos possíveis problemas que previa e Elrond ergueu um pouco mais os cantos dos lábios.
"Sim, é claro." Ele respondeu. "Mas isso me privaria da retribuição que desejava oferecer-lhe pelo favor."
"Retribuição?"
"Sim. Evidentemente! Dedicará seu tempo para oferecer-me a informação da qual necessito. É justo que seja recompensado."
Legolas sacudiu levemente a cabeça.
"Fui recompensado mais do que o suficiente, meu senhor. Só faço retribuir os favores que já recebi."
"Não é essa minha opinião, meu jovem." Elrond retrucou, cruzando as pernas e apoiando as mãos sobrepostas por sobre o colo. Seus olhos então se distanciaram, percorrendo as grandes estantes de livros. "Conhecimento é algo que só pode ser retribuído com o próprio."
"Peço que me desculpe, mas não compreendo, senhor."
"Quero retribuir as informações que me dará com outras informações." Disse o curador em voz solene. Erguendo então uma mão em direção a sua farta biblioteca. Legolas acompanhou o movimento, pousando o olhar nas maravilhosas edições que se aglomeravam como se a espera de quem fizesse delas bom uso. Uma idéia então do que talvez estivesse propondo o anfitrião lhe veio à mente, mas ele julgou por bem não se adiantar em tão positiva perspectiva.
"Em troca desse favor." Continuou o líder moreno. "Gostaria de oferecer-lhe acesso a essa nossa biblioteca, a absolutamente todos os livros que conseguir ou se interessar em ler durante sua estadia. O que lhe parece?"
Os olhos azuis de Legolas arredondaram-se como se ele não tivesse mais controle sobre eles. Ele imaginava que Elrond fosse lhe permitir que escolhesse um dos exemplares como recompensa, talvez lhe deixar carregar para o quarto, quem sabe, alguma daquelas preciosidades. Mas não. Ele entendera bem? O sábio anfitrião oferecia-lhe acesso a todos os livros da biblioteca? Todos aqueles volumes históricos?
"O senhor não fala sério." Ele sentiu a descrença escapar-lhe e Elrond arqueou as sobrancelhas.
"Sempre falo sério, menino." Respondeu então o curador.
Legolas mordeu o lábio inferior apreensivo. Consertar alguns mapas em troca daquela oportunidade era tentador demais, tentador além da conta dos pensamentos negativos que pudessem pesar desfavoravelmente. Ele precisava se arriscar. Era uma chance inigualável.
"O que me diz, soldado?"
"Tolo seria se recusasse tão generosa proposta, meu senhor." Concordou por fim o príncipe, baixando a cabeça em agradecimento. "Embora julgue que levo incalculável vantagem em tal acordo. Diferentemente do senhor, pouco tenho a oferecer."
Elrond sorriu apenas e seus olhos diziam exatamente o contrário do que a afirmação do príncipe sentenciara, mas ele nada respondeu.
Tratada então como certa a contribuição do elfo silvestre, a reunião se seguiu calmamente e Legolas ficou mais aliviado ao perceber que Elrond não intentava de fato induzi-lo a dar informação alguma. Eles apenas conversaram sobre o resultado das últimas 'caçadas' dos gêmeos e sobre a situação na Floresta de Thranduil. O arqueiro ficou satisfeito por não precisar citar o nome do pai em nenhum momento e por reconhecer, apesar do que se falava em sua terra, que o povo de Valfenda não estava de fato desinteressado do que acontecia a sua volta, como muitos diziam.
Passado algum tempo Elrond deu a reunião como encerrada, despediu-se de Glorfindel e Erestor, mas ficou na biblioteca. Legolas ergueu-se então, julgando que aquele fosse um momento apropriado para sair.
"Agradeço o convite, Lorde Elrond." Ele disse. "Fico a disposição para o que precisar."
"A proposta está de pé, rapaz." O curador repetiu. "Não gostaria de conversar mais a respeito?"
Legolas engoliu em seco, olhando a sua volta e sentindo que aqueles livros eram como as árvores do jardim de Imladris, convidativos, milhares de vozes a clamar sua atenção. Era irresistível.
"Posso ver então os mapas que o senhor deseja que eu atualize?" Ele indagou, ciente de que precisava ver que espécie de preço teria que pagar por tamanho favor.
Elrond sorriu mais uma vez, erguendo-se e tirando apenas dois mapas do suporte. Um da Grande Floresta Escura, cujos detalhes já estavam praticamente todos a mostra, e outros das cavernas à leste, que realmente haviam recebido mais visitas desagradáveis, mudando-lhe a paisagem circunvizinha, do que recebiam no passado.
"Acha que pode nos ajudar então, meu jovem?" Elrond indagou, parado em pé agora ao lado do rapaz. Ambos voltados para o grande mapa aberto sobre a mesa de mogno.
"Posso sim, meu senhor." Legolas respondeu prontamente, o calejado dedo indicador de arqueiro deslizando por algumas regiões do mapa e a mente já muito distante. Elrond aproveitou o momento para olhá-lo um pouco mais de perto. O sopro da imagem novamente indo e vindo em sua mente. Ilúvatar, porque suas visões não eram mais claras?
Elrohir e Elladan posicionaram-se atrás deles.
"Vamos jantar primeiro? O que acha?" Indagou o mais velho dos gêmeos, um curador a qualquer hora, em um oferecimento cheio de intenções positivas. "Depois te fazemos companhia aqui. Tenho alguns livros para ler e Elrohir alguns mapas para olhar."
"Isso mesmo." O mais novo concordou. "A comida de nosso cozinheiro aqui é sem dúvida melhor do que a do acampamento. Ele faz outros pratos sem ser carne."
Legolas sorriu, mas depois se sentiu desperto por uma sensação desagradável.
"Thavanian espera por mim." Ele disse em um suspiro quase lamentoso, imaginando o interrogatório que teria que responder ao amigo quando chegasse. Elbereth ele bem que poderia estar dormindo...
"Thavanian está bem assistido." Elladan lembrou, apoiando uma mão em seu ombro e o conduzindo cortesmente para fora da biblioteca . "Fique e jante conosco. Mandarei um recado dizendo que está nos ajudando com a cartografia."
Legolas pensou em responder. Mas estava cansado de levantar dificuldades e empecilhos para cada sugestão dos dois irmãos. Ele apenas assentiu com a cabeça e Elrohir segurou-o então pelo braço, como se temesse que mudasse de idéia de repente.
Sentaram-se à mesa apenas os quatro e Legolas não pôde deixar de notar a cadeira vazia a seu lado, à esquerda de Elrond. O curador tomava a ponta da mesa, os dois filhos lado a lado à sua direita e em frente ao arqueiro. Elladan próximo ao pai, Elrohir ao lado do irmão. O príncipe não conseguia deixar de observar aquele espaço vazio, diante do qual não havia talher ou louça e isso lhe levou a pouca paz que conseguira acumular nos últimos instantes. Sentia-se estagnado e assim ficou, enchendo-se sem perceber daquela ausência declarada com olhos pesarosos por um longo tempo, até finalmente notar que o curador o observava com atenção. Procurou disfarçar seu embaraço, mas não foi muito feliz.
"Esse é a cadeira de minha esposa Celebrian." Elrond esclareceu e os gêmeos baixaram suas cabeças. "Sentava-se aqui, sempre a meu lado. Agora nos espera em Valinor, não é mesmo, ionath-nin?" Ele completou, olhando para os dois filhos. Elladan assentiu em silêncio com a cabeça e Elrohir estufou o peito e passou a apimentar o prato que tinha diante dele sem oferecer uma resposta sequer. Elrond suspirou.
"Há muitos tipos de perdas." Ele comentou em um tom mais triste então e olhou Legolas nos olhos, profundamente. O príncipe sentiu-se pego de surpresa, suas portas completamente abertas pela dor do momento não conseguiram se fechar. Ele foi empalidecendo devagar, e as figuras da mãe e da senhora de Imladris surgiram em inúmeras cenas de seu passado. Perdas irreparáveis desenhadas em traços finos e amargos, escorregando uma a uma e se perdendo na escuridão. A saudade pesava-lhe o peito, ele se habituara, mas naquele momento parecia pesar muito mais do que de costume. Quando deu por si, as lágrimas lhe inundavam o rosto, e ele não sabia quanto tempo ficara preso no olhar do poderoso senhor de Imladris.
"Ainion?" Elladan levantou-se e segurou a mão que o amigo louro apoiara sobre a mesa. "O que se passa? O que está sentindo?"
E foi o que bastou para que Legolas sentisse-se caindo de fato, deixando para trás as injustiças do passado e atingindo a realidade ainda mais injusta que criara para si. Ele sacudiu a cabeça, depois se ergueu violentamente, libertando-se do gêmeo e caminhando para longe da mesa. Elrohir, entretanto já o esperava e segurou-o no mesmo instante.
"Preciso ir. Deixe-me passar" Legolas procurou esquivar-se ao ver-se impedido pelos dois irmãos. Ele tinha que sair dali agora, assim daquela forma brutal, sem qualquer explicação. Explicar-se seria apoiar-se em novas mentiras, esconder-se em novas sombras. Sombras enormes e frias nas quais nunca quisera estar.
"Nem comeu." Queixou-se o mais novo sem dar-lhe passagem. "Por que chora? O que está sentindo?"
"Nada tenho. Nada tenho." Ele repetiu cobrindo o rosto, os traços que deveriam denunciá-lo, mas não o faziam. Não o faziam porque ele era um elfo mestiço sem qualquer identidade que o ligasse à pessoa alguma. Porque ele não refletia e nunca refletiria o passado, o presente ou mesmo o futuro que o circundava.
"Não sairá daqui agoniado assim." Elladan ditou em voz firme agora, passando o braço direito pelos ombros do arqueiro para provar que sua sentença seria cumprida. Elrohir concordou com um enérgico movimento de cabeça, a mão firmemente presa no antebraço do elfo louro.
Legolas silenciou-se enfim, fechando os olhos e sentindo a energia lhe faltar. Lá iria ele novamente, perder-se em seu mundo de pesadelos sem igual. A figura da mãe voltou a lhe aparecer, seguida da imagem de Celebrian, ambas conversando animadamente no jardim florido dos dias de paz da caverna. Era tão real que ele chegava a sentir o aroma das flores, a ouvir o leve movimento que a brisa fazia ao balançar os cabelos soltos da mãe. Pássaros cantavam em algum lugar. A vida tinha um quê de magia.
Mas fora mais um curto momento até que tudo se esvaísse. Tomada em uma repentina escuridão a imagem se desfez, se perdeu. E as belas damas se foram sem uma palavra, sem um sorriso, uma despedida. Foram-se e tudo era apenas o vazio e o grande frio que nele habitava.
Fora de fato muito rápido. Tão rápido quanto todos os momentos de sua vida. Um breve olhar e havia passado, um suspiro, uma distração e não havia mais nada. Nada que pudesse ser mudado.
"Ainion?" Elladan o estava chamando novamente. Mas dessa vez ele não queria abrir mais seus olhos, não queria encontrar o amigo, mostrar-lhe mentiras ao invés de afeto, presentear-lhe com máscaras ao invés de sorrisos. "Vamos, mellon-nin. Fale conosco."
Legolas suspirou profundamente. Odiando-se como nunca se odiara desde a morte da mãe. Que mal ainda seria capaz de fazer? Ele ergueu as pálpebras devagar, estava de volta ao seu lugar na mesa. Elladan tomara a cadeira da mãe e Elrohir ajoelhava-se ao lado dele segurando com força sua mão. Os dois olhavam-no preocupados.
"Como se sente?" Indagaram em uníssono.
"Eu... estou... estou bem..." Balbuciou o elfo em resposta. "Lamento..."
"Eu sou quem lamenta." A voz de Elrond soou forte e todos se voltaram para o lorde elfo, em pé, agora a poucos passos dele. "Sinto-me responsável por seu mal estar. Ao citar minha perda, meu coração egoísta esqueceu-se de suas últimas perdas, além das passadas, meu jovem. Peço que me perdoe."
Legolas empalideceu novamente.
"Não foi egoísmo, meu senhor." Ele apressou-se em dizer e mais uma vez estavam se olhando nos olhos. "Lady Celebrian era a luz de Imladris. Com certeza a perda de sua companhia se compara a que sofremos. A luz é sempre uma ausência marcante, não importa que direção tenha tomado."
Elrond soltou o queixo levemente e suas sobrancelhas fizeram um suave movimento que Legolas não compreendeu qual significado transmitia. Ele então se aproximou mais e apoiou uma mão no ombro do arqueiro.
"Sua sabedoria é distinta das que conheço, meu bom soldado." Ele disse e Legolas estremeceu. Ocorria-lhe agora que o líder de Imladris não o chamara pelo suposto nome uma única vez. "Os silvestres têm sensibilidade invejável, que só vem a se valorizar mais quando temperada pelo sério senso sindar. Parece guardar as boas qualidades de ambas as influências que sofreu."
Legolas sentiu o seu coração acelerar-se descompassado, sem entender o que ao certo o lorde elfo insinuava. Ele baixou o rosto, mas Elrond voltou a erguê-lo e lhe sorriu.
"É um soldado muito sábio, de fato." Ele comentou, buscando retomar seu pacato tom habitual. "A única lição que ainda não parece estar clara a você é a que se refere aos momentos de descanso, pelo que meus olhos me indicam."
E dizendo isso ele deslizou carinhosamente as pontas dos dedos pelas bolsas escuras que se formavam abaixo dos olhos claros do príncipe. Legolas enrubesceu terrivelmente então, voltando a baixar a cabeça, mas sentindo uma sensação que mais se aproximava do prazer do que do receio. Elrond era um elfo poderosíssimo, disso não lhe restava a menor dúvida. Mas o uso contínuo daquele poder não lhe parecia ser uma prática, nem condicional, nem incondicional. Ele parecia muito bem consigo mesmo, buscando mostrar-se um elfo como qualquer outro simples eldar.
"Não sei por que levantei tão triste assunto." Elrond enfim comentou, voltando a se sentar e fazendo sinal aos filhos para que fizessem o mesmo. "Nessa mesa ele não faz bem a qualquer um de nós. Peço minhas desculpas."
Legolas sacudiu mais uma vez a cabeça, observando os gêmeos retomarem vagarosamente seus lugares a sua frente e recuperarem os talheres que haviam deixado.
"Sou eu quem deve desculpas, senhor." Ele pediu cabisbaixo, amargando a cena tola que criara há pouco.
"Claro que deve. Vai me fazer comer comida fria." Elrohir resmungou então em um tom divertido que Elrond há muito não ouvia e Elladan soltou uma risada descontraída, satisfeito também por sentir um pouco do bom humor de antigamente voltar a colorir as atitudes do gêmeo, que sempre se mostrava entristecido e reservado quando em Imladris. "Já não basta me fazer comer comida queimada e..."
"Pelos Valar, Ro, não conte a seu pai sobre isso..." Legolas sobressaltou-se então e o gêmeo olhou-o surpreso. A cor fugida de seu rosto também. Só então o príncipe percebeu o grau de intimidade que havia usado para com o elfo moreno. Ilúvatar, quantos deslizes ainda cometeria? "Des... Desculpe... Desculpe-me Elrohir eu..."
"Pode me chamar assim se quiser." O gêmeo respondeu bastante sério e Elrond curvou surpreso as sobrancelhas. Legolas olhou-o, igualmente surpreso e Elrohir acabou erguendo os lábios em um pequeno sorriso. "Aqueles a quem quero bem me chamam assim e não são muitos, creia-me."
Legolas esvaziou nervosamente os pulmões, mas por fim apoiou a mão no peito e curvou levemente a cabeça.
"Muito me lisonjeia o fato de reservar-me tão valoroso papel."
Elrohir sorriu então, sacudindo depois os ombros como a tentar arduamente disfarçar as estranhas emoções que estava sentindo e não conseguia entender.
"Ser meu amigo não é tão bom quanto parece." Ele comentou debochado, colocando mais pimenta em sua comida e fazendo uma careta ao irmão quando este lhe tomou o recipiente e colocou-o fora de seu alcance.
"Vai abrir um buraco no estômago." Elladan advertiu-o. "Acha que tem uma armadura interna?"
Legolas começou a rir sem conseguir se conter, baixando o rosto para tentar disfarçar, mas Elladan já o olhava com admiração, como se estivesse feliz por ter conseguido fazê-lo sorrir. A seriedade daquele elfo chegava a doer.
"Isso, ria de mim, elfinho verde." O gêmeo mais novo provocou, mas no final acabou aderindo ao riso implantado e todos terminaram o jantar em um agradável clima de família.
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Após a refeição sentavam-se os quatro na varanda, cuja porta dava para a sala de estudos. Elrond convidou os filhos e o amigo para apreciarem um pouco as estrelas antes de voltarem a seus afazeres. Estava uma noite clara e branda, a suave brisa balançava docemente as folhas das árvores e trazia o aroma das flores. Tudo estava calmo e silencioso, ninguém transitava pela grande praça e o som que se ouvia era apenas o cantar distante de algum elfo, que provavelmente fazia o mesmo que o senhor de Imladris e seus acompanhantes.
Elrohir atirou-se em um dos divãs e ficou de olhos fechados, cantarolando uma das canções de guerra que aprendera com o mentor. Eram palavras tristes, sobre perdas e solidão, mas na voz melódica do elfo moreno elas ganhavam um tom nostálgico que a todos parecia alcançar. Na verdade era rara a disposição do gêmeo em presentear a família com uma canção e, pelo tom baixo que usava, estava mais do que claro que era apenas a eles que o jovem elfo queria agradar.
Elrond deixou-se ficar, sentado em um outro divã ao lado de Elladan. O filho mais velho achegara-se e o pai envolvera-o em um abraço, guiando-o a apoiar a cabeça em seu ombro enquanto apreciava o momento de felicidade que há muito não sentia. A paz que os filhos emanavam chegava a ser contagiosa.
Legolas estava sentado em um dos degraus da grande varanda, as costas em uma das pequenas pilastras de madeira e o olhar distante, apreciando a redonda e amarelada lua que se fazia ver por trás do grande Eucalipto, enquanto embalava-se saborosamente no canto suave de Elrohir.
"É uma árvore muito antiga." Elladan leu-lhe os pensamentos, sem se mover. "Já estava aqui quando ainda havia apenas a força das águas e nada mais."
Legolas olhou-o rapidamente, prestando atenção nas palavras que ouvia, depois voltou a observar a grande árvore e lembrar-se da estranha experiência que tivera quando ela aceitara sua companhia. Aquele grande ser verde musgo e aromático de fato não estava no centro daquele lugar fascinante por acaso.
"É sim." Ele concordou em um suspiro de voz.
"Ainda não acredito que subiu nela." Elladan comentou admirado.
"Não sabia que era proibido." Defendeu-se timidamente o elfo louro, voltando a olhar o amigo.
"Não é. Apenas ninguém consegue fazê-lo. Na verdade ninguém sequer consegue se aproximar dela, apenas nosso pai e ele nunca a escalou. Escalou, ada?" Indagou o gêmeo, subitamente curioso, afastando-se então do curador para ler-lhe a resposta no rosto sereno.
"Não." Elrond sorriu. "Nunca fui convidado. Embora sinta que esse dia vá chegar. Porém, particularmente espero que demore um pouco." Ele riu então e Elladan o acompanhou.
"Não me diga que teme a altura, ada?" O filho brincou e Elrond ergueu ambas as mãos em sua defesa, mas acabou sorrindo.
"Teme a proximidade com as estrelas... Com os seus..." Legolas disse pensativo, os olhos novamente voltados para a grande árvore.
O lorde de Imladris o olhou bastante surpreso, deixando-se mais uma vez estar imerso nas dúvidas que tinha. Somadas agora às imagens que vira, dentro do pouco espaço que conseguira sondar na mente do rapaz, elas agora o perturbavam mais. Conclusões estavam se fazendo em seus pensamentos, mas ainda faltavam alguns detalhes muito importantes que desatassem de vez aqueles confusos nós.
"O que disse, meu jovem?" Ele indagou e os olhos de Legolas se voltaram no mesmo instante para ele, demonstrando um profundo arrependimento pelas palavras que lhe escaparam há pouco.
"Senhor?" O rapaz questionou assustado, se apercebendo novamente tarde demais do que dissera. "Eu estava apenas divagando, senhor, peço que me perdoe se o ofendi."
Elrond trancou os lábios e o ar escapou-lhe mais devagar do que o habitual, seus olhos ainda ficaram presos aos do visitante.
"Peço seu perdão, Lorde Elrond." Legolas insistiu, sentindo-se terrivelmente constrangido e contrariado e Elrond enfim afastou o olhar do dele, encarando a grande árvore central, que para ele tinha um significado maior do que qualquer um poderia supor.
"Como foi sua experiência no grande eucalipto, jovem soldado?" Ele indagou, ainda com a árvore a tomar-lhe todo o campo de visão.
Legolas encheu o peito e prendeu a respiração, em seguida olhou alternadamente para a árvore e seu senhor algumas vezes, por fim suspirou, baixando os olhos.
"O significado de certas verdades me escapam, Lorde Elrond." Ele ofereceu a resposta enigmática. "Talvez se me indagar em outra oportunidade eu tenha resposta mais efetiva para lhe dar."
Elladan franziu o cenho intrigado e mais intrigado ainda ficou ao ver que o pai apenas sorrir com a resposta do jovem louro. Ele olhou para Elrond e franziu ainda mais as sobrancelhas, esperando que esclarecesse o intricado diálogo que tivera com o visitante. Mas o curador apenas voltou a puxar o filho para perto de si e o fez apoiar outra vez a cabeça em seu ombro, acariciando-lhe brandamente o braço esquerdo para que voltasse a relaxar.
O jovem Elladan acabou sorrindo, ele conhecia o pai e seus enigmas e verdades e sabia bem que, quando ele se esquivava dessa forma, era inútil tentar indagá-lo ou forçá-lo a revelar o que quer que fosse. Deixou-se então ficar ali, fechando os olhos e relaxando para aproveitar aquele raro momento de sossego. Entretanto, em instantes, algo o intrigou e ele apercebeu-se do estranho silêncio do irmão, que há tempo finalizara sua canção.
"Sabia!" Ele soltou um suspiro inconformado, afastando-se do pai. "Não dorme há dias! Olhe, ada. Olhe só." Lamentou, balançando contrariado a cabeça ao observar a figura do adormecido Elrohir, que soltara o corpo por sobre o divã onde estava e agora parecia dormir profundamente com os olhos fechados. "Dorme o sono dos mortais." Ele observou inconformado, erguendo-se para ir ao encontro do irmão.
"Espere! Não o acorde." Elrond pediu, segurando o primogênito por um dos braços. Elladan curvou as sobrancelhas, para só então perceber o que o pai ia fazer. Elrond ergueu-se e aproximou-se devagar, sentando-se com cautela ao lado do filho que dormia silenciosamente, o rosto pendido para a esquerda, os lábios levemente soltos, o corpo desajeitadamente encaixado naquele pequeno divã, uma das mãos já soltas, pendendo para fora do estofado. O curador então passou os braços por sob as pernas e costas do jovem elfo e ergueu-se, trazendo-o cuidadosamente consigo. Elladan ergueu-se também, procurando oferecer alguma ajuda caso o irmão acordasse ou se assustasse. Mas tudo o que Elrohir fez foi apoiar a cabeça no ombro do pai e suspirar em seu sono, um sono que parecia tranqüilo e que tranqüilizava também os que estavam a sua volta. Era bom saber que o jovem gêmeo ainda se sentia suficientemente seguro para deixar-se amarrar em um sono pesado como o que dormia. Elladan sorriu, abrindo mais a grande porta para que o pai pudesse passar por ela sem dificuldades.
"Espere aqui, Ainion." Ele disse em um sussurro, voltando-se rapidamente para Legolas e gesticulando uma mão para enfatizar o pedido. "Não vá embora!"
Legolas sequer respondeu. Aquela cena tinha seus pertences, não podia ser estragada com algo ou alguém que dela não fizesse parte. Ele limitou-se a ficar observando aquele pai que Elrond se mostrava sem sequer se intimidar por estar diante de um estranho. O lorde de Imladris subia vagarosamente as grandes escadas, em uma tentativa nítida de não despertar o filho. Parecia de fato feliz com a oportunidade de reviver um ato que certamente executara muito quando os gêmeos eram crianças. Legolas enfim pegou-se invejando um pouco Elrohir e a atenção que recebia. Devia ser de fato fabuloso ter um pai como Elrond. Sim. Ter um pai que se importava, que estava presente, que demonstrava afeto.
Mas então a imagem do rei da Floresta lhe veio à mente. Thranduil sentado só em sua grande caverna, preso aos mapas e problemas que tinha. Então, apesar de imaginar o quão possesso provavelmente ele estaria quando voltasse, ele não pôde deixar de sentir um aperto enorme, um desejo de correr para casa, de roubar-lhe um olhar que fosse, mesmo um olhar repreensivo, como vinha fazendo todos esses anos. O arqueiro então se voltou mais uma vez para as estrelas e apoiou a mão no peito.
"Ada." Ele disse, sentindo o coração acelerar-se apenas por pronunciar tão doce palavra. "Sinto saudades."
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O tempo se passou e já era uma manhã de sol e céu anil, quando Elrond entrou na biblioteca e encontrou o jovem arqueiro da Floresta debruçado em um dos grandes mapas. Ele deixou-se ficar em silêncio por um tempo, analisando os traços e feições daquele estranho. O elfo tinha ambas as mãos sujas de tinta, os olhos apertados e as sobrancelhas contraídas enquanto parecia trabalhar com toda a atenção em algum complicado detalhe que queria acrescentar ao colorido mapa. Enfim, passados alguns instantes, o rapaz soltou o ar do peito e afastou-se observando o trabalho final com a atenção de quem ainda espera encontrar algum engano ou falta.
Foi só então que Elrond se aproximou. O elfo louro ergueu imediatamente os olhos ao sentir sua presença e ofereceu uma tímida saudação com a cabeça. Elrond sorriu, puxando uma cadeira e sentando-se do lado oposto da mesa, enquanto analisava o trabalho já completo de seu convidado.
"Não faz idéia da utilidade de seus préstimos, meu jovem." Ele disse com satisfação, observando atentamente a mudança atribuída às cenas que ele já conhecia de cor. "Fez um trabalho profissional de fato. Não tenho cartógrafos dessa qualidade aqui em Imladris."
"Não creio." Legolas disse cabisbaixo, enquanto reunia os objetos que espalhara e limpava os pincéis. "Mas agradeço mesmo assim o elogio. Fico feliz que tenha ficado satisfeito."
Elrond manteve seu leve sorriso no rosto, enquanto ainda deslizava os olhos pelo mapa com curiosidade. Legolas ergueu-se então e apanhou o outro mapa, abrindo-o diante do corpo para que o lorde de Imladris o visse.
"Já terminou ambos?" Ele indagou surpreso, transferindo sua atenção para o segundo mapa.
"Sim, senhor." Legolas respondeu com simplicidade sem sequer olhar o trabalho finalizado, parecia cansado, distraído. "Eram apenas alguns pequenos dados faltantes neste aqui. As tintas de Imladris são de excelente qualidade e o clima ajuda também. Terminei o trabalho em menos de três cantares."
Elrond assentiu, voltando então a olhar o mapa por sobre a mesa, enquanto Legolas aproximava-se de uma bacia que ficava sobre uma pequena mesa lateral, derramava água sobre ela e limpava a tinta das mãos. O curador ergueu-se, aproximando-se do jovem elfo.
"Quem lhe ensinou cartografia?" Ele indagou, apanhando uma pequena toalha e molhando uma das extremidades na mesma água que Legolas usara.
"Um dos lordes sindars de minha terra." O príncipe informou receoso. "Não creio que o conheça."
"Os sindars são um tanto avessos a passar seus conhecimentos adiante, não são?" Elrond comentou despretensiosamente, deslizando agora a toalha que molhara na face esquerda do príncipe para tirar uma mancha que o rapaz fizera sem perceber enquanto trabalhava.
Legolas enrubesceu, sem saber se o incômodo que sentia era devido ao ato carinhoso do senhor de Imladris ou à desconfiança que sentia no tom que o lorde elfo usara. Ele lembrou-se enfim de como aprendera cartografia de verdade, olhando de longe o pai trabalhar várias e várias vezes até que finalmente o rei estendeu-lhe uma das mãos e resolveu ensinar-lhe o que lhe faltava aprender. Sim. De fato os sindars não são conhecidos por sua paciência como professores, mesmo estando, e a regra provava isso, entre os melhores instrutores de toda Terra-Média.
"São sim, senhor... mas também estão entre eles os mais teimosos aprendizes." Legolas respondeu timidamente. "A natureza é sábia."
Elrond riu, olhando o arqueiro nos olhos por alguns instantes, depois se aproximou mais uma vez do grande mapa da Floresta, voltando a encará-lo atentamente. Legolas acompanhou com os olhos os movimentos firmes, mas gentis do poderoso lorde elfo, cuja leveza de sua presença parecia fazê-lo deslizar e não andar por aquele piso de madeira lustrada. Ele sentia-se estranhamente intrigado com a atenção que Elrond estava dando àquele mapa em especial.
"Conheço pouco a Floresta Escura." Comentou enfim o líder moreno e Legolas aproximou-se, tomando seu lado para ser de alguma ajuda, haja visto que o lorde elfo parecia estar em busca de alguma informação em especial.
"Ninguém mais a conhece de fato." Ele comentou com tristeza, observando a grande mancha verde escuro e negra que o mapa de sua terra parecia estar se tornando. "O mal a toma rapidamente e custamos muito para mantê-lo longe de onde vivemos."
Elrond suspirou, ainda com os olhos presos no desenho corrigido.
"Estão fazendo um bom trabalho." Elrond comentou. "São um povo destemido."
"Obrigado, meu senhor."
"Elrond." O lorde elfo disse, olhando novamente o príncipe nos olhos e Legolas voltou a enrubescer, baixando a cabeça e afastando-se para apanhar o robe que deixara por sobre uma das cadeiras.
"Peço que me perdoe, lorde Elrond." Ele disse segurando a peça dobrada por sobre um dos braços, não parecia ter a intenção de vesti-lo novamente. "Mas creio que nem em mil gerações serei capaz de tratar um elfo de sua grandeza sem o título a que faz jus."
Elrond ofereceu-lhe novamente o mesmo sorriso enigmático que vinha reservando-lhe e Legolas voltou a inquietar-se, baixando o rosto e tomando o caminho da porta.
"Peço sua licença agora." Ele disse sem se voltar.
"Elladan pediu que esperasse por ele se ainda estivesse aqui." Elrond disse antes que o elfo chegasse até a porta. "Eu o fiz descansar um pouco com o irmão, mas em breve estarão de volta. Já que passou a noite nessa biblioteca, fique para o café, por favor."
"Sou-lhe grato, senhor." O arqueiro respondeu em tom de desculpas. "Mas estou afastado de meu capitão por mais tempo do que seria conveniente."
"Compreendo. Mas lamento porque sequer fez uso de sua recompensa." Elrond lembrou, olhando os livros e Legolas entristeceu-se, de fato tinha a esperança de terminar o trabalho em tempo de ler alguns daqueles exemplares, antes de ter companhia novamente. Nem tudo é perfeito.
"Talvez em outra oportunidade." Ele desculpou-se.
"Creio que um em particular deva lhe interessar." Elrond deu as costas, aproximando-se de uma das prateleiras e ignorando propositalmente a última sentença que ouvira. Ele subiu em um dos pequenos bancos que estavam espalhados pelo lugar, para conseguir alcançar um volume que estava nas últimas prateleiras. Legolas observou a cena com um misto de curiosidade e apreensão. Queria sair dali, ver-se livre do olhar penetrante daquele célebre elfo, mas sua atenção já estava novamente capturada por um livro de capa de couro e título em tinta dourada que Elrond estendia-lhe. Ele aproximou-se receoso e aceitou o exemplar em suas mãos para enfim ler do que se tratava. Pintado em letras grandes e bem traçadas estava um intrigante título.
OROPHER REI
Legolas soltou os lábios, mas o ar não saiu de seus pulmões. Então Elrond tinha um livro sobre seu avô? Ele mesmo não tinha tal livro em sua casa! Ou teria e seu pai o havia guardado longe de seu alcance?
Perdido em tais pensamentos ele passou a folhear a obra ali mesmo em pé, olhos deslizando pelas gravuras feitas, desenhos de um personagem de sua vida que ele conhecia apenas pelo grande quadro que o pai tinha pendurado em seu gabinete. Pendia admirado a cabeça para a esquerda e para a direita, enquanto sua mente criava devagar as cenas que lia.A trajetória de Doriath, a dificil decisão de seguir ao norte, a composição da grande força armada, sua união ao exército menor de Malgalad, a luta contra Mordor na Guerra da Última Aliança, o infeliz término da batalha de Dagorlad e sua passagem para os Salões de Mandos. Estava tudo ali, resposta por resposta das perguntas que ele guardava intimamente, rascunhos de um passado que desconhecia. Ele suspirou quando chegou à última página, sem perceber quanto tempo havia ficado ali, em pé, folheando com rapidez voraz tão precioso livro como se temesse que fosse tirado de suas mãos. Nem se apercebera que Elrond estivera todo o tempo a seu lado, lendo-lhe as reações, desenhando os traços de seu rosto devagar.
"Não conhecia a história de seu avô, conhecia?" A voz do curador indagou suavemente, como se estivessem ambos presos em um sonho e Legolas balançou em um instinto a cabeça em negação, sem perceber a armadilha na qual estava. Em instantes, porém, o livro escorregou-lhe das mãos e ele se afastou do lorde elfo com os olhos arredondados de pavor. O curador mantinha um ar sereno em seu rosto e erguia-lhe uma das mãos, pedindo paz.
"Não tenha medo, Príncipe Legolas." Ele pediu enfim e surpreendeu-se ao ver o quão mais pálido aquele elfo ainda era capaz de ficar. "Está seguro aqui em Imladris. Não permitirei que mal algum lhe acometa."
Legolas sacudiu a cabeça, os lábios soltos como se quisesse dizer algo, mas o pavor da situação na qual se encontrava bloqueava qualquer palavra que viesse a sua boca. Ele passou a andar sem rumo pela biblioteca buscando agora passar pelo lorde elfo que se colocara diante da porta.
"Deixe-me ir." Disse enfim, ao ver que Elrond não parecia ter intenção de dar-lhe passagem.
"Não precisa sair assim, jovem príncipe. Vamos conversar."
"Não tenho nada a conversar com o senhor, Lorde Elrond." Legolas ergueu o tom de sua voz, a ira a temperava, mas não se dirigia de fato ao senhor de Imladris, se dirigia a si mesmo. Ele se odiava por ter baixado tão estupidamente sua guarda.
"Eu entendo o porquê de seu anonimato. Conheço as regras da realeza."
"Se as conhece porque não as respeitou?" Legolas gritou então, os olhos brilhando agora de desespero. Era um incompetente mesmo, um incapaz, todos os amigos de seu pai tinham razão, quando diziam que ele não saberia se portar em situação de guerra alguma. Era seu segundo dia em Imladris e o grande Elrond Peredhel já havia descoberto sua identidade.
"Ultrapassei meus limites. Admito e peço que me perdoe." O curador disse serenamente. "Mas o fiz porque sinto que tem situações mal resolvidas, jovem príncipe." Elrond respondeu então. "Situações que o fazem sofrer. Peças em um quebra-cabeça que precisa encontrar para conseguir enxergar uma parte do passado que lhe falta."
"Não sei do que o senhor está falando." Legolas enervou-se ainda mais, seu rosto aquecido agora pelo embaraço e pela ira. "Deixe-me passar. O senhor não faz idéia do pesadelo no qual me colocou."
"Seria este pesadelo maior do que aquele no qual já se encontra, menino?"
"Não sei do que o senhor está falando." O arqueiro ergueu novamente seu tom. "Tenho que me repetir quantas vezes até que me deixe ir?"
Elrond silenciou-se então. Deixando-se ficar onde estava e encarando o trêmulo príncipe diante dele.
"Não há necessidade de inquietação. Garanto-lhe que nada contarei a elfo algum se assim for sua vontade." Ele enfim propôs. "Mas algo em mim diz que não é o que quer."
Legolas fechou os olhos então e apertou os punhos nos braços estendidos até que embranquecessem. Finas lágrimas caíram por seu rosto, mas ele as enxugou rapidamente com as palmas abertas. Elbereth como chegara à posição na qual estava? Como podia ser tão estúpido?
"Sei que não me cabe lhe dar conselhos. Mas vejo que no momento sofre desnecessariamente, meu rapaz." Observou Elrond em um voz branda e amável. "Talvez devesse apenas deixar que a verdade faça seu caminho, que revele o que você mesmo quer saber."
"Eu nada quero saber." Legolas baixou o rosto, virando o corpo de lado para que não se visse obrigado a olhar mais para aquele misterioso elfo, de encarar a piedade que via nos olhos dele. Patético, era como estava se sentindo. Certamente estava envergonhando ainda mais o nome de seu pai e, pior que isso, o fazia em terras estrangeiras. "Eu só quero paz..." Ele disse em um sussurro. "Mas a paz não existe."
"Existem momentos de paz." Elrond aproximou-se devagar então. "Mas a paz é como uma flor muito rara. Sua semente só germina em solo bem arado, e seu melhor alimento é a verdade. Deve tentar guiar-se por ela e encontrará a paz que procura."
Legolas voltou a apertar os olhos e outras lágrimas fugiram deles.
"O senhor fala do que não sabe." Ele disse amargamente. "Julga fácil o que desconhece."
"Então cometemos o mesmo erro." Elrond apoiou uma mão no ombro do rapaz e os olhares de ambos se encontraram. Havia tanta tristeza no interior do príncipe da Floresta que o curador sentiu-se quase desarmado. "Precisamos conhecer o que nos falta, para que nosso julgamento seja justo."
"Não julgo ninguém." Legolas afastou-se.
"Discordo." Elrond voltou a tomar a direção da porta, o caminho que impedia o príncipe de retirar-se. "Julga e o faz com voracidade."
"Não julgo ninguém!" O arqueiro gritou então, outras lágrimas escorrendo de seus olhos.
"Julga a si mesmo." Elrond disse serenamente e Legolas voltou a empalidecer, sentindo-se sem rumo, sem direção a tomar. "E você é alguém, meu rapaz. Porém, mesmo sendo de tamanha importância, nem tudo no mundo acontece por sua causa ou culpa."
Legolas cerrou o maxilar com força e respirou fundo, várias e várias vezes para tentar recuperar o fôlego que se negava a voltar-lhe. Ele estava se desesperando, pensando em como sairia de tal situação, pensando nas palavras que Elrond lhe dizia e como o sentido delas ora lhe vinha ora lhe escapava. Baixou então o rosto e o cobriu com ambas as mãos. Estava tão cansado, exausto de tudo com o que tinha que lidar, de todas as máscaras que tinha que carregar. Estava cansado demais e sentia que ainda havia muito mais a ser feito; situações para as quais ele não tinha energia alguma.
Elrond soltou os ombros, apiedando-se da figura confusa e perdida que tinha diante de si. Ainda era difícil de acreditar que aquele rapaz sensível e prestativo era filho do arrogante e frio rei da Floresta Escura. Ilúvatar tinha mesmo estranhos caminhos.
"Deixe-me passar, por favor." Ele ouviu mais uma vez a voz amargurada pedir e acatou finalmente a súplica, dando passagem ao cansado príncipe. Já o excedera além da conta da razão. Precisava dar a ele espaço e tempo para pensar.
Mas o destino é muitas vezes duro com o pobre Legolas e parece querer por vezes retirá-lo de um rodamoinho apenas para atirá-lo em outro. Ele mal tomara o rumo da porta quando esta se abriu e os dois irmãos idênticos entraram.
"Elbereth." Legolas clamou a si mesmo, dando inconscientemente dois passos para trás e cobrindo o rosto com as mãos. Elladan olhou-o e não foi grande o esforço para o gêmeo perceber que havia algo errado.
"Ainion. O que houve?"
Era para ser muito fácil. Elrond prometera não revelar seu segredo, ele só tinha que continuar a representar seu papel. Mas, ao ouvir o gêmeo mais velho chamá-lo pelo nome que não lhe pertencia, a imagem do verdadeiro Ainion veio novamente lhe atormentar. O mesmo corpo envolto pelas trevas, o mesmo rosto em lágrimas, as mesmas súplicas pela alma roubada. Legolas desesperou-se mais ainda e fechou dolorosamente os punhos que cobriam seu rosto, afastando-se do gêmeo e tentando sair do local onde estava, mas Elladan acompanhou-o e ele e o irmão o cercaram, impedindo-o que realizasse a escapada da qual tanto precisava.
"Deixe-me ir."
"Não pode sair assim." Elrohir segurou-o. Cada vez preocupava-se mais com aquele atormentado elfo. "Diga-nos o que houve, Ainion."
"Parem de me chamar assim!" Legolas desabafou em um grito quase sem sentido, empurrando o gêmeo para longe dele. Elrohir franziu a testa confuso e olhou para o irmão. Elladan voltou-se para o pai que observava a cena em silêncio, mas Elrond apertou os lábios. Seu rosto não trazia qualquer informação.
"O que se passa, mellon-nin?" O gêmeo mais velho ainda insistiu, enquanto Elrohir apanhava o livro que Legolas deixara cair, mostrando discretamente o título ao irmão. Elladan franziu a testa, aquela não era uma informação de grande valia.
"Passou a noite aqui?" O gêmeo mais novo indagou, tentando trazer a atenção do amigo para si. "Leu algo que o aborreceu? Conte-nos para que possamos ajudá-lo."
Legolas sacudiu veementemente a cabeça, os punhos ainda sobre o rosto. Elladan deu um cauteloso passo em sua direção e se impressionou ao vê-lo voltar a se afastar, erguendo-lhe uma das mãos como se tentasse se proteger.
"Não vou lhe fazer mal, Ainion." Ele disse constrangido. "Só quero ajudá-lo."
"Então me deixe ir. Não preciso de ajuda..."
"Pois eu acho que precisa." Elrohir comentou, aproximando-se também. "Está muito agoniado para alguém que pode resolver tudo sozinho."
"Somos seus amigos, Ainion. Queremos seu bem. Deixe-nos ajudá-lo." Elladan completou.
Legolas olhou-os nos olhos enfim, um e outro gêmeo alternadamente. E o passado passou a pesar ainda mais do que ele julgava que seria capaz de carregar. O olhar dos dois irmãos continha o mesmo amor e consideração que eles lhe dispensavam há muitos anos, o mesmo respeito para o qual hoje ele não se julgava mais digno.
"Não mereço sua consideração." Ele disse então, percebendo que dirigia sua revolta para as pessoas erradas mais uma vez. Envergonhava-se mais diante daqueles por quem não poderia ter maior admiração. Os filhos de Celebrian decididamente não podiam receber tal tratamento injusto, mesmo com o que o passado os obrigara a fazer.
"Claro que merece." Elrohir contrariou-o. "Se não a merecesse não a teríamos dado."
"Não me conhecem."
"Conhecemos o bastante." Elladan retrucou. "Sabemos de seu bom coração e temos apreço por você. Só precisa descansar e conseguirá encontrar energia para resolver os outros problemas que parecem afligi-lo. Não fecha seus olhos propriamente desde que o encontramos pela primeira vez, mellon-nin. Não é a toa que seus nervos estejam tão abalados."
Legolas engoliu o amargo que se formou em sua boca. As verdades batiam-lhe à porta, clamando-lhe atenção, mostrando-lhe os sentimentos que ainda habitavam seu coração. Elbereth, ele ainda os tinha ali dentro, a ambos os seus heróis, com o mesmo amor de elfinho que lhes dedicava.
"Não mereço a consideração de vocês." Ele então repetiu, seu rosto subitamente mais entristecido do que nunca, porém o desespero deixando os traços de sua face. "Sou uma mentira. Na verdade nem sei quem sou."
"Como assim?" Os gêmeos indagaram em uníssono.
"Ainion... era um de meus soldados..." Ele revelou cauteloso e cabisbaixo. "Thavanian... não é capitão do grupo... Sou eu o líder... Sou aquele cuja inexperiência conduziu o grupo à morte."
Elrohir franziu muito as sobrancelhas e Elladan acompanhou-o, instintivamente nunca estiveram mais parecidos.
"Como assim? Thavanian não é o capitão?" Elrohir repetiu a informação recebida, como se checasse se a tinha ouvido bem.
"Não... Ele é... meu guarda-costas... Eu sou o capitão."
"E desde de quanto um capitão precisa de guarda-costas?"
"Desde que... pertença à casa real." Legolas respondeu, fechando momentaneamente os olhos. Quando os reabriu os gêmeos ainda tinham um ar idêntico em seus semblantes, mas era um ar diverso. Estavam boquiabertos, pálidos e confusos, mas pareciam ter, com aquela pequena e pouca informação, desvendado seu grande segredo.
"Não... não pode ser..." Elrohir enfim afirmou.
"Legolas..." Elladan sentiu a palavra em seus lábios e quando a disse o príncipe não conseguiu se conter, baixando mais o rosto e deixando os soluços escaparem por sua garganta. "Legolas... eu... nós... Perdoe-nos... Não julgávamos que pudesse ser você... Nós..." Ele implorou confuso, tentando se aproximar agora, mas não se sentindo no direito.
"Não é culpa de vocês." Legolas disse esfregando o rosto e voltando a se afastar, com a palma erguida de quem não quer ser tocado.
"Nós não... não imaginávamos que pudesse ser você." Elladan continuou inconformado.
"Claro que não." Legolas sorriu com amargura, soltando os braços e fechando os olhos, enquanto erguia o rosto em busca de um ar que não lhe servia. "Quem iria adivinhar que um elfo medíocre como eu fosse filho do poderoso Thranduil Oropherion... Quem em sã consciência conceberia tal absurdo..." Ele riu então, depois voltou a conter os soluços que seu peito criava. "Vocês só agiram como qualquer um age desde que me conheço como esse nada que sou."
"Não é verdade!" Elrohir achegou-se também. "Elladan chegou a comentar a semelhança... chegou a dizer o quanto você nos lembrava..." Ele parou uns instantes, e esvaziou o peito ao ter os olhos claros de Legolas presos nos dele. "O quanto nos lembra nosso elfinho dourado da caverna..."
Legolas mordeu o lábio inferior com força, depois voltou a esfregar o rosto com ambas as mãos. Ele queria poder esquecer tudo aquilo, como se o passado e o presente não existissem e de fato estivesse encontrando os gêmeos pela primeira vez. Chegou a sentir-se desejando ser Ainion, querendo ser o elfo silvestre que despertara comoção nos bons filhos de Celebrian, que conquistara, sem nem saber porquê ao certo, a preciosa amizade dos dois.
"Sabíamos que era você." Elladan enfim recuperou um fio de voz. "Mas nosso coração resistia a pensar nisso, negava-se... Parecia inimaginável que Thranduil o houvesse deixado sair em uma patrulha... Ele sempre fora tão protetor..."
"Nunca mais..." Legolas afastou-se mais e apoiou-se em uma das mesas, aquela na qual estava o mapa que reformara, o mapa de sua terra. "Foram-se e... e nunca mais voltaram... Muitas coisas mudaram então... Entre elas... Entre elas o amor que meu pai sente por mim."
Elladan e Elrohir se entreolharam e a culpa ganhou o peso de um Oliphant em suas costas. Do que Legolas estava falando? Thranduil podia ser severo, duro certas vezes, mas sempre lhes ficara muito claro o amor que o rei tinha por seu filho. Um afeto de pai não poderia se perder.
"Perdoe-nos..." Elladan voltou a tentar aproximar-se, seu tom era triste demais até mesmo para Legolas que era íntimo da tristeza. "Não vou dar-lhe desculpas. Foi o receio que nos afastou de seu reino, Las... Foi o medo de ver o que... o que podia ter acontecido com você depois... depois do que houve. Mas... seja o que for que se tenha passado... não creio que seu pai... que ele..."
Legolas ergueu o olhar, emocionado por ouvir seu apelido de infância na boca de um de seus heróis.
"Agora sabe o que aconteceu, Dan." Ele disse e em sua voz não havia mais agonia, apenas uma dolorosa tristeza. "Sabe no que me tornei... Sou isso aqui." Ele abriu os braços. "Sou esse elfo sem identidade que nem você conseguiu reconhecer. Meu pai tinha dois caminhos: ou me trancava, ou me mandava para algum lugar... Ele deve ter se cansado do primeiro... Tem motivos de sobra para me deixar ser capitão, para querer me ver longe do palácio. Em algum lugar onde não o envergonhe mais."
"Não diga isso, esquilo..." Elrohir adiantou-se e Legolas sentiu que seu coração ia explodir a qualquer momento. As revelações que fazia lhe saiam dos lábios pela primeira vez, jamais sequer pensara nelas, embora as sentisse como espinhos dolorosos todos os dias de sua existência.
"É a verdade, Ro."
"Não é. Ele não pode sentir isso. Pense bem. Sem ao menos o reconhecermos você já conquistou nossa amizade. Isso não te diz nada? Como pode pensar essas coisas horríveis de si mesmo?"
O rosto de Legolas se contraiu como se aquelas palavras o fizessem sentir uma grande dor, seus lábios tremiam agora e o pranto voltou a querer dominá-lo.
"Não sabem..." Ele disse entre soluços. "Nada sabem o que fiz... Nada sabem do que aconteceu... Ele deve me odiar..."
"Sabemos o que aconteceu a sua mãe." Elladan leu-lhe os pensamentos, colocando as palavras com cautela. Estava muito preocupado e ainda não sabia como contornar a difícil situação na qual se encontrava. "Não pensa que tem culpa nisso, pensa, Las?"
"E de quem seria a culpa?" Legolas voltou a erguer o tom de voz. "De quem, Dan? De quem, Ro? Se fui eu a desobedecer às ordens do meu pai, as ordens do rei. Eu! EU!"
"Você era uma criança, Las. Não sabia o que fazia." Comentou o gêmeo mais velho.
"Eu só queria ir até a Floresta. Uma vez que fosse... Uma só vez..." Legolas passou a andar agoniado pela biblioteca. "Estava tão perto de casa... Não... Não julgava que fosse perigoso... Eu... Ela apareceu do nada... Tinha presas tão grandes... tão... tão grandes..." Ele fechou os olhos então e voltou a balançar a cabeça e soluçar. "Quando me dei conta... nana... estava sobre mim... protegendo-me com seu próprio corpo, pois... ela não tinha arma alguma... Ela... saíra apenas para me buscar, pois me vira escapar sorrateiramente pelos vãos da caverna... Ela..."
"Las..." Elladan aproximou-se um pouco mais e Elrohir o seguiu, os olhos de ambos marejados. "Não foi culpa sua... Não foi, Las. Não conhecia o ambiente onde estava."
"Mas ele dizia sempre, Dan" Legolas voltou a gritar. "Ele! Ele me dizia sempre, SEMPRE, me alertava do perigo... Todos os dias... Todos os instantes que o via... Proibiu-me... me fez prometer... Mas eu... não... não acreditei... Alagos e Thavanian tinham saído mais de uma vez. Sozinhos ou com os pais... Eles tinham ido até onde não me era autorizado... tinham conhecido a liberdade... Diziam que nada haviam visto dos perigos que meu pai temia... Eu... fui tolo em acreditar neles... no que diziam sobre o rei... sobre ele querer apenas me prender para que eu não visse o mundo...".
O príncipe parou por alguns instantes, recuperando o ar que o longo discurso lhe roubara.
"Ele estava certo e eu..." Ele terminou em um tom muito baixo. "Eu fui responsável por toda a dor..."
"Las... Não diga isso." Elladan pediu.
"Não entendem, não é? Como podem não entender? Não foi só a minha mãe... Foi a rainha... A esposa de meu pai... Eu fui responsável pela dor de um reino inteiro!"
Os gêmeos se silenciaram então. Incapazes de encontrar o que dizer. Legolas olhou mais uma vez para o livro que estava nas mãos de Elrohir.
"Foram três longos dias... até que ela não agüentasse mais... e... e se fosse..." Ele disse com a voz trêmula. "Nunca o havia visto chorar..." Ele disse com o olhar perdido de quem encara um passado distante e triste. "Nunca... até aquele dia..."
Legolas fechou os olhos então e mais algumas lágrimas correram deles, até que sentiu coragem de enfrentar os olhares dos gêmeos.
"Se querem saber minha opinião." Ele disse com seriedade, enxugando o rosto e estufando o peito para que o pranto não o pegasse mais de surpresa. "Foi melhor não terem voltado... Tudo o que encontrariam seria dor... e nada poderiam fazer para apaziguá-la. Vocês sabem disso, sabem porque viveram também uma perda. Eu não sei por que motivo Lady Celebrian decidiu cruzar o mar. Mas seja qual for, parece-lhes ser um grande pesar. Pesar este que ninguém consegue amenizar."
Os irmãos se surpreenderam e seus queixos caíram ligeiramente. Agora percebiam mais claramente porque a triste história de Legolas os estava abalando mais do que qualquer outra. O príncipe estava certo, eles compreendiam bem o que era aquela dor. Mesmo voltando, mesmo resgatando a mãe das garras daquelas criaturas, que conheceram a morte sem sequer ver bem quem eram seus inimigos, eles se sentiam culpados, culpados por não estarem lá com a ela, por não fazerem parte da patrulha do encontro, como sempre faziam quando a mãe ia até Lothlorien. Por mudarem suas rotinas em um momento terrivelmente inapropriado. Sim. Aquela dor lhes era deveras familiar.
Eles se entreolharam e baixaram suas cabeças. A verdade do discurso do amigo era difícil de se encarar, difícil de se lidar, difícil de se esquecer. Legolas aproximou-se então, posicionando-se perto dos irmãos.
"Se ainda querem me ajudar, me deixem passar. Pois hoje, nesse instante, acabo de desobedecer mais uma ordem de meu pai... E isso... isso nunca foi bom sinal... Isso me assusta profundamente."
Elladan respirou fundo então, inúmeras coisas em sua mente, palavras querendo explodir em sua boca, mas ele se calou, sentindo-se sem direito de opinar, de dizer o que quer que fosse sobre um acontecimento de tantos anos, que ele fingira ignorar até então. Se a culpa tinha peso e dor eram aqueles exatos que estava sentindo em suas costas naquele instante. Ele colocou-se de lado e puxou o inseguro Elrohir, que, diferentemente do irmão, não queria encerrar essa conversa tão cedo, apesar de também se encontrar sem qualquer palavra que o favorecesse. Legolas passou por eles sem olhá-los mais e parou diante da grande porta que dava para o jardim. Apoiou a mão no batente por alguns segundos, como se fosse mudar de idéia, mas por fim continuou seu caminho, alcançando os degraus da escada e descendo-a rapidamente.
Dava agora alguns passos atingindo a praça central, há poucos metros da casa grande, então, caminhava pela pequena calçada sem grande pressa, para onde iria afinal? Foi quando ouviu uma voz chamá-lo.
"Soldado!"
Voltou-se surpreso.
Era Elrond. No topo da escadaria ele lhe lançava um olhar ainda pacato. Só então Legolas percebeu que fizera sua grande cena diante do lorde de Imladris. Elbereth mais uma vergonha para seus ombros! E depois saíra sem sequer pedir-lhe licença para tal. Provavelmente seu anfitrião estava desapontado. Seria melhor se ainda o visse de fato como o soldado cujo título acabara de atribuir-lhe, ao invés da posição de príncipe que nem sequer lhe cabia. Ele voltou-se devagar, pensando em como se desculparia por tudo o que fizera. Estava tão cansado de desculpar-se. Quem teria sido o tolo que inventara tal expressão sem valor, que a ninguém de fato convencia?
Deslocou-se com suas dúvidas mesmo assim, quedando-se diante do primeiro degrau da escada e direcionando olhos avermelhados para o líder moreno. Estava tão envergonhado que sequer conseguia entender onde encontrava forças para encarar seu anfitrião.
"Meu senhor... peço desculpas se o ofendi." Ele disse, soltando os ombros. "Preciso agora verificar o estado de meu... meu amigo Thavanian, pois quero partir ao amanhecer, se não se opõe."
Elladan e Elrohir surgiram receosos atrás do pai, tentando entender o que se passava. Eles demonstraram uma tristeza ainda maior diante das palavras do amigo e se olharam como se confabulassem em silêncio sobre o que fazer.
Elrond suspirou forçosamente, depois uniu as mãos atrás das costas e disse em um tom alto que não lhe era característico.
"Devemos conversar aqui dentro se não se opõe, soldado." Ele disse sem olhá-lo, seus olhos caminhavam agora pela grande praça verde. "Mesmo porque acho que talvez não seja conveniente que vá a lugar algum hoje ou amanhã. Há um risco." O curador disse em um tom misterioso que intrigou o príncipe.
"Qual risco, senhor?" O príncipe indagou e intrigou-se ainda mais ao ver o lorde elfo erguer os olhos para o céu. Ele fez o mesmo e seu coração disparou no peito. Acima do vale negras nuvens aproximarem-se como em uma roda de dança, elas irmanavam-se agora sobre toda a cidade, trazendo a noite em pleno dia ao lugar. Legolas engoliu em seco e começou a notar os elfos que estavam na praça recolherem seus pertences. Um deles, que desenhava, apanhou rapidamente tripé e papéis e se adiantou para dentro de uma pequena porta, outros que tocavam seus instrumentos fizeram o mesmo. Ele custou alguns instantes para perceber o que estava para acontecer. Não. Não podia ser verdade.
"Vai chover." Ele ouviu a voz de Elrohir e uma brisa gelada balançou-lhe os cabelos. Voltou-se então para o gêmeo como se quisesse uma confirmação. Elladan e o irmão o olhavam com carinho, mas ainda tinham uma grande tristeza em seus semblantes. Logo o barulho de um grande trovão se ouviu e Elrohir teve que rir do ar surpreso que Legolas fez ao ver o raio cruzar o céu.
"Parece uma estrela cadente em pleno dia!" Ele disse impressionado. Vira apenas uma dessas estrelas certa vez, pelas frestas das árvores. Elrohir riu mais então e sacudiu a cabeça, olhando para o pai e para o irmão. Depois se voltou ao amigo, que girava em círculos pela praça com o rosto a desenhar toda a escuridão cinza que estava sobre sua cabeça. Um sorriso queria fugir-lhe dos lábios e suas feições já transmitiam outras sentimentos menos pesarosos.
"Venha cá, seu elfinho bobo." Ele então gritou, ao ver os primeiros pingos de água atingirem o solo. Mas Legolas estava extasiado, ele abrira os braços e fechara os olhos, sentindo a chuva molhar-lhe o rosto devagar, pingos pequenos no começo e outros um pouco mais fortes. "Saia daí! Vai se molhar todo!" O gêmeo repetiu, mas era inútil, a chuva caiu pesadamente sobre o jovem príncipe, que sequer se moveu de onde estava, ele apenas baixou os braços e fechou os olhos, sentindo todo aquele poder de mudança lavar sua alma.
"Ai, ada. Não deixe que nenhum raio caia na cabeça desse elfo maluco." Elrohir não conseguiu se conter e Elladan e o pai riram, satisfeitos pela benção das águas estar sendo capaz de levar um pouco das dores de todos.
Passaram-se alguns instantes, até que finalmente Legolas reergueu as pálpebras e olhou para os gêmeos, oferecendo um sorriso tímido que enterneceu profundamente os irmãos.
"Elfo bobo e ensopado." Provocou o gêmeo caçula novamente. "Pode vir aqui agora? Ou quer ir embora com a enxurrada?"
Legolas riu então, o mesmo riso doce que encantara os gêmeos quando ele era um elfinho. As dores ainda apertavam-lhe o peito, mas, depois do desabafo e da chuva, seu teimoso coração parecia querer buscar a cura mais uma vez. Sim. Era de fato um coração muito teimoso.
"Venha me buscar, Ro." Ele surpreendentemente provocou e o queixo de Elrohir caiu. "Será que tem coragem de molhar seu elegante robe?"
O gêmeo ainda ficou mais alguns instantes decifrando aquele olhar que recebia. Legolas já estava muito molhado e apertava os olhos para vê-lo, porém o sorriso ainda estava em seu semblante. Não era um sorriso de alegria profunda, mas era um sorriso de paz e, além de tudo, parecia ser um sorriso esperançoso. Ele então sorriu também, puxando os laços de seu robe.
"E não tenho mesmo. Molhar peça tão fina? Nem pensar!" Comunicou com um ar sarcástico, deixando a vestimenta cair no chão e ficando de calças e túnica. "Você vai se arrepender por ter me provocado. Sabe que sou um guerreiro cruel, elfinho. Não faz idéia do que vou fazer com você quando te pegar."
"Se me pegar." Legolas ainda provocou mais um pouco. "Não sou mais um elfinho. Sei correr e sou muito rápido."
Elrohir olhou com um ar maroto, depois se voltou para o irmão, que sorriu, entendendo bem o recado e puxando os laços de seu robe para deixar também que caísse onde estava. Em instantes Elrond começou a agradecer a Ilúvatar por seu povo sempre se guardar em dias de chuva. Caso contrário, veriam uma cena que jamais esqueceriam. A cena de três elfos adultos correndo e gritando pela praça, embaixo de uma chuva torrencial.
E riam... Como eles riam!
