Capítulo Um – Dimensão Paralela

A tarde chegava ao fim na cidade de Tomoeda. Sentado em um banco no parque, Shaoran podia ver os últimos raios de Sol se escondendo atrás das árvores. Esperava ansiosamente por Sakura. Fazia dois anos que tinham começado a namorar naquele mesmo lugar. Silenciosamente ele olhou para o alto e contemplou a imensa árvore de cerejeira, embaixo da qual tinha dado o primeiro beijo em Sakura. Milhares de lembranças encheram sua mente naquele momento. Lembranças de um tempo passado, de quando eles ainda corriam atrás de certas cartas. Shaoran deu graças a Deus por Clow ter criado as cartas, sem as quais nunca teria conhecido Sakura. Eram apenas crianças quando se encontraram pela primeira vez. Agora haviam crescido, amadurecido. Somente uma coisa continuava igual: o amor que um sentia pelo outro. Bem, a fixação de Tomoyo por Sakura também continuava igual; e as constantes discussões de Shaoran e Kero. Mas isso já era outra história...

Perdido em seus pensamentos, Shaoran mal notou quando Sakura se aproximou e sentou-se ao seu lado.

"Oi, Shaoran." cumprimentou Sakura alegremente. O rapaz pareceu despertar de um transe.

"Oi, amor." falou Shaoran, dando um beijo nos lábios de Sakura. "Faz muito tempo que você está aí?"

"Não." respondeu Sakura. "Acabei de chegar. E você, onde estava?"

Shaoran pareceu não entender a pergunta. Sakura sorriu.

"Você estava tão distraído quando cheguei que até parecia que estava em outra dimensão." falou a garota. Shaoran sorriu também.

"Estava me lembrando de algumas coisas." disse Shaoran.

"E posso saber que coisas eram essas?" indagou Sakura.

E Shaoran começou a falar de suas lembranças da época de Card Captor. Sobre como tinham se conhecido, sobre como ele tinha se apaixonado por ela. Logo, ambos estavam completamente absortos em uma divertida seção nostalgia.

"Lembro daquele dia em que ficamos presos no elevador, juntos." falou Shaoran. "Foi nesse dia que descobri que gostava de você."

"E eu nunca vou me esquecer do dia em que derrotamos Eriol." acrescentou Sakura. "Quando você confessou que me amava, eu fiquei completamente paralisada de surpresa."

Eles riram. Riram de como foram tolos e tímidos demais para confessarem seus sentimentos um para o outro.

O último raio de Sol emitiu seu brilho antes de se esconder completamente por trás dos edifícios da cidade. Sakura encostou sua cabeça no ombro de Shaoran e ambos ficaram lá, parados, apenas contemplando o dia que se ia e a Lua que aparecia, pequena e tímida, no céu. Foi Sakura quem quebrou o silêncio:

"O céu não é lindo?" perguntou a garota. "E ele parece não mudar nunca, não é mesmo? Parece que ele tem estado aí por toda a eternidade..."

Shaoran a abraçou, enquanto ouvia Sakura falar.

"E ele provavelmente vai continuar aí, imutável, até muito depois de nosso tempo... sem uma única mudança."

Ambos olharam novamente para o céu, e puderam ver a primeira estrela que aparecia naquela noite.

"Sabe Shaoran, às vezes eu lembro de tudo o que aconteceu e penso que tudo o que nós vivemos só vai servir para contar histórias aos netos, quando formos um casal de avós gorduchos..."

Shaoran a olhou seriamente. Sakura continuou:

"Quero dizer, dou graças a Deus por ter aberto o livro das Cartas. Sem elas não teria te conhecido. Mas para que serviu tudo isso afinal? Penso que tudo isso serão apenas memórias, e que com o tempo serão esquecidas."

Sakura se calou. Desta vez foi Shaoran quem falou.

"Essas memórias não precisam desaparecer se nós não quisermos. Afinal, são memórias maravilhosas. Eu nunca vou esquecer o tempo que corri atrás das cartas com você, Sakura."

Sakura sorriu.

"Tem razão, Shaoran." falou a garota. "Só depende de nós mantermos essas memórias vivas."

"Além do mais, a memória das pessoas é estranha, você não acha?" perguntou Shaoran. "Bem quando você pensa que se esqueceu de alguma coisa, ela volta, flutuando novamente para dentro de seu coração. Acho que elas estão sempre lá, só esperando pelo momento certo para reaparecerem."

Shaoran aproximou o rosto para beijar Sakura. Nesse momento, algo estranho aconteceu: a cerejeira começou a brilhar e emitiu um raio; um raio que atingiu Shaoran em cheio.

"Shaoran!!!" gritou Sakura. Foi a última coisa que ele ouviu antes de sentir seu corpo ficar leve e cair em direção ao nada. Tudo à sua volta começou a rodar e ele se sentiu extremamente cansado, até perder a consciência...

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Shaoran acordou com o canto de um pássaro. Estava deitado no banco do parque. Estranhamente, já havia amanhecido, e Sakura não estava mais ali. Shaoran pensou que ela devia ter ido chamar um médico, pois ficara preocupada com ele. Mas por que não voltara até momento? Ele esperou algum tempo, mas Sakura não voltou. Cansado de esperar, ele se levantou e começou a andar. Passou no hospital para ver se Sakura estava lá, mas não a encontrou. Decidiu ir até sua casa. Porém, sua intuição lhe dizia que algo estava errado, muito errado.

Rapidamente avistou a casa de Sakura. Seu irmão estava no jardim, aparando a grama.

"Bom dia, Touya." disse o jovem chinês um pouco relutante, dada a natureza de Touya em implicar com ele.

"Bom dia." respondeu Touya. "Posso lhe ajudar?"

"Bem, posso falar com a Sakura?" perguntou Shaoran, um pouco confuso. Desde quando o irmão de Sakura havia decidido tratá-lo com tanta cortesia?

"Ela não está." falou Touya. "Você é amigo dela, né? Bem, talvez você a encontre na casa da Tomoyo."

Shaoran estranhou o fato de Touya perguntar se ele era amigo de Sakura, mas agradeceu do mesmo jeito. Agora, mais que nunca, sua intuição apitava em seu ouvido lhe alertando de algo. Shaoran começou a caminhar rapidamente pela rua. Ao passar pelo parque do Rei Pingüim ele avistou Sakura sentada em um banco. Aproximou-se lentamente da garota.

"Sakura." chamou Shaoran. A garota se virou com seu habitual sorriso.

"Sim. Em que posso lhe ajudar?" perguntou. Então olhou com mais calma para ele. "Estranho. Você se parece muito com um menino que conheci."

"Um menino?" perguntou Shaoran, que àquela altura já sabia que aquela não era a Sakura que conhecia.

"Sim. Mas ele morreu há dois anos atrás." sua voz pareceu vacilar um pouco. Shaoran a encarou seriamente. Sakura novamente se espantou. "Até seu olhar é igual ao dele!"

"Posso saber o nome desse menino?" indagou Shaoran.

"Por que quer saber o nome dele?" perguntou Sakura. "Bem, acho que isso não importa. O nome dele era Shaoran. Sabe, eu meio que gostava dele. Às vezes penso o que teria acontecido conosco se ele ainda estivesse vivo; o que teríamos nos tornado."

Shaoran ouvia a tudo aquilo completamente espantado. Sakura estava lhe dizendo que ele estava morto. Ele novamente se virou para a garota:

"Mas mamãe sempre diz que não vale a pena ficar se lamentando por um amor perdido." falou Sakura com um olhar pensativo. "Ora, mas o que estou fazendo? Não sei por que me abri desse jeito com um estranho."

"Mas EU sou Shaoran!" falou ele rapidamente. Sakura o olhou espantada.

"Por que diz isso?" gritou a garota. "Shaoran está morto! Que tipo de pessoa é você para fazer esse tipo de brincadeira?"

Sakura se levantou e saiu correndo. Shaoran não soube o que dizer. Apenas se levantou e correu atrás da menina. Mas ao virar a esquina ele parou, completamente atônito com o que estava vendo. Lá estava Nadeshiko, entrando na casa de Sakura, mais viva que nunca. Shaoran observou cuidadosamente.

"Mamãe sempre diz que não vale a pena se lamentar por um amor perdido." ele se lembrou de ter ouvido Sakura falar algo assim. Mas a mãe de Sakura havia morrido há muitos anos atrás! Como isso era possível? Ele pensou se tudo podia ser um sonho, mas algo lhe dizia que não era. Que tudo era muito real.

Ele observou Sakura abraçar sua mãe e as duas entrarem em casa.

Shaoran piscou os olhos, sem poder acreditar no que tinha visto. A mãe de Sakura estava viva. E ele próprio, Shaoran, estava morto. Como poderia ser?

Shaoran andou durante muito tempo, tentando colocar as idéias no lugar e assimilar tudo que havia visto naquele dia. Nada mais fazia sentido para ele. Num momento estava sentando no banco do parque com Sakura. Agora estava morto, e ninguém mais o conhecia, nem mesmo sua querida Sakura. Shaoran estava confuso. Voltou ao Parque Pingüim, no mesmo lugar onde tinha estado antes de tudo acontecer. Já escurecia àquela hora, e ele continuava sem saber o que fazer. Exausto e abatido, o rapaz se sentou no banco embaixo da cerejeira. O mesmo banco onde havia estado com Sakura antes daquele pesadelo surrealista começar. A sensação de solidão tomava conta de sua mente e de seu coração. Nunca antes o sentimento de abandono havia sido tão grande. Shaoran não tinha ninguém. Estava sozinho em um lugar que ele não sabia qual era, mas que certamente não era seu mundo. Seus olhos cor de mel já não transmitiam mais segurança; estavam solitários, implorando por ajuda, ou pelo menos uma explicação para tudo aquilo.

Olhou para o céu e pôde ver a primeira estrela que aparecia naquela noite.

"Somos parecidos." pensou. "Estamos ambos sozinhos, perdidos em uma imensidão desconhecida."

Mas então se lembrou que em breve, muitas outras estrelas apareceriam para fazer companhia para aquele pequeno ponto de luz. Desconsolado, olhou demoradamente para a cerejeira acima de sua cabeça. Encarou-a, como se perguntasse:

"Por que fizeste isso comigo?"

Sem esperar por uma resposta, Shaoran encostou-se à grande e bela árvore. Estava tão cansado com tudo o que havia acontecido durante o dia que ali mesmo adormeceu. E quando adormeceu, sonhou...

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O Sol já se punha e Sakura corria junto com Shaoran. Logo atrás vinha Tomoyo, com sua inseparável filmadora na mão direita. Shaoran vestia seu habitual traje verde de batalha e carregava sua espada. Sakura trajava algo semelhante a vestes medievais de guerra: manoplas de ferro e uma vistosa cota de malha com uma bela e reluzente peça de armadura que se moldava perfeitamente a seu corpo. A saia era branca, e ela usava botas combinando. Em sua cabeça, havia algo que lembrava um elmo, mas que não escondia seu rosto por completo. Era provavelmente outra fantasia feita por Tomoyo.

Após alguns minutos de corrida, penetraram no bosque até uma clareira. Lá, parado, estava um senhor alto, de vestes negras. Usava um capuz que escondia seu rosto nas sombras por completo. O grupo parou diante daquela misteriosa e ameaçadora figura.

"Estive esperando por vocês, Caçadores de Cartas." falou o estranho quase num sussurro; sua voz se revelando grave e pesada como um trovão.

"E quem é você?" gritou Shaoran. "Por que nos guiou até esse lugar?"

"Me chamo Klaus von Karajan. Pelo que vejo, existe alguém aqui que é sucessor daquele que é conhecido como Lead Clow."

Sakura gemeu levemente e recuou um pouco. Klaus olhou para a garota e foi possível ver um brilho emitir de seus olhos. Shaoran não tinha certeza, mas quase podia jurar que o homem sorria.

"Então é você." falou o sacerdote. "Interessante! Gostaria de saber por que Clow escolheu uma menina fraca e emotiva para tomar seu lugar. Mas isso não vem ao caso agora. O que importa é que vim para levar as cartas criadas por Clow."

"As cartas são minhas!" gritou Sakura.

"Não obstante, vai entregá-las a mim." replicou Klaus, erguendo sua mão direita. Subitamente, das sombras das árvores, surgiu um imenso tentáculo feito de trevas sólidas. O tentáculo agarrou Sakura pelo pescoço e começou a estrangulá-la. Tomoyo gritou. Shaoran rapidamente desembainhou sua espada e investiu contra a criatura, aplicando-lhe um forte golpe. O tentáculo imediatamente soltou Sakura e investiu contra Shaoran. Mas antes que Sakura pudesse pensar em algo, as sombras das árvores agarraram sua sombra e a imobilizaram. Silenciosamente, Klaus se aproximou, até ficar cara a cara com Sakura. Lentamente, o manto de sombras que cobria seu rosto desapareceu e a garota pôde ver sua face. O homem parecia estar na casa dos quarenta. Tinha cabelos castanhos muito bem cortados e olhos negros como o ébano.

O bruxo sorriu e ergueu a mão direita, acariciando os cabelos de Sakura e tocando seu rosto levemente. Sakura virou a cabeça, completamente desgostosa. Klaus agora buscava pelo Livro, mas antes que pudesse pegá-lo, uma imensa rajada de fogo veio das profundezas do bosque. Instantaneamente o sacerdote saltou para trás, esquivando-se habilidosamente das chamas. Voando, surgiram Yue e Kero. Yue rapidamente voou e tentou acertar o bruxo. Mas tudo o que conseguiu foi ser arremessado de encontro às árvores, que enrolaram seus galhos em torno de seu corpo.

"Yue e Kerberus." falou Klaus lentamente. "Há quanto tempo não nos vemos."

"Klaus?!" falou Kero, parecendo extremamente surpreso. "O que diabos você está fazendo aqui?"

"Estou aqui para tomar algo de imenso poder." respondeu o bruxo sem emoção. "Estou aqui pelas cartas."

"As cartas?" gritou Kero. "As cartas são de Sakura. Ela é a Mestra por direito!"

Klaus apenas sorriu. Com um movimento de seus dedos, Kero foi envolvido em uma espécie de bolha de sombras e de lá não saiu.

"Agora..." começou o bruxo, mas não terminou, pois no instante seguinte sentiu algo extremamente afiado lhe cortar o rosto. O mago olhou para os lados, procurando seu agressor; os olhos faiscando puro ódio. Seu olhar recaiu sobre Shaoran, de espada em punho.

"Se tentar chegar perto dela eu acabo com você!" gritou o garoto. Mas Klaus não o estava escutando.

"Quem é você para tocar meu rosto?" rosnou o bruxo. "Vou lhe mostrar o que acontece com aqueles que ferem Klaus von Karajan!"

Klaus ergueu a mão direita e Shaoran sentiu seu corpo enrijecer. Não podia se mover. Lentamente o sacerdote ergueu o dedo indicador esquerdo e um fino raio disparou na direção de Shaoran, atravessando-lhe a cabeça.

"Nãããão!!!" gritou Sakura, desesperada. A garota viu o corpo de Shaoran cair inerte no chão frio do bosque. De todas as partes do mundo, as pessoas puderam ver uma estrela cadente riscar o céu e cair rumo ao nada, indicando que uma vida era perdida naquele momento.

Klaus já se preparava para atacar Sakura quando algo o imobilizou. Das árvores surgiu Eriol, seu báculo brilhando furiosamente. Logo atrás estavam Spinel Sun e Ruby Moon. Eriol não possuía a mesma expressão calma e bondosa de sempre. Estava sério. Seus olhos brilhavam e sua aura parecia invadir todo aquele lugar. E ele já não era mais Eriol, o doce e gentil rapaz que todos gostavam. Era agora a reencarnação de um dos mais poderosos Magos que já existiram na Terra, dono de imenso poder e majestade.

"Klaus." disse Eriol sem emoção. "Mais uma vez você vem, reclamar algo que não lhe pertence."

"As cartas serão minhas, Clow!" gritou o sacerdote. "Elas me darão poder! Poder para derrotar até mesmo você!"

"Sua ambição e sua sede por poder o deixaram cego." falou Eriol. "Não permitirei que arrisque vidas inocentes novamente. Meu erro foi tê-lo poupado no passado. Não o farei novamente agora."

A figura de Eriol pareceu crescer sobre a de Klaus. O sacerdote das trevas recuou, enquanto Eriol avançava lentamente. Com um simples movimento de seu báculo, Eriol fez o bruxo arder em chamas prateadas.

Desesperado, Klaus se debateu e rolou no chão, tentando por tudo se salvar. No entanto, logo não restava mais nada além de cinzas no solo; cinzas que logo foram sopradas pelo vento. Mas o mal já havia sido consumado. Shaoran jazia morto no centro da clareira. Lentamente Sakura se aproximou e ajoelhou junto ao corpo do menino.

"Shaoran!" chamou Sakura, sacudindo o corpo do garoto. Ela não queria acreditar que aquilo tinha acontecido, e que Shaoran tinha morrido. "Eriol, por favor, traga o Shaoran de volta!" pediu Sakura desconsoladamente. Eriol apenas abaixou a cabeça. Sua voz veio carregada de angústia e as palavras que Sakura ouviu a atingiram profundamente.

"Não posso." falou o garoto. "Está além do meu poder enfrentar a Morte. Me desculpe Sakura."

Sakura sentiu uma lágrima salgada escorrer sobre seu rosto e molhar seus lábios. Sua visão ficou totalmente desfocada por causa das lágrimas que brotavam de seus olhos. Eriol, Tomoyo e os Guardiões somente observavam aquela cena, sentindo pesar seus corações. Lentamente, Sakura abraçou o corpo de Shaoran, chorando desesperadamente pelo garoto...

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Shaoran acordou num sobressalto, ainda assustado com o que vira. Seu rosto estava todo molhado de suor. Sonhara com sua própria morte. Então provavelmente tinha sido assim que ele havia morrido naquele lugar, embora ele ainda não soubesse exatamente que lugar era aquele. Respirando fundo, ele afastou uma mecha de cabelo que lhe cobria os olhos. Sacudiu a cabeça com força, tentando afastar o fantasma daquele pesadelo obscuro.

Foi então que se deu conta de que não estava mais no parque, mas sim em um grande quarto, deitado em uma bela cama de lençóis de seda. O aposento era muito bem decorado, com uma pintura suave e cortinas combinando. Na parede oposta à cama, havia uma cômoda de mogno, talhada habilidosamente. Do teto, pendia um belo lustre de cristal. Havia um vaso de flores em cima da cômoda e uma pintura de um por do sol na parede acima da cabeceira da cama. Do lado esquerdo havia uma porta que levava ao banheiro. Não muito longe, na parede adjacente, outra porta levava ao corredor. Da janela podia-se ver um imenso jardim coberto de belas flores e pequenas árvores. O Sol nascia vagarosamente no horizonte, sendo recepcionado pelo canto dos pássaros que voavam e pousavam nos galhos das árvores.

Shaoran olhou à sua volta admirado. Foi então que, observando com mais cuidado, percebeu que aquele quarto não lhe era estranho e que já tinha estado nele antes, embora a decoração houvesse mudado. Levantou-se com cuidado, tentando não fazer muito barulho e apanhou sua espada de cima da cômoda. Lentamente abriu a porta, indo se deparar com um corredor bem conhecido, iluminado fracamente por algumas poucas luzes que pendiam do teto. Até mesmo durante o dia a iluminação daquele corredor era fraca. Cautelosamente o rapaz se pôs a caminhar pelo corredor. Percorreu aqueles poucos metros cuidadosamente, virando-se abruptamente sempre que escutava algum ruído. De quando em quando dava uma espiada dentro dos quartos para se certificar de que não havia ninguém por perto que pudesse surpreendê-lo. Não demorou muito para chegar a um grande e belo salão.

O aposento era confortável e acolhedor. Havia uma alta estante, também talhada em mogno, encostada na parede da direita. Estava carregada de grossos volumes, alguns deles facilmente reconhecíveis como tomos de magia. Shaoran pôde identificar alguns livros raros escritos pelo próprio Clow e que julgava estarem perdidos. Na parede oposta, restos de brasas queimavam na lareira. As tenazes estavam no chão, indicando que alguém havia estado ali há pouco tempo e que provavelmente iria voltar logo. No centro da sala, havia uma bonita poltrona de couro, uma poltrona que Shaoran conhecia bem. Encostado perto da janela havia um sofá azul marinho. As cortinas estavam fechadas, mergulhando o local numa suave penumbra.

Sem poder se conter, Shaoran entrou no aposento e caminhou até a estante. Admirou demoradamente os muitos livros nela contidos. Tomos raros como "O Necronomicon" estavam incluídos naquela invejável coleção.

Subitamente as luzes se acenderam. O jovem chinês virou-se rapidamente, buscando sua espada, mas se deteve ao ver quem era. Parado junto à porta estava Eriol. Nakuru se encontrava logo atrás dele. O rapaz inglês abriu um de seus misteriosos sorrisos ao ver Shaoran.

"Então você finalmente apareceu." falou Eriol, sentando-se em sua poltrona e fazendo um gesto para Shaoran se sentar também. O jovem aceitou o convite. Afinal, tinha algumas perguntas que queria que fossem respondidas, e ninguém melhor que Eriol para sanar todas as suas dúvidas.

Ambos os jovens se encararam. Por um momento ninguém falou nada e a sala mergulhou num profundo silêncio. Era como se estivessem estudando um ao outro, tentando se certificarem de que a pessoa que tinham à frente era realmente quem pensavam que devia ser. Foi Eriol quem quebrou o silêncio:

"Seja bem vindo à minha casa." falou o rapaz. "Espero que esteja melhor hoje. Nakuru o encontrou no parque, perto da cerejeira."

Shaoran olhou para o lado e Nakuru acenou, sorrindo alegremente. Shaoran percebeu que nem Eriol, nem Nakuru haviam mudado. Ambos continuavam, pelo menos aparentemente, os mesmos. Eriol continuava com seu habitual comportamento misterioso, e Nakuru continuava excêntrica. Enquanto o jovem chinês pensava, uma pequenina figura negra entrou voando pela porta. Spinel olhou para Eriol e Nakuru, e em seguida desviou o olhar para Shaoran.

"Então nosso hóspede já acordou." falou o pequeno, se dirigindo à estante e apanhando um dos livros de Eriol. "Teve um sono bem agitado, não é mesmo, rapaz? Estive te vigiando durante toda a noite. Espero que esteja melhor hoje. Não irei atrapalhar vocês. Sugiro que nos retiremos, Nakuru."

A garota assentiu. Lentamente, ambos saíram da sala, deixando Shaoran sozinho com Eriol.

Shaoran finalmente tomou coragem para falar. Encarou Eriol seriamente e perguntou:

"Você sabe quem eu sou?"

Eriol confirmou com a cabeça.

"Você é Shaoran Li, descendente direto de Clow." falou Eriol.

"E como você sabe disso?" indagou Shaoran. "Pois aqui todos acreditam que eu morri. Como você pode ter tanta certeza?"

"Bem, não se encontram muitas pessoas com o seu padrão de energia." respondeu Eriol sorrindo. "Além do mais, a energia não é o único modo de se reconhecer uma pessoa. Pude sentir sua angústia e tomei a liberdade de ler sua mente ontem, enquanto dormia."

Shaoran se remexeu na cadeira ao saber que Eriol tinha lido sua mente. Mas ficou mais tranqüilo ao saber que pelo menos alguém acreditava nele. Não sabia por que, mas Eriol lhe transmitia segurança, tranqüilidade. De alguma forma, algo lhe dizia que podia confiar em Eriol.

"Preciso de sua ajuda, Eriol." falou Shaoran.

"Farei o possível para ajudá-lo." respondeu o inglês, com seu habitual sorriso nos lábios. Shaoran também não conseguiu deixar de sorrir. Finalmente tinha conseguido socorro.

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Sakura estava pensativa. Acordara cedo aquele dia. Para falar a verdade, quase não tinha dormido na noite anterior. Ainda no escuro de seu quarto, revirava na cama, ajeitava a posição de seu travesseiro; pensava em um certo rapaz que vira no dia anterior, enquanto passava mais uma de suas tardes no Parque Pingüim. E como aquele rapaz era parecido com Shaoran! Os mesmos olhos expressivos e penetrantes, os mesmos cabelos rebeldes. Tudo naquele rapaz lembrava seu querido Shaoran.

Uma pequena lágrima escorreu pelo seu rosto ao pensar no garoto. Ela ainda se culpava um pouco pela morte do rapaz. Sua mente lhe dizia que era culpa dela, por não ser mais forte, por ter deixado Shaoran morrer daquele jeito. Em seu coração porém, sabia que não poderia ter feito nada.

"Por que ele se parece tanto com Shaoran?" pensava a garota consigo mesma. "Aqueles olhos, aquela expressão. Ah, Shaoran, meu querido! Por que você teve que me deixar? Se a menos eu tivesse percebido meus sentimentos por você mais cedo! Se eu tivesse lhe contado como eu me sinto. Mas agora é tarde. Você jamais ficará sabendo como eu te amo."

Kero percebeu que Sakura estava acordada e levantou-se, voando até a cama da garota. Percebeu então a pequena lágrima no rosto de sua dona.

"Sakura?" falou o pequeno Guardião. "Por que você esta chorando? O que aconteceu com você?"

"Não aconteceu nada, Kero. Não se preocupe." respondeu Sakura, forçando um sorriso amargo para o amigo.

"Está pensando nele, não está?" perguntou o pequeno ser.

"Nele quem Kero?"

"Em Shaoran. Ainda se culpa pela morte dele. Sabe que não foi sua culpa, Sakura! Você tem que aceitar o que aconteceu. Ninguém poderia impedir o que aconteceu. Era o Destino dele."

Sakura nada respondeu. Sabia que Kero tinha razão. Mas por que o Destino havia sido tão cruel com ela e com Shaoran? Isso ela não sabia. Talvez nunca fosse capaz de compreender completamente todas as peças que o Destino pregava nas pessoas.

Lentamente levantou-se e trocou de roupa. Ainda era cedo, mas não conseguiria dormir naquele dia. Desceu as escadas até a cozinha, onde sua mãe já preparava o café da manhã. Ao perceber que Sakura estava na cozinha, a Senhora Kinomoto se surpreendeu. Não era todo dia que sua filha levantava cedo da cama, principalmente num Domingo.

"O que aconteceu, filha? Por que acordou tão cedo?"

"Não foi nada, mãe." respondeu Sakura. Nadeshiko não deixou de notar uma ponta de tristeza em seu tom de voz.

"Minha querida." falou Nadeshiko com sua voz aveludada. "Sei que algo está te perturbando. Eu te conheço, minha filha. Não precisa esconder nada de mim. Pode me contar o que quer que seja."

"Obrigada, mamãe." agradeceu Sakura, sorrindo. "Mas não precisa se preocupar. Não é nada. De verdade."

Nadeshiko apenas se limitou a olhar a filha. Se Sakura não queria falar sobre o assunto, ou não estava preparada, ela tinha que respeitar. Mas desejou do fundo de sua alma que sua filha pudesse parar de sofrer.

"Tudo bem." falou a mulher. "Mas se você precisar, eu sempre estarei aqui para você. Eu te amo, minha filha."

"Eu também te amo, mamãe." falou a garota, abraçando sua mãe.

Escondido perto dali, Kero observava tudo com um olhar preocupado.

"Sakura, esqueça o moleque." pensou o pequeno Guardião. "Eu sei melhor que ninguém como é difícil perder alguém que se ama, mas a vida continua. Não importa em quantos pedaços seu coração tenha sido partido, a vida não pára para que você possa juntá-los todos novamente. Você não pode continuar assim para sempre. As pessoas aqui precisam de você. Elas te amam."

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Nakuru espiava discretamente pelo buraco da fechadura. Sua curiosidade era muito grande. Queria saber o que aquele garoto estava fazendo lá, queria saber o que estava acontecendo. Afinal, Shaoran estava morto não estava? Ela tinha visto o garoto morrer, tinha ido ao seu enterro. Então, como era possível?

"Você não muda, não é? Sempre espiando pelas frestas." falou uma voz, surpreendendo a garota. Era Spinel, e ele tinha um olhar de desaprovação.

"Não me assuste desse jeito!" disse Nakuru quase sussurrando. "Eu só quero saber o que acontece naquela sala. Os dois estão trancados lá dentro há mais de duas horas."

"Estão tratando de assuntos particulares, Nakuru. Não seja curiosa." censurou o pequeno.

"Não seja chato, Suppi." falou Nakuru. "Não estou fazendo nada demais."

"Somente ouvindo escondida a conversa de nosso mestre." falou Spinel.

"Eles nem estão falando nada." replicou Nakuru. "Está um silêncio sepulcral lá dentro. Eriol está sentado em sua escrivaninha."

Spinel não disse nada. Estava claro que reprovava a atitude da garota. Mas ele também estava intrigado. Também pensava que Shaoran estava morto.

"Não sei o que está acontecendo aqui." falou Nakuru. "Mas pretendo descobrir. Quero saber como aquele garoto voltou à vida depois de dois anos."

Spinel ficou pensativo por alguns instantes. Também queria saber o que estava acontecendo. Finalmente a curiosidade venceu e o Guardião também encostou o ouvido na porta, na tentativa de escutar algo.

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Sentado em sua mesa, Eriol olhava seus livros, folheando página por página cautelosamente. Dezenas de volumes estavam espalhados sobre a mesa, muitos deles com suas velhas e amareladas páginas já quase se desfazendo.

Sentado num canto da sala, Shaoran nada podia fazer senão esperar. Ele olhava pacientemente o rapaz inglês procurando por algo em seus livros. Mas já havia se passado uma hora desde que ele começara aquela pesquisa e até agora não havia encontrado absolutamente nada.

"Sakura, meu amor." pensou Shaoran. "Sinto sua falta."

Como um turbilhão, dezenas de lembranças invadiram a mente de Shaoran, mas uma em especial despertou seus sentimentos. Lembrou-se de dois anos antes, quando voltara de Hong Kong e reencontrara Sakura.

A aula havia terminado no Colégio Tomoeda, e Sakura arrumava seu material para poder ir para casa. Caminhou até a porta, mas uma voz a deteve:

"Sakura." chamou Shaoran. A garota se virou com seu habitual sorriso. O rapaz corou ao ver o sorriso da garota, mas logo se recobrou. "Será que posso falar com você?"

"Claro." respondeu Sakura.

"Bem, podemos ir até o parque do Rei Pingüim? Lá poderemos conversar com mais tranqüilidade."

"Tudo bem." falou a garota parecendo um pouco nervosa.

Caminharam em silêncio até o parque, onde se sentaram no banco em baixo da cerejeira. Por um momento, nenhum dos dois falou nada, até que Sakura tomou coragem:

"Bem..." gaguejou a garota. "Que bom que você voltou. Senti saudades."

Shaoran sentiu o rosto corar.

"Eu também...senti sua falta." falou o rapaz. Foi a vez de Sakura ficar com o rosto vermelho. Olharam-se brevemente e tornaram a abaixar a cabeça. Novamente silêncio.

Não muito longe, uma pessoa assistia a tudo sorrindo. De câmera na mão, Tomoyo se divertia vendo a dificuldade do casal em manter um diálogo.

"Vamos pessoal." pensava. "Eu sei que vocês conseguem. Shaoran, fala pra ela que você ainda a ama! Sakura, diz para o Shaoran o quanto ele significa para você! Vamos gente!"

Os dois ainda continuavam calados. Após trocarem algumas palavras, o silêncio novamente havia se instalado. Shaoran sabia que não podia continuar daquele jeito. Por isso encheu-se de coragem e finalmente quebrou o silêncio.

"Sakura, pensei muito em você durante todos esses anos que estive em Hong Kong. Senti muito sua falta, sabe?"

Sakura apenas ouvia tudo de cabeça baixa. Não conseguia encarar Shaoran. Limitava-se a escutar o que o rapaz dizia.

"Você significa muito para mim, Sakura. E... eu ainda te amo muito. Gostaria de saber se você ainda gosta de mim também."

Atrás da árvore, Tomoyo sorriu. Estava feliz pela atitude do amigo, mas ao mesmo tempo estava surpresa. Nunca pensara que Shaoran pudesse ser tão direto com Sakura para falar sobre seus sentimentos. Mas ele tinha conseguido e era isso que importava.

Sakura ainda estava calada e de cabeça baixa. Tinha se surpreendido com a pergunta feita por Shaoran. Durante alguns segundos, nada falou, até que finalmente disse com a voz trêmula e sem levantar o olhar do chão:

"S-sim. Eu ainda gosto de você, Shaoran. Eu... eu te amo muito."

Tomoyo teve que se controlar para não gritar de felicidade. Finalmente Sakura havia dito as palavras mágicas. Tomoyo ainda se recobrou a tempo de filmar Shaoran se aproximar de Sakura e levantar o rosto da garota com as mãos. Lentamente, o rapaz aproximou seu rosto do de Sakura, até capturá-la em um beijo doce e cheio de ternura. Shaoran nunca havia imaginado que os lábios de Sakura fossem tão macios e delicados, nem Sakura havia imaginado que os lábios de Shaoran fossem tão quentes e acolhedores. O casal se entregou àquele prazeroso momento e, por um instante, se esqueceram de tudo à sua volta.

Quando finalmente se separaram, Sakura viu que Shaoran sorria para ela. Nunca antes havia visto o rapaz sorrir daquele jeito. E que sorriso lindo ele tinha!

Ali perto, Tomoyo desligara a câmera e se pusera a caminhar de volta para sua casa. Não ficaria lá para filmar ou atrapalhar o casal. Sabia que precisavam de privacidade.

Sakura e Shaoran nunca souberam daquela fita. Tomoyo nunca lhes contou que gravara a cena de sua declaração. Seria melhor assim.

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Subitamente, o rapaz foi puxado de volta à realidade. Eriol chamava seu nome insistentemente. Shaoran olhou Eriol com uma expressão de surpresa. Não sabia quanto tempo ficara imerso em suas lembranças, nem quanto tempo Eriol o estivera chamando. Observando a expressão no rosto de Shaoran, o inglês sorriu.

"Está pensativo hoje, meu amigo." falou Eriol. "Lamento ter que trazê-lo para a realidade, mas acho que encontrei uma possível resposta para sua pergunta."

"E qual é?" perguntou Shaoran, esperançoso.

"Você foi transportado para uma dimensão paralela à sua dimensão verdadeira."

"Só isso?" perguntou Shaoran, incrédulo. "Bem, isso não ajuda muito, não é? Que eu não estou na minha dimensão verdadeira eu sei. O que quero saber é como faço para poder voltar para a minha realidade."

"Tenha calma." replicou Eriol. "Não é tão simples assim. Você foi trazido para esta dimensão por algum motivo."

"Algum motivo?" perguntou Shaoran, curioso.

"Sim, por algum motivo. A malha que separa as realidades não pode ser rompida assim tão facilmente. Alguma coisa aconteceu para que o véu que separa as dimensões pudesse ser rasgado." explicou Eriol.

Shaoran agora o observava com uma expressão curiosa. Então ele estava ali por algum motivo. Mas que motivo seria esse? O rapaz não conseguia imaginar um motivo forte o suficiente para trazê-lo àquela dimensão. Shaoran perguntou sobre as razões pela qual ele havia sido transportado para aquela realidade:

"Confesso que também estou confuso." falou Eriol. "Não consigo imaginar o que o traria a este lugar."

Ambos se calaram, tentando pensar em um motivo plausível que pudesse rasgar o véu das realidades e transportar Shaoran de uma dimensão para outra.

Do lado de fora, ainda com os ouvidos encostados na porta, Nakuru e Spinel começavam e entender porquê o rapaz que pensavam estar morto estava ali, vivo e lúcido. Ele não pertencia àquela dimensão.

Nakuru resmungou algo como "Eu sabia o tempo todo." enquanto Spinel tentava lembrar onde antes já havia lido algo sobre dimensões paralelas.

Dentro da sala, nem Eriol nem Shaoran tinham conseguido pensar em um motivo.

"Não vamos sair do lugar desse jeito." falou Eriol. "Vou convocar uma reunião do Supremo Conselho de Magos. Talvez o Conselho possa solucionar o caso. Sozinho não vou conseguir fazer nada. É possível também que você tenha que fazer uma visita aos Sábios."

Shaoran não estava entendendo nada. Conselho? Sábios? O que era tudo aquilo afinal?

"O Conselho reúne os bruxos e bruxas mais poderosos desse mundo." explicou Eriol. "Eu faço parte do Conselho como o Guardião do Sol. Os demais representam a água, a luz, as sombras, a terra, o fogo, o ar e a lua. Na verdade, quando chegar a hora certa, Sakura será convidada a integrar o Conselho como a Guardiã da Estrela. Só então o Conselho estará completo."

Shaoran ouvia a tudo aquilo calado. Não era inesperado que Eriol fosse membro do tal conselho, mas ele não imaginava que Sakura fosse tão poderosa assim a ponto de poder integrar um conselho de magia. E Shaoran admirou Sakura profundamente por isso.

"Já os Sábios são entidades místicas milenares." continuou Eriol. "São dotados de extrema sabedoria e conhecimentos sobre quase tudo. Normalmente ele podem responder qualquer pergunta, mas é difícil ter acesso a eles. Os Sábios não atendem qualquer assunto banal. Eles escolhem rigidamente quem pode ou não ter suas perguntas respondidas."

"Entendo." disse Shaoran. "Então teremos que ver o Conselho, não é? Bem, e o que estamos esperando?"

"Calma, Shaoran." falou Eriol, sorrindo. "Tenho que preparar algumas coisas antes. Preciso avisar todo o Conselho, apanhar alguns livros, avisar Spinel Sun e Ruby Moon e fazer outras coisas mais que só dizem respeito à minha pessoa. Partiremos assim que tudo estiver resolvido. Vou demorar algumas horas. Nesse meio tempo, sugiro que dê uma volta pela cidade para pensar e se acalmar."

Shaoran concordou. Na verdade, era obrigado a concordar; não tinha outra escolha. Levantou-se e caminhou até a porta. Antes de sair porém, virou-se novamente para Eriol e disse:

"Obrigado."

O inglês limitou-se a dar um pequeno sorriso. Mas assim que Shaoran saiu da sala, Eriol pensou consigo mesmo:

"Não me agradeça ainda, Shaoran. Talvez sua estadia aqui esteja apenas começando."

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Tomoyo voltava para casa depois de passar na livraria e comprar alguns livros sobre design de moda. Passara também na doceria e comprara um grande bolo de morangos. Planejava convidar Sakura e Kero para comer bolo aquela tarde em sua casa. Carregada de pacotes, não viu quando uma pessoa dobrou a esquina, indo colidir diretamente com ela.

"Desculpe." falou a garota, apressando-se em recolher os pacotes e sem ao menos olhar para Shaoran.

"Não tem problema." falou o rapaz, ajudando Tomoyo a recolher suas coisas. "Eu também devia ter prestado mais atenção."

Juntaram todos os pacotes rapidamente, sem ao menos olharem um para o outro. Quando terminaram, Tomoyo agradeceu pela gentileza do rapaz em lhe ajudar. Foi então que olhou o garoto cara a cara, e sua expressão de surpresa não poderia ser menor.

"Meu Deus!" exclamou Tomoyo. "Shaoran!"

"Como?" perguntou o jovem, espantado com o que ouvira.

"Você é Shaoran Li, não é? Mas isso é impossível! Você morreu há dois anos! Eu vi!"

"Como você sabe que sou Shaoran?" indagou o jovem chinês.

"Ora, não há o que confundir, Shaoran!" falou Tomoyo, ainda surpresa. "Seu olhar, seus cabelos rebeldes, seu jeito de falar. Não há dúvidas de que estou falando com Shaoran Li. Mas, como isso é possível? Eu não tenho poderes mágicos, não posso ver espíritos."

"Será que podemos conversar, Tomoyo?" perguntou Shaoran. A garota ainda tinha a mesmo expressão de surpresa. Mesmo estando um pouco confusa e assustada com a situação, ela aceitou.

"Tudo bem." disse a garota. "Eu ia convidar Sakura e Kero para comerem um bolo comigo, mas acho que isso pode esperar. Vamos para minha casa e lá poderemos conversar com mais tranqüilidade e privacidade."

Caminharam vagarosamente pela rua, nenhum dos dois se atrevendo a dizer uma palavra sequer. Atravessaram lentamente o parque do Rei Pingüim, viraram para a direita e, após percorrerem uma larga alameda, chegaram a uma bifurcação. Shaoran conhecia aquela bifurcação: o caminho da direita lavava à casa de Tomoyo. O caminho da esquerda conduzia diretamente à casa de Sakura. O rapaz parou diante da bifurcação. Tantas vezes havia tomado o caminho da esquerda. Tantas vezes tinha visitado Sakura em sua casa. Mas tudo naquele momento parecia fazer parte de um passado longínquo, como se tudo fosse apenas uma mera lembrança; uma lembrança vivida não por ele, mas por um outro Shaoran, mais forte, seguro e feliz. Finalmente virou-se e seguiu o caminho da direita, onde Tomoyo o esperava, olhando-o com a mesma expressão confusa de quando haviam se esbarrado, há alguns minutos atrás.

Após algum tempo de caminhada, finalmente chegaram à casa de Tomoyo: uma bela e luxuosa mansão, com um imenso e muito bem cuidado jardim. O imenso portão abriu assim que Tomoyo se aproximou.

"Entre." falou a garota. "É melhor irmos para o meu quarto. Lá poderemos conversar sem que ninguém nos atrapalhe."

Shaoran acenou positivamente com a cabeça. Cruzaram o jardim, passaram pela fonte e entraram na grande mansão. Atravessaram o imenso hall de entrada até chegarem às escadas. Shaoran olhava os muitos quadros pendurados nas paredes, muitos deles de artistas famosos. Ele imaginava qual era o valor daquelas obras. Subiram as escadas e caminharam pelo corredor em direção ao quarto de Tomoyo.

"Sente-se." falou a garota assim que entraram em seu quarto, indicando uma poltrona perto da janela. Shaoran agradeceu e se sentou. Tomoyo também se sentou. Estava de frente para Shaoran. O olhar dos dois se cruzou, mas ninguém falou nada. Na verdade, não sabiam o que dizer um ao outro.

Shaoran ficou observando o quarto da garota, e seu olhar recaiu sobre uma fotografia que estava sobre o criado mudo de Tomoyo. Lá estavam os três amigos: Sakura, Shaoran e Tomoyo, tendo ao fundo um imenso parque de diversões. Shaoran sorria junto de Sakura, que usava um vestido azul. Shaoran sempre gostara daquele vestido. Achava que Sakura ficava muito linda quando o usava. Por fim, Tomoyo finalmente tomou coragem:

"Como?" perguntou a garota, respirando fundo.

"Bem..." disse Shaoran. "Creio que será uma longa história. Está mesmo disposta a ouvir tudo?"

"Tenho todo tempo do mundo." respondeu a garota. "Sou toda ouvidos."

E Shaoran começou a contar sobre como havia chegado àquele lugar, sobre seu encontro com Sakura, sobre como ela gritara com ele. Tomoyo era uma boa ouvinte. Escutava tudo com calma e atenção.

Shaoran terminava de relatar o sonho que teve sobre sua morte quando alguém bateu na porta.

"Entre!" disse Tomoyo. A porta se abriu e uma das criadas entrou.

"Trouxe chá e doces, senhorita." falou a mulher.

"Obrigada, Noaki." agradeceu Tomoyo. A criada sorriu e saiu, fechando a porta e deixando os dois novamente sozinhos.

Tomoyo serviu o chá. Shaoran nada falou durante esse meio tempo.

"É verdade." disse Tomoyo enquanto colocava açúcar no chá. "Realmente foi assim que você morreu. Foi um dia difícil, principalmente para Sakura. Pobre Sakura." a voz de Tomoyo vacilou, e ela se calou.

"Depois do sonho, encontrei Eriol." continuou o jovem chinês, tomando um gole de chá. Shaoran não pôde deixar de notar que Tomoyo enrubescera ao ouvir o nome de Eriol. Sorrindo, o rapaz novamente se pôs a falar. "Ele se ofereceu para me ajudar a encontrar um modo de voltar à minha verdadeira dimensão..."

Shaoran continuou contando tudo o que acontecera nos últimos dois dias para Tomoyo. Ao final do relato, a expressão confusa e amedrontada do rosto da jovem havia desaparecido. Em seu lugar, um singelo sorriso. Pela primeira vez, Shaoran notou o quanto Tomoyo era bonita.

"Não tão bonita quanto Sakura." ele pensou. "Mas ela é realmente uma garota muito bonita."

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Eriol estava em um dos quartos da mansão, guardando alguns livros em uma prateleira. Era um belo aposento, porém completamente diferente do quarto que abrigara Shaoran. Havia uma bola de cristal sobre algo que se assemelhava a um altar. Junto da bola, havia um braseiro, um cálice de ouro puro e uma bela e vistosa adaga. Havia algumas prateleiras com livros e um armário com alguns objetos exóticos como um jarro de bronze, uma harpa e um saquinho de veludo contendo salitre. A iluminação era mais fraca que nos demais aposentos, sendo quase que somente feita com velas. Pendurada na parede logo acima do altar estava uma bonita espada.

Eriol terminou de arrumar os livros em seus respectivos lugares e já caminhava para a porta quando subitamente, uma voz o chamou:

"Pediste para ver-me, Clow?" perguntou a voz. Era uma voz imperiosa e firme, mas ao mesmo tempo suave e serena. Eriol sabia de quem era aquela voz. Lentamente o jovem caminhou até o espelho pendurado em sua parede.

"Olá, Magno." cumprimentou Eriol, sorrindo para o espelho que não mostrava seu reflexo, mas sim o rosto de um homem; um rosto que flutuava em meio a uma névoa densa. Era um belo rosto, de fato. Possuía olhos negros muito expressivos e cabelos igualmente negros presos em um rabo de cavalo. Seus traços eram leves, suaves. Eriol continuou. "Sim, eu queria te ver. Preciso que o Conselho novamente se reuna. Aconteceu um fato incomum que, creio eu, será do interesse de todos."

"Me seria permitido saber que fato é esse?" perguntou Magno com um brilho nos olhos. "Pois para ser considerado incomum por ti, Clow, é porque realmente é algo interessante."

Eriol sorriu.

"Trata-se de um deslocamento no espaço-tempo. A malha das realidades foi rasgada. Um jovem, Shaoran Li é seu nome, foi transportado para cá. Nesta dimensão, contudo, ele está morto. O meu pedido, é que o Conselho examine a situação e o ajude a retornar para sua realidade, descobrindo o motivo pelo qual ele foi trazido para essa dimensão e qual sua missão aqui."

"Shaoran é um descendente direto de Clow. Ele está assustado e confuso com a situação. O rapaz nunca passou por nada assim. E mais ainda, sente falta da parceira, Sakura Kinomoto."

O rosto de Magno se iluminou ao ouvir o nome de Sakura.

"Então esse rapaz sobre o qual tu te referes é parceiro de nossa futura Guardiã da Estrela! Fascinante!" exclamou o Mago. "Estranho é o Destino, Clow. Estranho e imprevisível! Eu jamais poderia imaginar que algo desta magnitude pudesse acontecer. Tua requisição foste aceita. Convocarei o Conselho. Esperaremos por ti e pelo rapaz na próxima Lua Cheia. Venha assim que a primeira estrela do céu emitir seu brilho. E traga também a menina Sakura. Alguma coisa me diz que ela também tem algo a ver com isso tudo."

"Obrigado, Magno." agradeceu Eriol. "Eu te enviei uma mensagem através de Ignen, o Sagrado Espírito do Fogo, onde constam todos os detalhes que precisas saber sobre o ocorrido. Ele deve chegar a qualquer momento."

"De fato, chegou neste exato momento." falou Magno. "Devo despedir-me agora, velho amigo. Devo ler teu pergaminho e convocar o resto de nós. E isso é tarefa para algumas horas, creio eu. Até, Clow."

Disse isso e sumiu. Eriol continuava parado na frente do espelho, que agora mostrava seu reflexo e do aposento ao seu redor.

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Já era noite quando Shaoran retornou à casa de Eriol. Tomoyo estava com ele. Havia feito questão de acompanhá-lo até a casa do jovem inglês.

"Já é tarde." disse ela. "É mais seguro do que andar sozinho."

Shaoran passara a tarde toda conversando com Tomoyo e pedindo para a amiga lhe falar de Sakura.

"Ela nunca mais foi a mesma depois que você morreu, Shaoran."

Era isso que Tomoyo havia lhe dito. A garota contara que Sakura havia perdido muito do ânimo e da alegria após o acidente, e isso lhe partia o coração.

"Sakura, meu amor." pensou o rapaz.

Subitamente, eles começaram a ouvir uma suave música tocada com habilidade no piano. Shaoran não teve dúvidas de que era Eriol quem estava tocando. Tomoyo havia fechado os olhos.

"Chopin." murmurou a garota, sorrindo. "Opus 72, Noturno nº1 em Mi Menor. Eriol é mesmo um excelente pianista."

Os dois adentraram o salão onde Eriol tocava e se sentaram no sofá perto do piano. O jovem inglês não pareceu notar que os dois amigos haviam entrado na sala; ou se havia, não lhes deu atenção. Ouviram a bela melodia, deliciados com a sensação de calma que ela carregava. A sucessão das notas acalmava o espírito de todos presentes na sala. Shaoran ouvia aquela música maravilhado. Nota após nota, ele sentia sua alma se tranqüilizando.

Finalmente a música terminou e Eriol parou de tocar, virando-se para os dois amigos. Tomoyo lançou-lhe um discreto sorriso, que Eriol rapidamente retribuiu.

"Você sempre foi um excelente músico, Eriol." disse Tomoyo.

"Creio que são os conhecimentos acumulados de duas vidas." falou Eriol sorrindo. "E eu tocaria com mais prazer ainda se pudesse ter o privilégio de ouvir sua voz cantando junto com meu piano."

Tomoyo sorriu. Levantou-se e caminhou lentamente até Eriol. Tomou seu lugar ao lado do piano e trocou um olhar com o jovem inglês. Shaoran continuava calado, apenas observando tudo. Eriol levantou as mãos e começou a tocar. Logo em seguida, Shaoran ouviu a privilegiada voz de Tomoyo cantar:

É Primavera, e mil flores brotam pelos campos afora
E eu relembro das cantigas e histórias de outrora.
Quando o Vento delicado parecia a terra acalentar
E eu sentia mãos suaves para sempre a me embalar.
Ouço ao longe, um suave e doce canto
Pássaros voam, pousando no verde manto.
E alegres risos posso então contemplar,
E ver canários que voam livres pelo ar.
Sentado, um pastor assiste ao entardecer
A noite cai e ele finalmente pode adormecer.
O Vento sopra e vem as folhas de leve farfalhar
E eu penso como é lindo, como é belo este lugar.

Shaoran fechou os olhos e deixou que a bela voz de Tomoyo, somada à suave melodia do piano, o carregasse para longe.

Moscas e varejeiras voam soltas pelo ar
Anunciam o Verão que acaba de chegar.
Os vastos campos outrora em flor
Sentem o fogo e seu calor.
Gritam os Céus e a terra fazem estremecer
Violentos trovões e raios de súbito a aparecer.
E vem a tempestade, fulminando o vasto campo
Choram os Céus e derramam todo seu encanto.
Vão-se as nuvens e a tempestade logo cessa
Outro dia, outra hora, e tudo recomeça.
E o Cara Amarela se põe novamente a brilhar
E moscas e varejeiras voam soltas pelo ar.
Festejam os aldeões, festeja a Grande Mãe Natureza
Chega o Outono e derrama toda sua beleza.
A festa por muitas noites irá se prolongar
Cânticos serão ouvidos e dançaremos à luz do luar.
Colher os frutos bem maduros nós iremos
E com banquetes a colheita nós celebraremos.
Mas cedo ou tarde, o encanto some e a música pára
E caem as folhas, todas secas sob a luz clara.
E o mel da colmeia logo pára de pingar
E as árvores já são secas no campo e no pomar.
Deita a Lua e faz o mundo escurecer
Faz o bravo homem em silêncio adormecer.

Subitamente, a melodia ficou pesada e sombria:

Sopram forte os Ventos vindos do Norte
Sinto o Inverno e o cheiro amargo da Morte.
O Gelo Glacial, a paisagem logo domina
E a neve cai sobre a longínqua e alta colina.
E o dia é sempre escuro e a noite é sempre fria
Contemplo da janela uma imensidão vazia.
Solidão em cada esquina, solidão em cada porta,
Solidão em cada canto e tanta natureza morta.
Procuro em desespero lábios que possam então,
Aquecer o meu corpo e o meu coração.
E sinto o abraço forte de alguém a me proteger
Segura e em paz posso finalmente adormecer.

Novamente a melodia ficou leve e suave:

O Inverno finalmente foi-se embora
Sinto suaves mãos a me acariciar,
Brotam flores pelos campos afora
E um doce beijo vem me despertar.
A relva cresce macia agora
E o canário volta a cantar.
E como disseram uma vez, outrora,
Tudo vai recomeçar.

Tomoyo terminou de cantar e a melodia do piano cessou. Tomoyo e Eriol se olharam, sorrindo um para o outro. Eriol se levantou e ficou frente a frente com Tomoyo. A garota enrubescera ao cruzar seu olhar com o do jovem inglês. Sem hesitar, Eriol enlaçou Tomoyo pela cintura e aproximou seu rosto do rosto da garota, dando-lhe um suave beijo. Tomoyo lentamente fechou os olhos e se deixou levar pelo calor daquele beijo. Ela sonhara tanto com aqueles lábios.

Há alguns poucos metros de distância, Shaoran assistia ao belo casal com um leve sorriso nos lábios. Realmente, Tomoyo e Eriol formavam um belo par. Exatamente como ele e Sakura. Sakura... novamente seus pensamentos se voltavam a ela. Queria poder beijá-la novamente, abraçá-la, sentir seu perfume e seu calor. Mas subitamente, algo desviou seus pensamentos. Nakuru havia entrado no salão e soltado um agudo grito.

"Finalmente!" gritou a moça, segurando Spinel em uma das mãos e com um grande sorriso estampado no rosto. "Estava esperando vocês dois se acertarem há eras! Isso certamente merece uma comemoração!"

Tomoyo corara furiosamente e escondera o rosto nas mãos. Eriol estava visivelmente encabulado, fato que Shaoran achou extremamente interessante. Afinal, não era todo dia que se via Eriol encabulado ou envergonhado com algo. E a visão, além de singular, era um tanto quanto cômica, Shaoran tinha que admitir. O rapaz sorriu para si mesmo e voltou a se sentar no sofá. Nakuru saiu do salão, murmurando algo como uma grande festa.

"Nakuru realmente pode ser um problema de vez em quando." falou Eriol, abraçando Tomoyo. "Mas sabe? De certa forma ela tem razão. Eu deveria ter feito isso há muito tempo atrás, Tomoyo, quando eu descobri que tinha me apaixonado por você."

"Ah, Eriol, meu amor! Eu sonhei tanto com um momento como este! Eu te amo tanto!" falou Tomoyo sorrindo.

"Eu também te amo." foi tudo o que Eriol respondeu.

Tomoyo sorriu e se entregou ao abraço de Eriol. Atrás deles, a porta do salão se fechara. Shaoran saíra do aposento, deixando os dois amigos terem um pouco de privacidade.

____________________

Shaoran fechara a porta e já se punha a caminhar pelo corredor em direção ao quarto quando uma voz o deteve. Nakuru o observava, ainda carregando Spinel no colo.

"Está se sentindo bem?" perguntou Nakuru.

"Sim." respondeu Shaoran.

"Sente-se um pouco perdido, não é mesmo?"

"Um pouco." disse o rapaz. "Bastante, na verdade. É estranho pensar que eu estou morto e tudo mais. É estranho pensar que tudo isso está mesmo acontecendo. Sabe, eu sempre fui independente, seguro de mim mesmo. Eu sempre tinha uma solução para tudo. Mas agora..." sua voz vacilou. "Agora tudo é diferente, e eu estou perdido em um lugar que, embora pareça familiar, é um lugar estranho."

"Sabe, sinto falta do meu mundo. Sinto falta da minha casa. Mas acima de tudo sinto falta da Sakura. Sinto falta do riso dela, da alegria dela. Sinto falta do toque de suas mãos."

"Sakura sempre dizia que tudo daria certo não importavam os problemas e obstáculos que apareciam no meio do caminho para nos atrapalhar. Ela sempre dizia que no final tudo ficaria bem. Agora, mais do que nunca, eu quero acreditar nisso."

Nakuru sorriu e se aproximou do rapaz.

"Não tenha medo." falou a bela moça, pondo a mão sobre o ombro de Shaoran. O rapaz sentiu uma forte energia exalando de Nakuru: era o poder de Ruby Moon. "Eu sei que tudo vai dar certo. Agora é o momento de confiar nas palavras de Sakura. Tenha fé. Eriol vai te ajudar, eu sei disso. E ele é o melhor. Antes que você perceba, tudo estará acabado. É melhor você ir descansar agora. Afinal, você é nosso hóspede. Descanse e relaxe um pouco. Tudo vai ficar bem."

Spinel concordou. Shaoran sorriu e agradeceu. Realmente, Nakuru podia ser uma pessoa bastante sensata quando queria. Despediram-se e cada um tomou seu caminho. Shaoran foi para a esquerda, em direção ao quarto de hóspedes. Nakuru virou para a direita na direção da sala de jantar. Enquanto se afastava, Shaoran pôde ouvir a voz de Nakuru, novamente excitada, falar:

"Agora preciso preparar uma festa para um certo casal de pombinhos!"

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Já era tarde, e todos na casa da família Kinomoto se preparavam para dormir. Em seu quarto, Sakura se trocava enquanto conversava com Kero.

"Então foi por isso que você tem estado estranha nos últimos dois dias? Por causa do encontro com essa pessoa?"

Sakura balançou a cabeça em sinal afirmativo.

"Ele era tão parecido com o Shaoran, Kero."

"Entendo." falou o pequeno Guardião. "Agora entendo o motivo de sua súbita queda de humor. A visão dessa pessoa trouxe de volta muitas lembranças, não é? Lembranças boas. Mas também lembranças ruins."

Sakura confirmou novamente, abaixando a cabeça. Kero aproximou-se voando de sua dona e, já em sua forma original, estendeu a pata e abraçou a garota.

"Shaoran não ia querer que você vivesse no passado, Sakura." falou o Guardião. "Eu sei que você o amava muito, mas você não pode se esquecer que ainda tem uma vida aqui, e que muitas pessoas te amam muito. Pense em sua mãe, em seu irmão e em Tomoyo. Pense em seu pai, e em todos os seus amigos. Será que eles realmente querem que você passe o resto de seus dias se lamentando e se esqueça de viver? Eu acho que não. Eles não gostam de te ver triste, Sakura. Eu não gosto de te ver triste. Me parte o coração ter ver chorar. E sabe por que, Sakura? Por que eu também te amo. Você é minha dona, minha mestra. Mas muito mais que isso, você é minha amiga. Você é como se fosse uma irmã para mim, e eu não quero que você fique assim tão triste."

Sakura olhou para Kero e fitou-o profundamente. Ele tinha razão. Ela não podia ficar chorando pelo resto dos seus dias. Ela ainda tinha tanta coisa a fazer, tanto a viver. Seu amor por Shaoran era grande, mas ela tinha que seguir em frente.

"Não te peço que esqueça dele, Sakura." falou Kero. "Mas quando se lembrar do rapaz, lembre-se dos momentos felizes que você teve junto a ele. Lembre-se de todos os bons momentos que vocês compartilharam, lembre-se de todas as experiências que trocaram. E quando sentir saudades dele, olhe para dentro do seu coração, pois ele sempre viverá lá."

Sakura sorriu para Kero. Uma pequena lágrima escorreu pelo seu rosto, indo salgar-lhe os lábios.

"Obrigada, Kero." falou a garota. "Muito obrigada. Eu também te amo. E agradeço por ter alguém tão bom como você perto de mim."

Eles ainda permaneceram abraçados por mais alguns minutos. Quando finalmente se separaram, Sakura sorriu para Kero. Era um sorriso de gratidão. Um sorriso que o Guardião ainda se lembraria por muito tempo. A garota deitou-se na cama e fechou os olhos. Em pouco tempo tinha adormecido. E aquela noite aparentava ser muito tranqüila. A primeira depois de muito tempo. Kero lançou um olhar satisfeito em direção à sua mestra. Finalmente tinha entendido.

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A noite passou e a manhã chegou, cinzenta e nebulosa. O Sol emitia uma fraca luz pálida, e pesadas nuvens cobriam o céu. Uma leve brisa soprava e o orvalho ainda cobria as flores do jardim da mansão de Eriol.

Tomoyo revirou na cama. Lentamente abriu os olhos. Contemplou por um breve momento o belo rapaz que dormia ao seu lado, antes de acordá-lo com um beijo. Eriol abriu os olhos e sorriu para sua amada. Tomoyo retribuiu o sorriso e beijou-o novamente.

"Já acordada?" perguntou o jovem inglês.

"Sim." respondeu Tomoyo. "Foi uma ótima noite, Eriol."

"Concordo." falou o rapaz, sorrindo. "É mesmo uma pena que tenha passado tão rápido."

"É verdade. Agora entendo porque dizem que tudo o que é bom dura pouco." disse Tomoyo se aninhando nos braços de Eriol.

Permaneceram daquele jeito por alguns minutos, após o qual Eriol se levantou.

"Bem, temos obrigações a cumprir. De volta ao trabalho." falou o rapaz enquanto colocava a roupa. Tomoyo concordou e também se levantou. Trocaram-se em silêncio e saíram do quarto, dirigindo-se para a sala de jantar.

Eriol não pôde deixar de notar que os corredores estavam estranhamente vazios e parados. Era estranho não ouvir os barulhos que Nakuru fazia toda manhã ou não ver Spinel voando pelos corredores carregando algum livro.

"O que será que está acontecendo?" perguntou Tomoyo. Eriol deu os ombros. Na verdade, não estava muito interessado em saber. Seria ótimo se pudessem continuar sozinhos naquela casa, só os dois.

Chegaram ao fim do corredor e abriram as portas da sala de jantar. As cortinas ainda estavam fechadas, e o local estava escuro.

"Será que eles ainda estão dormindo?" perguntou Tomoyo, ainda segurando a mão de Eriol.

"Não." respondeu Eriol, e virou-se para a direita. "Vamos Nakuru, Shaoran e Spinel. Saiam daí e acendam as luzes. Afinal, não gosto muito de festas no escuro."

Tomoyo ouviu um murmúrio e alguém resmungar. Logo em seguida, as luzes se acenderam e Nakuru, Spinel e Shaoran apareceram.

"Você é um chato, Eriol!" protestou Nakuru. O rapaz somente sorriu.

"Bom dia para você também, querida Nakuru." falou o jovem. Nakuru virou a cara.

A mesa estava posta, e uma enorme infinidade de bolos, tortas e doces haviam sido servidos em belas travessas de prata. Croissants e pãezinhos exalavam um aroma que enchia o ar. Havia bules com chá, leite e jarras de suco. Belas xícaras de autêntica porcelana inglesa haviam sido postas. Ali, naquela mesa, estava uma pequena amostra de toda a opulência da fortuna de Eriol. De fato, o rapaz era tão rico quanto sua amada Tomoyo.

"Bem, vamos nos sentar." disse Eriol. "Não podemos deixar toda essa comida nos esperando. Seria uma falta de cortesia com os doces de Nakuru."

Mas a própria Nakuru estava de cara amarrada. A moça certamente não tinha gostado nada da atitude de Eriol.

"Era para ser uma surpresa, Eriol!" falou Nakuru, emburrada. "Eriol, você é um estraga prazeres! E eu levei tanto tempo para preparar tudo! Passei a noite toda na cozinha fazendo doces gostosos para dar de presente para você e Tomoyo e você estraga toda a surpresa!"

"Lamento ter estragado sua surpresa, querida Nakuru." falou Eriol. "Mas se isso for consolo para você eu realmente adorei o presente. Obrigado."

Nakuru ficou menos irritada depois disso e sentou-se à mesa com os outros. Após as palavras de Eriol, o humor da moça se elevou consideravelmente.

"Obrigada pela surpresa, Nakuru." falou Tomoyo enquanto se servia de um pedaço de torta de maçã. "Talvez não tenha sido uma surpresa para o Eriol, mas certamente foi para mim."

"Não precisa agradecer." falou Nakuru, desta vez sorrindo. "Fiz com todo o meu coração para vocês. Spinel e Shaoran me ajudaram também. Os pãezinhos foram feitos pelo Shaoran. E estão realmente muito bons. Ah, o Suppi se encarregou da decoração. E também ficou muito boa."

"Obrigada a todos." falou Tomoyo olhando para Spinel e Shaoran.

"De nada." falaram os dois em uníssono.

De fato, Shaoran apreciara bastante fazer os pães. Há muito tempo ele não fazia aqueles pequenos pães chineses. Chegara a pensar que se esquecera da receita. Mas na verdade fora muito fácil se lembrar de tudo.

Os doces de Nakuru estavam excepcionalmente bons. Deliciaram-se com aquelas guloseimas e tiveram uma manhã bastante agradável. Para Shaoran, particularmente, tudo estava divinamente bom. Parecia que ele nunca havia saboreado algo tão delicioso. O jovem degustou cada pequeno pedaço com prazer sem igual.

Como não poderia faltar, Nakuru havia feito um bule cheio de chá. Shaoran e Tomoyo estranharam bastante quando Eriol adicionou leite no chá, mas logo se lembraram isso que era algo muito comum na Inglaterra; e que Eriol, mesmo descendendo de japoneses, havia nascido e crescido na Inglaterra.

Após o café, o grupo de amigos se reuniu na sala da lareira para conversar e, embora houvesse muitas coisas para falar, Eriol decidiu discutir sobre a vinda inesperada de Shaoran àquela dimensão e sobre quando eles iriam partir em viagem para encontrar o Conselho.

"Já alertei todo o Conselho, Shaoran." disse o inglês. "Expliquei-lhes o ocorrido e eles concordaram em fazer uma reunião e analisar as causas de sua viagem entre as dimensões. Magno, o ilustre líder do Conselho, pediu que partíssemos na próxima Lua cheia, quando a primeira estrela no céu emitisse seu brilho."

"Mas isso é só daqui a uma semana!" exclamou Shaoran. "É muito tempo."

"Acalme-se, meu amigo." interrompeu Eriol com um gesto. "Não é tão simples como pode parecer. O Conselho não pode se reunir assim de uma hora para outra. Não é assim que funciona. Cada um dos membros tem seus próprios afazeres. Não se pode pedir que interrompam seus deveres e partam de suas casas no mesmo momento. O mundo não gira em torno que você ou de mim. Não podemos interromper a vida de outras pessoas apenas para solucionar seu problema."

"Entendo." falou Shaoran. "Desculpe-me."

"Não há necessidade de se desculpar, Shaoran. Tudo bem. Mas devo avisar-lhe que a questão pode ser mais complicada do que aparenta."

Shaoran nada disse. Apenas balançou a cabeça, em sinal afirmativo.

"Outra coisa." falou Eriol. "Magno me pediu que levasse Sakura junto conosco. Ele tem uma intuição que Sakura também está relacionada a tudo isso. E os instintos de Magno nunca falham."

Ao ouvir o nome de Sakura, Shaoran ergueu os olhos. Que relação Sakura poderia ter com tudo aquilo? Qual seria a ligação de sua Flor de Cerejeira com toda aquela bagunça? Bem, ele teria que esperar pelo dia da reunião com o Conselho para ter aquela pergunta respondida.

Mas o que realmente importava, era que ele iria rever sua querida Sakura. Nada no mundo poderia fazê-lo tão feliz. Mas, como que para despertá-lo de um sonho maravilhoso, Eriol disse:

"Sei o que está pensando, Shaoran. Mas você não deve ter nenhuma relação amorosa com a Sakura desta dimensão. Ela não é a Sakura que você ama."

"Como?" indagou Shaoran, parecendo extremamente confuso com o que Eriol acabara de dizer. "Ela não é a Sakura?"

"Ela é a Sakura, mas ao mesmo tempo não é." disse o inglês. "Você entende?"

"Não!" exclamou Shaoran com uma expressão de dúvida. "Você está me dizendo que a Sakura não é a Sakura, mas é a Sakura ao mesmo tempo... Ah!!! Não estou entendendo nada!"

Shaoran sacudiu forte a cabeça, tentando compreender as palavras de Eriol. Este por sua vez, entendendo a confusão do amigo, tentou explicar melhor:

"Vou tentar explicar de um modo mais fácil e claro." disse o rapaz. "Você ama a Sakura e isso ninguém pode negar. Mas você ama a Sakura da sua dimensão, não desta. E a Sakura também ama muito o Shaoran, mas me refiro ao Shaoran desta dimensão, não a você. Mesmo ela sendo Sakura Kinomoto, ela não é a Sakura que você realmente ama. Você ama a Sakura da sua realidade. E mesmo sendo a mesma pessoa, ainda assim elas são pessoas diferentes, pois pertencem a mundos e realidades diferentes. Melhor agora?"

"Um pouco. Mas ainda não entendi por completo e não compreendo por que eu não posso ter uma relação afetiva com a Sakura daqui."

"Simplesmente porque isso traria danos graves às duas dimensões." respondeu Eriol.

"Como isso poderia danificar as realidades?" indagou Shaoran, ainda confuso.

Eriol suspirou. Era uma explicação difícil de ser dada.

"Tenha calma, Shaoran." falou o rapaz. "Tudo a seu tempo. Isso é algo complicado. Para entender álgebra, primeiro é preciso saber somar e subtrair."

"Eu sei somar e subtrair." falou Shaoran, um pouco ofendido. Eriol sorriu.

"Não me refiro a esse tipo de soma ou de subtração." falou o inglês, se divertindo. "Antes de compreender os danos que uma relação como a que estamos discutindo pode provocar, é preciso primeiro entender a Teoria da Evolução Universal, compreender o funcionamento da Roda dos Mundos e saber sobre a Corrente Universal das Múltiplas Dimensões. Em que pé estão seus conhecimentos sobre estes assuntos?"

Shaoran nada disse. Sua cara parecia um grande ponto de interrogação e seus olhos estavam arregalados: não tinha nem idéia do que se tratavam os temas que Eriol havia mencionado.

"Foi o que pensei." disse Eriol, que claramente se divertia com a situação. "Para aplacar um pouco sua dúvida, dar-lhe-ei uma rápida e simplificada explicação sobre cada um dos temas."

Shaoran balançou a cabeça, fazendo sinal afirmativo.

"A Teoria da Evolução Universal, como o próprio nome diz, fala sobre o processo de evolução do Universo. Explica como o Universo caminha, apresenta teorias sobre como mundos podem surgir e desaparecer. Disserta sobre como a vida começa e é extinta. Explica como galáxias inteiras podem surgir e como mundos inteiros podem sumir. Explica como um gesto aparentemente simples pode influenciar toda a evolução universal, e diz que tudo tem uma razão de ser e acontecer; que nada é por acaso. É desta teoria que vem uma frase que você conhece bem. Sabe qual é?"

Shaoran balançou a cabeça, dizendo que não sabia.

"Não existem coincidências no mundo, existe somente o inevitável." falou o jovem inglês.

Shaoran escutava atentamente a explicação fornecida por Eriol, prestando atenção em cada palavra.

"A Corrente Universal das Múltiplas Dimensões esclarece diversos fatores a respeito das repercussões multidimensionais, e explica que as diversas dimensões e realidades paralelas estão todas interligadas, como se fossem elos em uma corrente. Se um elo é danificado ou rompido por qualquer motivo que seja, a corrente é partida e todas as realidades são comprometidas. Romper a Corrente Dimensional acarreta incontáveis problemas para todas as dimensões. Perceba, no entanto, que quando eu falo sobre dimensões paralelas, eu não me refiro a planos de existência. Há diferenças entre os dois. O último tópico trata de planos de existência, e não de realidades alternativas e dimensões paralelas."

Shaoran estava fascinado com aquelas explicações. Nunca havia aprendido nada a respeito do assunto, por melhor que tivesse sido sua instrução em magia. Eriol continuou com a aula:

"Por último, mas não menos importante, temos o Funcionamento da Roda dos Mundos." disse o mago inglês. "Creio que você não terá tanta dificuldade de compreender este tópico, sendo ele um pouco mais simples que os demais."

"Esta é uma descoberta recente. A Roda dos Mundos faz a energia mística circular entre os planos de existência, dos planos mais atrasados para os mais adiantados. Ela nunca pára. A Roda dos Mundos exala sua energia pelo que chamamos de 'Linhas de Ley', que são linhas de energia. O estudo das Linhas começou a ser feito no ano de 1922, na Inglaterra. Elas têm o nome de Linhas de Ley pelo fato de que, na Inglaterra, elas passam em sua maioria, em locais terminados por –ley, como Lockley, Bradley e outros."

"Após muitos estudos e experiências feitas, descobriu-se que existem dois tipos de linhas: as enegrecidas e as prateadas. As Linhas Prateadas coordenam o fluxo de energia que chega ao nosso mundo, vindo do plano de Arkanun, que é o plano imediatamente anterior ao nosso. As Linhas Enegrecidas controlam o fluxo de energia que saem da Terra e vão em direção à Paradísia, o plano imediatamente superior ao nosso. Essas linhas funcionam como as engrenagens da Roda dos Mundos."

"O cruzamento de duas Linhas Prateadas forma o que os estudiosos chamam de 'Node', um local onde a magia ganha poder, pois as energias mágicas fluem com mais força. Já o cruzamento de duas Linhas Enegrecidas foi batizado de 'Meca', um lugar onde a magia sofre penalidades, pois toda e qualquer partícula mágica é dissipada pela corrente da Roda dos Mundos. Não pense, entretanto, que o nome tem algo a ver com a cidade de Meca, sagrada aos islâmicos, uma vez que a própria Meca está situada em um Node de imenso poder. Há ainda os chamados 'Teiches'. O cruzamento de uma Linha Prateada com uma Enegrecida forma um Teich, que é uma falha na corrente da Roda dos Mundos. Teiches são extremamente raros, e muito procurados pelos magos, pois eles formam uma constante vazão de energia mágica. Minha mansão está em cima de um pequeno Teich. Não é um Teich muito poderoso, mas tem força e energia suficientes para abastecer meus encantamentos."

"Encantamentos?" perguntou Shaoran. Eriol sorriu.

"Acha que minha casa está desprotegida? Muitas criaturas sabem que sou a reencarnação do Mago Clow, muitas delas malignas e não humanas. Uso a energia liberada pelo Teich para alimentar alguns encantamentos de proteção, além de outras coisas mais."

"Como o que por exemplo?" perguntou Tomoyo, sem poder se conter.

"Como fazer florescer meu jardim, meu amor." disse Eriol. "Por que você acha que minhas flores não secam nem mesmo no inverno?"

Tomoyo sorriu e beijou Eriol de leve. Spinel estava perto da janela lendo um livro, completamente alheio à conversa dos três amigos. Nakuru estava ao lado de Spinel, olhando o jardim tranqüilamente. Shaoran, no entanto, estava bastante pensativo.

"Ainda não compreendi por completo qual a diferença entre plano de existência e realidade paralela. Explique-me por favor." pediu o jovem guerreiro. Eriol apenas sorriu e levantou-se.

"Basta por hoje, meu amigo." disse o jovem feiticeiro enquanto caminhava para a prateleira de livros. "Tudo em excesso faz mal, até mesmo luz, sabedoria e conhecimento. E creio que você já teve o suficiente para um único dia. Outra hora retomaremos nossa conversa."

Shaoran tentou protestar, mas Eriol calou-se e nenhuma outra informação foi obtida pelo resto do dia, a despeito da insistência do futuro líder do clã Li.

Eriol já havia saído da sala há muito tempo, quando Shaoran virou-se para a janela, pensativo. Logo depois olhou para Tomoyo e disse:

"Gostaria de saber que tipo de encantamentos Eriol fez para proteger este local. Você sabe?"

Tomoyo balançou a cabeça negativamente.

"Ia levar muito tempo para explicar todos os encantamentos que Eriol fez para se proteger." disse uma voz por trás deles. Era Nakuru, mas seu olhar estava diferente. Era um olhar mais profundo, mais sério, misterioso e perigoso. Quem os observava não era Nakuru, era Ruby Moon. Embora ela não tivesse mudado de forma, o poder de Ruby se manifestava. Shaoran encarou a Guardiã por um breve momento, mas logo em seguida voltou a perguntar:

"Você sabe quais encantamentos estão ativos aqui?"

"Sim, eu sei." respondeu ela. "Mas por que eu contaria a você?"

"O que você quer dizer?" perguntou o rapaz.

"Como posso ter certeza que você não está escondendo suas verdadeiras intenções? Como posso saber que você não quer ferir o Eriol?" falou a Guardiã suavemente. Sua voz, entretanto, não mostrava desconfiança. Era uma voz macia e aveludada, mas que demonstrava todo seu poder.

"Não pretendo ferir alguém que me ajuda a encontrar o caminho de casa." disse Shaoran. "Pois Eriol se mostrou como uma luz na escuridão, iluminando minha estrada quando eu mais precisava. Jamais faria mal a ele."

Ruby sorriu levemente.

"Pois bem. Responderei sua pergunta." falou ela. "Há muitos encantamentos ativos para proteger Eriol. Entre eles, nenhum feitiço hostil pode ser lançado em um raio de 500 metros sem seu consentimento. Há um círculo de proteção contra demônios e seres provenientes dos planos inferiores. Todos os seres que possuem qualquer tipo de poder ou energia mágica que passam pelos portões são sentidos imediatamente por Eriol. Há uma dezena de outros feitiços, mas eu não irei dizer quais são, pois estes são demasiado complicados para seres explicados em poucas palavras."

"É claro que a energia do Teich não dá conta de alimentar todos os encantos que Eriol tem ativos, mas ele obviamente possui outros métodos para sustentar seus feitiços."

"Tem toda razão." disse outra voz. Era Eriol, que se encontrava parado junto à porta.

"Eriol!" exclamou Tomoyo. "Há quanto tempo está aí?"

"Tempo suficiente." disse o rapaz sorrindo. "Creio que está ficando tarde. Vamos jantar?"

Ruby olhou para Eriol.

"Oba! Jantar!" gritou a moça, voltando a ser Nakuru; o brilho se apagando de seus olhos vermelhos, que voltavam a ser olhos alegres e risonhos.

Caminharam até a sala de jantar, onde a mesa já estava posta. Uma travessa com sopa fumegava ao lado de uma outra contendo um assado de aparência maravilhosa. Uma garrafa de vinho havia sido aberta: um legítimo Chateau Delassan 1964. Shaoran se perguntou onde Eriol conseguira um vinho tão caro como aquele.

"Meu agradecimento pela festa de hoje de manhã." disse Eriol, voltando-se para Nakuru. A moça abriu um imenso sorriso de felicidade.

"Obrigada, Eriol!" disse ela, beijando o rosto do rapaz exageradamente e sentando-se à mesa.

Eriol era um excelente cozinheiro. Tudo estava muito bom, inclusive o vinho. De sobremesa, Eriol tinha feito um belo bolo de pêssegos.

Após o jantar, conversaram um pouco até que Tomoyo decidiu que já era hora de voltar para casa.

"Não posso passar outra noite fora de casa." disse a garota. "Além disso, preciso terminar algumas coisas."

Despediram-se, combinando de se encontrarem no dia seguinte para falar com Sakura e explicar-lhe os fatos.

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A noite transcorreu rapidamente, e a manhã não tardou a chegar. Tão logo o Sol apareceu no céu, Shaoran, Eriol e Tomoyo estavam reunidos na sala da mansão da família Daidouji.

Shaoran estava calado. Não sabia ao certo qual seria sua reação ao ver Sakura, mas isso não importava. Apenas queria vê-la novamente. Desejou poder abraçá-la e beijá-la, mas o pensamento rapidamente desapareceu de sua mente tão logo a lembrança da advertência de Eriol lhe voltou à memória.

"Não deve ter nenhuma relação amorosa com a Sakura desta dimensão."

Shaoran sacudiu a cabeça e olhou para os dois amigos que estavam parados perto da lareira. Tomoyo nada dizia, e Eriol olhava fixamente para um vaso de flores. Depois de alguns minutos, Eriol disse que estava na hora. Ambos Shaoran e Tomoyo balançaram a cabeça fazendo sinal afirmativo.

Dirigiram-se para a porta e deixaram para trás a mansão de Tomoyo, caminhando lentamente em direção à casa de Sakura. Não pareciam ter pressa, tendo em vista que a explicação para tudo aquilo seria longa. Mas, longa ou não, o fato é que chegaram à casa de Sakura mais depressa do que esperavam. Estavam tão profundamente envoltos em seus próprios pensamentos que não se deram conta da passagem do tempo. Contemplaram a bonita casa da família Kinomoto, antes de Tomoyo caminhar em direção à porta e tocar a campainha. Um senhor de aparência simpática apareceu na porta e sorriu.

"Bom dia, Tomoyo." falou Fujitaka, sorrindo como sempre. "Bom dia, Eriol. E... acho que não te conheço, rapaz."

"Er..." gaguejou Shaoran. Ele sabia que não podia dizer quem realmente era, uma vez que o pai de Sakura obviamente sabia que ele estava morto. "Fang. Zhihao Fang." disse o rapaz rapidamente. Fujitaka o cumprimentou e logo em seguida os convidou a entrar. Mas antes que pudessem se aproximar da porta, Shaoran subitamente parou.

"Acho melhor se vocês explicarem tudo para a Sakura primeiro. Não sei qual será a reação dela ao me ver. Talvez ela não esteja pronta. Será melhor que ela me veja quando tudo estiver esclarecido."

Eriol concordou.

"Não poderei entrar." disse Shaoran. "Eu só estava acompanhando meus amigos, mas tenho que ir agora. Talvez em uma outra ocasião."

"Mas..." começou Tomoyo, que foi imediatamente interrompida por Eriol.

"Explico depois." disse ele sussurrando no ouvido da garota.

Shaoran se afastou correndo enquanto Eriol e Tomoyo entravam na casa de Sakura. Encontraram a mãe de Sakura na cozinha, preparando o café da manhã.

"Sentem-se." disse Fujitaka. "Vou chamar Sakura."

O casal assentiu e se sentou. Logo Sakura desceu, sorrindo ao ver seus amigos tão queridos.

"Tomoyo! Eriol!" exclamou a garota. "Que bom ver vocês!"

"Olá, Sakura!" disseram Tomoyo e Eriol juntos.

Sakura sentou-se na frente dos dois amigos, perguntando se havia acontecido algo.

"Sakura... precisamos conversar com você..." disse Eriol. "É sobre o Shaoran."

O sorriso de Sakura subitamente desapareceu.

"O que aconteceu?" perguntou a menina.

"Creio que é melhor se a gente for para a minha casa." falou Eriol.

Sakura acenou a cabeça, fazendo sinal de afirmativo. Pouco tempo depois o trio voltava à mansão de Eriol.

Nakuru os recebeu e o grupo se dirigiu para o salão.

"Bem, Sakura... a história é bastante longa." disse Eriol.

"Não tenho pressa." falou a garota.

E Eriol, com a ajuda de Tomoyo, começou a explicar a Sakura tudo o que estava acontecendo. Os olhos da garota se abriam cada vez mais em uma expressão de espanto.

"E é isso que aconteceu." disse, por fim, Tomoyo.

Sakura estava calada. Não sabia ao certo o que dizer. Sorveu um longo gole de seu chá e voltou a depositar a xícara sobre o pires. Seguiu-se um longo silêncio, interrompido breve e somente pelo som da respiração dos três jovens que se encontravam naquela sala, onde Sakura procurava absorver tudo o que havia ouvido nas últimas duas horas e meia. Não era algo fácil de se aceitar, ela tinha que admitir. Assim que se acostumara com o fato de que Shaoran estava morto, Eriol e Tomoyo surgem e dizem que o rapaz estava vivo, e que tinha vindo de uma outra realidade.

"Sakura..." disse Eriol. "Está pronta? Está pronta para ver Shaoran novamente?"

Sakura acenou a cabeça positivamente. A garota observou Eriol sair da sala. Estava tensa, nervosa. Alguns minutos depois Eriol voltou, acompanhado por uma outra pessoa, um belo rapaz de olhos cor de mel e cabelos castanhos e rebeldes.

"Você!" exclamou Sakura. "Você é o Shaoran?!"

"Olá, Sakura." disse o jovem chinês, sorrindo carinhosamente para a garota. "Faz tempo, não?"

Sakura nada disse. Apenas olhou para o rapaz parado à sua frente e fitou-o profundamente nos olhos. Ficaram assim durante algum tempo. Então os olhos de Sakura se encheram de lágrimas e ela correu, abrindo os braços para o belo rapaz.

"Shaoran!!!" gritou a garota antes de abraçá-lo forte. Ela tentou se conter, mas não conseguiu. "Senti tanta falta sua! Desculpe por ter gritado com você aquele dia no parque! Como eu pude ter sido tão cega? Eu devia ter percebido! Devia ter sentido! Sua energia é inconfundível, Shaoran!!!" disse ela, as lágrimas rolando paulatinamente pela sua bela face.

Tomoyo sorria ao lado de Eriol. Nakuru e Spinel também se encontravam na sala. Era uma cena realmente tocante. Sakura sorria como há muito tempo não se via.

"Oh, Shaoran!!! Eu estou tão feliz em poder vê-lo novamente! Chego a duvidar que esteja realmente acordada." disse Sakura entre risos e lágrimas.

"Posso garantir-lhe que isso não é um sonho" replicou Shaoran suavemente. Ele podia entender o que Sakura estava sentindo, pois ele sentia o mesmo, mas sabia que não podia deixar-se levar pelos seus sentimentos. E isso era algo sufocante. Queria beijá-la, tocar seu rosto como sempre fazia, brincar com seus cabelos e sentir seu perfume delicado. Sabia que aquela não era a Sakura que amava, mas ela era tão idêntica à sua querida Flor de Cerejeira.

O coração de Sakura batia rápido e sua respiração estava a pique. Ela arfava, fazendo com que seu peito subisse e descesse rápida e incontrolavelmente. Todo seu pensamento estava voltado para o rapaz à sua frente. Shaoran! Deus, como ela o queria! Desejava o jovem com todos os seus sentimentos. Cada pedaço de seu corpo chamava e gritava pelo jovem chinês que estava logo a sua frente. Sakura fechou os olhos e começou a inclinar-se para frente. Shaoran, percebendo que a garota desejava beijá-lo, afastou-se. Sakura novamente abriu os olhos, percebendo o que estava fazendo.

"Desculpe" disse a garota, corando. "Eu não pretendia..."

"Tudo bem" falou Shaoran. "Sou eu quem deve pedir desculpas".

Sakura baixou o rosto, fazendo Shaoran se sentir péssimo. Sabia que ela o amava com todas as forças, mas ele não podia. Não podia esquecer do que Eriol havia dito. Por mais que lhe doesse, deveria evitar qualquer contato amoroso com Sakura.

Tomoyo não pôde deixar de sentir pena do jovem casal. Estavam tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe um do outro. Viam-se, mas não podia se tocar. Conversavam, mas não podiam expressar seus mais profundos sentimentos. No fundo, Tomoyo sabia que, conforme Eriol dissera, eles não se amavam de verdade. Eles amavam a pessoa de sua própria dimensão. Mas era triste do mesmo jeito.

Percebendo o clima tenso e depressivo que tomava forma, Eriol decidiu intervir e tratar falar sobre o Conselho para Sakura.

"Agora que já se reencontraram, é preciso lhe falar sobre o Conselho, Sakura" disse Eriol. Sakura o olhou de forma interrogativa. "Iremos, Shaoran e eu, visitar o Supremo Conselho de Magos, Conselho este, que reúne os mais poderosos bruxos do mundo, e da qual eu faço parte".

"Um conselho de magia?" indagou Sakura. Eriol assentiu.

"Magno, o Supremo líder do Conselho, pediu-me que a levasse também. Ele acha que a vinda de Shaoran para esta dimensão esteja ligada, de alguma forma, a você, Sakura".

"Eu?!" exclamou Sakura, surpresa. "Mas o que eu poderia ter com isso tudo?"

"Não sei ao certo." disse Eriol. "Tenho uma ligeira suspeita, mas não ouso afirmar algo que não tenho certeza. Por isso prefiro calar-me a dizer algo equivocado".

Todos assentiram e nada perguntaram.

"Já que estamos todos reunidos e a par dos fatos, nos resta aguardar o dia marcado." falou Eriol, fitando cada um dos presentes. "Mas Sakura não poderá se ausentar de tal modo de sua casa, sem antes dar satisfações a seu pai e seu irmão".

Sakura concordou. Não sabia quanto tempo passaria longe de casa e seu pai certamente perguntaria para onde ela iria. E, é claro, ela não podia simplesmente dizer que estava indo visitar um conselho de magos por que Shaoran voltara à vida vindo de uma outra dimensão.

"Para isso, Tomoyo nos ajudará como um álibi." disse Eriol. "Diremos que estamos indo viajar para minha casa nas montanhas para passar o verão. Iremos até minha casa nas montanhas e de lá nos dirigiremos para a sede do Conselho. Tomoyo deverá ficar para encobrir qualquer possível suspeita de nossa jornada".

Novamente, todos concordaram. O plano para encobrir sua saída estava traçado.

"Devemos agradecer pelo fato de o dia escolhido pelo líder do Conselho ser exatamente o início das férias na faculdade." disse Tomoyo. Sakura balançou a cabeça concordando.

Após a conversa, o grupo de despediu. Tomoyo e Sakura seguiram para suas respectivas casas e Shaoran se fechou em seu quarto.

Tomou um longo banho e deitou-se em sua cama, ainda pensando no reencontro com Sakura e em tudo que sentira quando a abraçara. Novamente o desejo de tê-la voltou a sua mente. Imaginou Sakura ao seu lado, sorrindo para ele como ela sempre fazia. Queria voltar logo para sua dimensão, voltar para sua linda Flor de Cerejeira, tomá-la em seus braços e beijá-la. Queria tocá-la, sentir o calor de seu corpo e a maciez de sua pele alva e delicada. Queria acariciar novamente seus lindos e sedosos cabelos. Queria poder ver novamente aqueles olhos verdes sempre tão cheios de vida e de alegria. Shaoran sempre acreditou que poderia olhar aqueles olhos, verdes como esmeraldas, o tempo que fosse. Achava que poderia se perder neles. Eram tão lindos, tão inocentes. Sakura era inocente, pura. E havia sido justamente por isso que ele havia se apaixonado por ela, por ela ser tão pura, com o coração tão cheio de compaixão, alegria e energia. Ela sempre se preocupava com as pessoas em volta dela, deixando seus próprios sentimentos em segundo plano, ao contrário dele, tão frio e distante. É verdade que após tantos anos de convivência com Sakura e todos os amigos que havia feito no Japão, Shaoran havia aprendido a se soltar, a deixar suas emoções fluírem e a escutar seu coração.

Um coruja piou no alto de uma árvore. A noite já estava profunda àquela hora, mas Shaoran continuava acordado.

"Por que eu era tão fechado?" perguntava o jovem para si mesmo. "Não consigo me lembrar dos motivos que me fizeram trancar meus sentimentos dentro de mim mesmo de uma forma tão profunda".

O jovem guerreiro tentou forçar a memória. Desde quando se lembrava, ele era fechado e introvertido, quase nunca demonstrando seus sentimentos. Mas é claro que ele não poderia ter nascido daquele jeito. Ninguém nasce daquele jeito. São os fatos que presenciamos ao longo de nossas vidas que moldam nossa personalidade. E pela primeira vez em tantos anos, Shaoran se questionava sobre as razões de seu comportamento. Por que ele fora tão frio quando criança? E por que após conhecer Sakura, seus sentimentos afloraram e explodiram com tanta força? Será que a garota o havia ensinado a amar de verdade?

Por muito tempo Shaoran pensou mas, não conseguindo respostas para suas dúvidas, acabou desistindo. Olhou no relógio. Já passava da meia-noite. Decidiu dormir de uma vez por todas e deixar suas dúvidas, preocupações e ansiedades para um outro dia.

"Amanhã talvez." pensou o jovem antes de adormecer definitivamente...

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Shaoran se achava perdido no meio de uma densa névoa. Ele não tinha muita certeza sobre o que estava vendo. Conseguiu divisar uma grande casa ao longe: sua casa. Ele não entendia o que estava acontecendo. Por que estava vendo sua casa, sendo que há pouco tempo ele estava na casa de Eriol?

Caminhou um pouco, até chegar à porta da mansão Li. Subitamente a névoa se dissipou. Os portões se abriram e um guerreiro saiu, trajando as vestes sagradas de seu clã. Empunhava uma bela espada chinesa, que Shaoran rapidamente reconheceu: era a espada que pertencera a seu pai. Contemplou o guerreiro. Não havia dúvida, estava olhando para seu pai. Mas como era possível?

"Estou sonhando." pensou o rapaz. "Isto é um sonho. Mas qual o objetivo disso tudo?"

Não houve tempo para encontrar uma resposta pois, no instante seguinte, dezenas de guerreiros atacaram. Shaoran olhou para um lado, olhou para outro. Tentou correr, mas os guerreiros apareciam de todos os cantos. E Shaoran foi pego entre dois fogos. Não havia para onde fugir. Estranhamente, os guerreiros não o atacaram. Era como se ele fosse um mero espectador da grandiosa batalha, um fantasma que apenas observa, impotente. Olhou para trás. Seu pai se defendia bravamente, mas eles eram muitos. Repentinamente um raio riscou os céus, e logo em seguida Yelan apareceu. Ela estava majestosa, parecia irradiar uma aura de poder que enchia tudo. Os guerreiros começaram a recuar diante do poder da bruxa. Shaoran jamais pensara que sua mãe fosse tão poderosa.

No entanto, após o choque inicial, os guerreiros inimigos continuaram avançando. Seu pai havia sido cercado. Subitamente, um outro guerreiro misterioso apareceu. Este no entanto, ajudava seu pai. Ver a face do guerreiro era impossível. Ele parecia encoberto por uma densa névoa, um véu que o envolvia por completo.

A batalha se desenrolava diante dos olhos espantados de Shaoran. E tudo passou a acontecer terrivelmente rápido. As cenas se tornaram grandes borrões de luzes e cores para o rapaz. Tudo pareceu girar, e ele começou a cair vertiginosamente em direção a lugar nenhum.

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Shaoran acordou molhado de suor. Havia mesmo sido um sonho. Mas o que tudo aquilo queria dizer ele não sabia.

"Esses sonhos estão se tornando inconvenientes." resmungou o rapaz antes de voltar a se deitar. "Preciso informar Eriol sobre esse sonho. Talvez possa ser a resposta para alguma de minhas dúvidas".

E pensando nisso voltou a dormir. Não sonhou novamente aquela noite, e acordou quando o Sol já ia alto no céu.

Levantou-se e imediatamente foi procurar Eriol, aproveitando que a lembrança de seu sonho ainda estava clara em sua memória. Ele sabia que mais tarde a lembrança do sonho ficaria enevoada e, ao longo do dia, desvaneceria, como sempre acontece quando sonhamos. Não precisou procurar muito. Encontrou Eriol no jardim, podando algumas roseiras.

"Eriol." chamou o rapaz. O jovem inglês olhou para Shaoran sorrindo.

"Bom dia, Shaoran!" falou Eriol. "O que deseja?"

"Será que eu posso falar com você sobre um sonho que eu tive na noite passada?"

"Claro!" respondeu o jovem mago. "Sou todo ouvidos."

E Shaoran começou a contar tudo o que vira no sonho, sua mãe, seu pai lutando, o guerreiro misterioso que ajudava seu pai. Eriol ouviu tudo com a devida atenção, prestando bastante atenção aos detalhes. Terminado o relato, o jovem inglês apenas olhou para o céu.

"Realmente foi um sonho estranho. Todavia, não consigo ver que relação isso pode ter com tudo o que está acontecendo. Talvez haja muitas, talvez não haja nenhuma. Eu realmente não sei. Creio que não poderei ajudá-lo com esse sonho. Desculpe-me, Shaoran."

Shaoran assentiu. Ele não entendia o porquê daqueles sonhos. Desde que viera para aquele mundo, havia tido sonhos estranhos duas vezes. O primeiro havia sido logo na primeira noite, quando descobrira como o Shaoran daquela dimensão havia morrido. E agora esse outro sonho, que claramente tinha algum significado.

Bem, era óbvio que não conseguiria descobrir nada sozinho. Tentaria desvendar o sonho uma outra hora. Naquele momento, as atenções do jovem guerreiro se voltavam para o Conselho.

Ele se perguntava como deveria ser o Conselho, imaginava como seriam os outros magos que o compunham. Imaginava como seria a aparência de Magno, que Eriol tanto falava. Era estranho ouvir Eriol falar de Magno, pois Shaoran achava que o inglês se referia ao líder com uma reverência e respeito quase divinos. Era estranho principalmente porque Shaoran se acostumara à idéia de que Eriol era o maior bruxo do mundo, e no entanto ele descobria que a verdade não era exatamente aquela. E foi então que ele se lembrou de algo que sua mãe havia lhe dito havia alguns anos:

"Não importa o quão forte e poderoso você seja. Sempre haverá alguém mais forte e poderoso que você".

O rapaz ainda continuou no jardim por um bom tempo, apreciando cada pequeno detalhe daquele magnífico lugar, tão belo e agradável. Já passava das quatro da tarde quando o jovem decidiu entrar novamente. Eriol estava conversando com Nakuru, enquanto Spinel lia um grosso volume de capa vermelha, alheio a tudo e a todos. Aquela era uma cena que Shaoran já se acostumara a ver.

Caminhou pelo corredor até a cozinha, onde havia ajudado Nakuru a preparar a surpresa para Tomoyo e Eriol. Apanhou um dos pãezinhos que haviam sobrado e sentou-se num canto, mordiscando pequenos pedaços enquanto novamente pensava no dia da reunião do Conselho. Faltavam somente mais cinco dias e seus problemas seriam resolvidos.

"Só mais cinco dias." pensou Shaoran. "Devo esperar só mais cinco dias para que eu possa voltar para casa e rever minha querida Sakura".

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Nota do Autor: Na cena em que Eriol explica sobre o funcionamento da Roda dos Mundos para Shaoran, ele fala a palavra Teich. A pronúncia correta desta palavra é "taich", e significa lagoa em alemão.

Aqui termina o primeiro capítulo. Espero imensamente que tenham gostado de ler tanto quanto eu gostei de escrever, mesmo que este fic esteja me dando muito trabalho. Afinal, já se foi mais um ano desde que comecei esta saga, entre pesquisas, planejamento e estruturação do enredo. Mas creio que todo o trabalho tido valerá a pena. Já valeu se você leu e gostou! Sei que este capítulo ficou demasiado longo. Tentarei ser mais breve nos próximos.

Se você leu e gostou, por favor, deixe-me um comentário ou mande-me um e-mail. É muito importante para mim saber o que você achou da história, para que eu saiba como prosseguir nos próximos capítulos. Ficarei aguardando.

Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.

Felipe S. Kai