Capítulo Cinco – Nas Asas do Tempo
"Está na hora." disse Kirsten. Ela e Patrick ajeitaram as espadas nos cintos sob os mantos. Em seguida, apanharam alguns objetos que estavam sobre a mesa. Eram pingentes em forma de pequenas ampulhetas douradas presas a pequenas correntes de prata.
"Coloquem isto no pescoço." falou Patrick, enquanto Kirsten distribuía as gargantilhas para Shaoran, Sakura, Eriol e Katrina. Entregou também para Kerberus e para os outros guardiões. "Estas ampulhetas são o instrumento que lhes permitirá viajar no tempo e os identificará como sendo nossos protegidos. Não se separem destes pingentes por nada."
Os quatro companheiros assentiram, colocando os pingentes em torno do pescoço. Patrick e Kirsten também o fizeram. Os dois membros da Ordem do Tempo deram as instruções de como utilizar o poder do pingente e explicaram os mecanismos da viagem no tempo. Em seguida, caminharam até o centro do círculo formado pelos outros membros da ordem. Logo, todos os monges recitavam o encantamento de abertura do tempo:
"Antiquus Dracos exaudi nos! Patefacio tempus ostium! Exhibe preteritus via! Adveniat! Preteritus Domine! Posterus Domine! Nunc Domine! Exaudi nos!"
Fez-se um imenso clarão e, no instante seguinte, um vórtice negro se havia aberto no centro do salão. Os monges se afastaram e abriram espaço para que os outros pudessem se aproximar. Katrina logo caminhou para perto de Patrick e Kirsten. Logo em seguida, foi a vez de Sakura, Shaoran e dos guardiões. Entretanto, antes que Eriol pudesse se aproximar, Magno o deteve:
"Algo me incomoda, meu amigo. Uma sensação de perigo iminente paira no ar. Eu não sei se realmente deves te aventurar pelas eras."
"Eu sei, Magno." falou Eriol. "Também sinto isso. Acordei com a sensação de que algo está errado. Até ontem a noite minha determinação era total. Agora, entretanto, minha mente e meu coração me traem."
"Talvez devamos cancelar a jornada. Será que devemos?" indagou Magno, encarando Eriol profundamente. O inglês se mostrava pensativo.
Porém, antes que os dois magos pudessem tomar qualquer decisão, Shaoran foi tomado de uma súbita dor do peito. Sakura correu até ele, perguntando o que estava acontecendo. Eriol e Magno também se aproximaram.
"O que houve, Eriol?" perguntou Katrina. Eriol encarou Shaoran e pareceu estudá-lo com os olhos. O olhar intenso de Eriol percorria o corpo e a alma de Shaoran, e o jovem tremeu diante da intensidade e profundidade daquele olhar. A dor veio novamente, dessa vez com maior intensidade. Eriol imediatamente pôs a mão sobre a fronte de Shaoran, tentando descobrir o motivo de tamanha agonia. Logo a dor passou, tão rapidamente quanto veio. Eriol fitava Shaoran com o semblante sério.
"O que foi?" perguntou Sakura.
"Shaoran está sendo rejeitado." respondeu Eriol, desviando o olhar para Magno. "Esta dimensão já percebeu que o Shaoran está em uma realidade que não lhe pertence. Por esse motivo, começou a rejeitá-lo numa tentativa de consertar a falha que há entre as realidades."
"Como?" exclamou Sakura.
"Esta dimensão pretende expulsar Shaoran daqui." disse Eriol. "Entretanto, se isso acontecer, ele ficará preso para sempre entre as realidades, vagando no Limbo pelo resto da eternidade."
Sakura soltou uma exclamação que demonstrava medo e preocupação ao mesmo tempo. Eriol se levantou e encarou Magno.
"Parece que temos a resposta para nossa pergunta." disse o inglês. "Não temos muito tempo. A viagem deve ser feita."
"Que assim seja, meu amigo." falou Magno. "Não poderei acompanhar-vos fisicamente na jornada que virá. Entretanto, estarei convosco em espírito. Se precisares de minha ajuda, ergue teus olhos até os céus e de lá virá o meu socorro."
"Obrigado, Magno." agradeceu Eriol.
"Tu tens a minha bênção, meu amigo." disse Magno.
Eriol se virou e caminhou para perto do portal, onde Sakura, Shaoran e os outros já o esperavam. Os seis companheiros se olharam profundamente. Todos sabiam da urgência que aquela missão demandava. Sabiam das conseqüências se não agissem rápido o bastante. O silêncio que se fez na sala de rituais era pesado e deveras inconfortável para todos os presentes. Era como se a determinação de todos eles se mesclasse a um sentimento forte de preocupação: não esperavam por aquele imprevisto.
Então, ainda sem dizer qualquer palavra, Kirsten se adiantou e ficou de frente para o portal. Olhou para trás e fez um sinal com a cabeça, que todos imediatamente compreenderam. Sem vacilar nem por um instante, os seis companheiros cruzaram o vórtice negro, um após o outro, desaparecendo por completo por entre a malha do tempo.
Magno, que ficara parado naquela sala, levantou sua mão e acenou para o grupo, abençoando todos os seis companheiros, ao mesmo tempo em que sua mente tentava decifrar a fonte daquela sensação agourenta tão forte. O Líder do Conselho sabia que algo grande estava para acontecer. E que, de algum modo, aquilo que estava por vir mudaria para sempre a vida daquelas seis pessoas.
Por fim, retirou-se da sala silenciosamente, sob os olhares atentos dos outros cinco membros do Conselho. Caminhou até o quarto que lhe havia sido reservado e trancou-se nele, debruçando-se sobre a escrivaninha e sobre alguns livros e pergaminhos que estavam sobre ela. Estava decidido a descobrir as razões daquele complicado enigma. E sua mente obstinada não o tiraria daquele aposento até que obtivesse alguma pista para suas indagações.
____________________
Shaoran sentia-se girar rapidamente como um pião. A sensação, de fato, não era a mais agradável do mundo, e o guerreiro chinês se perguntou quando tudo aquilo acabaria e eles finalmente chegariam ao local onde seu alter-ego havia morrido, dois anos antes.
Olhou para o lado e viu que Sakura também não parecia estar apreciando a viagem. A garota se sentia dentro de um liquidificador. Os minutos se passaram, longa e demoradamente. Demorado demais para Shaoran, que já começava a ficar impaciente com tudo aquilo. O rapaz não imaginara que teria que passar por algo assim. Mas para dizer a verdade, ele também nunca imaginara estar em outra dimensão e nem viajar pelo tempo. Entretanto, aquilo havia realmente acontecido.
"É, mais uma história para contar aos meus netos." pensou Shaoran, lembrando-se da conversa que teve com Sakura antes de ir parar naquela realidade bizarra.
Mais de quinze minutos já deviam ter-se passado mas a velocidade deles não parecia começar a diminuir. Eriol foi novamente tomado por aquela sensação que tivera mais cedo naquela manhã, ainda em seu quarto.
"Tem algo errado! Já devíamos ter parado há muito tempo!" exclamou Patrick. Eriol então soube que ele e Magno estavam certos. Havia muito mais a frente naquela jornada do que eles haviam inicialmente previsto.
"O que devemos fazer?" perguntou Eriol, já tomando sua chave nas mãos.
"Vou tentar parar!" respondeu Patrick, levando as mãos ao peito e tocando o pingente da ampulheta dourada. Murmurou algumas palavras que o resto do grupo não pôde decifrar. No instante seguinte, sentiram algo puxar-lhes o corpo para baixo. Não demorou muito e eles logo caíram em uma passarela larga, que se estendia até muito além de onde a vista alcançava e flutuava sobre um abismo, cujo fundo não se podia enxergar.
Levantaram-se e olharam ao redor. Tudo estava deserto e completamente silencioso. E escuro também. A penumbra que os envolvia era espessa e quase parecia sólida.
"Estamos entre as eras, no meio de todos os tempos." falou Kirsten, enquanto checava o lugar. "Algo está errado. Isso jamais aconteceu antes."
"Talvez tenha sido um erro termos insistido nesta viajem." murmurou Eriol. "Eu senti que havia algo no ar, mas diante das circunstâncias achei que o melhor seria nos arriscarmos a prosseguir com a jornada. Começo a me arrepender da minha decisão."
Patrick balançou a cabeça negando.
"Não se culpe. Você fez o que julgou ser certo. Devemos agora prosseguir e encontrar o caminho correto."
Colocaram-se a caminhar. A passarela parecia não ter fim e a escuridão começava a se tornar um incômodo para o grupo, que já mostrava sinais de cansaço. Encontrar a saída daquele lugar se mostrou mais difícil do que aparentava, até mesmo para Patrick e Kirsten.
"Qual é o maldito problema?" perguntou Kero. "Já estamos caminhando há quase duas horas e não há sinal de qualquer saída!"
"Tenha calma, Kerberus." disse Kirsten. "A questão é mais profunda do que possa aparentar. Não nego que já devíamos ter encontrado uma pista de nossa localização exata há algum tempo. Entretanto, algo está influenciando este lugar. Uma força maligna põe sua vontade contra nós."
"Eu também estou sentindo há algum tempo." falou Sakura. "É uma força poderosa. Devemos ter cuidado."
"Ele está aqui." pensou Eriol.
Shaoran olhou ao redor, perscrutando o ambiente em busca de algo. Seus olhos, entretanto, não encontraram nada além da penumbra que os envolvia por completo. O rapaz não estava esperando por tudo aquilo. Em sua mente, ele havia pensado que a única coisa que teria que fazer era chegar até a Tomoeda de dois anos anteriores e impedir os fatos que desencadearam a morte de sua identidade naquele lugar.
"Seria fácil demais." pensou. "Eu teria mesmo muita sorte se tudo ocorresse conforme o planejado. E sorte é algo que parece estar me faltando desde que cheguei aqui."
Ironicamente, Shaoran pensou que tudo aquilo era o perfeito exemplo da lei de Murphy, onde tudo sempre dava errado. Um sorriso melancólico apareceu em seus lábios.
"Droga!" praguejou o rapaz mentalmente.
Seus pensamentos foram bruscamente interrompidos pela voz estridente da forma falsa de Kerberus, que perguntava o que havia debaixo da passarela, naquele abismo profundo.
"Tenha cuidado." falou Kirsten. "Neste abismo estão abertas muitas entradas para diversos períodos da História, desde o mais remoto passado até o mais longínquo futuro. Aquele que cair neste abismo será levado até algum período da História."
"Qual deles?" perguntou Kero.
"Isso é impossível de dizer. Os portais abertos são milhares. Aqui onde estamos há um portal. Se dermos um passo para frente ou para trás, o portal nos levará para um momento histórico diferente. Sendo assim é impossível saber com exatidão."
Kero fitou o abismo com interesse. O grupo apertou o passo, tendo Patrick e Kirsten a frente dos demais. Eriol vinha um pouco mais atrás, sendo acompanhado por Katrina, Sakura e os quatro guardiões. Shaoran era o último da fila. O guerreiro chinês estava preocupado com a sensação que vinha tendo desde que caíra naquela passarela. Um sentimento agourento pairava no ar. O ambiente estava estranhamente carregado.
Tirou do bolso o relógio que pertencera a seu pai. Era um belo relógio de ouro, preso a uma corrente, também dourada. Contemplou o fino relógio enquanto caminhava atrás dos demais. O patriarca da família Li fora um homem severo, porém compreensivo. Pensou em seu pai com saudade, enquanto se lembrava dos últimos momentos que passara junto do bravo guerreiro...
____________________
"Um pequeno Shaoran de quatro anos de idade se encontrava parado junto à porta da imensa sala da mansão Li. Havia algumas horas, seu pai tinha sido trazido de volta para casa, após uma violenta batalha contra um clã rival. O homem tinha sérias escoriações e hematomas espalhados por todo corpo, bem como cortes profundos nos braços e pernas.
O caçula da família e único menino entre os cinco filhos do guerreiro vira o estado em que ele se encontrava e estava com muito medo. Jamais tinha visto o pai machucado daquele jeito. Caminhou lentamente e sentou-se na poltrona de couro que havia perto da lareira. Ele gostava daquela poltrona, era macia e confortável. Tinha um quê de aconchego que ele não encontrava nas outras poltronas da sala. Ou seria simplesmente o fato de aquela ser também a poltrona favorita de seu pai? O fato, é que Shaoran gostava de se sentar ali sempre que tinha medo ou se preocupava com algo. Tinha a sensação de estar no colo de seu pai.
As horas se arrastavam. Seu pai já estava sendo atendido e tratado pelo médico da família havia mais de duas horas. Duas longas e penosas horas que Shaoran pensava serem torturantes ao extremo. Por fim, depois de quatro longas horas, o pequeno viu sua mãe descendo as escadas.
"Como está o papai?" indagou um curioso e pequeno Shaoran. Nenhuma resposta. A feiticeira apenas passou por ele com certa pressa e saiu da casa, deixando o pequeno para trás. Voltou trazendo alguns panos limpos e tornou a subir as escadas em direção ao quarto onde estava o guerreiro ferido.
Mais espera. Aquilo já estava começando a cansá-lo. Shaoran desejava saber como estava seu pai. A casa estava silenciosa ao extremo, exceto por um ocasional criado que subia ou descia as escadas com bacias d'água, ataduras ou medicamentos.
Finalmente, sua mãe voltou a aparecer, acompanhada de suas irmãs, que estiveram ajudando no tratamento do patriarca da família.
"Xiao Lang." chamou Fuutie. "Papai quer vê-lo."
O pequeno Shaoran levantou-se da poltrona e correu escada acima. Dobrou o corredor e entrou no quarto, onde encontrou seu pai deitado na cama, coberto de ataduras pelo corpo. A visão era deprimente.
"Xiao Lang." chamou seu pai, visivelmente enfraquecido. "Chegue mais perto, meu filho."
Shaoran assim o fez. Aproximou-se lentamente da cama do pai e sentou-se ao lado dele.
"Fico feliz em poder vê-lo mais uma vez, meu filho. E parece que desta vez será a última."
"Por que? O senhor vai embora para algum lugar?" perguntou Shaoran. "O senhor vai ficar bom logo, não é?"
O homem apenas sorriu. Seu olhar brilhou e pareceu perdido. Estava pensativo. Por fim, virou-se para Shaoran.
"Sabe, filho. Hoje, enquanto eu estava lutando, um jovem muito habilidoso me ajudou. Ele era realmente muito forte e tinha um olhar decidido. Aquele guerreiro tinha algo de especial. Havia uma força dentro dele que o diferenciava dos outros. Ele salvou minha vida."
Shaoran encarava o pai seriamente.
"Eu nem soube o nome dele. Antes que eu pudesse perguntar, ele já havia desaparecido."
Parou de falar e olhou ao seu redor. Aquela imensa mansão era muito bela. Ele sempre gostara de contemplar a vista que se tinha da sacada de sua suíte. Shaoran ainda o olhava, com a inocência de seus quatro anos estampada em seu rosto. Então, o patriarca da família Li estendeu a mão até a mesa de cabeceira e tomou em suas mãos um objeto dourado.
"Pegue isto, Lobinho." disse ele, entregando o objeto para Shaoran. "Esse relógio é muito importante para mim, filho. Seu avô me deu isso antes de morrer. Agora ele é seu. É um presente muito valioso."
"Como um tesouro?" perguntou Shaoran, contemplando o dragão em alto relevo presente na tampa do relógio.
"Sim." respondeu seu pai, sorrindo. "É como um tesouro. Cuide bem dele, Lobinho. Um dia esse relógio será dado ao seu filho, assim como eu o dei a você. E assim como seu avô o deu a mim."
Shaoran concordou.
"Um tesouro!" disse ele, deslumbrado por ter em suas pequenas mãos algo tão valioso.
"Gostaria que um dia você pudesse se tornar igual àquele jovem que me ajudou hoje." disse seu pai, fazendo um enorme esforço para pronunciar cada palavra. "Eu ficaria muito orgulhoso se um dia você se tornasse um guerreiro tão bom quanto o rapaz que me salvou hoje."
"Então eu vou ser igual a ele, papai! Assim o senhor vai ficar orgulhoso de mim." respondeu Shaoran. Seu pai apenas fechou os olhos e sorriu.
"Fico feliz por ouvir isso, filho. Muito feliz mesmo."
Shaoran sorriu. Ele seria tão bom quanto o misterioso guerreiro que ajudara seu pai mais cedo naquele dia.
"Papai, quando melhorar, o senhor me ensina a usar a sua espada?" indagou Shaoran, esperançoso. Mas a resposta nunca veio. Da porta, sua mãe e suas irmãs vieram.
"Venha, Xiao Lang." disse Shiefa, tomando-lhe as mãos e puxando-o suavemente. "Vamos brincar lá fora e deixar o papai dormir. Tenho certeza que Meiling vai ficar feliz em te ver."
Shaoran não pôde deixar de notar as lágrimas nos olhos da irmã mais velha.
"Por que você está chorando, irmã?"
"Por nada. É apenas um cisco que caiu em meu olho."
____________________
Shaoran parou, sentindo um pequena e solitária lágrima correr-lhe o rosto. A lembrança ainda lhe parecia tão vívida, cada palavra, cada sensação, cada movimento. Subitamente, algo lhe veio à cabaça.
"Eu ficaria muito orgulhoso se um dia você se tornasse um guerreiro tão bom quanto o rapaz que me salvou hoje."
A lembrança das palavras de seu pai o fizeram tremer. Lembrou-se também do sonho que tivera na casa de Eriol, em que vira o misterioso guerreiro lutando ao lado de seu pai. Em seu íntimo, foi como se tivesse sido atingido por um soco muito forte.
"Foi por isso que eu me fechei." pensou Shaoran, sentindo-se tremer levemente com a descoberta. "Foi por isso que eu me tornei alguém tão frio e rude. Quando eu compreendi que meu pai estava morto, jurei para mim mesmo que me tornaria igual ao guerreiro que o ajudara. Queria que ele se orgulhasse de mim, mesmo que fosse na morte. Estava tão obcecado que acabei me fechando para as pessoas e para o mundo ao meu redor."
"Quando eu conheci Sakura, seu comportamento doce, sua alegria e sua espontaneidade me fizeram ver como minha vida era vazia. Foi por causa dela que eu pude me abrir."
Em seu íntimo, agradeceu Sakura profundamente. E a amou ainda mais por isso.
Abriu o relógio, surpreendendo-se com o que viu. O instrumento estava completamente louco, seus ponteiros girando desenfreadamente.
"Mas que raios é isso?!" exclamou o rapaz.
"Não adianta." disse Patrick, ao virar-se para checar o motivo do protesto. "Aqui todo o tempo do mundo está comprimido no mesmo lugar. Seu relógio não tem serventia nenhuma."
"Inferno!" praguejou, recolocando o relógio no bolso. Continuou andando atrás do grupo a passos largos, ainda embriagado com a descoberta que acabara de fazer.
Três horas haviam-se passado desde que tinham começado a andar. Finalmente, após muito procurarem, Patrick parou quando seu pingente começou a brilhar.
"Há algo aqui." disse ele. Kirsten se aproximou. Juntos, os dois membros da Ordem do Tempo começaram a examinar o local. Alguns minutos depois, os dois pareceram chegar a uma conclusão.
"Estamos perto do local que desejamos." disse Patrick. "Este é um local de confluência de energias temporais. O fluxo energético deste local é muito intenso. Devemos continuar."
Todos concordaram. Kirsten se levantou e olhou o caminho que se estendia logo a frente. Shaoran olhou ao redor. Katrina e Eriol pareciam estranhamente incomodados com algo.
"Patrick." chamou Eriol. O homem imediatamente virou-se na direção do inglês. "Estou com uma sensação estranha. A cada passo que damos a sensação de que algo nos espreita cresce. Creio que estamos caminhando em direção a uma armadilha."
"Eu também estou sentindo." falou Katrina, inquieta. "Talvez devamos tentar retornar."
Patrick parou e encarou os dois magos profundamente. Ele sabia que não se devia menosprezar a intuição de dois dos maiores feiticeiros da atualidade. Ponderou um pouco se era seguro prosseguirem. Entretanto, mesmo que quisessem voltar para o Castelo do Tempo, seria preciso que prosseguissem. Ambos os portais se encontravam mais adiante naquela imensa passarela.
"Não podemos voltar agora." disse o cavaleiro. "Nossas opções se encontram somente a nossa frente. Retroceder agora é impensável."
"Devemos estar alerta então." disse Eriol, apertando com força a chave em sua mão. Todos concordaram.
Continuaram andando por aquele caminho largo, suspenso em meio ao nada. De quando em quando, Eriol olhava à sua volta, como que procurando por algo. Shaoran viu que Sakura também parecia inquieta. O jovem guerreiro também conseguia sentir algo estranho pairando ao redor. Era uma sensação diferente, não se assemelhava a nada que ele tivesse sentido antes. Seus sentidos treinados imediatamente se colocaram de prontidão.
As próximas milhas pareceram uma eternidade para Shaoran. A sensação de desconforto pareceu aumentar ainda mais. Sakura já segurava firmemente sua chave. Patrick e Kirsten estavam com as mãos nos cintos, prontos para qualquer surpresa. E de fato, ela não demorou a chegar.
Todos sentiram um calafrio percorrer suas espinhas quando uma presença muito forte e maligna tomou conta de todo aquele lugar. Eriol e Sakura imediatamente transformaram seus báculos, sendo seguidos por Shaoran, Patrick e Kirsten, que sacaram rapidamente suas espadas. Os quatro guardiões reverteram para suas formar originais e tomaram posição junto de seus mestres.
"Mostre-se!" ordenou Eriol, com a voz firme e imperiosa que só a reencarnação do Mago Clow possuía.
Uma gargalhada cruel encheu o ar. No instante seguinte, quatro figuras encapuzadas apareceram, caminhando pela passarela na direção dos seis companheiros. Pararam a poucos metros de distância, ficando frente a frente com o grupo de amigos. Kerberus e Spinel tomaram a dianteira, rosnando para as quatro misteriosas figuras paradas a poucos metros de distância.
"Quem sois vós?" indagou Patrick.
Um a um, seus rivais tiraram os capuzes que encobriam seus rostos. Um deles era uma bela mulher. Tinha os longos cabelos negros presos em um coque na nuca. Os olhos tinham um brilho voraz. O outro era um homem, aparentando ter seus trinta anos de idade. Tinha cabelos castanhos curtos e uma cicatriz sobre o olho esquerdo, mostrando que ele não tinha parte da visão. O terceiro era um velho de longas barbas brancas, que aparentava ter mais de setenta anos de idade. Um observador menos cuidadoso o tomaria como um simples senhor em idade avançada. O porte curvado, o nariz adunco e o corpo magro apenas acentuavam ainda mais o aspecto de fragilidade do velho. Entretanto, quem o examinasse com mais cuidado poderia notar o sorriso cínico e o olhar sádico em seu rosto, já coberto por muitas rugas. Já a quarta figura era um homem de estatura média, de cabelos castanhos e olhos negros, que Eriol imediatamente reconheceu:
"Mikhael." disse o inglês secamente. "Nos encontramos novamente."
"E desta vez acompanhados, não é mesmo, Clow?"
Eriol assentiu, encarando Mikhael do fundo de seus olhos azuis. A aura de poder dos dois magos já começava a preencher aquele lugar, tomando os sentidos de todos ao redor.
"Terei minha vingança, Clow." bravejou Mikhael.
"Cão que ladra não morde." replicou Eriol educadamente. Mikhael sorriu.
"Peguem os outros." ordenou. "Clow é meu!"
Os outros três assentiram e investiram contra o grupo. Katrina se juntou a Eriol, tomando posição ao lado do amigo. Sem pensar duas vezes, Mikhael atacou.
____________________
Magno se encontrava concentrado, lendo e relendo uma dezena de pergaminhos e livros espalhados sobre a mesa de mogno. De quando em quando fazia algumas anotações em uma folha de papel para, logo em seguida, tornar a mergulhar nos documentos. Desde que o grupo partira em sua jornada pelo tempo, o mago se trancara em seus aposentos na tentativa de encontrar uma resposta para as questões que o preocupavam. Enquanto não encontrasse algo que ao menos amenizasse suas inquietações, não descansaria. Entretanto, até aquele momento, não havia sequer chegado a uma simples conjetura a respeito de qualquer coisa.
Em seu íntimo, desejava que Eriol e os outros estivessem bem e em completa segurança. Desejava que nada de mal atingisse o grupo de amigos durante aquela jornada pelo tempo e pelo espaço. Nunca antes quisera tanto que sua intuição estivesse errada como naquele momento. Todavia, ele sabia que sua intuição não devia ser desprezada. Por pior que fosse a sensação, sua intuição nunca falhava.
A intuição de Magno sempre fora muito forte. Mesmo antes de iniciar seus estudos sobre magia e ocultismo, ele já tinha uma capacidade sobrenatural para sentir o mundo à sua volta, seus acontecimentos e fatos. Depois de entrar para os Iluminados, seu sexto sentido se desenvolveu a níveis extraordinários.
Magno ingressara cedo no mundo da magia através de Juliana, uma imigrante italiana que vivia próxima à sua casa em Fürstenwalde, sua cidade natal, no nordeste da Alemanha, próxima à capital, Berlim. Juliana logo percebeu o dom natural que Magno tinha para a magia e, sendo ela um membro influente dos Iluminados, iniciou o jovem garoto, então com doze anos, na tradição da Ordem. Ela não poderia imaginar que um dia seu pupilo chegaria a ser um dos maiores e mais importantes magos do mundo.
Uma vez dentro da Ordem, Magno teve a própria Juliana como tutora e supervisora. O garoto aprendia rápido e logo se especializou no Caminho Elemental do Fogo, o mais poderoso entre todos – e o mais traiçoeiro também. Descobriu coisas que jamais sonhara existir. Estudou profundamente anjos e demônios, bem como seus jogos de poder para dominar os pobres mortais que habitavam aquele mundo insignificante. Juliana assistiu orgulhosa à rápida ascensão de Magno dentro do Círculo. Em pouco tempo, o jovem feiticeiro já tinha uma posição elevada e uma alta reputação mesmo entre os membros mais antigos. De lá até alcançar a posição de líder do Conselho de Magos, algumas décadas se passaram. E como todo ser humano, Magno aprendeu muito durante todo aquele tempo.
"Mais de cem anos de estudo e agora não consigo desvendar um único enigma que me atormenta." resmungou o mago. "É realmente frustrante."
Revirou mais algumas dezenas de papéis e documentos sobre a mesa. Sua paciência e sabedoria eram grandes, mas ele já começava a ficar aflito com a situação. Mergulhou a pena no tinteiro e fez mais algumas anotações no papel ao lado do livro. Seu raciocínio metódico e cuidadoso sondava todas as possibilidades existentes, relacionava-as com o ataque que Eriol sofrera havia alguns dias, tendo que duelar contra um poderoso e cruel mago das trevas.
Ao final da tarde, quando o Sol já estava se escondendo ao longe, Magno levantou-se da cadeira para andar um pouco pela sala. Já estava debruçado sobre seus estudos havia mais de cinco horas. Nem mesmo ele conseguia ficar tanto tempo concentrado em uma única questão por horas a fio sem descanso. Caminhou até a janela e a abriu, deixando a suave brisa daquele início de noite percorrer o aposento. Fechou os olhos, deixando o vento beijar-lhe a face.
Voltou a olhar pela janela. A Lua estava cheia e destacava-se em meio às estrelas que luziam no céu. Àquela hora, Magno podia ver Júpiter brilhando ao longe, timidamente, com seu diminuto fulgor avermelhado.
"Você parece preocupado, Magno." disse uma voz atrás dele. Virou-se. Era Vladimir, que se encontrava parado junto à porta. "O que te atormenta?"
"Atormenta-me a sensação que venho tendo o dia todo. Algo está errado, Vlad. Algo está para acontecer. Nuvens obscuras cobrem os céus de minha mente e não me permitem ver o que está por vir."
"Uma sensação, você diz? Uma sensação agourenta?"
Magno concordou.
"Sim, meu amigo. Uma sensação de perigo paira no ar. Ela envolve Shaoran e os outros escolhidos para a Jornada. Podes sentir a ameaça ao redor?"
Vladimir ergueu a cabeça e olhou à sua volta. Sim, ele podia sentir. Estava impregnando o ambiente, tomando todos os seus sentidos.
"O que poderia ser essa sensação, Magno?" indagou o mago.
"Não sei." respondeu Magno. "Infelizmente não sei. A menos que..."
O Bruxo parou subitamente, tomado por uma idéia que o encheu de temor. Sentiu o corpo enrijecer, e Vladimir pôde ver um veia que lhe saltava à testa. O pensamento devia ter sido por demais absurdo ou grave para ter deixado Magno em tal estado de temor. O Guardião da Terra fitou o semblante sério de Magno com uma expressão de dúvida, mas o líder do Conselho pareceu não perceber. Magno aparentava estar imerso em seus próprios pensamentos, horrores e especulações.
"Calamitas nula sola." sussurrou Magno. "Uma calamidade nunca vem sozinha."
"O que houve, Magno?" inquiriu Vladimir.
"A tormenta se aproxima, Vlad. O curso dos fatos se agrava cada vez mais e o Destino nos prega mais peças do que nossos olhos podem ver. Precisamos voltar para o Castelo imediatamente. Há muito a ser feito. Reúna o restante do Conselho. Diga que partiremos em uma hora!"
Vladimir assentiu, visivelmente incomodado pelo semblante sombrio de Magno, e saiu em silêncio, correndo o longo corredor e alcançando a escada em direção ao salão principal.
____________________
"Incendite corpus hostibus meum." bradou Mikhael, erguendo as mãos na altura do peito e conjurando um grande globo flamejante sobre a cabeça de Eriol. A reencarnação de Clow abaixou-se para se proteger e, ato contínuo, ergueu o báculo, reunindo energia e confrontando o fogo com um círculo d'água.
A escuridão em torno do local parecia se adensar em uma grande massa de medo e angústia. Uma pessoa qualquer certamente se sentiria oprimida diante da treva maciça que pairava ao redor, trazendo consigo uma inexplicável carga de terror.
Shaoran olhou à sua volta, contemplando as sombras que o envolviam. Havia algo naquelas sombras - e ele não pôde dizer exatamente o que era - que deixava o ambiente pesado, quase como se o próprio local ameaçasse cair sobre seus ombros e suas cabeças a qualquer instante.
Desviou o olhar novamente para seu oponente. A tez pálida do velho contrastava totalmente com o negrume do ambiente ao redor. O brilho nos olhos do ancião era visível; um brilho voraz, profundo, quase insano. Seus lábios estavam contraídos em um leve sorriso, acentuando ainda mais as muitas rugas de seu rosto cadavérico.
Shaoran aguçou os sentidos. Seus olhos fitavam seu oponente, sondando cada movimento de seu corpo. Apertou o punho da espada, trazendo-a para perto de si e aguardando o movimento do velho. Ao seu lado, Patrick permanecia imóvel, também de espada em punho.
O Cavaleiro se perguntava como o grupo de Mikhael havia conseguido burlar a vigilância dos Dragões para abrir o portal do Tempo. Certamente seus oponentes não deveriam ser subestimados; apenas alguém com um poder absurdamente maligno e obscuro conseguiria realizar um ritual de tamanha magnitude. Imaginando a força de seus oponentes, Patrick temeu pela segurança de Sakura, Shaoran e de todos os envolvidos na Jornada.
"Prepare-se." sussurrou para o guerreiro chinês, ao perceber que o velho se preparava para atacar.
Os dois companheiros puderam ver claramente quando o ancião ergueu as mãos e sussurrou algo ininteligível. No instante seguinte, do chão, irromperam inúmeros seres, cuja aparência era por demais grotesca e bizarra. A visão daquelas criaturas de certo arrancaria a sanidade de uma pessoa normal, tamanho o terror que elas inspiravam nos corações e mentes humanas. O corpo nefasto exalava um odor de podridão que tomava todo o ambiente. As mãos cadavéricas apresentavam dedos longos e finos, de onde se desprendiam pedaços inteiros de pele e carne morta. Os olhos, vidrados, pareciam querer saltar das órbitas a qualquer instante.
"Zumbis!" exclamou Patrick, erguendo a espada e golpeando uma das criaturas com força. Shaoran imediatamente o acompanhou, fazendo sua espada zunir e saltando sobre a larga passarela, que fora transformada em um campo de batalha.
"Eu invoco o poder do Senhor do Fogo! Vinde a mim!" disse Shaoran, erguendo a espada para o alto. No instante seguinte, uma rajada de fogo inflamou o corpo pútrido de uma dezena de zumbis, que se debateram, mas logo foram reduzidos a cinzas sobre o solo.
Não muito longe dali, Sakura utilizava a carta do salto para escapar de um golpe desferido pela sua oponente. Zilah trouxe as mãos para junto do peito e proferiu um encantamento antigo, evocando o poder de Hefaestus. Sakura viu uma grande bola de fogo ser formada e lançada em sua direção.
"Escudo!" gritou, conjurando a proteção da carta sobre si. O poder de sua adversária era, de fato, grande. Sakura esperou que a bola de fogo fosse dissipada para, logo em seguida, contra-atacar, clamando pelo poder da carta Espada e investindo pesadamente contra sua oponente. Zilah saltou, esquivando-se habilmente do golpe e caindo a poucos metros da jovem.
Sakura ficou costa a costa com Kirsten, que se empenhava em derrotar Eric. O homem era, de fato, um guerreiro valoroso, cujas habilidades não deveriam jamais serem subestimadas. Seus movimentos eram perigosamente precisos, assemelhando-se a uma serpente traiçoeira. Mesmo a aparente falta de visão no olho esquerdo parecia não ser empecilho algum para o homem.
Pouco a pouco, o grupo foi sendo cercado. Os zumbis invocados por Christian começavam a encher todo o local, criando dificuldades inclusive para Eriol e Katrina. Ao redor, a escuridão maciça se adensava ainda mais, tornando o ambiente cada vez mais insuportável em seu horror e agonia.
Percebendo a magia maligna que atuava no local, Katrina ergueu as mãos acima da cabeça. Sua presença pareceu dominar todo aquele lugar, ofuscando até mesmo a figura de Eriol.
"Fiat lux!" exclamou. No momento seguinte, a treva que ameaçava o lugar cedeu espaço para uma luz quente e reconfortante. As dezenas de zumbis, ao serem tocados pela claridade, emitiram um grunhido alto e insano, sendo logo reduzidos a pó. Um a um, o grupo olhou para a feiticeira, deslumbrados com sua majestade e esplendor.
Mas Mikhael, aproveitando-se do momento de distração, concentrou seu poder por completo, fazendo com que todo o local estremecesse diante da fúria de seu ataque. Pegos de surpresa, os seis companheiros não tiveram tempo de resistir. Perdendo o equilíbrio, eles caíram da passarela em direção ao imenso abismo que se estendia a perder de vista.
____________________
Tradução dos feitiços recitados em latim:
1. Antiquus Dracos exaudi nos! Patefacio tempus ostium! Exhibe preteritus via! Adveniat! Preteritus Domine! Posterus Domine! Nunc Domine! Exaudi nos! – Dragões Anciões escutem-nos! Abram as portas do tempo! Mostrem o caminho para o passado! Venham a nós! Senhor do Passado! Senhor do Futuro! Senhor do Presente! Escutem-nos!"
2. Incendite corpus hostibus meum. - Queime o corpo de meu adversário.
3. Fiat Lux. - Faça-se a luz.
____________________
Aqui acaba mais um capítulo. Espero que tenham apreciado a leitura desta parte. Como puderam ver, Mikhael voltou a atacar, e dessa vez com força total. Sua investida conseguiu atingir até mesmo Eriol e Katrina, lançando o grupo no abismo entre todas as eras mortais. A Jornada de Shaoran e seu grupo será mais difícil do que aparentava ser. Resta torcer para que tudo dê certo.
Gostaria imensamente de saber sua opinião a respeito desse capítulo. Assim sendo, fico esperando e-mails, comentários e afins.
Até o próximo capítulo. Tentarei não demorar muito para postá-lo.
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai