Capítulo Sete - Jerusalém
Shaoran sentia a cabeça latejar. Acordara com a luz do Sol sobre seu rosto e a claridade ainda lhe ofuscava um pouco a vista. Com dificuldade, apoiou-se na espada e obrigou-se a levantar. Seu corpo todo ainda sentia as conseqüências da batalha contra o grupo de Mikhael.
Olhou ao seu redor, mas não pôde ver nem Sakura nem os outros. Tentou se concentrar na tentativa de encontrar a energia de algum de seus amigos, porém não obteve nenhum sucesso. Uma gota de suor escorreu pela sua testa e o jovem sentiu seu corpo começar a tremer levemente. Não que fosse comum a ele perder a calma, mas o fato de estar só em um local desconhecido era o suficiente para deixá-lo bastante inquieto e preocupado. Apertou fortemente o punho da espada, sentindo uma leve dor em sua mão, tamanha a voracidade com que se agarrava à arma, numa tentativa quase inconsciente de se agarrar à sua tranqüilidade e sua serenidade.
Fechou os olhos e respirou fundo, procurando manter a cabeça fria e o raciocínio ativo. Não demorou mais que alguns segundos para que ele recuperasse a calma e a frieza tão características de sua personalidade.
Sondou novamente o ambiente que o cercava, prestando atenção em cada detalhe. Procurou dissecar cada centímetro daquele local, buscando qualquer sinal, por mínimo que fosse, de onde poderia estar. Inconscientemente, levou as mãos ao pingente que ganhara um pouco antes da Jornada ter início. Lembrou-se de Kirsten e Patrick, imaginando o que poderiam estar fazendo aquela hora.
Há alguns metros de distância assomava, de modo imponente, uma grande elevação. O rapaz silenciosamente contemplou a monte que havia logo a frente, enquanto sentia o vento soprar-lhe a face.
O Sol já ia alto no céu, trazendo o calor e a luz à terra. Quase não se via nuvens. As poucas que haviam estavam bastante dispersas ao longo do firmamento.
Shaoran guardou sua espada e iniciou sua longa e penosa caminhada sob o Sol escaldante, tendo como rumo apenas o incerto e o desconhecido. A certeza era algo que ele já não tinha há tempos. Enquanto caminhava, pensava que destino Sakura e os outros haviam tido.
"Sakura. Espero que esteja bem." sussurrou, sem saber ao certo se desejava aquilo à Sakura de sua dimensão ou à Sakura que encontrara naquele lugar.
De uma certa forma, temia que algo tivesse acontecido com a garota e seus companheiros. Seu corpo ainda estremecia com a simples lembrança do aspecto demoníaco que Mikhael tomara naquele último e devastador ataque. Era quase como se o bruxo não fosse humano, como se naquele momento ele tivesse abandonado por completo sua humanidade e renunciado à sua alma. Em lugar destes, somente a insanidade e um poder por demais diabólico.
"Pai." chamou o guerreiro. "Olha por todos nós. Proteja-nos com tua bênção."
Continuou andando. Não precisou caminhar muito para que avistasse um conjunto de tendas logo a frente, perto de dois cedros muito altos. Parou, tentando decifrar o que eram aquelas tendas. Jamais em sua vida vira algo semelhante. A estrutura era bastante antiga, Shaoran logo pôde dizer pelo aspecto frágil que possuíam diante de seus olhos atentos.
Aproximou-se com cuidado, tentando obter o maior número de informações possível. O lugar estava razoavelmente movimentado. Nas tendas era possível ver pombos em gaiolas, bem como alguns rebanhos de cordeiros e bezerros. Shaoran prestou atenção ao modo como as pessoas interagiam, suas reações e gestos. Algumas meninas, cujos rostos estavam cobertos por véus, trituravam trigo em pilares rudimentares. Não demorou muito e ele também reconheceu a língua que falavam: aramaico. Por todos os Deuses! O aramaico não era mais utilizado havia séculos! Onde raios ele havia ido parar?
Pensou um pouco. O aramaico era falado na região do atual Oriente Médio, ao redor da Palestina. Tentou lembrar seus conhecimentos de geografia. Não deveria ser muito difícil encontrar algo que sinalizasse sua localização exata ou que pelo menos lhe desse uma pista de onde estava.
Concentrou-se na elevação perto de onde acordara. Se realmente fosse a Palestina, então suas opções se restringiam de forma bastante considerável. Aquela elevação poderia ser ou o Monte Líbano, ou o Hermon, ou ainda o Monte das Oliveiras. Pensou mais um pouco. Se aquele fosse o Monte Líbano ou o Monte Hermon, então ele estava na Fenícia, próximo à Galiléia. Entretanto, se fosse o Monte das Oliveiras, encontrava-se na Judéia, próximo ao Mar Morto. Aquilo não ajudava muito. Os dois lugares eram distintos e ficavam relativamente distantes um do outro. Decidiu parar de especular e tentar conseguir informações concretas. Aproximou-se de uma das tendas e se dirigiu a um dos mercadores. Não pôde deixar de notar o forte cheiro de gado, fumaça e azeite que se misturava e impregnava o ambiente.
"Com licença." falou, dando graças à Deus por ter estudado aramaico para poder ler alguns pergaminhos que haviam na biblioteca de sua casa. "Sou um viajante. Venho de muito longe e estou um pouco perdido. Poderia me informar onde estou e como faço para chegar à cidade mais próxima?"
O mercador o fitou profundamente. Seu olhar correu de Shaoran para as roupas que o rapaz usava. O guerreiro pôde notar o estranhamento que causava no mercador. Seu olhar era quase de desprezo. Por fim, falou, e Shaoran pôde ver seus dentes — ou aquilo que restava deles — que traziam marcas evidentes de cárie.
"Um viajante que não sabe onde está. Muito estranho. Esta é apenas uma tenda de mercadores de gado, mas se andar um pouco mais naquela direção, encontrará a cidade de Betânia. Um pouco mais a frente, há a cidade de Jerusalém, onde se encontra o palácio de Herodes." disse o homem, apontando para uma direção, enquanto voltava a se sentar.
O chinês pensou por um momento, tentando decidir o que fazer. Finalmente, após alguns minutos sob o olhar curioso do comerciante, decidiu ir até Betânia, na tentativa de encontrar mais informações.
O caminho até a cidade se mostrou bastante fácil para o jovem, que não encontrou problemas em transpô-lo.
Após algum tempo de caminhada, o guerreiro passou por um pequeno vilarejo, que imediatamente imaginou ser Betfagé. Então, após percorrer aquelas ruelas, chegou onde queria, cruzando, por fim, os portões de Betânia. Andava com cuidado, prestando atenção em cada detalhe. As casas eram bastante rudimentares, em sua maioria feitas de barro seco e pedras lavradas. As ruas, no geral, eram relativamente largas, havendo espaço suficiente para que mais de dois cavalos caminhassem lado a lado. Algumas delas eram pavimentadas com calhaus e todas, sem exceção, apresentavam um característico malcheiro.
Caminhou sem um rumo exato por alguns minutos, apenas examinando aquela cidade, cujas únicas lembranças que tinha residiam em fotos e histórias lidas.
O jovem começava a sentir os efeitos do calor. A caminhada sob o Sol e as longas horas de jejum começavam a surtir efeito sobre seu corpo cansado. Sua garganta estava seca. A sede era muito forte, fazendo com que seu organismo implorasse por água.
Olhou ao seu redor. As pessoas lhe dirigiam olhares curiosos. Suas vestimentas e seu porte físico chamavam muita atenção, muito mais do que ele poderia desejar para si. Ser um estrangeiro não ajudava muito. Ainda mais ser um estrangeiro de uma outra era. Observou os moradores trocarem comentários discretos sobre a identidade do desconhecido. Não que aquilo realmente o incomodasse, mas era bastante desconfortável sentir toda aquela atenção voltada para sua pessoa.
"Ora!" pensou. "Com o que eu estou preocupado? Em breve vou partir para outra era. Com certeza em alguns dias eles nem se lembrarão mais de mim."
Continuou sua caminhada, até parar na frente de uma propriedade. Era diferente das demais, mais bem cuidada e com um aspecto de conforto. Havia um humilde, porém belo jardim logo a frente da construção, onde era possível identificar, entre outras coisas, um figueira, em baixo da qual havia um banco de pedra.
Olhou para o céu. Pela posição do Sol, deveria ser por volta das três da tarde. Ficou contemplando o jardim, enquanto sentia sua boca cada vez mais seca. Foi então que notou um homem parado junto ao arco de entrada.
"Boa tarde." cumprimentou.
"Boa tarde." disse o estranho. "Posso ajudar em algo?"
"Por favor." falou o rapaz. "Meu nome é Shaoran. Sou um viajante, estou cansado. Perdoe-me por abusar de sua boa vontade, mas poderia fornecer-me um pouco de água?"
O homem o olhou. O pedido fora feito de tal forma e com tal humildade, que não havia como negar nem mesmo se ele quisesse. Com um aceno, convidou o jovem a entrar, convite que Shaoran acatou no mesmo momento sem hesitar. Cruzou o jardim e o arco de entrada, deparando-se com um pátio amplo e bem cuidado. Atravessou o átrio atrás do homem e finalmente entrou naquela que parecia ser a parte principal da casa.
"Sente-se." falou seu anfitrião, indicando um banco de pedra. O chinês fez o que lhe foi dito, permanecendo em silêncio. Observou o homem caminhar e desaparecer atrás de algumas pilastras. Tudo o que podia fazer era aguardar.
Enquanto esperava, sua mente mergulhou em pensamentos profundos, induzindo-o quase a um estado de torpor. Perguntou para si mesmo o porquê de tudo aquilo. Era como se sua vida tivesse virado de cabeça para baixo. Queria saber por que Kami-sama, Deus ou quem quer que fosse estava fazendo aquilo com ele. Seria algum tipo de punição? Mas pelo quê?
Novamente lhe voltou à memória as lembranças do confronto com Mikhael. Lembrou dos zumbis invocados pro Christian, que ainda lhe causavam calafrios à simples menção. Recordou-se do ataque do sacerdote das trevas, do poder que sentira e que o atingira. Os gritos de surpresa naquele momento foram vários. Ninguém esperava que o bruxo tomasse uma atitude tão extrema como aquela.
Lentamente, em seu coração, Shaoran começou a sentir a dúvida aflorar. Dúvida sobre toda aquela situação, sobre as razões de tudo aquilo. Mais ainda, sobre o desfecho que aquele episódio teria. Vira e comprovara a força de Mikhael. E naquele momento, tinha dúvidas de si próprio, de sua capacidade, de seu poder. Sentia-se tão impotente diante dos fatos quanto uma presa nas garras de seu predador. Sempre fora independente, mas naquele instante tudo o que queria era poder gritar para o mundo o quanto aquilo o frustrava e o assustava.
Imaginou se teria condições suficientes para enfrentar tamanho desafio de cabeça erguida, se conseguiria cumprir a missão que lhe fora dada, se conseguiria proteger Sakura e reverter o erro cometido há dois anos atrás, devolvendo, por fim, o sorriso e a felicidade àquela garota antes tão radiante.
Conquanto sua mente estivesse num turbilhão, quase num estado de completo caos, Shaoran ainda buscava em algum lugar de sua consciência a força necessária para se acalmar e refletir sobre tudo aquilo. De nada adiantaria ficar ali, parado, esperando que sua sorte fosse lançada. Não era de seu feitio esperar as coisas acontecerem. Queria respostas, portanto teria que ir atrás delas, não importando o medo que sentia.
O homem voltou, trazendo consigo uma jarra e um copo de barro. Encheu o copo e o estendeu a Shaoran, que o tomou em suas mãos rapidamente. Sorveu o líquido devagar e com gosto, sentido-o percorrer sua garganta e saciar a sede absurda que vinha sentindo desde que entrara em Betânia.
"Obrigado." disse o jovem, estendendo o copo de volta para seu anfitrião.
"De nada." replicou. "Parece-me muito cansado, meu jovem. Permita-me oferecer minha casa para que descanse. A nona hora há muito terminou. Já estamos nas vésperas. Logo o Sol vai se pôr. Gostaria de convidá-lo para cear conosco. Passará a noite aqui e amanhã poderá retomar sua caminhada."
Shaoran concordou, tocado com a cordialidade de seu anfitrião. Poucos acolheriam um viajante estranho em sua casa como aquele homem havia feito.
"És muito gentil." disse o rapaz.
"Não foi nada." respondeu o homem. "A gentileza é uma virtude dos homens. A cordialidade é algo que todas as pessoas deveriam aprender a cultivar. Aprendi muito sobre gentileza com o Mestre. A propósito, meu nome é Lázaro."
Shaoran sorriu. Foi então que uma dúvida surgiu em sua mente.
"Por favor, poderia me dizer em que época do ano estamos?"
"Estamos no mês de abril e hoje é Terça-feira." disse o homem. "Estamos há quatro dias da Páscoa."
"Páscoa?" pensou Shaoran.
"Sim. E esse ano a Páscoa será celebrada no Sábado!"
Naquele momento, uma mulher entrou no aposento. Não usava véu, permitindo que o jovem visse seu farto cabelo escuro.
Parou por alguns minutos, encarando Shaoran e, em seguida, dirigindo-se à Lázaro, sussurrou discretamente em seu ouvido. O homem agradeceu com um sorriso.
O jovem guerreiro continuou conversando com Lázaro durante mais algum tempo. Falavam sobre nada realmente importante: o calor daquele dia, os mercadores do deserto, a celebração da Páscoa dali há alguns dias.
Shaoran não demorou a perceber que a noite rapidamente havia tomado seu lugar, substituindo o dia que antes dominava. A temperatura havia caído consideravelmente. O chinês observou enquanto Lázaro acendia algumas lamparinas a óleo. Logo, a mesma mulher que havia entrado antes voltou, dirigindo a palavra novamente ao senhor.
"Obrigado, Marta." ele agradeceu, logo em seguida virando-se para Shaoran. "Vamos dar início à ceia. Por favor, acompanhe-me."
O rapaz seguiu Lázaro até um outro cômodo, onde Marta já os esperava. Junto a ela, havia mais alguns homens e mulheres, que imediatamente se viraram e se puseram a fitar Shaoran
"Gostaria de apresentá-los ao nosso convidado desta noite." falou Lázaro. "Este é Shaoran. Esteve viajando pelo deserto e eu o convidei a descansar e a cear conosco esta noite."
Houve um pequeno balburdio. Imediatamente, um dos homens que estava sentado levantou, dirigindo-se a Lázaro:
"Tem certeza, meu senhor? As coisas estão se agravando, como o senhor bem sabe. Seria prudente acolher um estranho diante das circunstâncias?"
"Ora!" exclamou Lázaro. "Não deve ter medo. Posso dizer que este jovem não nos fará nenhum mal. Pensei que houvessem aprendido a serem gentis com o próximo. Pois me decepcionam ao negar ajuda a uma pessoa necessitada. Somos todos irmãos e como tais não deveríamos negar conforto a um semelhante!"
Todos baixaram as cabeças, murmurando algo que Shaoran pensou ser um pedido de desculpas. Sentaram-se, por fim, à mesa. A ceia estava farta. Havia sido servido um pedaço de carne, feijão, alguns cereais e frutas secas — Shaoran foi atraído especialmente pelas tâmaras e figos. Para beber havia vinho, servido em copos iguais ao que ele usara algumas horas antes.
A refeição transcorreu tranqüilamente. As pessoas conversavam animadamente. Pela primeira vez em horas, Shaoran se permitiu distrair um pouco. Relaxou afinal, esquecendo-se momentaneamente as dúvidas e incertezas que atormentavam sua mente, sua alma e seu coração.
Quando finalmente terminaram de comer, Shaoran sentia-se saciado por completo. Então, Lázaro se levantou, dirigindo sua palavra à todos os presentes:
"A noite já vai alta. Sugiro que nos retiremos."
Dito isso, todos começaram a se levantar. As mulheres recolheram as sobras, pratos e copos. Em alguns minutos, tudo já estava limpo.
"Permita-me guiá-lo até seu aposento." falou Lázaro. O chinês seguiu seu anfitrião através dos cômodos da casa, até chegar a um quarto pequeno, nos fundos da casa.
"Pode dormir aqui esta noite." falou o senhor. "E perdoe-me pelos comentário de meus servos, mas temos enfrentado uma situação um pouco difícil nos últimos tempos."
"Não tem problema." falou o rapaz. "Eu entendo como é desconfortável ter um estranho sentado à mesa."
Lázaro sorriu.
"Boa noite, irmão."
"Boa noite." falou Shaoran, deitando-se na cama e adormecendo imediatamente.
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Shaoran se encontrava preso em um quarto, tendo somente a escuridão ao seu redor. Perto dali, o rapaz podia ver um filete de luz passando pela fechadura da porta e trazendo um ínfima partícula de luminosidade para dentro daquele aposento fúnebre.
Caminhou até a porta, guiado somente pelo mínimo filete luminoso. Encostou o ouvido na porta, na tentativa inútil de escutar algo. Decidiu, por fim, abri-la.
Girou a maçaneta com cuidado, procurando não fazer ruído algum. Do outro lado, Shaoran se deparou com uma passarela larga e comprida.
Colocando pé ante pé, pôs-se a caminhar, percorrendo aqueles metros lentamente. Conseguiu vislumbrar uma pequena comoção há uma pequena distância. Começou a correr. Em pouco tempo chegou onde queria — ou será que queria?
Diante de seus olhos, ele podia ver nitidamente a batalha contra o grupo de Mikhael que ocorrera anteriormente.
Tudo ocorria de forma tão absurdamente clara, cada passo, cada movimento. Tudo era ainda mais intenso do que no momento em que realmente vivenciara aquilo.
O guerreiro viu quando Katrina, ao lado de Eriol, ergueu a mão direita, conjurando uma barreira de luz sólida que interrompeu um ataque do sacerdote negro.
Não muito longe, pôde ver a si mesmo ao lado de Patrick, ambos encarando Christian. A cena da convocação dos zumbis se repetiu, trazendo de volta consigo a sensação de desconforto e o calafrio na espinha que o jovem sentira naquele momento.
"Outro sonho." pensou Shaoran, se esforçando para prestar atenção em tudo.
Kirsten bloqueava um golpe desferido por Eric, contra-atacando logo em seguida com uma forte investida contra a cabeça do guerreiro. Para sua decepção, entretanto, seu oponente facilmente saltou, evitando o impacto da espada da guerreira.
Logo ao lado, Sakura enfrentava Zilah que era, certamente, uma rival poderosa.
"Escudo!" Shaoran a ouviu gritar, apenas alguns instantes antes de ser alcançada pela bola flamejante da bruxa. Mais alguns segundos e a garota teria se tornado cinzas.
"Espada!" clamou, fazendo seu báculo tomar a forma de uma longa espada ornamentada. Saltou, golpeando duramente na direção de Zilah, que foi obrigada a utilizar um feitiço de agilidade para saltar e esquivar-se do movimento de Sakura.
Shaoran observou os zumbis do velho bruxo tomando todo o lugar. Viu também claramente quando Katrina pronunciou o feitiço da luz, que derrotara as nefastas criaturas e trouxera o resplendor àquele lugar antes tão carregado de sombras.
E foi no exato momento em que a luz reconfortante tocou cada parte daquele lugar, que o jovem vislumbrou uma silhueta escondida ao longe. Foi apenas por um segundo. Contudo, antes que pudesse sequer confirmar sua visão, Mikhael atacou, surpreendendo a todos. Shaoran novamente viu a face do mago se contorcer em uma máscara de insanidade e hostilidade, ao mesmo tempo em que todos caíam da passarela...
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Shaoran acordou tarde no dia seguinte, algo bastante incomum a alguém acostumado a treinos matinais e exercícios prolongados. De fato, a luta com Mikhael, somada à longa e exaustiva caminhada pelo deserto, havia exaurido suas energias por completo.
Espreguiçou-se, sentindo suas costas doerem.
"Maldita cama." praguejou o rapaz. "Dura demais."
Levantou-se, esticando o corpo lentamente.
"Droga de sonho inconveniente." pensou. Aquele sonho, além de trazer de volta cenas que o jovem preferia esquecer, ainda lhe mostrara algo que ninguém aparentemente havia percebido. Ele podia jurar que vira alguém observando a disputa de longe. Ou será que vira? Talvez sua mente estivesse cansada e perturbada demais e ele estivesse começando a imaginar fatos, mesclando-os às suas memórias reais. Ele não podia dizer ao certo, pois naquele momento a lembrança do sonho começava a desvanecer, deixando somente vestígios mínimos em sua lembrança.
"A mente é cheia de truques." murmurou para si mesmo. No instante seguinte, Lázaro adentrou o recinto, exibindo um largo sorriso.
"Finalmente acordou, meu jovem! De onde você vem, todas as pessoas costumam acordar tarde? Já estamos na terceira hora!"
Shaoran sorriu, um pouco sem graça. Então, apanhando suas coisas de cima de um banco de pedra que havia no quarto, passou a caminhar, acompanhado de Lázaro.
O homem o guiou até o local da ceia na noite passada. Lá, uma das mulheres serviu ao jovem uma caneca de leite fumegante, bem como um generoso pedaço de pão e algumas frutas secas. Shaoran novamente preferiu os figos e as tâmaras.
Feito o desjejum, o rapaz decidiu que já era hora de ir embora. O tempo era curto e cada minuto era precioso.
Enquanto caminhava para o jardim, não pôde deixar de notar que o ambiente estava estranhamente agitado. Ao indagar Lázaro sobre o fato, tudo o que recebeu foi um olhar triste do homem, que lhe disse:
"Não se preocupe com isso. São coisas que um estrangeiro como você não poderia compreender. Vá em paz, meu jovem. E jamais se esqueça de cultivar a cordialidade entre as pessoas."
Shaoran assentiu, agradecendo ao bondoso homem pela hospitalidade. Então, sem virar-se para trás mais nenhuma vez sequer, partiu, tendo como destino a cidade próxima de Jerusalém.
Caminhou em silêncio, até chegar àquela que era a famosa cidade santa. De fato, não era por acaso que, além de disputas religiosas, Jerusalém também era palco de disputas entre magos e facções místicas de todos os tipos. O poder que aquela cidade emanava era algo formidável, realmente fora do comum. Havia um quê de magnífico nela. Praticamente não havia paralelos para a energia que o local exalava, impregnando todos os sentidos do jovem guerreiro chinês.
Recordando-se da aula que Eriol ministrara durante seu inusitado primeiro encontro, Shaoran rapidamente reconheceu aquele local como sendo um Node; um Node de poder incomensurável.
"Agora entendo as razões de tanta balbúrdia sobre uma simples cidade. Apenas o fato de estar aqui já faz com que nos sintamos mais fortes e energizados." falou o jovem.
Caminhou lentamente pelas as movimentadas ruas da cidade santa, prestando atenção em cada detalhe, em cada pessoa, em cada construção. Chamou sua atenção, especialmente, uma grande edificação na parte oeste da cidade, que Shaoran pensou ser o lendário palácio de Herodes.
Passou pela parte alta da cidade, cruzando o Cenáculo e o Siloé. Percorreu também a parte baixa, observando suas construções simples e rudimentares, quase grosseiras diante de seus olhos maravilhados. Para alguém acostumado às curvas sinuosas dos templos chineses, bem como às modernas construções do século XXI, aqueles conglomerados de pedra constituíam uma visão quase brutal.
Caminhando mais um pouco, o rapaz passou na frente de uma grande construção. Possuía uma estrutura diferente das demais. Tinha bases bastante sólidas, as paredes erguidas com pedras lavradas — certamente pedras basálticas — e que levavam um acabamento refinado. O pórtico de entrada era resguardado por duas sentinelas trajando algo semelhante a vestes romanas.
Shaoran parou diante da edificação. Pela centésima vez revirou sua mente em busca de seus conhecimentos de História e Geografia. Aquela deveria ser a Fortaleza Antônia, que fora palco da terrível crueldade contra Cristo. Lá, o Nazareno fora açoitado e humilhado sadicamente. Diante daquela lembrança, o chinês não pôde deixar de pensar:
"Como as pessoas podem ser tão cruéis umas com as outras?"
Continuou caminhando, chegando por fim ao grande templo de Jerusalém e adentrando o pátio dos gentios. De imediato, o jovem viu muitas barracas armadas que vendiam, entre outras coisas, pombos e cordeiros para o sacrifício pascal. As barracas eram em sua maioria bastante rudimentares, erguidas com madeira e trapos. Na verdade, tudo aquilo era uma grande bagunça. As armações estavam todas espalhadas aleatoriamente, dando um aspecto caótico ao local. Um grande número de pessoas ia e vinha em um fluxo contínuo e desenfreado, contribuindo para aumentar ainda mais a enorme confusão presente naquele lugar. O barulho feito pelos pombos e pelos outros animais dava um ar de desordem e uma sonoridade bastante peculiar àquele sítio.
Shaoran ainda ficou naquele local durante algum tempo, quando decidiu voltar a caminhar. Ele não sabia exatamente porquê, mas sentia uma estranha necessidade de andar.
Continuou sua passagem através de Jerusalém, tendo a sua frente somente as rígidas construções de pedra. Já devia ser quase meio dia, ele podia dizer pela posição do Sol, já alto no firmamento.
Enquanto andava, novamente a lembrança do ataque de Mikhael voltou a assombrá-lo. Havia algo errado. Não era comum que a cena de uma batalha lhe perturbasse tanto e com tal intensidade. Talvez houvesse algo... E foi então que lhe voltou à memória o sonho que tivera na noite anterior. Poderia aquele sonho ter tentado mostrar algo a ele? Talvez a misteriosa figura que se escondia nas sombras? Forçou sua mente, tentando lembrar com detalhes o que vira, mas tudo se mostrou em vão. A imagem do sonho já estava por demais dispersa para ser reconstituída em sua totalidade.
"Droga!" exclamou. Estava tão absorto em seus pensamentos, que não notou que há muito deixara a cidade santa para trás. Se encontrava naquele momento em campo aberto e tudo o que podia ver era o solo arenoso que o rodeava, cortado aqui e ali por um ocasional arbusto.
"Ótimo!" pensou. "Agora preciso descobrir onde estou."
Andou por mais um tempo, sem obter sucesso. A fome e a sede começavam a dominá-lo novamente, mas desta vez, não haveria Lázaro para socorrê-lo. Estava cansado e não pôde evitar que um suspiro escapasse de seus lábios. Caminhou mais um pouco, sentando-se afinal em uma rocha que havia no meio do caminho.
Foi naquele momento, quando o rapaz achava que poderia descansar por alguns instantes, que seu peito foi subitamente tomado por uma dor forte e absurda. Ele já havia sentido aquela dor anteriormente, no Castelo do Tempo, um pouco antes do início da Jornada. Sua aflição suavizou por um breve momento, um breve espaço de tempo, mas logo em seguida voltou, lancinante, pungente, rasgando ambos corpo e alma. O jovem se contorceu, apertando o peito com as mãos na tentativa desesperada de amenizar seu sofrimento. Aquela angústia era mais forte do que ele podia suportar. Sentia como se estivesse sendo lentamente partido em dois.
E foi então, quando um grito de agonia ameaçava escapar-lhe da garganta, que Shaoran sentiu uma mão tocar-lhe a face. Um estranho formigamento correu pelo seu corpo e ele sentiu a dor abandoná-lo lentamente, à medida que um sentimento morno e reconfortante tomava seu lugar e o fazia relaxar.
"Estás bem?" perguntou uma voz. Era grave, mas ao mesmo tempo suave. O chinês imediatamente notou que um homem lhe dirigia a palavra, o mesmo homem que tocara sua fronte.
"Estou." respondeu, com um pouco de dificuldade. "Obrigado, meu senhor, o que quer que tenha feito."
O homem sorriu e Shaoran, pela primeira vez, dirigiu o olhar ao estranho. Chamou-lhe a atenção a constituição do homem. Devia ter por volta de 1,80 metro e possuía fartos cabelos castanhos, divididos ao meio. A barba era abundante, embora bem cuidada. Tinha traços leves e um olhar suave. Trajava uma túnica branca, coberta por um manto leve.
Ao seu lado, estava um garoto. Tinha por volta de treze anos e encarava Shaoran de maneira peculiar.
"Meu nome é Shaoran. Obrigado." ele agradeceu novamente, desta vez olhando para aquele que o auxiliara. "Foi uma boa magia."
"Magia?" retorquiu o homem, com expressão de estranhamento. "Não sei do que estás falando. Não fiz magia nenhuma. Apenas acreditei e dei meu amor."
O rapaz estranhou a resposta, mas sorriu do mesmo jeito. Colocou-se em pé, observando aquele que o auxiliara fazer o mesmo.
"Tu pareces perturbado, meu jovem. Permita-me compartilhar tua angústia." falou o homem, fazendo sinal para que Shaoran voltasse a se sentar na rocha e tomando lugar ao lado dele. "Que te aflige?"
O guerreiro não soube o motivo exato, mas algo o incitava a confiar naquele homem. Por isso, pôs-se a falar.
"Aflige-me a sensação que venho tendo durante as últimas semanas. Minha vida teve uma mudança brusca de direção e eu não sei mais que rumo tomar. Estou perdido."
"As mudanças não são de todo um mal."
"Talvez." falou o jovem. "Mas as mudanças que operaram em minha vida só me trouxeram problemas. Gostaria de saber porquê Deus está fazendo isso comigo."
"Deus sabe o que faz, jovem. E Ele só colocaria obstáculos diante de ti se soubesse que serias capaz de transpô-los. Deus é sábio e jamais cometeria a injustiça de fazê-lo sofrer."
"Como sabe tanto sobre Deus?" perguntou, angustiado.
"Foi Deus quem me criou, assim como criou a ti."
"Fala de Deus como se ele estivesse tão próximo."
"E ele está!" exclamou o homem. Shaoran o encarou profundamente. Não longe dali, o garoto que acompanhava aquele estranho assistia a tudo com atenção.
"Se Deus está tão perto de ti, dize-me então quem Ele é."
"Em verdade, em verdade te digo. Deus não está somente perto de mim. Ele também está contigo em cada passo que dás. Deus é Amor. E por isso, não deveis perder tua fé nele e nem duvidar de seus métodos."
"Você afirma que Deus é Amor. De onde venho, porém, as pessoas parecem se esquecer disso a cada dia. Se esquecem de si mesmos e até d'Ele. As pessoas condenam umas às outras em nome de Deus, proclamando seu castigo perante os homens."
"Deus não condena ninguém, Shaoran." falou o estranho com a voz macia. "É de dentro do coração dos homens que saem as intenções malignas. Dize-me, tu condenarias teu próprio filho a sofrer eternamente por um erro que cometeu?"
Shaoran balançou forte a cabeça num claro sinal de negação.
"Pois da mesma forma, Deus jamais condenaria os homens com tal crueldade, pois somos todos seus filhos."
Shaoran parou por um minuto, refletindo as palavras que ouvira. Por fim, falou novamente:
"É estranho. De onde venho, muitas pessoas encaram Deus com medo de seu castigo, com medo de serem condenadas ao inferno. Todos falam de Deus com tanta reverência e respeito mas, ao mesmo tempo com tanto temor."
"A boca fala daquilo de que o coração está cheio. O homem bom, do seu bom tesouro tira coisas boas, mas o homem mau, do seu mau tesouro tira coisas más. Tu me descreveste um Deus tirano, alguém cuja única obsessão é castigar e punir. Em verdade te digo, Deus é Amor ilimitado e eterno, Shaoran. Mais que isso, é a perfeição. A criatura que tu me descreveste tem como obsessão castigar. Uma obsessão é um defeito. Assim sendo, tal criatura não é Deus! Não existe um Deus tirano como o que me descreveste."
"Sim." disse Shaoran. "Entendo. Vejo que está com a razão. De qualquer modo, gostaria de encontrar uma solução para as questões que me atormentam. Fui atacado durante minha viajem e separado dos meus amigos. É grande a preocupação que sinto por eles."
"Acalma-te. Suaviza teu coração. Tua preocupação é desnecessária. Meu Pai estará com eles independente de onde se encontrarem."
"Mas tenho medo que eles sejam novamente atacados." disse o jovem, de cabeça baixa. "Temo por sua segurança."
"E acredito que tomarias o lugar deles sem hesitar se dessa forma pudesse poupá-los do sofrimento, não estou certo?" falou o homem. Shaoran concordou silenciosamente, sentido o olhar do estranho sobre si.
"Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos." ele o ouviu dizer. "Posso afirmar que tu vens de uma família muito nobre, rapaz."
Shaoran o olhou com estranheza. Quem seria aquele homem?
"Como pode afirmar tal coisa se nem ao menos sabe de onde venho?" indagou.
"É pelo fruto que se conhece a árvore." respondeu. "Vejo em ti um caráter muito forte, bem como uma grande benevolência. Da mesma forma deve ser tua família, pois somente uma família forte pode gerar descendentes fortes."
"Talvez." murmurou Shaoran. "Mas não sei se sou tão forte e corajoso como diz. Tenho medo que algo de errado possa acontecer depois de tudo."
"Ser corajoso não significa não ter medo. Ser corajoso significa possuir a força necessária para fazer o que é correto, a despeito do medo e dos obstáculos que são colocados em teu caminho."
"Como posso ter essa força?" inquiriu.
"Tudo é possível àquele que crê." disse o homem. "Basta acreditar em ti, em tua própria capacidade. Não tema. Vai dar tudo certo."
O chinês sorriu diante daquele comentário. Por um breve momento, lembrou de Sakura e imaginou a garota falando a mesma coisa. Súbito, sua alma suavizou, devolvendo-lhe as esperanças que pensara haver perdido.
"Obrigado, amigo." disse o rapaz. "Suas palavras me devolveram o ânimo e a vontade de lutar por aquilo que acredito. Não voltarei a duvidar das minhas capacidades."
O estranho se levantou e caminhou até o garoto que os assistia a alguns metros de distância. Tomou a cesta que o menino trazia nas mãos e apanhou algo de dentro, devolvendo-a ao jovem em seguida.
"Fico feliz por ouvir tais palavras." disse o homem, dirigindo-se à Shaoran e estendendo-lhe uma maçã e algumas tâmaras secas. "Toma. Deves estar com fome. Leva contigo. Não é muito, mas vai ajudar-te um pouco."
Shaoran sorriu, tomando o alimento em suas mãos e agradecendo humildemente pela comida que lhe fora oferecida de tão bom grado.
Então, levantando-se também, fez uma reverência ao homem que o ajudara. Este, estendeu-lhe a mão, dizendo:
"Que Deus Pai te abençoe e te agracie com sua glória. Ide em paz."
"Desejo o mesmo." falou Shaoran.
O homem virou e começou a caminhar, sempre acompanhado do garoto. Então, antes que o estranho se afastasse demais, Shaoran lhe dirigiu a palavra pela última vez.
"Permita-me saber o nome daquele que me ajudou!"
"Chamo-me Jesus." falou o homem, que rapidamente se distanciou de onde antes estivera, deixando para trás um atônito guerreiro, que não acreditava no que seus ouvidos haviam acabado de escutar. Ele realmente havia falado com o Nazareno, o rabi da Galiléia. Shaoran havia conversado com o Cristo!
Sem que pudesse evitar, seu corpo foi tomado de um súbito calafrio, que lhe percorreu a espinha e o fez estremecer levemente, tamanha a emoção que sentia.
Ainda atordoado pelo impacto da descoberta, Shaoran levou as mãos ao pingente de ouro que adornava seu pescoço, concentrando-se e, com um estampido e um lampejo de luz, sumindo por completo.
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Nota do autor: As horas utilizadas neste capítulo correspondem ao sistema horário utilizado na época de Cristo. A Terceira hora corresponde aproximadamente às 9 da manhã. A Nona hora entre 2 e 3 da tarde e as Vésperas compreendem o período que vai das 4 e meia até o pôr do Sol.
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Aqui termina mais um episódio. Espero que vocês tenham gostado dele. Foi o que mais me deu trabalho até agora, não só para montar o diálogo de Shaoran com Jesus como para conseguir informações precisas sobre detalhes geográficos e históricos. Mas não posso reclamar, uma vez que adorei o processo de composição desta parte.
Eu considero este capítulo um divisor de águas. A partir deste ponto as coisas vão começar a ficar mais pesadas. Reforço aqui o que eu afirmei anteriormente: não recomendo esta saga a crianças.
É preciso distinguir o escritor do ser humano. Muitas das coisas que escreverei daqui para frente não refletem, necessariamente, minha opinião sobre o assunto. As palavras irão somente expressar o mundo e a opinião de cada personagem, podendo elas serem ou não conflitantes.
Gostaria de dedicar este capítulo à Andréa, nossa aniversariante da semana! Dréa, minha amiga, obrigado pela conversa que tivemos outro dia a respeito deste capítulo. Ela me ajudou muito e teve um papel fundamental para que eu pudesse terminá-lo. Desejo-te felicidade do fundo do coração!
No mais, vou ficando por aqui.
E já sabem! Ficarei aguardando ansiosamente seus comentários!!!
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai