Capítulo Oito — O Preço de Uma Vida
Eriol sentou-se no banco ao lado de Kirsten, estendendo-lhe o copo com chocolate quente. Os dois companheiros permaneciam em silêncio, imersos em seus próprios pensamentos. Ao seu redor, as luzes do Central Park se acendiam, à medida que a noite começava a dominar a paisagem gélida e deserta. Havia pouco movimento àquela hora. A maioria das pessoas já estava no conforto de suas casa, com suas famílias, tendo uma refeição decente enquanto conversavam animadamente.
Mas não aqueles dois. De fato, pensavam em como solucionar o problema que os rondava. Eriol tinha sua atenção fixa em Mikhael, seu ataque e suas razões. Era óbvio que a participação do sacerdote das trevas naquela história não se resumia somente a vingar Klaus pela Irmandade. Havia algo mais, algo que escapava aos seus sentidos e à sua percepção. O poder que ele demonstrara possuir estava muito além da concepção mortal e humana. Eriol era fascinado por enigmas, mas aquele em particular o perturbava. Em sua mente, o inglês podia visualizar tudo aquilo como peças de um quebra-cabeça que, entretanto, não possuíam aparente conexão entre si.
Ao seu lado, Kirsten se lembrava dos acontecimentos dos últimos dias, repassando com detalhes tudo o que vivera e presenciara nas últimas horas, desde o momento em que Patrick a convidara a integrar o grupo até o recente ataque do sacerdote de Tenebras. A missão demandava especial cuidado, não só por lidar com um viajante dimensional, mas especialmente por isso. Era um fenômeno raro e por essa razão merecia atenção dobrada.
Voltou sua atenção para o confronto contra Mikhael. Assim como Patrick, ela perguntou a si mesma como o bruxo conseguira entrar na passarela do tempo sem a permissão dos três Dragões, imaginando que tipo de ritual teria poder suficiente para fazer tal coisa. Repassou mentalmente sua disputa contra Eric, analisando os movimentos de seu rival e memorizando sua técnica. O homem era perigoso. Não que estivesse realmente com medo do guerreiro, mas a simples idéia de falhar com a Ordem que a treinara com tanto afinco a deixava apavorada.
Ingressara havia poucos anos na Ordem dos Dragões do Tempo, seguindo os passos de seus pais, também Cavaleiros do Tempo. Sua família tinha certa tradição junto aos Dragões e já os acompanhava havia algumas gerações. A Ordem sempre fora uma das mais respeitadas e uma das mais requisitadas também, quando o assunto em pauta envolvia dimensões e quesitos temporais. Refletindo sobre tudo o que já vira desde que começara a trabalhar junto aos Cavaleiros, Kirsten pensou que aqueles cinco anos pareciam muito mais do que realmente eram. Seus vinte e três anos lhe pesavam sobre os ombros muito mais do que aparentavam.
"O tempo sempre foi nosso amigo." pensou a guerreira. "Agora corremos contra ele de forma tão desesperada."
Eriol não pôde deixar de notar um sorriso melancólico que sua companheira esboçou, enquanto erguia a cabeça e contemplava as muitas árvores que os rodeavam. Tentando dar algum apoio à amiga, o inglês suavemente pousou uma mão sobre o ombro da jovem, enquanto a olhava, sorrindo e tentando transmitir conforto.
"Não tema." disse. "Vamos resolver tudo isso. Eu sei que vamos."
Kirsten sorriu, acenando com a cabeça e concordando com o rapaz. Tomou um gole do chocolate quente, enquanto olhava ao redor e pensava em como tudo aquilo era tão diferente de suas lembranças. Estivera antes em Nova Iorque, quando criança, em uma viagem com sua família, mas aquela era a cidade de Nova Iorque dos anos 60 e em muito pouco se assemelhava às suas recordações. Claro, ainda havia uma grande agitação e um elevado fluxo de pessoas durante o dia, bem como a mesma sensação de vazio àquela hora da noite.
"O que faremos, Eriol?" indagou.
"De nada adiantará preocupar-nos com tantas questões e mistérios. Primeiro temos que retomar a jornada, querida amiga, encontrar nosso caminho. Depois pensaremos no que fazer." respondeu o mago, pensativo. Kirsten assentiu, lançando-lhe um olhar carinhoso.
"Já faz tanto tempo, não?" perguntou ela. Eriol pareceu não entender. "Desde que nos vimos pela última vez."
"Desde que você ingressou na Ordem, há cinco anos." disse o inglês, pensativo. "Lembro-me que foi algum tempo depois que retornei à Inglaterra, após o episódio com as cartas."
Kirsten assentiu, relembrando o dia em que deixou Londres para ser iniciada na Ordem do Tempo.
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Acabara de completar dezoito anos. Finalmente, depois de tanto treinamento árduo, ela iria se tornar uma guerreira e sacerdotisa da Sagrada Ordem dos Dragões do Tempo. Ouvira tantas histórias a respeito dos feitos extraordinários que seus membros já haviam realizado. E agora era a vez dela também poder realizar feitos tão grandiosos quanto aqueles.
No entanto, alguma coisa em seu coração não a deixava ficar empolgada. Esperara tanto por aquele momento. Ansiara tanto pelo dia em que finalmente poderia colocar em prática tudo o que aprendera. Mas naquela hora, seu coração lhe traía.
Enquanto arrumava suas malas, olhava seu quarto pela última vez. Através da janela, o Sol se mostrava alto, tocando com seus raios quentes e fúlgidos a cama vazia. Contemplou aquele espaço desocupado, pensando que só o veria novamente dali há um ano, devido ao período de isolamento pela qual todos os iniciados deveriam passar.
"Por que estou com medo?" pensou.
"O medo é parte natural da vida." ela ouviu uma voz dizer. "Ele acompanha cada mudança de nossa existência fazendo com que, através de nossos temores, aprendamos a dar maior valor à nossa felicidade e àquilo que amamos."
Virou-se para se deparar com os olhos azuis de Eriol. O garoto a fitava profundamente, quase hipnotizando-a com a vivacidade daquelas duas gemas, brilhantes como um céu numa noite estrelada.
"Não sei o que está acontecendo, Eriol." disse ela, sentando-se em sua cama. "Sempre quis ser como meus pais, seguir seus passos, realizar seus feitos. Agora que minha hora finalmente chegou, tenho tanto medo. Medo do que possa acontecer daqui por diante, medo de que não me aceitem, medo de ter estudado tanto para nada."
"O medo de falhar é a única coisa que pode fazer você falhar." falou Eriol, sentando-se ao lado dela. "Não há razão para ficar tão receosa. Isso tudo está no seu sangue. Não deixe o medo dominá-la. Domine-o."
Ela não conseguiu dizer nada. Na verdade, ela não queria dizer nada. Apenas encostou sua cabeça no ombro do garoto, fechando os olhos e suspirando longamente. Refletia sobre as palavras de seu amigo, como sempre tão sábio e compreensivo. Num impulso quase inconsciente, enlaçou seu pescoço, envolvendo-o em um abraço desesperado. Era incrível como ele conseguia fazer com que ela se sentisse bem.
"Gostaria de ser como você, Eriol. Independente, seguro de si."
"Você pode ser." disse ele. "Mas você ainda não encontrou seu rumo. Procure seu caminho. Quando encontrar a si mesma, então poderá ser tudo aquilo que quiser."
"Não entendo." ela respondeu.
"Você entenderá." ele replicou, levantando-se e estendendo a mão para ela. "Quando chegar a hora você entenderá."
A moça sorriu e olhou para o garoto. Mesmo com seus apenas treze anos de idade, ele tinha quase a altura dela. Aceitando a mão que lhe era oferecida, levantou-se da cama, fechando a mala sobre o chão.
Passaram a tarde toda conversando. Ora sobre o que a aguardava, ora sobre tudo que havia no Universo, ora sobre nada em especial. No fim do dia, todo o receio havia deixado Kirsten.
Os dois amigos observaram do jardim a Lua prateada substituir o antes dominante Sol vermelho. Logo a noite havia caído por completo, mergulhando a cidade em sua suave penumbra.
Sentada no degrau da porta Kirsten olhou Eriol. Era surpreendente a forma como seus olhos pareciam se mesclar à cor do céu noturno, brilhando e resplandecendo tanto quanto a Lua espelhada.
Por fim, ouviram um ruído vindo de dentro da casa. Entraram já sabendo o que encontrariam. Na sala, ao lado do espelho, duas pessoas trajando mantos que exibiam uma ampulheta dourada no peito aguardavam pacientemente.
"Olá, Kirsten." disse a mais baixa das duas figuras, revelando-se uma senhora de traços rudes, mas com um olhar muito simpático. "Viemos em nome da Sagrada Ordem dos Dragões do Tempo para levá-la até a presença de nossos Mestres. É chegada a hora de seu rito de iniciação."
Kirsten se aproximou, tendo em seu rosto um olhar decidido. Após a conversa que tivera com Eriol, seu espírito encheu-se de determinação.
"Aqui estou." falou a garota, logo em seguida virando-se para o mago inglês. "Devo ir agora. Obrigada por tudo Eriol. Espero te ver de novo daqui há um ano."
"Eu também." falou o jovem.
Abraçaram-se com força. Kirsten quis demonstrar naquele abraço o quanto ele era importante para ela.
"Adeus, Eriol." falou a moça. "Vou sentir sua falta."
"Adeus não." disse o jovem. "Até um dia."
Separaram-se, finalmente, cada um trazendo um sorriso no rosto. Então, pegando suas coisas, Kirsten se afastou, indo de encontro aos dois membros da Ordem.
"Estou pronta." falou. As duas pessoas se viraram e entraram novamente no espelho, sendo prontamente seguidos por Kirsten. Logo, a sala estava vazia, tendo somente Eriol ao centro dela.
Virou-se, finalmente, olhando pela última vez ao ambiente ao seu redor. Então, caminhou em direção à porta, cruzando-a e fechando-a atrás de si.
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"Hoje eu compreendo o que você quis dizer quando falou que eu deveria encontrar meu caminho, encontrar a mim mesma." falou Kirsten. "Talvez se você não tivesse dito aquilo, eu jamais tivesse descoberto o sentido de minha vida e jamais tivesse encontrado o rumo certo a percorrer."
Eriol apenas sorriu. Ela havia mudado bastante desde a última vez que se viram. Muito mais do que ele poderia esperar. Aquela garota insegura havia se tornado uma mulher formidável. E isso trazia uma imensa satisfação ao jovem inglês.
"Senti sua falta." falou a guerreira. "Você sempre foi como um irmão mais novo para mim, Eriol, embora sua sabedoria seja muito maior que a minha. Agora está um homem formado. Me pergunto se o papel de irmã mais velha era realmente meu, ou se era você quem se ocupava em ser meu irmão maior. Seus conselhos sempre me ajudaram tanto. Graças a você eu pude me tornar tudo que sou hoje. Espero um dia poder retribuir."
Eriol sorriu de novo. Realmente ela havia amadurecido muito naqueles cinco anos. Estava mais forte, segura de suas próprias habilidades e mais confiante em si própria. Tomou as mãos de Kirsten entre as suas, procurando mostrar que ele também sentira saudades. Num súbito impulso a moça o abraçou, como se quisesse compensar todos os anos que ficaram afastados um do outro.
De fato, Eriol e Kirsten se conheciam de longa data. A jovem nascera na Holanda, mas seus pais se mudaram para a Inglaterra ainda cedo, quando a garota tinha apenas dois anos, passando a viver ao lado da casa da família Hiiragizawa. Conheceram-se cedo, Eriol ainda era um bebê quando Kirsten o viu pela primeira vez. Conforme foram crescendo, a amizade entre os dois foi aumentando. Apesar de ser cinco anos mais velha que o jovem inglês, ela sempre apreciou sua companhia. Talvez por ele ser a reencarnação de Clow, desde tenra idade já demonstrava mais maturidade que as outras crianças. Isso os aproximou ainda mais.
"Quem poderia imaginar que um dia trabalharíamos juntos." disse o inglês, sorrindo e tomando o que restava de seu chocolate.
"Ninguém." respondeu Kirsten, fazendo o mesmo. Mas, antes que pudessem continuar a conversa, um ruído peculiar chamou a atenção da dupla. Levantando-se rapidamente, os dois se puseram em estado de alerta. Mesmo que não fosse um ataque por parte de Mikhael ou algo semelhante, Nova Iorque ainda não era a cidade mais pacata do planeta.
Eriol já segurava sua chave, olhando com atenção ao seu redor. A visão que teve, porém, surpreendeu-o, bem como a Kirsten, que já levara as mãos à sua espada. Em um canto do parque, apoiado em uma árvore, estava um homem. O rapaz não pôde deixar de notar que lhe faltava uma perna. Ao seu lado, havia uma garrafa completamente vazia.
"Apenas um bêbado." sussurrou Kirsten, aliviada. Entretanto, seu alívio durou muito pouco. O estranho sacou um revólver de um coldre escondido dentro do paletó surrado, apontando-o para a própria cabeça. Nenhum dos dois teve tempo suficiente para pensar. Deixando que seus instintos o guiasse, Eriol transformou seu báculo, erguendo-o na direção do homem e imobilizando-o por completo. Nesse meio tempo, Kirsten já havia se aproximado do suicida, tomando a arma de suas mãos e descarregando-a totalmente. Não levou mais que alguns segundos, alguns instantes. Talvez se tivessem demorado um pouco mais, esperado um pouco mais, uma tragédia houvesse acontecido.
Respiraram aliviados, sentindo um calafrio percorrer suas espinhas ao simples pensamento de que, se não houvessem agido com tanta rapidez e sincronia, uma vida poderia ter sido perdida.
Eriol se aproximou, recolhendo o báculo. O homem havia perdido a consciência, um pequeno efeito colateral do feitiço utilizado pelo mago. Ao seu lado, Kirsten levou as mãos ao peito, ainda atordoada com tudo aquilo.
"Me ajude." falou o feiticeiro, enquanto se abaixava ao lado do estranho. Virou o homem, apoiando sua cabeça nas mãos da companheira. "Mantenha a cabeça dele alta."
Então, Eriol tateou os bolsos de suas vestes, retirando uma pequena quantidade de gengibre e colocando-a na boca do homem desacordado, sob sua língua. O efeito foi quase instantâneo: a consciência aos poucos retornou ao corpo abatido e o efeito da bebida foi gradualmente baixando. Em cinco minutos, o estranho já havia despertado por completo.
"Como se sente?" perguntou Eriol.
"Considerando essa dor de cabeça e essa maldita tontura, estou ótimo." resmungou o homem. "Agora dê-me minhas muletas e saia da minha frente."
"Poderia pelo menos nos agradecer." disse Kirsten. "Tentou se matar enquanto estava alcoolizado. Salvamos sua vida."
"Você fez o que?!" berrou o estranho. Uma estranha cólera se apossou de seu olhar, fazendo seu rosto ficar muito vermelho. A guerreira recuou, enquanto o homem a fitava de forma ameaçadora. "Vocês salvaram minha vida? Por Deus, mulher! O único momento de lucidez que tive em anos e vocês o arruinaram!"
"Lucidez?!" falou Kirsten, sem acreditar no que ouvia. "Pois não me pareceu nem um pouco lúcido! Você estava completamente louco devido ao álcool!"
"É na loucura que reside a maior sabedoria." ela o ouviu responder. "Antes você tivesse me deixado morrer! Minha amargura morreria comigo e minha angústia finalmente encontraria seu fim."
"Bem, senhor." começou a jovem, sendo interrompida pela voz rouca do homem.
"Gardner. Meu nome é Thomas Gardner."
"Pois bem, senhor Gardner." continuou ela. "Do modo como eu vejo, toda vida é única e preciosa. Nenhuma vida deveria ser desperdiçada dessa forma."
"Mesmo?" perguntou Thomas, a raiva novamente voltando aos seus olhos castanhos. "Pois diga isso às pessoas que mataram meu irmão! Talvez se soubessem disso, a maldita guerra não tivesse acontecido!"
"Guerra?" falou Eriol. "Esteve na guerra?"
"Sim, moleque! Eu estive na maldita guerra!" falou o homem, levando uma das mãos ao bolso e jogando algo para o inglês. Era uma carteira militar. Capitão Thomas William Gardner, segundo batalhão das Forças Armadas Norte Americanas.
"A guerra acabou há muitos anos, capitão." disse a reencarnação de Clow.
"Não repita isso nunca mais!" gritou Thomas. "Não tenho apego nenhum por este título infernal! Maldita patente!"
"Por favor, senhor Gardner, acalme-se." pediu Kirsten gentilmente. "Desculpe se fizemos algo que o ofendeu, mas entenda que tivemos a melhor das intenções. Agora, se o senhor permitir, nós podemos acompanhá-lo até sua casa."
O homem pareceu pensar nas palavras da guerreira. Então, após alguns minutos de reflexão, acabou por concordar com a oferta daquela moça.
"Onde estão minhas muletas?" perguntou.
"Não vimos nenhuma." respondeu Eriol, olhando ao seu redor.
"Mas que inferno!" praguejou o ex-militar. "Parece que eu as perdi novamente! Maldita bebida!"
"O senhor amaldiçoa a bebida mas ainda assim estava bêbado." falou Kirsten, mas parou diante do olhar ríspido do homem.
Eriol estendeu uma mão para Gardner, ajudando-o a se levantar e dando apoio ao homem. Passaram a caminhar vagarosamente pelas ruas desertas da madrugada de Nova Iorque. Saíram do Central Park e entraram na Avenida Lexington, percorrendo alguns quarteirões e virando, por fim, na Rua 96, onde se encontrava a casa de Thomas.
O homem abriu a porta, convidando os dois para entrar. Eriol, seguindo suas instruções, o conduziu até a sala, depositando-o em uma poltrona que havia perto da lareira. Kirsten se encarregou de fechar a porta. Então, atendendo ao convite do ex-militar, sentaram-se no sofá que havia ao lado da poltrona.
"Não tenho nada para oferecer. Não recebo muitas visitas, como vocês bem podem notar, portanto não reclamem." falou o senhor Gardner.
"Não tem problema." falou a reencarnação de Clow. "Mas lembro-me que ainda não nos apresentamos formalmente. Eu sou Eriol Hiiragizawa. Esta é Kirsten van der Veen."
"Não posso dizer que é um prazer." falou o homem. "Mas obrigado por me trazer até aqui."
"Não precisa agradecer." falou Kirsten. "Apenas fizemos aquilo que achamos certo."
Seguiu-se apenas o silêncio. A casa não era muito grande, mas bem planejada. Os móveis aparentavam ser velhos embora, no geral, bem cuidados. A aparência de fragilidade era compensada pela beleza de sua confecção, todos cuidadosamente talhados.
"Bem, senhor Gardner." falou Eriol, interrompendo o breve momento de calmaria. "Perdoe a minha curiosidade, mas o que aconteceu durante a guerra? Nenhum ser humano deveria desistir da vida dessa forma."
"Nenhum ser humano merece viver o que eu vivi. Não é só o que aconteceu na guerra, rapaz. É também tudo o que aconteceu após ela. Mas eu não pretendo ficar falando sobre minha vida pessoal."
"Às vezes faz bem desabafar." falou Kirsten. "Não é bom para ninguém guardar mágoas e tristezas do passado."
"Nós nos conhecemos há apenas algumas horas!" falou o homem. "Acreditam mesmo que eu vou sair contando detalhes de minha vida pessoal para o primeiro casal de estranhos que me ajudar?"
"Não." disse Eriol. "Mas já nos apresentamos. Não somos mais estranhos."
"Jovens!" falou Thomas. "Vocês simplificam demais as coisas!"
"Não seria o senhor que as torna mais complicadas do que realmente são?" replicou o inglês. "Mas se realmente ajudar, eu nasci e cresci em Londres. Morei durante um tempo no Japão e agora estou aqui diante do senhor. Com um ano, coloquei um besouro na boca pensando ser algum doce. Aos quatro anos quase ateei fogo ao tapete da sala de minha casa ao derrubar uma vela. O senhor pode imaginar como minha mãe ficou furiosa."
O homem não pôde deixar de rir diante daquele rapaz. A presença dele conseguia acalmar o ambiente ao redor.
"Tudo bem, tudo bem. Não precisa me contar sua vida toda." falou, ficando sério logo em seguida. Respirou fundo, fechando os olhos à medida que uma série de recordações invadiam sua mente conturbada.
"Fui promovido a capitão um pouco antes do início da guerra. Os nazistas estavam ganhando terreno e Hitler já gozava de um notório poder. Quando a guerra estourou, nunca pensamos que ela pudesse chegar onde chegou. Mais de cinqüenta milhões de mortos... Não foi uma guerra. Foi um genocídio, um verdadeiro sacrifício humano!"
"Meus irmãos estão no meio deles. O batalhão de David foi emboscado durante uma missão de reconhecimento. Eles haviam penetrado em território nazista para confirmar a localização de um dos campos de concentração, segundo uma das fontes que tínhamos. Mas fomos alvo de uma armadilha. Eles haviam deixado a informação vazar propositalmente."
"Quando as tropas de David chegaram ao local, foram surpreendidos por uma tropa de dois mil soldados alemães. Cinqüenta contra dois mil... Tudo o que conseguiram recolher dele foi seu capacete. O corpo foi completamente mutilado. Fizemos um túmulo simbólico para ele, onde enterramos o capacete."
"Sinto muito." falou Kirsten.
"Será que sente?" indagou Thomas. "Nem mesmo o pessoal do exército sentiu realmente a perda de David. Por que você sentiria?"
"Porque, como já disse antes, acredito que toda vida seja preciosa. Além disso, perdi meu avô durante essa guerra."
"Entendo." falou.
Silêncio novamente. Já passara das duas da madrugada. Calmamente, os três apenas olhavam uns aos outros. Pedindo permissão, Eriol acendeu a lareira, iluminando o local que antes era dominado por uma suave escuridão.
"Disse que perdeu seus irmãos, mas mencionou apenas um deles." disse o feiticeiro, voltando a se sentar ao lado de Kirsten.
"Paul... O pequeno Paul." sussurrou o ex-militar, com o olhar distante. "Ele era o mais novo de nós três. Conseguiu sobreviver ao combate, mas não escapou da morte. Quando a guerra acabou e nós finalmente pudemos voltar para casa, ninguém poderia imaginar o que iria acontecer com Paul. A mudança que operara nele fora muito grande. Grande e profunda demais para ser curada."
"Voltamos para Nova Iorque no dia 25 de Agosto de 1945. Fomos recepcionados com glórias e honrarias. Tivemos uma festa em família para comemorar o retorno. Paul aparentava estar feliz. Mas não estava."
"Conforme os dias foram passando, notei que ele estava quieto. Quieto demais. Sorria menos, bebia mais. De alguma forma, ele nunca se recuperou de tudo o que viu e presenciou durante o confronto contra as tropas inimigas."
"Até que um dia, após alguns copos de cerveja a mais, ele acenou para mim e meus pais, pegou o revólver que guardava no quarto e atirou na própria cabeça. Foi tão repentino que não conseguimos impedi-lo."
Eriol e Kirsten ouviram um baque surdo quando o homem socou o braço da poltrona.
"Sobreviveu ao maldito combate contra os nazistas e se matou com um tiro na cabeça!" gritou, exasperado.
"E o senhor ia fazer o mesmo, não é?" perguntou Kirsten. Gardner lançou-lhe um olhar de indiferença.
"Eu já estou morto há muito tempo. Só oficializaria um fato já há muito consumado." ele murmurou. A guerreira sentiu pena por ouvir palavras tão dura e carregadas de tanta tristeza.
"Pensei que tivesse dito que seu irmão morrera na guerra." falou Kirsten, suavemente. Quis retomar o assunto anterior antes que algo mais pudesse acontecer.
"Não durante a guerra, mas vítima dela sem dúvida!" falou o homem. Kirsten franziu as sobrancelhas. "A guerra faz vítimas de muitos modos diferentes, menina. Paul foi vítima dela sim! Se a guerra não tivesse acontecido, Paul jamais teria se matado. David ainda estaria vivo e eu ainda teria minha perna!"
"Sua perna..." murmurou Eriol. "O que aconteceu com ela?"
"Fui vítima de um campo minado." falou Thomas. "Desembarcamos na França, com destino a Paris. No meio do caminho fomos surpreendidos por um vasto campo minado e um ataque alemão não previsto. Durante o confronto, acabei pisando em uma mina para salvar um dos soldados de minha tropa. Talvez tivesse morrido lá mesmo, mas me carregaram para fora do campo de batalha. Fui obrigado a me aposentar mais cedo do que imaginava."
"Quando finalmente recobrei os sentidos, vi que minha perna havia sido amputada. Eu estava agonizando naquele hospital dos infernos e tudo que recebi foi uma mísera placa por serviços prestados à Nação."
"O Governo dos Estados Unidos da América homenageia o Capitão Thomas William Gardner pelos sacrifícios feitos por sua pátria e lamenta muito a perda de sua perna esquerda." falou com expressão de nojo.
"Sinto muito por tudo isso." falou Kirsten novamente.
"Você sente demais, menina." falou o capitão Gardner. "Como pode sentir algo por alguém como eu, ou ainda por pessoas que nunca viu em sua vida?"
"Como já disse, acredito que toda vida seja preciosa!" falou ela.
"Você ainda é uma criança. Não poderia compreender o quanto sofri." ele disse.
"Compreendo apenas que cada ser humano é único e especial." falou a guerreira em tom suave, mas firme. "Cada pessoa é única no mundo. Não pode ser substituída. A vida é um bem que não tem preço. Por essa razão é uma ilusão achar que é possível vender e comprar as outras pessoas. Pode-se controlar seus atos e suas atitudes, mas jamais será possível controlar seus corações, suas vidas, sua vontade de viver. Por isso sinto pelo senhor e seus irmãos. Talvez eu não compreenda o quanto sofreu, mas digo que prezo a vida alheia tanto quanto a de meus amigos e familiares."
"É algo muito belo, garota." falou o homem, encarando-a com um misto de tristeza e admiração. "Sua atitude é comovente. Isso, entretanto, é algo que jamais conseguirei fazer."
"Pois eu digo que pode. Tem apenas que abrir seu coração. Os horrores da guerra tornaram seu coração duro. Tudo que tem a fazer é deixá-lo viver uma vez mais."
"Talvez." ele respondeu. "Mas temo que eu já não tenha força suficiente."
"Devia se menosprezar menos, senhor Gardner." ela disse, simplesmente.
Ele pareceu pensar por alguns instantes. Eriol atiçou o fogo na lareira com uma das tenazes, fazendo fagulhas voarem soltas e desvanecerem lentamente. Abaixou-se para pegar mais lenha, sendo prontamente impedido pela voz rouca de Thomas.
"Não se preocupe com o fogo, rapaz. Já está tarde. Vamos dormir. Tenho uma quarto vago, se quiserem." falou o ex-militar.
"Agradecemos o convite, mas não podemos aceitar. Temos assuntos a resolver, não devemos nos demorar." disse Eriol.
"Muito bem, então. Agradeço a companhia e a conversa que tivemos. Vou ter algo para pensar nos próximos dias. E perdão pelo nosso péssimo começo."
"Esqueça isso. Não gosto de guardar mágoas e ressentimentos. Faz mal para a alma." respondeu Eriol, levantando-se. Kirsten levantou-se logo após o companheiro.
"Boa noite então." falou Thomas. Peço apenas que fechem a porta quando saírem.
"Não quer ajuda para ir até o quarto?" indagou Kirsten. Gardner apenas negou com a cabeça.
"Eu me viro." disse ele.
"Boa noite então." cumprimentaram os dois amigos, saindo e fechando a porta atrás de si.
Eriol olhou em seu relógio: eram quatro e meia da manhã. Suspirou, esticando os braços como se quisesse tocar a Lua.
Retomaram seu caminho até o Central Park em silêncio. A conversa com o capitão Gardner havia dado aos dois muito o que pensar. Não era novidade para nenhum deles os horrores que a guerra trazia consigo. A destruição, as mortes, as famílias separadas, a paz e a felicidade corrompidas... Tudo aquilo atingia-os profundamente. Era triste ver como a humanidade podia ser tão estúpida e inconseqüente.
As guerras sempre marcaram a História da humanidade de forma tão profunda e significativa. Que dizer das Guerras Médicas e da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas? As conquistas romanas? Isso sem contar as disputas feudais, as Revoluções Francesa e Russa, a Guerra dos Cem anos, a Guerra Civil Espanhola, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, seguidas pela Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a Guerra do Golfo, a Guerra do Iraque e tantas outras mais...
São inegáveis os variados efeitos que a guerra tem sobre a existência das pessoas. Mesmo após seu término, seus males continuam, como uma peste, uma doença contagiosa que aos poucos vai aniquilando, matando lentamente as pessoas, corroendo suas vidas, suas almas e seus corações. Como uma chaga aberta, espalha dor e sofrimento entre os homens, deixando seqüelas, trazendo à tona tudo aquilo que tantas pessoas prefeririam esquecer.
"Tanto ódio, tantas vidas tiradas por tão pouco." pensou Eriol. "Será que os resultados compensaram todas as vidas que foram tomadas? Eu duvido muito. Não posso deixar de lamentar todos os erros do passado. Não posso deixar de sofrer pela humanidade, por sua ignorância e ódio exacerbados. Mas ainda assim eu acredito que isso possa mudar. Um dia, talvez."
Chegaram ao parque central de Nova Iorque em pouco tempo, rapidamente retomando o lugar que antes ocupavam.
"Nunca me disse que seu avô esteve na guerra." falou Eriol.
"Ele esteve." disse Kirsten. "Combateu na região da Polônia, Hungria e Tchecoslováquia. Infelizmente ele acabou perecendo em campo de batalha. Nunca o conheci. Meu pai sempre diz que ele era um exemplo de pessoa."
"Posso imaginar." falou Eriol, com o olhar perdido.
Ficaram novamente em silêncio, apenas apreciando a companhia um do outro. Não sentiam a mínima vontade de dormir. Não com tudo aquilo acontecendo.
Eriol tinha sua mente num turbilhão de pensamentos e emoções. Pensava em Shaoran, em sua vinda inesperada. Sabia que aquela dimensão pretendia expulsá-lo. E se aquilo acontecesse, uma tragédia se consumaria. Não podia deixar que o guerreiro chinês fosse vítima de tal infortúnio. Ele já passava por uma provação terrível e estava completamente fora de cogitação permitir que o rapaz fosse enviado ao Limbo pelo resto de sua existência.
"Não falharei de novo." ele disse. "Não cheguei a tempo de evitar a morte de Shaoran há dois anos atrás. Dessa vez eu vou conseguir."
"É claro que vai!" disse Kirsten, olhando para o céu. Estavam cansados. Aproveitaram aqueles últimos instantes para descansar.
Quando voltaram a abrir os olhos, a Lua já estava se escondendo, lentamente cedendo espaço para que o Sol pudesse nascer e o dia clarear. Ao redor, a cidade começava a despertar. O tráfego já mostrava claros sinais de movimento, trazendo o som de motores ao ambiente. Aos poucos, o movimento de carros e pessoas se intensificou, trazendo Nova Iorque à vida.
"Que me diz do ataque de Mikhael?" perguntou Eriol, fazendo sua voz se misturar à infinidade de sons que enchiam o local.
"Francamente?" disse Kirsten. "Não sei ao certo o que pensar. Apenas a idéia de que ele teve capacidade suficiente para abrir um portal sem a permissão da Ordem é algo para se preocupar. Não sei que tipo de ritual poderia fazer isso e nem se ao menos existe tal ritual. O único meio que consigo imaginar seria a influência de alguma divindade menor."
"Entendo." falou o inglês, com o semblante preocupado. "Devemos ficar em estado de alerta. Não gosto de formular teorias precipitadas, mas tudo o que aconteceu nos deixa apenas uma conclusão: nossos problemas apenas começaram. Vimos somente a ponta do iceberg."
"E isso me preocupa ao extremo, Eriol. Se vimos apenas a ponta do iceberg, como você diz, então a parte dele que ainda está mergulhada no mar do nosso desconhecimento representa uma ameaça tal, que talvez somente nossos poderes não sejam o bastante para derretê-lo."
"Talvez." respondeu o feiticeiro. "Se nossas suposições estiverem corretas, então precisaremos de reforços."
Kirsten acenou a cabeça, concordando com seu companheiro. Mas como ele mesmo dissera algumas horas antes, a prioridade era retomar a Jornada para encontrar o resto do grupo o quanto antes. Só então pensariam no que fazer.
Eriol olhou novamente em seu relógio, que marcava sete e quarenta. A manhã estava nebulosa, cinzenta, como era comum naquela época do ano. O jovem bruxo quase podia se lembrar das manhãs londrinas, com aquele característico frescor e aquela fina neblina gelada.
Olhou ao redor. Mesmo com a arquitetura ligeiramente diferente daquilo que ele se acostumara a ver no século XXI, Nova Iorque sempre seria Nova Iorque. Havia algo que a caracterizava. Definitivamente, estavam na ilha de Manhattan. Ao longe, no cruzamento da Quinta Avenida com a Rua 34, ele podia ver o topo daquilo que era o Empire State Building, o famoso arranha-céu construído em 1931.
Eriol levantou-se, esticando os braços e espreguiçando-se para afastar o cansaço. Consumira energia na batalha contra Mikhael e desde então quase não descansara. Mas não iria se deixar abater naquele momento. Tinha suas obrigações a fazer. E elas seriam feitas.
Kirsten, ao ver que Eriol se levantara, prontamente o seguiu, colocando-se de pé e observando enquanto o amigo se espreguiçava. Foi então que ouviram uma voz vinda de perto das árvores.
"Bom dia, para vocês dois."
"Bom dia, senhor Gardner." cumprimentaram, caminhando na direção do ex-militar. Nenhum dos dois deixou de reparar no par de muletas que o homem utilizava.
"Achei que as tinha perdido." falou Eriol.
"Costumo manter um par de reserva. Não é a primeira vez que as perco, como bem podem imaginar." ele respondeu. Os dois companheiros sorriram.
"Mas o que te traz aqui." perguntou Kirsten.
"Imaginei que fosse encontrá-los aqui." ele respondeu. "Gostaria de agradecer pela conversa de ontem. Ela me deu muita coisa para refletir e me fez ver que não posso passar o resto de minha vida apenas me lamentando pelas perdas do passado."
"O senhor não imagina o quanto fico feliz por ouvir isso!" disse Kirsten, exibindo um sorriso puro e genuíno.
Seu rosto pareceu ficar mais sério. O olhar corria de Eriol para Kirsten e de novo para o mago inglês.
"O que houve?" perguntou a reencarnação de Clow.
"Estive pensando... Será que posso pedir a vocês um último favor?" Thomas perguntou, com a voz um pouco vacilante.
"Claro!" ele respondeu.
"Gostaria de ir até um lugar. Não fica muito longe, mas não sei se conseguiria chegar até lá sozinho."
"Nós o acompanharemos com prazer." disse Kirsten. Thomas sorriu. Puseram-se a andar, percorrendo sem pressa os jardins do Central Park. No caminho, o ex-militar quis parar em uma floricultura. Comprou os dois copos-de-leite mais bonitos e vistosos da vitrine, logo em seguida retomando a caminhada, sendo ajudado durante todo o percurso por Eriol e Kirsten.
Não demorou muito e eles encontraram um muro. Atrás dele havia aquilo que parecia ser um grande jardim. Estavam em um cemitério.
Thomas caminhou por entre as lápides, certo de onde queria chegar. Parou em frente a dois túmulos, um ao lado do outro, marcados com uma lápide feita em mármore que exibia letras grafadas com tinta dourada em baixo relevo. Numa delas lia-se David James Gardner. Na outra, Paul Wendel Gardner.
Thomas depositou as flores, uma sobre cada lápide de pedra.
"Olá Paul... David." ele começou. "Já faz tempo, não? Quinze anos se passaram desde que eu vim aqui pela última vez. Me perdoem. Vocês devem estar bravos comigo, não é mesmo? Eu não os culparia."
"Puxa, tanta coisa aconteceu nesses quinze anos. Tanta coisa mudou. Papai morreu há dois anos. Ele deve estar aí com vocês. Digam que sinto muito por tudo. Depois que você morreu, Paul, pensei que minha vida tinha ido junto com a sua. Na verdade, minha vontade de viver desapareceu. Até pouco tempo atrás eu acreditava que se alguém me matasse, estaria me fazendo um grande favor. Eu realmente não me importaria em morrer, se assim pudesse aliviar minha dor. Agora vejo como estava sendo egoísta."
"É incrível como nossas vidas podem mudar da noite para o dia. Mas o mundo dá tantas voltas. Quando percebemos, tudo já passou, se tornou mera lembrança. Ontem conheci dois jovens muito especiais. Eles me fizeram ver o quanto eu estava errado, o quanto eu estava sendo egoísta e inconseqüente desistindo daquele jeito. Foram eles que suavizaram meu coração e me ensinaram que a vida é o maior de todos os presentes que podemos ganhar. Desistir dela é abrir mão de nós mesmos, de nossos sonhos, de nossas esperanças, de nossa felicidade."
"Por isso eu vim aqui. Vim para pedir perdão. Perdão por tudo o que fiz nesses quinze anos. E vim para dizer que sinto sua falta. De todos vocês. Espero que estejam bem, onde quer que se encontrem neste momento!"
Thomas sentiu uma lágrima se formar em seus olhos e escorrer por seu rosto. E então veio outra e outra e outra ainda. E antes mesmo que ele percebesse, já estava chorando como não chorava há quinze anos. Todo o tempo em que suas emoções ficaram lacradas em seu coração cobraram seu tributo. E isso fez um inegável bem para o ex-capitão. Sentiu seu coração ficar mais leve, à medida que aquelas lágrimas lavavam sua alma e redimiam seus pecados, livrando sua culpa e apagando seus erros. Naquele momento, Thomas entendeu o quanto valia a vida. E pela primeira vez em muitos anos, foi tomado de uma paz morna e reconfortante. Uma paz que compensava tudo pela qual já tinha passado.
Não muito longe dali, Eriol e Kirsten assistiam a tudo com um sorriso. Mesmo com toda a preocupação que traziam em seus corações, não conseguiram deixar de se sentirem felizes por Thomas. Juntos, eles tinham conseguido suavizar um coração antes endurecido pela barbárie da guerra e trazer felicidade a um ser humano. Poucas coisas poderiam ser mais gratificantes.
Então, com a sensação de uma missão cumprida naquele lugar, ambos levaram as mãos ao pingente que traziam no pescoço. Viram Thomas pela última vez, no momento em que ele beijava cada uma das lápides de seus irmãos. Subitamente o local foi tomado por um forte clarão, que logo em seguida se dissipou, levando consigo dois viajantes muito satisfeitos.
Thomas se virou, secando as lágrimas que momentos antes haviam molhado toda sua face. Trazia um pequeno sorriso nos lábios. Olhou ao redor, procurando por Eriol e Kirsten. Entretanto, por mais que procurasse, ele não os encontrou. Queria dizer o quanto estava agradecido mas, de alguma forma, sentia que eles já sabiam. Apenas sorriu e agradeceu, acenando adeus ao vento. Esperava que de algum modo sua despedida pudesse chegar até eles.
Então, contemplando uma vez mais os túmulos de seus irmãos, virou-se e começou a se dirigir à saída. Estava começando sua vida novamente. E aquele prometia ser um dia espetacular.
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Pois bem, chegamos ao fim de mais um capítulo. Espero que todos tenham gostado dele e que, acima de tudo, ele tenha lhes dado algo para pensar. Tantas guerras acontecem hoje no mundo, mas será que elas são realmente necessárias? Fica aqui meu protesto contra todos esses conflitos sem sentido e todo esse derramamento inútil de sangue. Espero que um dia isso mude. Lembrem-se sempre: A vida é um bem único, ela não tem preço. É o mais valioso tesouro que podemos conseguir e por esse motivo não deve ser desperdiçada!
Obrigado a todos que me mandaram reviews, e-mails e comentários! São suas mensagens que me estimulam a continuar.
Bem, por hora vou ficando por aqui. Nos vemos no próximo capítulo! Até lá!
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai