Capítulo Doze - Encontro de Gerações
Sentia o corpo girar vertiginosamente através do vazio que era o abismo entre as eras. Apertando fortemente o pingente que ganhara da Ordem dos Dragões do Tempo, perguntava-se quando tudo ia terminar, dando-lhe afinal um merecido descanso após tão cansativa viagem.
Afrouxou a pressão sobre a jóia que simbolizava a Ordem do Tempo, pensando nos poderes que o artefato lhe conferia. A ampulheta era finamente trabalhada, tão delicada que tinha medo de quebrá-la ou danificá-la com um simples toque. O ouro maciço transmitia não só beleza, mas também ostentava poder.
Quis abrir os olhos, na tentativa de vislumbrar para onde estava indo, mas não obteve sucesso, sentindo a frustração inundar-lhe a alma. A alta velocidade forçava seus olhos a se manterem fechados, mergulhados na escuridão e no desconhecimento.
Enquanto rodopiava, tentava colocar o raciocínio em ordem, procurando encontrar uma conexão aparente nos acontecimentos dos últimos dias. O caráter extraordinário daquela missão desafiava as leis da credibilidade. Não fosse sua experiência anterior com magia e ocultismo chegaria a pensar estar sonhando.
Lentamente, após muitos minutos de tortura e sofrimento, sentiu seu corpo começar a diminuir a velocidade. Aos poucos os giros incessantes diminuíram a freqüência, passando a esporádicas voltas intercaladas com longos períodos de tranqüilidade, onde nenhum movimento podia ser sentido ou percebido.
Ao cabo de algum tempo, sentiu seu corpo parar por completo, e seus pés tocaram solo firme. Deu graças a Deus pelos giros finalmente terem-se interrompido, tamanho o desconforto que sentia com aqueles rodopios infernais.
Lentamente, a densa névoa que circundava seu corpo foi se dissipando, aos poucos dando lugar a uma paisagem difusa, embaçada pela fina neblina que ainda permanecia.
Quando as imagens entraram em foco, pôde divisar inúmeras construções que se elevavam aos céus, perdendo-se em meio a um grande conglomerado de concreto, cimento e aço. O cenário não lhe era de todo estranho. Já havia visto aquilo antes, sem dúvida.
Encontrava-se em um beco estreito, que desembocava em uma ruela não muito movimentada. Tentou esquadrinhar o lugar em busca de algum ponto de referência ou alguma outra saída que não fosse a rua ao fim do corredor. Nada. Nenhuma indicação, nenhuma porta, nenhuma outra possibilidade de fuga aparente.
Não tendo nenhuma outra alternativa, a única coisa que pôde fazer foi seguir através da ruela até a única saída existente. Enquanto caminhava, olhava ao seu redor, ainda com a nítida impressão de conhecer o local. Até mesmo o ar que respirava possuía um quê de nostalgia.
Conseguiu discernir sensações, sentimentos; sonhos difusos e ilusões etéreas, que povoavam sua cabeça e dançavam em seu inconsciente como a fumaça de um incenso de lótus que serpenteia no ar e se perde nas alturas. A efemeridade daquelas lembranças assemelhava-se somente à fugacidade presente nos sonhos; sonhos estes que lhe permitiam voar e alcançar alturas e locais possíveis somente à sua imaginação.
Sacudiu a cabeça, procurando deixar de pensar naquelas sensações para se concentrar em encontrar um ponto de referência que lhe indicasse onde estava.
Olhou ao longo da rua onde desembocava o beco em que tinha caído. Ela se abria para ambos os lados e revelava casas de arquitetura simples. Um único olhar para aquelas construções lhe deu a certeza de que estava em sua querida e amada cidade natal.
Por um breve momento um alívio morno tomou conta de seu peito cansado. Estar em um lugar familiar, onde tinha nascido e crescido, onde as pessoas não lhe eram estranhas, onde a paisagem era conhecida, fazia com que as dificuldades fossem amenizadas.
Entretanto, o sentimento de alívio se foi tão rápido quanto veio. Seu cérebro obrigou que a razão falasse mais alto. Mesmo que estivesse em um lugar conhecido, isso não significava necessariamente que estivesse em uma época que lhe fosse favorável e familiar. A aparente semelhança não excluía a possibilidade de que aquele tempo não fosse o seu, o que novamente trazia à tona o desconhecimento e a incerteza.
Tomou o caminho da direita e se pôs a caminhar, olhando os casebres que se mostravam dos dois lados da rua onde algumas poucas pessoas iam e vinham em um fluxo contínuo.
Continuou andando por mais algum tempo, percorrendo as ruas movimentadas de sua cidade natal, apreciando a vista que tinha da metrópole, com seus prédios e construções elevadas. Logo chegou a uma praça, circundada de ambos os lados por árvores altas e frondosas. Conhecia aquela praça, costumava brincar ali quando criança.
Sorriu perante a mera lembrança de suas tardes de infância, quando era levado por sua mãe até aquela praça, onde passava deliciosas horas a correr por entre aquelas árvores tão belas, cujas copas carregavam tantas histórias, tantas recordações, tantas lendas e mitos.
Olhou ao seu redor. A praça estava estranhamente vazia. Mesmo o movimento das ruas, embora intenso, era menor que o normal. Aquilo estava estranho. Não era comum tamanha calmaria àquela hora da tarde. Era o momento em que mães levavam os filhos para tomar sol no parque, aproveitando para contemplar seus rebentos com orgulho e felicidade.
Estranhou a quietude do momento, que paradoxalmente lhe transmitia uma sensação pesada, uma opressão no peito, uma agitação bastante incômoda. Algo importante estava prestes a acontecer, tinha certeza disso, embora não fizesse idéia do que pudesse ser.
Observou com cautela alguns soldados ingleses desfilarem com pompa pela rua enquanto conversavam. A Grã Bretanha sem a rigidez da mesma. O pensamento era de todo irônico, e acabou por arrancar um sorriso divertido de seus lábios.
Pensou na diferença daquela paisagem sem o controle da coroa britânica, sem aquela presença de sua majestade, sem aqueles soldados emplumados nas ruas.
Tornou a voltar sua atenção para a praça que permeava sua infância. Queria ser criança novamente para poder voltar a correr no meio daquelas árvores. Não que sua infância tenha sido um mar de rosas. Sua vida fora um tanto quanto conturbada, era verdade, mas aqueles momentos pueris lhe enchiam de júbilo. Tudo na infância era tão mais fácil. Sentimentos definidos, certo e errado, amor e ódio. As ilusões, sonhos e desejos contidos nas mentes infantis e corações ingênuos sempre parecem tão mais perto do que realmente estão.
Sorriu, deixando-se inebriar pelo sentimento de nostalgia que lhe rodeava, tocando sua pele e penetrando por seus poros até chegar ao âmago de seu ser. Aquela lembrança ainda era de fato deliciosa.
Passou a caminhar pelo local, apreciando o frescor exalado pela grama úmida e pelas pétalas das flores. As copas estavam carregadas de folhas verdes, mostrando-se frondosas e imperiosas. Aquela era uma suntuosa manifestação da sabedoria infinita da Natureza em sua forma mais pura e graciosa.
Inspirou profundamente o aroma primaveril que permeava o local e mesclava de forma harmoniosa e hábil os diversos perfumes florais que eram emanados de todas as direções e chegavam às narinas dos transeuntes. Aquela fragrância lembrava um antigo perfume que sua mãe costumava usar, sempre em ocasiões especiais. Um noivado, uma festa suntuosa, um jantar de gala. Um perfume guardado para ocasiões exclusivas e suntuosas; raros momentos onde o impacto causado nas pessoas se dava muito mais pela enigmática fragrância do que pela aparência jovial que a mulher apresentava.
A verdade era que aquele perfume havia, de alguma forma, sido baseado na pura essência daquele lugar, com suas roseiras, lírios e dentes de leão. A mescla era certamente formidável.
Perguntou a si mesmo se havia caído naquele lugar por acaso, ou se havia alguma razão para ter parado justamente para lá. Era estranho que, de tantos lugares possíveis, tivesse ido parar justamente em sua terra natal, perto da praça que tanto o entretera anos atrás. Uma coisa era certa: a simples coincidência não era algo em que acreditava.
Passou a prestar atenção à sua volta, procurando identificar algo que pudesse ajudar em sua missão. Sentou em um dos bancos que havia no local, ainda com os sentidos alerta. Não demorou a ouvir alguns ruídos peculiares que vinham da lata de lixo atrás do banco.
Levantou-se, caminhando lentamente até a fonte daqueles sons atípicos, imaginando que tipo de bizarrice iria encontrar. Sorriu ao ver uma comprida cauda amarela balançando, enquanto um ser pequenino lutava com todas as forças para retirar a cabeça, um tanto quanto desproporcional ao resto do corpo, de dentro de uma lata.
Segurou firmemente o rabo da criatura e puxou com força, fazendo com que a cabeça do pequeno se desprendesse da lata aberta juntamente com um som semelhante a uma rolha sendo retirada de uma garrafa de champanhe espumante.
"Obrigado." agradeceu Kero, mas parou ao ver quem o havia ajudado.
"Lugar interessante para colocar a cabeça." falou Shaoran, com os lábios contraídos em um sorriso divertido e malicioso. "Esperava encontrar algo bizarro, mas certamente não pensei que seria você."
"Isto não é perfeito? Tantas pessoas em nosso grupo e eu tinha que encontrar justamente você." resmungou Kero rolando os olhos.
"É nosso destino estarmos sempre em companhia um do outro afinal." concluiu o rapaz, soltando o rabo do guardião.
Voltaram a se sentar no banco, contemplando o movimento da cidade naquele início de tarde. Observaram o movimento de alguns estabelecimentos comerciais ao redor, vendo todas as pessoas que entravam e saíam das lojas com o incessante objetivo de satisfazer seus desejos de consumo.
Para quem olhasse, a cena era cômica. Um rapaz alto com um pequeno boneco de pelúcia ao lado, como se ambos fossem velhos amigos sentados para uma eventual conversa num início de tarde qualquer.
"Imagino como estão Sakura e os outros." resmungou Shaoran, pensativo.
"Melhor que nós com certeza." falou Kero.
"Certamente. Eles não têm que agüentar olhares de deboche das pessoas por conversar com um bicho de pelúcia amarelo ovo."
"Vou te mostrar quem é o bicho de pelúcia..." rosnou Kero.
"E mostrar para todos os transeuntes sua forma colossal, não é?" Shaoran o interrompeu abruptamente. Kero dirigiu-lhe o olhar semi-cerrado.
"Você ainda vai ter o que merece." Shaoran apenas sorriu.
"Cão que ladra não morde." replicou o chinês tranqüilamente. "Ou seria melhor dizer gato que mia não arranha?"
"Ai de mim!" resmungou o pequeno entre os dentes. "Minha infelicidade só não é maior que meu infortúnio. Por que o Destino me fez encontrar justamente o moleque?"
"Porque alguém lá em cima gosta de mim." falou o guerreiro em um tom de triunfo. Kero virou a cara.
Levantaram-se após alguns minutos de descanso, passando a caminhar sem rumo certo pelas ruas de Hong Kong. Shaoran reconheceu lugares que lhe foram bastante relevantes durante sua infância. Passou na frente de um antigo barbeiro onde sua mãe costumava levá-lo para cortar os cabelos. Tinha boas lembranças daquele homem de traços grosseiros, mas personalidade gentil.
Cruzou também com as portas de uma venda, cuja dona era muito amiga de sua mãe. Ling Pei Thian era uma mulher bastante distinta, a despeito de sua origem humilde. Muito orgulhosa, sabia lutar por seus direitos como ninguém, mas ainda assim era uma pessoa carinhosa quando queria. Inúmeras vezes a mulher havia presenteado Shaoran com guloseimas da loja, fato que o fez sorrir ao pensar no prejuízo que ela tomaria se conhecesse Kerberus.
Desviou o olhar da rua para o pequeno guardião em seu bolso. O bichinho não parecia muito feliz em ter que ficar em companhia do 'moleque', e parecia menos feliz ainda em ter que andar enfurnado no bolso da jaqueta de Shaoran. O rapaz suprimiu uma risada de contentamento por ver a expressão entediada de Kerberus.
O guardião contemplou aquele sorriso nos lábios de chinês sentindo vontade de gritar para todos os cantos como aquela expressão de pouco-caso o irritava. Quando tivesse a chance, certamente pensaria em uma forma de dar o troco pelo que ocorrera em episódios anteriores.
Enquanto andavam o pequeno voltou sua atenção para sua mestra. Pensava em como ela estaria se saindo, se estava bem. Não podia negar que desde que reencontrara Shaoran, Sakura estava mais alegre e determinada. Nos últimos dias conseguira até mesmo ouvir a gargalhada jovial que tanto amava em sua mestra. Considerando aquilo tudo, ter Shaoran de volta até que não era tão mal.
"Estou com fome. Vou comprar algo para comer." anunciou o jovem.
"Oba!" exclamou Kero. De fato, talvez a presença do jovem guerreiro chinês não fosse tão ruim assim.
"Quem disse que é para você?"
Enganara-se. A presença dele era ruim sim! Uma enorme tortura para seu pobre estômago vazio. Olhou o rapaz com os olhos estreitos, fazendo o possível para se conter.
Pararam na frente de um pequeno restaurante, onde Shaoran pediu um suco e uma pequena porção de rolinhos primavera. Comeu em silencio, pensando no desfecho que aquela missão iria ter. Se dependesse dele, tudo seria um completo sucesso. Ele não mediria esforços para ver concluída sua tarefa.
Em sua mente, as últimas palavras de Jesus ainda permaneciam: "ser corajoso não significava jamais sentir medo, significava ter a força para prosseguir a despeito das adversidades."
Ele teria coragem. Seria forte até o último instante. Agradeceu o Filho do Homem pelas sábias palavras que recebera. Sua determinação havia sido renovada. Não perderia mais para seu medo.
Medo... E pensar que até algum tempo atrás ele jamais admitiria sentir medo. Seu orgulho o impedira de confessar muita coisa. Mas o tempo passara, Shaoran amadurecera. Aprendera que o orgulho não é a melhor das virtudes e que a humildade em reconhecer a própria fraqueza era o único meio de evoluir e melhorar. Era através da humildade que uma pessoa mostrava sua força.
"Tome." disse o chinês, afastando seus pensamentos de sua mente e estendendo um rolinho para Kero, que ainda estava em seu bolso. O pequeno o olhou com desconfiança. "Acha mesmo que sou tão mal assim? Pegue logo antes que eu mude de idéia. Vamos, não coloquei veneno na comida, bola de pêlos!"
Ainda olhando para o rapaz, Kero engoliu o alimento que lhe fora oferecido. O que será que tinha dado no moleque? O Shaoran que conhecia jamais faria uma demonstração de cortesia semelhante.
"Ora, o Shaoran que conheci está morto." ponderou o guardião. "Preciso me acostumar à idéia de que este Shaoran é outra pessoa, por mais confuso que possa parecer."
Shaoran pagou a conta e deixou o restaurante. Parou diante da porta, olhando ao redor e pensando no que fazer. Finalmente, após um breve instante, decidiu ir até sua casa, mesmo sabendo os riscos que corria. Não entraria, não iria se expor, mas precisava ver a mansão de sua família uma vez mais. A necessidade crescente em seu peito o fazia crer que ele devia fazer aquilo.
Caminhou durante algum tempo, impelido por uma força desconhecida e misteriosa. Logo aproximou-se do local onde se encontrava a mansão de seu clã. Havia uma energia diferente pairando sobre o local, uma aura estranha e ao mesmo tempo familiar.
Observou a construção de longe, tomado de reminiscências e lembranças. Tanto já havia passado naquele lugar. Já havia visto tanto, lutado tanto, sofrido tanto. Seus 18 anos tinham a maturidade de 30... Era um homem formado.
Desatou a caminhar, circundando a área da mansão, sentindo uma estranha inquietação percorrer seu corpo cansado. Alguma coisa estava prestes a acontecer. Olhou para o céu, onde o Sol se encontrava envolto em nuvens espessas, dando uma coloração carmesim ao firmamento.
"O céu está vermelho." murmurou o guerreiro. "Isso é um mal presságio. Um grande derramamento de sangue irá ocorrer em breve."
Terminou de dar a volta ao redor da propriedade, retornando ao lugar onde começara. Um calafrio percorria sua espinha de cima a baixo, trazendo uma sensação levemente desconfortável ao jovem, que se esforçava para manter a compostura. Tinha todos os sentidos alerta, prontos para captar qualquer mudança ínfima na atmosfera que envolvia o local, pronto para reagir ao mínimo sinal de ameaça. E foi então que sentiu uma forte presença tomar o lugar.
Olhou ao redor, enquanto observava, estarrecido, o local à sua volta se contorcer e mudar, dando lugar a uma paisagem desolada. Somente a mansão Li ainda se mantinha no mesmo lugar, firme, imponente. O vermelho havia tomado todo o céu, sinal claro de mal agouro.
Shaoran cerrou os punhos com força, sem conseguir se mover do lugar onde estava. Conhecia aquele feitiço. O lugar onde estava havia sido transportado para uma espécie de realidade mágica, uma distorção no espaço e no tempo. Era uma forma de poupar as pessoas normais da batalha, que por certo seria terrível. Em toda sua vida, testemunhara aquele feitiço apenas uma vez, havia muito tempo.
Os portões da mansão rangeram e começaram a se abrir lentamente. Pensando o mais rápido que pôde, Shaoran correu até uma grande rocha que havia perto do local. Não podia arriscar ser visto, isto comprometeria seriamente sua missão.
Observou com cuidado inúmeros membros de seu clã saírem a passo apressado. Em instantes, todos estavam dispostos na frente da casa, espadas em punho, formando uma barreira humana que nada devia à mais forte muralha do mundo.
Shaoran se perguntou o porquê de tudo aquilo. Não levou mais de um segundo para que obtivesse resposta. Do lado oposto, um pequeno exército se fez ver. Levavam consigo um estandarte com o selo de um clã rival. Imediatamente entendeu o que se passava.
Esforçando-se para manter sua presença oculta, o rapaz se afastou um pouco para ter uma visão mais ampla do que iria acontecer. Bastou um movimento dos inimigos para que os Li avançassem rapidamente contra eles.
A batalha se desenrolava diante de seus olhos espantados. A ferocidade daqueles guerreiros era incrível e memorável.
Embora mais habilidosos, os membros de seu clã estavam em clara desvantagem numérica. Seus algozes se aproveitavam da quantidade para encurralar os membros de sua família. Devagar começaram a perder espaço, sendo gradualmente empurrados de volta à mansão e obrigados a recuar.
Shaoran assistia a tudo com um enorme aperto no peito... Queria ajudar. Queria lutar, precisava lutar! Instintivamente agarrou o cabo de sua espada.
"Tire a mão daí, moleque!" rosnou Kerberus, saindo do bolso onde estava e se postando na frente do guerreiro. "Você não pode fazer nada para ajudar. Quando iniciou a Jornada, sabia que não poderia interferir no curso dos fatos. Qualquer alteração pode resultar em uma catástrofe."
O jovem cerrou os olhos e trouxe os punhos para junto de si. Sim, Kerberus tinha razão. Fizera um voto, não poderia quebrar seu juramento. Respirou fundo e se conteve, ainda se concentrando para manter escondida sua presença.
Tomaram refúgio atrás de uma pequena elevação que havia há alguns metros da mansão. De lá ainda era possível observar toda aquela árida paisagem, forçada a se tornar um campo de batalha. O herdeiro dos Li podia sentir uma melancolia sem par emanar do chão daquele descampado, bem como o cheiro pútrido e amargo da morte. Certamente aquela terra desértica já havia visto muito sangue. Aquele lugar já fora cenário de muitas batalhas, mortes, sacrifícios e perdas.
Junto com o cheiro de sangue, também era possível sentir o cheiro salgado das lágrimas derramas sobre o chão. Uma enorme tristeza permeava cada centímetro daquele solo arenoso e áspero, dando-lhe um aspecto soturno e lúgubre. De repente, Shaoran sentiu-se enjoado e enojado por estar pisando sobre aquele lugar. Era por demais sombrio e funesto: postava-se sobre um gigantesco e bizarro túmulo.
"Um túmulo." pensou. "Estou pisando sobre um maldito cemitério. Por que eu tinha que vir até aqui? Há sobre mim uma mão, que guia meus passos como um animador que comanda sua marionete. Preciso descobrir o que está havendo."
Kerberus percebeu o desconforto do jovem, mas acabou por não dizer nada. Na verdade, ele próprio tinha coisas em que pensar. Analisou a situação e repassou os acontecimentos desde que acordara até aquele momento. Havia algo que não estava muito claro naquilo tudo. A Jornada não deveria ser tão tormentosa daquele jeito.
"Uma força maligna se posta contra nós e concentra suas forças em nos impedir. Precisamos resolver isso logo."
Decerto que a obscuridade de tudo aquilo envolvia os dois companheiros de forma profunda e perceptível. As provações colocadas em seu caminho indubitavelmente os conduziam de uma forma sutil através de um tortuoso caminho, indefinido à primeira vista, mas pernicioso e vil por sua incerteza absoluta.
Quisera ele sua angústia e sua incerteza do futuro fossem amenizadas pela incessante luta que travava contra sua própria sorte. Tamanho era o infortúnio que guiara o mundo naqueles últimos anos, que tudo o que Kerberus pedia era um pouco de paz; paz para poder descansar de tão árduas batalhas, paz para Sakura, paz para a humanidade. Entretanto, não havia paz. Não podia haver paz sem antes haver a tempestade.
Contemplando pela milésima vez aquele terra árida, o guardião pensou que tipo de conspirações estavam por trás de sua empreitada. Embora impulsivo, não era ingênuo e sabia que a realidade era muito maior do que as pessoas, reles mortais, acreditavam. Sabia como realmente funcionava aquele mundo, sabia que todas as pessoas que habitavam aquele planeta estavam conectadas umas às outras, como cabos em uma rede.
Mais que simples acasos, os acontecimentos que moviam a humanidade tinham todos uma razão de ser e acontecer, e a sociedade mística desempenhava papel importante naquilo tudo. Através dos séculos, as Ordens místicas regeram a sorte dos seres humanos, manipulando a humanidade como peças em um gigantesco jogo de xadrez. O mais claro exemplo era o próprio mago Clow, que manipulara eventos, pessoas e fatos para que Sakura fosse nomeada sua sucessora. Fizera dele e de Yue um instrumento de seu trabalho e criara intrigas para que as Cartas pudessem ser modificadas.
Clow fora um grande mago e excelente manipulador. Mas não poderia ele próprio também ter sido manipulado? Talvez o simples fato dele ter escolhido Sakura fosse parte de uma conspiração ainda maior e mais grandiosa, cujas ramificações se estendiam por toda sociedade, mágica ou não, criando raízes e firmando suas conseqüências no mundo dos homens.
"Acho que estou ficando paranóico!" pensou, sacudindo a cabeça. Por mais intrínsecas que fossem as relações e acontecimentos daquele mundo, nem tudo se resumia à magia e ao sobrenatural. "Preciso de férias. Estou começando a enxergar conspirações em tudo que vejo."
Voltou seu olhar para Shaoran, que ainda mantinha sua postura austera e compenetrada. O jovem fazia o possível para manter sua presença escondida. Sabia que se não tomasse cuidado poderia ser descoberto pelos inimigos de sua família.
A paisagem havia sido tomada de uma brusca calmaria após o recuo dos membros de seu clã. Não muito longe, os inimigos tomavam posição, dispondo-se ao redor da propriedade de sua família como abutres em busca de carniça.
As horas se passaram, lentas, penosas, arrastadas. A espera de algo que pudesse vir a acontecer estava deixando Shaoran maluco. Queria saber o desfecho de tudo aquilo logo.
Seu pedido não tardou a ser atendido. Uma súbita elevação no padrão energético do local indicou que algo iria ocorrer. Em seu íntimo, Shaoran sabia que o quer que tivesse que acontecer, seria naquele momento.
Empertigou-se, no intuito de obter uma vista melhor da mansão, atento a tudo, cada movimento, cada ruído, cada pequeno detalhe. Um trovoada retumbou, acompanhada de um som peculiar de uivos. Logo em seguida, tudo parou, e seguiu-se o ribombar de tambores, que rufavam e ampliavam seu som em profusões insanas e histéricas, quase como se quisessem rasgar o céu e ecoar além dos limites do firmamento.
O guerreiro fitou sua casa com peculiar interesse. Sem dúvida aqueles sons vinham de lá, clamando para si a atenção dos guerreiros do clã rival, que àquela altura já olhavam para a construção com uma mistura de ferocidade e medo estampada em seus rostos pintados de vermelho e preto.
O rugir dos tambores lentamente os fazia recuar, tomados de um receio que eles próprios não conseguiam explicar o motivo. O simples som carregava o ambiente com uma atmosfera pesada, hostil e agressiva, impelindo cada vez mais o exército rival na direção das colinas onde haviam começado o ataque.
O céu, antes avermelhado, adquiriu uma coloração violácea e em variações de anil, carregado de nuvens espessas e ameaçadoras, que traziam consigo o cheiro de chuva e sangue.
Uma segunda trovoada ecoou, assustando os inimigos e fazendo-os tomar posição em um sobressalto. Shaoran aprumou-se, apertando os punhos e forçando os olhos, não querendo por nada perder o que estava para acontecer. Uma grande curiosidade lhe forçava o peito, fazendo com que suas atenções não pudessem de modo algum serem desviadas de seu propósito único.
Um terceiro trovão se fez ouvir, e naquele momento as portas de madeira do muro que rodeava a mansão se abriram, revelando um imponente guerreiro montado em um belo corcel. Os inimigos imediatamente se sentiram amedrontados ante a figura imperiosa do patriarca do clã Li.
O corcel empinou e o guerreiro saiu a galope, cortando com sua espada os inimigos que teimavam em se postar em seu caminho. Logo o homem alcançava as colinas, onde a maior parte dos oponentes se concentravam.
"Pai..." murmurou o jovem, cuja atenção estava cravada no homem de trajes esverdeados. Sua espada dançava com extrema graça entre os inimigos, constituindo uma visão contrastante e paradoxal no meio daquela confusão insana e caótica. Os movimentos leves e ágeis do guerreiro traziam uma beleza inexistente ao campo de batalha, enchendo os olhos daqueles que assistiam ao combate.
Passado o espanto inicial, os inimigos desataram a correr na direção do patriarca. Aqueles que estavam mais perto da mansão tentaram forçar sua entrada, mas não obtiveram o mais ínfimo sucesso perante os fortes guerreiros que se postavam em seu caminho e que agora tinham a força de vontade renovada pela presença do mais forte guerreiro Li.
Tornou a fitar seu pai. O homem lutava com perícia sem igual, deixando o jovem maravilhado. Encheu-se de orgulho somente em ver seu pai combatendo com tanta bravura e coragem.
"Um dia poderei ser como ele." pensou. Kerberus não conseguiu deixar de notar o brilho nos olhos do rapaz, não sabendo se por orgulho, emoção por ver novamente seu pai, ou ambos os sentimentos mesclados em uma única e avassaladora emoção.
Concentrado, o pequeno voltou sua atenção à batalha que transcorria, incessante, alheia à presença daqueles dois expectadores que assistiam a tudo de camarote.
O pai de Shaoran continuava lutando bravamente, embora aos poucos começasse a perder território para seus algozes. Novamente a desvantagem numérica lançava a sorte de sua família.
"Onde está minha mãe?" indagou o jovem, lembrando-se do sonho que tivera na casa de Eriol antes da Jornada ter início. Como que em resposta à sua indagação, um raio riscou os céus e fulminou uma dúzia de inimigos que teimavam em tentar entrar na propriedade.
Os portões da mansão uma vez mais se abriram, revelando a figura majestosa e divina de Yelan, trajando um manto branco e cinza. Seus olhos faiscavam pura energia. Era um poder puro, intenso, belo e ao mesmo tempo assustador, sublime e ao mesmo tempo terrível. Naquele momento, Kerberus entendeu porque Shaoran respeitava tanto sua mãe.
"Maldita bruxa!" eles ouviram alguém gritar. Naquele instante Yelan cruzou os portões, deixando por definitivo a segurança da mansão e ingressando de corpo e alma na batalha.
Ergueu um das mãos acima da cabeça, mantendo os olhos fechados. Imediatamente outro raio riscou o céu. Suas mãos momentaneamente adquiriram uma tonalidade alaranjada, e logo em seguida uma grande bola de fogo se fez ver, queimando e liberando sua luz e seu calor ao redor da feiticeira. Com um segundo gesto gracioso, a matriarca dos Li arremessou o projétil contra alguns oponentes que tentavam passar por ela e invadir a mansão, fazendo-os queimar e agonizar.
Shaoran contemplou a majestade de sua mãe, que se mantinha firme na frente dos portões da propriedade. Era seu dever proteger a casa de qualquer inimigo e ela daria sua vida para cumprir sua obrigação se assim fosse preciso.
Yelan cumpria seu papel com singular eficiência, rechaçando as investidas incessantes dos inimigos com habilidade exemplar. Por um momento, todos pararam para admirar seu poder.
Entretanto, passado o choque inicial, a batalha passou a prosseguir novamente, desta vez ainda mais feroz e acirrada. Os oponentes eram muitos, suficiente para cansar até mesmo o mais forte guerreiro da família. Lentamente, o pai de Shaoran começou a ser encurralado, levado para longe dos domínios do clã. Yelan nada podia fazer. Não podia deixar o posto onde estava para salvar o esposo.
Foi com a adrenalina lhe correndo o sangue que Shaoran viu seu pai ser arrastado para campo aberto, onde a proteção de Yelan não alcançaria.
"Vamos! Vamos!" sussurrou, ansioso. "Apareça!" disse, referindo-se ao misterioso guerreiro que vira em seu sonho e que ajudara seu pai.
"Onde ele está, afinal? Por que não vem logo?" o rapaz começava a se desesperar. Em seu íntimo, gritava por alguém que pudesse ajudar seu pai. E foi só então que ele entendeu que o guerreiro não apareceria.
Agarrou com força o cabo da espada e a empunhou próxima ao peito, respirando fundo.
"Se tentar interferir, eu juro que luto contra você! Terá que passar por mim antes!" bradou Kerberus, se colocando entre Shaoran e seu pai.
"Mas que Inferno! Saia da minha frente, bola de pêlos!" berrou o guerreiro, exasperado.
"Não posso deixá-lo interferir!" replicou o guardião, já assumindo sua forma real. Shaoran não pensou duas vezes. Concentrou seu poder o máximo que conseguiu e desferiu um golpe contra Kerberus, desculpando-se mentalmente com o guardião, que foi lançado contra uma duna.
"Moleque dos Infernos!" praguejou Kerberus, atordoado pela força do golpe e pelo impacto contra a duna de areia e pedra.
Naquele meio tempo, Shaoran já corria na direção de seu pai, espada em punho, determinação em seu auge. Não podia permitir que aquilo acabasse daquele modo. Há alguns metros, seu pai penava para se defender de seus oponentes.
"Zhihao Li! Esperei muito por isso e agora você está onde eu sempre sonhei!" bradou um dos guerreiros, erguendo a espada. "Vou cortar sua cabeça e levá-la de presente ao meu Senhor!"
O homem preparou-se para decapitar o patriarca dos Li. Zhihao preparou-se para receber o golpe de misericórdia, que jamais chegou. Segundos antes, Shaoran surgiu por detrás da colina. Com um grito, saltou e cravou sua espada no peito do maldito guerreiro rival. Foi com extrema raiva que sentiu a lâmina de aço de sua espada penetrar por entre as costelas do homem e perfurar-lhe o pulmão e o coração. O inimigo engasgou, mas antes que pudesse pronunciar qualquer palavra sequer, já estava morto. Sua expressão revelava medo e surpresa por aquele ataque inesperado.
Shaoran respirava fundo. Ao seu redor, todos o olhavam com um misto de espanto e descrença. Até mesmo seu pai não parecia entender o que estava acontecendo.
"Pegue!" ordenou Shaoran, estendendo-lhe de volta sua espada, que caíra momento antes.
Zhihao agradeceu, sorrindo para o jovem que salvara sua vida. Não importava quem ele era, importava somente que ele lhe transmitia um sentimento muito bom de confiança e empatia.
A batalha começou mais uma vez, agora com os dois melhores guerreiros da família Li lutando juntos, lado a lado, como nunca antes havia acontecido. Duas lendas, dois mitos que compartilhavam o mesmo desejo de justiça. Duas gerações, por muito tempo separadas, que finalmente podiam se reencontrar.
Enquanto lutava, Zhihao notou o olhar do misterioso guerreiro que salvara sua vida. Aqueles olhos castanhos transmitiam uma profunda determinação e uma força de vontade férrea. Mas não foram estes dois atributos que lhe chamaram a atenção. Havia algo mais estampado naquele olhar feroz. Ponderou por um momento, imaginando o que poderia ser, mas a resposta era clara e evidente. O que diferenciava aquele olhar dos demais era o profundo amor estampado nele. Amor pela vida, amor pela humanidade, mas acima de tudo, amor por uma pessoa especial, alguém que enchia a vida daquele rapaz de alegrias e desejos. Alguém que o completava e o satisfazia.
"Este rapaz tem sorte." pensou o guerreiro, ao mesmo tempo em que aparava um investida de seu rival com extrema perícia e o contra-atacava com o punho fechado.
Estavam agora lado a lado, lutando como se fossem velhos amigos, antigos parceiros de batalha. A satisfação de Shaoran não poderia ser maior. Não apenas salvara a vida de seu pai, mas também estava lutando ao lado daquele que fora o maior herói de sua infância.
Aos poucos, pai e filho foram prevalecendo sobre as tropas inimigas. Já tinham uma boa vantagem quando se esconderam atrás de uma pequena elevação, procurando recobrar o fôlego e restaurar suas forças.
"É um guerreiro muito habilidoso, rapaz." elogiou Zhihao, sorrindo para Shaoran. O guerreiro se encheu de orgulho e felicidade ao ouvir tamanho elogio de seu pai.
"Obrigado. O Senhor também é um exímio guerreiro. Suas habilidade em muito ultrapassam as minhas." falou o jovem.
"Não seja tolo! Sua modéstia é desnecessária. A verdade é que se não fosse por você, decerto minha cabeça já estaria em posse do inimigo."
Sorriram um para o outro, terminando de recuperar as energias. Podiam ouvir seus oponentes procurando incessantemente por eles não muito longe dali. Ambos trouxeram as espadas para perto de si, ainda com a respiração ofegante. Suas atenções estavam voltadas para os movimentos do exército antagonista, e ambos sondavam os movimentos dos inimigos esperando uma brecha, a hora precisa em que poderiam atacar com força total.
Ouviam os passos do inimigo chegar cada vez mais perto. A proximidade era grande e só o que os separava eram alguns metros e aquela pequena elevação. Sabendo que a hora era aquela, os dois companheiro se entreolharam, trocando um aceno positivo de cabeça. Então, com um brado forte e feroz, lançaram-se sobre seus inimigos.
"Eu clamo a bênção do Senhor das Tempestades!" bradou o guerreiro mais velho, erguendo sua espada em direção ao céu. Imediatamente um trovão ecoou e sobreveio o temporal. Um vento muito forte arrastou os inimigos e os fez perder o equilíbrio ao mesmo tempo em que uma densa chuva vermelha começou a banhar as areias e pedras do campo de batalha.
"É sangue!" exclamou um dos soldados rivais. "Chuva de sangue!"
"Pois tal artifício não me espanta!" bradou aquele que parecia estar no comando. "Um truque infame como este não aplacará nossa fúria!"
Houve um estardalhaço momentâneo, quando os guerreiros exultaram seu líder.
"É agora ou nunca!" gritou Zhihao, aproveitando-se do momento de distração dos inimigos, incapacitados pelos fortes ventos que castigavam o local e pela chuva densa que limitava sua visão. Com um golpe certeiro, varreu do campo de batalha três ou quatro guerreiros.
Logo ao lado, Shaoran fazia o mesmo, aproveitando a clara vantagem da qual gozava. Aquele feitiço era extremamente difícil. Jamais imaginara presenciar sua execução.
Bloqueou um golpe adversário e esquivou-se de uma lança, que por poucos centímetros não atingiu sua cabeça. Então, girando sobre seus próprios pés, fez sua espada traçar um semi-círculo e atingir mortalmente dois ou três oponentes.
Ainda ocupado em se defender, observou o suposto líder rival se aproximar de seu pai, que vencia seus inimigos a duras penas. Foi com um aperto no peito que viu o guerreiro erguer a espada e golpear fortemente Zhihao, atravessando-lhe o ombro esquerdo.
"Não!" gritou, sentindo seus sangue ferver de ódio e desespero. Sentiu seu peito queimar, ao mesmo tempo em que sua energia oscilava. Então, com um brado enérgico e forte, se atirou de encontro ao guerreiro. O homem não teve tempo de pensar, pois em um instante já tinha tido o braço cortado pela espada de Shaoran. Seu grito de dor foi a última coisa que pronunciou, sendo calado momentos depois, para sempre.
Espantados com a ferocidade daquele guerreiro e acuados com a morte de seu líder, os soldados rivais perderam o rumo da ação. Isso deu a Shaoran o tempo que ele precisava. Ergueu sua espada para o alto, deixando que todo seu poder aflorasse.
"Príncipe dos Raios eu clamo a ti! Empresta-me tua força e teu poder!" proclamou ele, conjurando uma gigantesca tempestade de raios que tomou todo o lugar, fulminando os poucos guerreiros que ainda haviam naquele campo.
Quando tudo acabou, nada mais restava senão ele e seu pai, que repousava a seus pés, ferido e com a respiração ofegante. A chuva amenizou e passou do vermelho para o azul cristalino, trazendo frescor e lavando aquele solo maculado.
"Incrível, rapaz." pronunciou o patriarca com extrema dificuldade. "Você me salvou hoje pela segunda vez."
"Não fale nada, Senhor!" exclamou Shaoran, exasperado. "O Senhor pode piorar."
"Não há mais salvação para mim, meu rapaz. Meu destino há muito estava traçado. Sou muito grato por sua ajuda e seu apoio. Nossa vitória nesta batalha só foi possível por sua causa."
"Eu não fiz nada demais!" disse Shaoran, sentindo um enorme aperto em seu coração.
"Salvou a vida de um desconhecido e isso já é muito. Poucas pessoas teriam a coragem que você teve ao se lançar em uma batalha sem garantias de retorno. Sua bravura é admirável."
Shaoran não disse nada, apenas sorriu, emocionado. A sensação de estar mais uma vez tão perto de seu pai era inebriante e o enchia de um sentimento quente e reconfortante. Em contrapartida, vê-lo machucado trazia à tona lembranças antigas, de quatorze anos atrás.
"Sabe." começou Zhihao, resgatando Shaoran de suas reminiscências. "Você me lembra muito meu filho. Xiao Lang é o nome dele. Meu filho, meu Pequeno Lobo. Ele também tem olhos castanhos como os seus. São olhos muito bonitos."
Shaoran sorriu e pousou as mãos sobre a mão de seu pai, que fazia um esforço homérico para suportar a dor.
"Eu me pergunto se um dia meu filho se tornará um guerreiro tão bom quanto você." falou o homem, arrancando um suspiro de surpresa de Shaoran. "Rezo para que um dia ele possa ser como você, como o homem que salvou minha vida."
"Ele vai ser!" exclamou Shaoran, fazendo o possível para conter as lágrimas. "Tenha certeza de que ele vai ser!"
Suas palavras foram interrompidas pelo som de passos e vozes que chegavam através da areia molhada. Era o grupo mandado atrás do patriarca do clã. Tinha que agir rápido, não podia ser visto lá. Aproveitando-se de um breve momento de distração por parte do patriarca de seu clã, o jovem recuou, desaparecendo no meio das dunas. Escondido atrás de um monte de areia, ainda ouviu a voz de seu pai:
"Qual o seu nome, meu jovem?" indagou o guerreiro, olhando ao redor. Mas já não havia mais ninguém com ele. Tentou procurar seu salvador, mas a dor aguda não permitiu que ele se movesse como queria.
Logo chegou até ele um grupo de seis homens, que rapidamente se encarregaram dos primeiros socorros.
"Onde está ele?" indagou Zhihao. "Onde está o rapaz que me ajudou?"
"Está delirando." falou um dos homens. "Levem-no de volta à mansão o mais rápido possível. Ele precisa de cuidados médicos urgentes!"
E assim Shaoran observou seu pai se afastar, levados pelos outros membros de sua família.
Ainda atordoado, relembrou as últimas palavras que seu pai lhe dirigiu:
"Rezo para que meu filho um dia possa ser como você."
Então, o impacto daquelas palavras o atingiu por completo, conforme entendia o ciclo que se fechava. Quando chegasse em casa, Zhihao Li falaria para seu filho sobre o guerreiro que o ajudara. E o pequeno Shaoran prometeria ser como ele.
Sentou-se na areia úmida, enquanto digeria os últimos acontecimentos. Em sua mente, o quebra cabeças finalmente se completava. Lutara tanto, se esforçara tanto... apenas para ser ele mesmo. As peças pregadas pelo Destino mais uma vez se mostravam diante de seus olhos atônitos.
"Aquele ataque ainda vai ter troco, moleque." resmungou uma voz. Shaoran virou-se, apenas para encontrar Kerberus sentado ao seu lado. "Dia agitado, não?"
"Você estava aqui o tempo todo? Então você assistiu a tudo? Por que não nos ajudou?" indagou um inconformado Shaoran.
"Eu cumpro minha palavra. Mesmo que o que acabou de acontecer tenha sido inevitável, ainda assim eu mantive minha palavra perante a Ordem. Não era minha obrigação ajudar."
Shaoran apenas concordou. Tinha razão, não era obrigação dele ajudar. Sorriu e olhou para o céu. A última gota de chuva havia acabado de cair e as pesadas nuvens não mais se mostravam. Acima de suas cabeças, o Sol se fez ver, brilhando soberano ao longe no firmamento.
E foi então que Shaoran sentiu o feitiço da Realidade Mística se dissipar. Diante de seus olhos, o deserto desvaneceu, para dar lugar à conhecida praça de sua infância. Estava sentado sobre a grama, debaixo de um freixo antigo.
Levantou-se, pegando Kero e colocando-o em seu bolso novamente. Olhou ao redor e se deparou com o olhar curioso das pessoas. Subitamente, sentiu uma enorme vontade de rir e logo estava gargalhando, enquanto caminhava pela praça. E o som de suas risadas se espalhou pelo parque e além, trazendo consigo uma enorme sensação de vivacidade e alegria.
Com o pequenino guardião em seu bolso, Shaoran caminhou de volta ao beco onde havia caído no início do dia. Olhou pela última vez as construções ao seu redor tomado de uma profunda satisfação. Então, ainda sorrindo, levou as mãos à jóia que trazia em seu pescoço, desaparecendo com um estampido.
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Nome: Vladimir Koslakovich
País de Origem: Rússia
Idade: 53 anos
Data de Nascimento: 19 de Junho de 1953
Tipo Sanguíneo: A-
Elemento Regente: Terra
Ocupação: Guardião da Terra do Supremo Conselho de Magos e Graalmeister da Ordem do Santo Graal.
Passatempo: Ler, jogar xadrez, tocar violino, ir ao cinema.
Ficha Pessoal: Vladimir é o que se pode chamar de um mago cético. Sua mente racional procura sempre comprovar tudo que ouve, não deixando nada escapar de seus olhos e sentidos.
Extremamente ponderado e calculista, gosta de planejar seus atos e ações com calma e realismo, procurando não deixar nada ao acaso. Acredita que a vida é um gigantesco jogo de xadrez e que não se pode ter sucesso sem planejamento.
A longa jornada de Vladimir pelo mundo da magia começou aos quinze anos, quando seu pai, um membro influente da Ordem do Santo Graal, o apresentou aos anciões da Sociedade. A partir de então, o jovem Vladimir começou passou a se dedicar aos estudos com singular afinco, logo se tornando um exemplo para os acólitos mais jovens. E foi em meio ao conturbado período do pós guerra que Vladimir se especializou no Caminho Elemental da Terra, sob os olhos orgulhosos do pai, alcançando o posto de Graalmeister aos 40 anos. Quatro anos depois viria a ser convidado a integrar o Supremo Conselho de Magos.
Ao longo de sua vida como mago, Vladimir foi responsável por diversos feitos decisivos que definiram os rumos da ordem mundial. Juntamente com Magno, lutou para ver destruído o Muro de Berlin, presenciando com satisfação sua demolição, em 1989.
Além disso, por ser um grande estrategista, Vladimir foi chamado diversas vezes para planejar investidas contra rebeliões e hordas demoníacas, sempre obtendo sucesso em suas ações.
Atualmente, nos momentos em que está afastado do universo místico, Vladimir dá aulas particulares de violino e coordena um clube de xadrez em uma escola de Birmingham, onde reside.
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E finalmente, após um longo período sem atualizações, aqui está um novo capítulo de Chrono.
Peço-lhes humildemente que me perdoem por este atraso. Sei que estou sem publicar nada há seis semanas, mas meu tempo tem estado extremamente corrido. Estou com dezenas de trabalhos da faculdade para terminar e pelo menos 4 livros para ler. As coisas estão pesadas. Mas tudo tende a suavizar daqui por diante. Começo a apresentar meus trabalhos a partir de semana que vem. Depois disso espero ter mais tempo para escrever.
Voltando à história, espero que tenham gostado deste capítulo tanto quanto eu gostei de escrevê-lo, apesar dos contratempos. É um capítulo que eu tenho planejado desde o momento em que comecei a escrever esta saga, e ele revela muita coisa a respeito de Shaoran e seu relacionamento com o pai. É surpreendente como o Destino pode nos pregar peças!
Devo parabenizar a Andréa Meiouh e a Yoruki Mizunotsuki, que foram as duas únicas pessoas que conseguiram juntar todas as pistas que dei ao longo dos capítulos e deduzir que o guerreiro que ajudou o pai do Shaoran era ele mesmo. Parabéns às duas!
Parabéns também à nossa aniversariante da semana. Talita, amiga, feliz aniversário! Muitos anos de vida e muitas felicidades sempre!
Creio que por enquanto é só! Vou ficando por aqui. Até o próximo capítulo (mais breve, espero).
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai