Shaoran é subitamente transportado para uma realidade alternativa, onde se encontra morto. Agora, com a ajuda de Eriol, ele deve encontrar o caminho de volta para casa. E então, sua jornada começa... CAPÍTULO DEZENOVE NO AR. Não, não é um sonho!
Rated: Fiction T - Portuguese - Adventure - Syaoran L., Sakura K. - Chapters: 20 - Words: 176,017 - Reviews: 141 - Favs: 33 - Follows: 8 - Updated: Dec 22, 2005 - Published: Jan 4, 2003 - id: 1158567
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Capítulo Quatorze — De Lágrimas e Carinhos
Houve uma batida forte na porta, que logo em seguida se abriu
abruptamente, revelando a figura de um homem em trajes religiosos. Não era
muito alto, mas possuía um porte característico, o que lhe conferia uma
aparência até certo ponto respeitosa. Os cabelos claros eram bem aparados,
penteados cuidadosamente, mantendo uma aparência impecável. Algumas gotículas
de suor teimavam em correr por sua testa, evidenciando que o homem estivera
correndo, apressado.
"Enfim eu vos encontrei!" bradou o padre, exasperado. "Eu
estive atrás de vós a noite toda!"
Sakura e Katrina imediatamente se colocaram na defensiva.
"Ora, Halig, eu te disse que estaríamos escondidos em uma casa
abandonada no subúrbio!" falou Patrick, surpreendendo as duas mulheres.
"Tens noção da quantidade de casas semelhantes esta cidade
possui?" indagou o padre, sentando-se em uma cadeira. Patrick nada disse,
apenas sorriu e se sentou.
Katrina, Sakura e Spinel se olharam com uma expressão interrogativa
estampada em seus rostos, mas foi o guardião de Eriol que traduziu em
palavras o pensamento que lhes passava pela cabeça naquele momento:
"Gostaríamos de saber o que está acontecendo aqui!" bradou o
pequeno, fitando o homem que há pouco entrara no casebre. Patrick e Halig
sorriram.
"Este é Halig McArchard, um amigo que conheci durante minhas
muitas viagens." falou Patrick. "Ele é o padre da cidade."
Os três companheiros se entreolharam, ainda confusos com o que
estava acontecendo. Estavam em plena Inquisição e Patrick trazia um padre
para dentro do esconderijo? Tentaram buscar um sentido aparente naquilo
tudo, apenas conseguindo mais dúvidas nas quais pensar.
"Não vos amedronteis." disse Halig, compreendendo o porquê de
tamanho desconforto. "O fato de ser padre não me torna necessariamente um
Inquisitor. De fato, confesso que o Tribunal da Inquisição em muito
diminuiu minha simpatia pela Igreja."
Sakura e Katrina se olharam e logo em seguida o fitaram de forma
inquiridora. O homem encontrou os olhos verde-esmeralda de Sakura e o cinza
profundos dos olhos de Katrina, imediatamente compreendendo a dúvida que
ambas possuíam.
"O meu desagrado quanto à postura adotada pela Igreja não diminuíram
minha fé em Deus. Ele é sábio e eu rezo para que meu irmãos possam ter
seus olhos abertos em tempo." declarou o sacerdote, fazendo o sinal da
cruz.
As duas mulheres sorriram, satisfeitas com a resposta. Voltaram a se
acomodar, envolvidas pelo silêncio que ficara após a resposta de Halig. O
Sol já se levantara por completo e naquele momento lançava sua luz por
cima das árvores do bosque que havia ao longe até atingir o topo das casas
da cidadela.
Se as outras vilas e cidades próximas estavam acordando naquele
momento, as pessoas daquele lugar estavam começando a adormecer. Como as
buscas da noite anterior haviam sido de todo infrutíferas, os habitantes da
cidadela não tiveram outra opção senão recolherem-se para dentro de suas
casas e descansar da árdua caçada.
Halig observou quando a porta da última casa se fechou, lacrando
consigo o último homem. Mentalmente pediu perdão por ter dissimulado de
tal forma. Mentira para aquelas pessoas dizendo que ajudaria nas buscas e
conseguira distrair o foco de suas atenções por meio da confiança da qual
gozava. Não aprovava a mentira, mas às vezes esconder a verdade era o ato
mais sensato, principalmente se essa verdade pudesse condenar a vida de um
inocente.
"O que pretendeis fazer daqui por diante?" indagou o padre,
virando-se para Patrick.
"Não sei. Nossa trilha foi alterada no momento em que essa criança
cruzou nosso caminho. Não podemos abandoná-la à própria sorte. Seria um
tanto quando imprudente deixá-la à mercê do Destino. Ela precisa de ajuda
e eu pretendo ajudá-la." declarou o Cavaleiro, fitando a pequena forma
que se revirava na cama de palha. Sakura e Katrina imediatamente
concordaram.
"Ela está perturbada." falou Halig, olhando-a com ternura.
"Seu espírito está fragilizado e sua fé está abalada. Ela precisa
re-aprender a confiar nas pessoas."
Patrick meneou a cabeça positivamente, concordando com o amigo. Como
que escutando a conversa que se desenrolava, a garota lentamente começou a
acordar. Revirou na cama durante alguns minutos até que finalmente abriu os
olhos. Piscou algumas vezes até se acostumar com a claridade que lhe
ofuscava a vista, sentando-se na cama logo em seguida.
A garota olhou para os lados, ainda um pouco tonta, tentando entender
o que estava acontecendo.
"O que aconteceu?" indagou a menina, confusa ao extremo.
Dawn encolheu na cama, fitando Katrina com desconfiança.
"Não chegueis perto de mim! Eu juro que queimo todos vós!"
gritou a pequena, ao mesmo tempo em que dezenas de pequenas chamas a
rodeavam de forma defensiva.
Katrina recuou um passo, tomando cuidado para não amedrontar ainda
mais a garota.
"Por favor!" falou Sakura. "Confie em nós!"
"Confiar?!" gritou a menina, exasperada, as chamas ao seu redor
aumentando ainda mais. "Confiar para depois sofrer? Confiar para ser traída
por aqueles que ganharam nossa confiança? Quando se confia apenas se sofre.
Quando se confia a única coisa que se ganha é a solidão! Minha família
foi destruída por pessoas como vós, por pessoas em quem confiavam!"
"Nem todas as pessoas são iguais, minha querida." falou Katrina
docemente. "Há pessoas boas, pessoas que merecem nossa confiança e nosso
amor."
"Mentira! Vós estais mentindo, eu sei! As pessoas são todas
iguais! Vão à missa, prestam juramentos, fazem votos pela manhã! Mas de
noite elas freqüentam os bordéis imundos da cidade! Elas difamam umas às
outras pelas costas, têm pensamentos obscuros. Elas pecam durante a noite,
em seus sonhos! Eu sei! Eu vi!"
Os cinco se olharam, surpresos com as palavras de Dawn.
"Tenha calma, criança." falou Halig, aproximando-se. "Não
julgues as pessoas de forma tão precipitada. É verdade que existe muita
maldade e hipocrisia neste mundo, mas isso não significa que não haja algo
de bom."
"Como o que?"
"Como tu, como aqueles que te trouxeram a este mundo. Não acredito
que pessoas más possam ter trazido a este mundo uma menina tão linda como
tu."
As palavras de Halig pareceram surtir algum efeito sobre ela. A
lembrança do que acontecera há tantos anos ainda a assombrava. Suas noites
ainda eram tenebrosas e seus dias ainda eram nublados pelas memórias do
passado, que cobriam o céu de sua vida como uma sombria nuvem negra que se
espalha pelas campinas e escurece o horizonte.
Katrina e Sakura perceberam que Dawn vacilava. Entretanto, após um
breve momento de silêncio, a garota se recompôs:
"Dizem que a maldade se esconde sob a forma mais improvável. Não
tente me enganar! Eu sou a cria do Demônio!" bradou a garota, muito
embora estivesse com uma imensa vontade de chorar.
"Não acredito nisso." interpelou Halig. "O demônio jamais
teria esses olhos tristes e assustados. Tudo o que vejo é uma garota
confusa, que apenas não encontrou seu verdadeiro caminho."
Dawn vacilou uma vez mais, dando a Halig a brecha que ele precisava.
"Não tenha mais medo. Sei que foi magoada, mas é hora de recomeçar.
Dê-nos uma chance. Eu sei que tu tens um coração puro. Apenas tens medo
de procurá-lo."
As chamas que pairavam ao redor de Dawn vacilaram, tremeluziram e
desapareceram, deixando somente um fiapo de fumaça, que logo foi dissipado
pelo vento que entrava pela janela. A garota abraçou os próprio joelhos e
irrompeu em um choro tímido, contido. Havia anos que não chorava, que
guardara sua mágoa e sua raiva somente para si. Não podia mais suportar
tudo aquilo, não depois do que ouvira. As palavras de Halig haviam
conseguido quebrar o escudo que ela erguera ao seu redor e alcançado seu
espírito ferido.
"Tenha calma, criança. Tudo há de ficar bem." sussurrou Katrina
em seu ouvido, enquanto a abraçava. Dawn se agarrou desesperadamente ao
abraço de Katrina, soluçando nos braços da Guardiã como nunca antes
pensara poder fazer. Katrina sorriu e acariciou os longos cabelos da jovem.
"É tão gostoso..." pensou a garota, deixando-se envolver pelo
suave calor que emanava do corpo da feiticeira. Abriu os olhos e fitou o
rosto de Katrina. A mulher parecia irradiar uma suave luz branca, que a
envolvia e a embalava de forma protetora.
Fechou os olhos novamente, deixando que todas aquelas sensações
maravilhosas tomassem seu corpo e sua mente. Será que finalmente, após
tantos anos de solidão, poderia encontrar um pouco de paz? Ela queria
acreditar que sim, queria acreditar que tudo iria melhorar...
"Tudo vai dar certo." disse Sakura, sentando-se ao lado de
Katrina e acariciando o rosto de Dawn. A garota sorriu em meio às lágrimas,
finalmente seu sofrimento teria fim; não ficaria mais sozinha.
Foi com o coração mais leve e a alma plena de tranqüilidade que
Dawn deixou os braços de Katrina, ainda soluçando. Mantinha os olhos
baixos, como que temendo encarar a todos os presentes.
"Me perdoem." ela sussurrou de uma forma quase inaudível. "Me
perdoem por tudo o que eu fiz."
Os cinco companheiros sorriram.
"Não te preocupes, está tudo bem." falou Patrick. "Eu também
peço desculpas pelo feitiço que lancei sobre ti ontem."
Dawn acenou a cabeça, concordando. Não sabia ao certo porquê, mas
aquelas pessoas lhe transmitiam um sentimento muito bom e reconfortante.
Sentia-se preenchida de uma tranqüilidade nova e acolhedora, que acalmava
seu coração agitado e embalava seu espírito, que há muito havia sido
despedaçado pela crueldade e demência das pessoas daquela cidade.
Olhou ao longe o horizonte de sua própria vida e pôde discernir
vislumbres de alegria. A densa cortina de melancolia que bloqueava a janela
para sua liberdade aos poucos se erguia, desnudando um mundo novo e
desconhecido a ela; um mundo onde a bondade era real, onde as pessoas
realmente se importavam umas com as outras. Seria aquilo possível? Será
que de fato existiam pessoas boas naquele mundo insano? Ela queria acreditar
que sim! Queria acreditar que aqueles que a ajudavam eram pessoas dignas e
justas.
Correu os olhos sobre aqueles cinco. A pantera negra era estranha.
Embora possuísse uma aura pesada e sombria não era hostil tampouco
maligna. A mulher que a abraçara momentos antes tinha ao redor de si uma
luz suave que aquecia seu coração. A outra aparentava ter uma grande
bondade e uma alegria contagiante. O homem com a espada tinha um porte
altivo, digno de um verdadeiro Cavaleiro, ao passo em que o padre, embora
dono de uma boa constituição física, era mais recatado e contido.
Eles não aparentavam perigo. Em seu íntimo, alguma coisa a incitava
a confiar naquele inusitado grupo de amigos. Sorriu. Pela primeira vez em
muitos anos ela podia sorrir abertamente sem que lhe acusassem de algo que
ela não entendia e não tinha feito. Finalmente podia sorrir sem culpa, sem
que fosse assombrada pelos fantasmas que habitavam os becos escuros de sua
consciência.
"Então." falou Sakura, sentando-se ao lado dela e tomando as mãos
da garota entre as suas. "Agora que já está mais calma, que tal se começássemos
novamente? Meu nome é Sakura Kinomoto. Esta é Katrina, Guardiã da Luz do
Supremo Conselho de Magos. Estes são Patrick, Cavaleiro da Ordem dos Dragões
do Tempo e Halig, padre desta cidade. E aquele é Spinel Sun. Agora que já
sabe nossos nomes, que tal se soubéssemos o seu?"
"Dawn." ela disse timidamente. "Dawn Donnovan."
"Deves estar cansada, Dawn." falou Katrina. Que tal tomar um
banho para relaxar? Patrick, Halig, onde podemos encontrar água?"
Os dois sorriram. Halig saiu do casebre, retornando alguns minutos
depois com dois grande baldes de água limpa. Esquentaram a água e encheram
uma pequena banheira. Katrina e Sakura guiaram a jovem até o banheiro e a
despiram completamente. Dawn mergulhou na água quente, maravilhada com os
diversos perfumes que a rodeavam. Há quanto tempo não tomava um verdadeiro
banho? Mal podia se lembrar da última vez.
A transformação pela qual a garota passava à medida que a água
levava as impurezas de seu corpo era visível e fascinante. De fato, Dawn
era uma menina muito bonita, com longos cabelos castanhos claros que
formavam ondas suaves, emoldurando perfeitamente seu rosto pequeno e
afilado. Os olhos castanhos fitaram Katrina, que massageava suas costas. Viu
quando a mulher sorriu para ela. Sorriu de volta, muito embora tal gesto
ainda fosse algo difícil e até certo ponto estranho após tantos anos de
sofrimento sem fim.
Ouviram algumas batidas na porta do banheiro e Sakura rapidamente
correu para abrir. O rosto de Halig se fez ver em meio ao vapor que rodeava
o ambiente. O padre trazia nas mãos um bonito vestido de algodão,
juntamente com um pente.
"Fui até a Igreja buscar roupas novas para ela." disse ele,
parecendo um pouco embaraçado por estar interrompendo aquele pequeno
ritual. "Algumas das doações que recebemos acabam sendo úteis no final
das contas."
Sakura sorriu e pegou os objetos das mãos do homem, que se retirou
sem mais demoras. Finalizaram o banho e em alguns minutos Dawn estava
renovada. Parecia outra pessoa. O vestido acentuava o corpo da garota, que
oscilava entre o infantil e o maduro, conferindo-lhe uma aparência ao mesmo
tempo inocente e precoce.
"Você é muito linda." disse Sakura enquanto penteava os cabelos
da garota suavemente. Dawn corou de leve, agradecendo o elogio daquela
mulher cuja vivacidade tanto a encantava. Queria ser como ela, sempre
disposta a um sorriso, sempre feliz, contagiando a todos com sua alegria
radiante. Queria ser também como Katrina, com sua serenidade e seu toque
suave, sua aura reconfortante e seus braços acolhedores. Por que não as
conhecera antes? Por que tivera que sofrer tanto? Seria um castigo de Deus
por seus pecados, por ter feito tantas coisas ruins durante tanto tempo? Ela
não sabia. Sabia apenas que não queria mais se separar daquelas pessoas,
que não se importavam com o fato de ela ter poderes sobrenaturais. Pessoas
iguais a ela, que a entendiam e a faziam se sentir alegre e completa pela
primeira vez.
As três saíram do banheiro e se depararam com a mesa posta. Patrick
aparentemente aproveitara o tempo que elas tinham passado juntas para sair e
colher algumas frutas no bosque que havia perto dali. Os olhos de Dawn
brilharam diante das maçãs vermelhas e dos morangos e figos maduros. Havia
também uma jarra de leite e alguns pães que Halig trouxera do convento.
"Sirva-se, pequena!" disse Spinel, voando sobre a cabeça da
garota, que não esperou um segundo convite. Há muito tempo não comia um
pedaço de pão fresco ou tomava uma caneca de leite. Mal podia se recordar
do gosto do figo e da textura do morango. Para quem vivia do lixo, aquilo
era um banquete divino.
Os cinco sorriram entre si, e logo todos estavam comendo e
conversando, deixando de pensar momentaneamente em todos os problemas que os
circundavam. E foi somente então que Sakura percebeu algo:
"Espere um instante." disse a jovem. "Ontem à noite eu não
conseguia entender uma palavra do que Dawn dizia. Então como eu a entendo tão
bem hoje?"
Katrina riu, deixando evidente que havia uma dedo dela naquilo tudo.
Sakura apenas balançou a cabeça, sorrindo de volta para a amiga e levando
um pedaço de pão à boca.
Quando finalmente terminaram o desjejum, sentiam-se saciados.
Recolheram a louça e rapidamente colocaram tudo em ordem. Sentaram-se cada
um em um canto do cômodo que era ao mesmo tempo a sala e o quarto. Então,
como se a realidade voltasse a atormentá-los, a voz de Patrick se fez
ouvir:
"Não podemos nos demorar muito mais aqui, o nosso tempo é
escasso. Entretanto, não podemos deixar Dawn sozinha mais uma vez. Temos
aqui um dilema, meus amigos, e agora eu lhes pergunto o que devemos
fazer."
Todos se entreolharam, pensando em uma solução. Tal dilema era por
demais complicado para ser resolvido de uma hora para outra.
"Eu poderia cuidar dela." prontificou-se Halig. Patrick pareceu
ponderar por um instante sobre a proposta do amigo entretanto a própria
Dawn parecia desconfortável com a idéia. O impasse durou algum tempo.
Percebendo que não chegariam a lugar algum, Patrick se levantou.
"Acho que vou caminhar um pouco pela floresta para pensar com mais
calma." disse o Cavaleiro. Sem mais uma palavra pegou seu manto e saiu,
fechando rapidamente a porta logo atrás de si. Spinel foi atrás, decidido
a acompanhá-lo. Não estavam em dias favoráveis e perambular sozinho por
aquelas terras estava fora de cogitação até mesmo para um Cavaleiro do
Tempo.
Sakura e Katrina também pareciam ter o que pensar, e saíram
deixando Dawn aos cuidados de Halig.
A garota não parecia totalmente confortável com a presença dele
ali. Talvez por ter tentado prejudicar tantas pessoas ao longo de sua solidão
através dos anos, ela talvez temesse algum castigo vindo dos céus.
Halig não demorou a perceber o desconforto da jovem. Sentando-se ao
lado dela, o padre sorriu:
"O que te aflige, minha filha?" indagou em tom paternal.
"Tenho medo." ela disse. "Tenho medo do que possa acontecer
comigo. Vós sois padre, um representante de Deus! Eu tenho medo do que Ele
possa fazer comigo. Eu não fiz tudo aquilo por maldade, eu juro!"
"Acalma-te." disse Halig, levando um dedo aos lábios da menina.
"Não há motivo para temer a Deus! Deus é todo misericórdia. Ele sabe
que não és uma pessoa maligna e jamais te castigaria por isso. Estavas
apenas confusa, minha criança, mas agora deves encontrar teu rumo. Tenho
diante de meus olhos um cordeiro perdido. Afasta o temor do teu coração
pois motivo não há."
"Por que?" indagou Dawn, cujo olhar não compreendia aquele
homem.
"Perdão, mas não entendi tua pergunta."
"Por que vós me ajudais? Sois um padre, um representante da
Igreja! E a Igreja caça pessoas como eu!" disse Dawn com a voz embargada.
Ela ainda se lembrava dos aldeões proclamando o nome de Deus enquanto seus
pais ardiam em chamas.
"Escuros têm sido os últimos anos, minha criança. Meus irmãos
se desviaram de seu caminho, iludidos por uma falsa justiça que não traz
nada senão dor e lágrimas. A insanidade dos últimos tempos de fato está
trazendo a discórdia para dentro dos corações das pessoas."
"Entretanto, Deus é sábio! Rezo para que as pessoas possam ver
isso. Deus é o Senhor todo poderoso e sua compaixão não conhece
limites."
Dawn o fitou longamente. As palavras de Halig não continham
mentiras. Ao contrário, estavam carregadas de verdade. Mais ainda, ela
podia sentir o pesar nas palavras que o padre proferia, como se seu coração
lamentasse tamanho infortúnio.
"Mas então como vós explicais meus poderes? Nenhuma pessoa que
vai à Igreja tem esses poderes."
"Todos nós temos potencial para o Bem, sim, e para o Mal também."
disse Halig, segurando a mão branca de Dawn. "Não acredito que tu sejas
o Demônio apenas pelos poderes que possuis. Acredito que Deus, em sua
sabedoria infinita, te deu estes poderes e que algum dia eles serão muito
úteis."
"Eu queria ter nascido normal!" exclamou ela. "Esses poderes só
me atrapalharam!"
Halig a olhou com compaixão.
"Tu és normal, minha criança. Todos nós somos. Somos todos
filhos de Deus e iguais perante seus olhos. Entretanto, somos também
diferentes. Teus poderes te tornam diferente de mim, mas jamais te tornariam
anormal."
Dawn baixou os olhos, pensativa. Não podia deixar de ver as verdades
contidas na fala de Halig. O homem de fato era uma pessoa bondosa. Em um
impulso, a jovem o abraçou, sentindo o coração mais leve.
"Cuide bem de teus poderes, pequena. Chegará o dia em que eles serão
necessários e então tu entenderás porquê nasceste com eles. Tudo na vida
tem um propósito. Mesmo as coisas más nos ensinam lições preciosas. O
simples vento que sopra neste momento tem um propósito. É ele que vai
semear o solo e espalhar o pólem das flores."
Dawn sorriu, e desta vez não lhe pareceu tão difícil sorrir. Em
seu íntimo, agradeceu por ter encontrado uma pessoa bondosa em meio a
tantas outras regidas pela hipocrisia e pela ganância.
"Obrigada." ela pensou. "Muito obrigada."
Seguiu-se um suave silêncio. Não o silêncio incômodo que traz o
desconforto e a desconfiança, mas aquele silêncio manso, que chega aos
poucos e se instala deixando uma atmosfera agradável ao redor; aquele silêncio
que propicia a reflexão e faz a confiança nascer, semeando a tranqüilidade
e o amor entre as pessoas.
As horas se passaram uma após a outra. Um após o outro, os quatro
companheiros foram retornando. Primeiro Sakura e Katrina. Por fim, Spinel e
Patrick chegaram trazendo frutas frescas e um pouco de caça. Katrina
rapidamente acendeu o fogão à lenha da cabana e juntos eles prepararam o
jantar enquanto Dawn e Halig aprontavam a mesa.
Sakura sorriu ao ver como Dawn estava animada e não deixou de notar
o entrosamento com o padre. Certamente aquelas horas que os dois haviam
passado sozinhos não tinham sido de todo improdutivas. Havia um brilho novo
nos olhos da garota, que Sakura deduziu ser fruto da conversa com Halig.
Mentalmente ela agradeceu por ainda haverem pessoas boas no mundo, em
uma época dominada pela demência de mentes obstinadas e fanáticas.
"Vamos comer?" indagou Patrick, colocando uma travessa com o
cozido que haviam preparado com a caça. Sakura sorriu e concordou.
Sentaram-se à mesa e deram início à ceia. Dawn olhou para aquelas
pessoas. Pareciam uma verdadeira família. Sorriu perante o pensamento que
lhe veio à cabeça. Havia perdido sua família muito cedo. Será que
encontrara uma nova? Afastou aqueles pensamentos de sua mente e se
concentrou na comida que tinha no prato. Quanto tempo não sentia o sabor da
carne ou a doçura do mel? Muito mais do que ela podia contar.
Terminaram o jantar calmamente. Halig levantou-se logo em seguida:
"Preciso retornar para o convento agora. Passei o dia todo fora e
sei que o Bispo e os noviços vão achar estranho."
O padre recebeu apenas um aceno de cabeça concordando. Sem dizer
mais nada pediu licença e se levantou. Quando estava prestes a abrir a
porta, sentiu uma mão segurar seu braço. Era Dawn, que rapidamente se
levantou e o abraçou.
"Obrigada... Pai..." ela agradeceu. Halig sorriu e a abraçou de
volta, beijando-lhe a fronte.
"Não agradeça. Eu não fiz nada, minha criança."
"Fizeste mais do que podes imaginar." ela murmurou, soltando-o.
Halig então se virou e saiu. Pela janela, Dawn ainda pôde ver sua
silhueta se distanciar e se perder no meio das casas da cidade. Ao longe, os
sinos da Igreja anunciavam as dez horas da noite.
Terminado o jantar o grupo rapidamente recolheu a louça. Logo tudo
estava no seu devido lugar e eles se preparavam para dormir. Entretanto, o
perigo não havia passado. A Inquisição ainda estava em seus calcanhares.
Depois de discutirem algum tempo, decidiram que se revezariam em
turnos de duas horas cada um. Todos, incluindo Dawn deveriam ajudar. A
garota concordou prontamente. Estava disposta a auxiliar aquelas pessoas que
haviam dado a ela tanto carinho e compreensão.
"Dawn, você fica primeiro." disse Patrick. "Depois terá o
restante da noite para descansar."
A garota concordou e se levantou, assumindo seu posto.
"Vou recomeçar minha vida!" ela disse para si mesma quando todos
pegaram no sono. Olhou para Katrina e sorriu. Definitivamente, dias melhores
a aguardavam.
___________________
Foi-se a Lua, nasceu o Sol. Tão silenciosa e calma como havia
chegado a noite partiu, sem deixar rastros ou pistas, levando consigo os
mistérios que somente a escuridão carrega. O céu aquele dia estava limpo,
com nuvens esparsas que se faziam ver aqui e acolá.
Lentamente as pessoas começaram a acordar. Spinel observou seus
companheiros se mexerem e abrirem os olhos lentamente. Havia ficado no último
turno de vigília, mas a calmaria que observou durante a madrugada em nada
refletia a inquietude de seu coração.
"Bom dia." cumprimentou o guardião observando seus amigos.
Katrina levantou-se e esticou os braços ao mesmo tempo em que Patrick e
Sakura soltavam um longo e demorado bocejo.
"Bom dia, Suppi." disse Sakura.
Dawn revirou na cama e sentou, esfregando os olhos. Sorriu ao ver os
quatro companheiros, parecendo satisfeita por vê-los ali, como se estivesse
aliviada.
"Não foi um sonho afinal." ela pensou.
O início daquele dia foi descontraído. Terminaram com o restante
das frutas que Patrick havia colhido na noite anterior e se puseram a
arrumar o local. Não poderiam ficar ali por muito mais tempo e sabiam
disso. Cada minuto passado na pequena cabana era um momento precioso
perdido.
Dado momento, quando o Sol já havia nascido por completo e quase
alcançava o topo do firmamento, assomou-lhes novamente a dúvida: o que
fazer dali por diante? Agora Dawn estava com eles e não poderiam
simplesmente abandoná-la à própria sorte novamente.
Sentaram-se cada um onde lhes foi mais conveniente e puseram-se a
pensar, muito embora a indecisão ainda permeasse de forma palpável suas
mentes. O olhar de cada um deles refletia o sentimento de dúvida, deixando
transparecer a ansiedade que todos sentiam.
Era quase meio dia quando a porta se abriu, revelando a figura de
Halig. O homem entrou em silêncio e cumprimentou a todos com um aceno de
cabeça, sentando-se logo em seguida. Permanecia com o semblante fechado,
quase tenso, como se algo o consternasse em demasia.
"O que houve, Halig?" inquiriu Patrick, sabendo de imediato que
algo havia acontecido. Conhecia o amigo o bastante para deduzir da expressão
em seu rosto que algo não ia bem. De fato, quando Halig suspirou e hesitou
antes de responder, veio-lhe a certeza de que algo saíra do planejado.
"A Igreja suspeita de algo. O Bispo está inquieto e disse que estão
ampliando as buscas. Tenho a leve suspeita de que estão me vigiando. Não
posso me demorar aqui, vim apenas trazer-vos um pouco de mantimentos para o
dia de hoje."
Halig recebeu apenas um aceno afirmativo dos amigos que o fitaram
enquanto ele depositava sobre a mesa alguns pães e uma garrafa de leite.
"Isso é tudo que posso vos oferecer no momento. Estou roubando
comida do monastério e isso não é uma atitude digna de um padre nem mesmo
se realizada com bom intuito."
"Obrigada, Halig. Agradecemos tua preocupação, mas creio que seja
melhor tu ficares afastado deste lugar por um tempo. Não podemos pedir que
te arrisques por nossa causa muito menos que aja contra teus votos."
Halig sorriu perante as palavras de Katrina, que o olhava com um
misto de preocupação e gratidão. Baixou os olhos e meneou a cabeça de
uma lado para o outro.
"Não, vós não podeis. Entretanto também não podeis me pedir
para parar. Faço apenas o que meu coração me diz para fazer."
A sinceridade na voz de Halig despertava em seus corações um grande
sentimento de gratidão, muito embora eles soubessem que o amigo se
arriscava em demasia agindo daquela forma. Observaram o homem se levantar e
ajeitar a gola da camisa. Halig olhou pela janela, fazendo seus olhos
percorrerem cuidadosamente todo o ambiente ao redor em busca de alguma
movimentação suspeita. O Sol lançava seus raios e iluminava aquela terra
de discórdia onde ele crescera mas que, entretanto, não podia realmente
chamar de lar. Se pudesse iria embora daquela cidade, mas sentia que tinha
um dever a cumprir naquele lugar de ninguém, onde a intolerância era tão
perceptível quanto o grasnar de corvos em um dia silencioso.
Levantou-se lentamente e se despediu do grupo, dizendo que precisava
voltar o mais rápido possível. Do modo como as coisas estavam, o risco de
serem descobertos era muito grande e eles já tinham problemas demais com os
quais se preocupar fora a Inquisição.
Halig saiu, deixando para trás um grupo preocupado e apreensivo. A
tensão que se formava incomodava-lhes ao extremo, à medida que se
instalava e tomava todo o ambiente. Porque o perigo daqueles dias fosse tão
amplo, sentiam que seus atos se limitavam cada vez mais. Semelhante à uma
presa acuada por seu caçador, suas ações diminuíam e se tornavam cada
vez mais restritas.
O céu já não estava tão limpo como no início do dia, e o Sol das
quatro horas lançava seus raios difusos por entre algumas nuvens intrusas
que se postavam em seu caminho. A tarde aos poucos caminhava para seu fim,
aproximando-se do momento derradeiro onde luz e sombras se encontravam em um
jogo de cores que se fundiam em um único ser, extasiando os expectadores
daquela cena do teatro da vida.
Por fim, chegou a noite, encerrando aquele ato e dando início a um
outro, tão mágico quanto o anterior. Entrava em cena a Rainha Lua, mítica
soberana da escuridão, e as estrelas, que dançavam no céu como figurantes
naquele cenário monocromático.
Que o dia fosse o ato da alegria, com sua luminosidade ofuscante e
sua magnificência absoluta, ardente como o fogo e vivaz como o riso pueril
das crianças que correm sobre as campinas verdejantes durante a primavera.
Mas era a noite o ato da introspecção, que trazia consigo a sensualidade
sublime e a beleza surreal da criação. Era em meio ao cenário iluminado
pela Lua e pelas estrelas que os mais profundos mistérios da existência se
manifestavam, desnudando diante dos olhos dos expectadores mais atentos os
detalhes escondidos presentes no palco daquela grande encenação.
Contracenando com a Lua, uma coruja lançava sua voz de dentro do
bosque, compondo uma melodia suave, quase tétrica, enquanto observava o
mundo mudar do alto de seu galho. O vento também havia sido chamado para
atuar, assoviando por entre as ramagens e contrapondo sua voz à da
pequenina coruja — apenas uma minúscula parte de um coral de múltiplas
vozes.
Embalados pela canção composta pela natureza, que naquele momento
carregava consigo as palavras de Morfeu, o grupo decidiu adormecer, mantendo
o esquema de vigília estabelecido durante a noite anterior.
No dia seguinte, Patrick acordou cedo e acabou por decidir buscar
mais lenha, visto que seu suprimento havia acabado. Katrina e Sakura foram
colher frutas para o desjejum e Dawn ficou encarregada de preparar a mesa.
A menina observou seus amigos se distanciarem e fechou a janela,
iniciando rapidamente seu serviço. Em poucos minutos a mesa estava posta e
Halig chegava com um novo suprimento de pão e leite.
"Bom dia, minha filha." cumprimentou o padre olhando para os
lados. Sua expressão adquiriu um tom sombrio ao notar que a garota estava só.
"Onde estão todos?"
"Foram recolher lenha e frutas." ela disse se olhar para ele,
ajeitando uma cadeira para que o homem pudesse se sentar.
"Isso não é bom." ele comentou em voz tão baixa que Dawn teve
dúvidas se ele havia dito aquilo para ela ou para si mesmo. "O cerco está
se fechando, pequena. Vós não podeis mais ficar aqui, não é mais seguro.
Tão logo o desjejum tenha sido feito, vós deveis partir, para o bem de
todos."
Dawn ficou em silêncio. Então era isso, finalmente o que ela temia
iria acontecer. Teriam que fugir novamente.
"Entendo." ela murmurou. Nem bem suas palavras terminaram de
soar, uma forte batida foi ouvida na porta, seguida de uma segunda e uma
terceira e ainda uma quarta. Logo a porta havia sido derrubada e três
homens em trajes religiosos entravam. Seu olhar se deteve em Dawn por um
momento, mas logo em seguida cravaram em Halig.
"Bispo Johan!" exclamou o padre.
"Então era verdade." rosnou o homem por entre os dentes. "Tu
estás de conluio com o demônio! Deus seja misericordioso com a tua alma,
pecador!"
Os dois homens que o acompanhavam arrastaram Halig para fora da
cabana, sob os olhares assustados de Dawn. Do lado de fora, inúmeras
pessoas se postavam, como que esperando sua presa. Não foram poucos os
suspiros de surpresa quando Halig foi jogado no chão. Justamente ele, tão
querido por aquelas pessoas, era o acusado de conspirar com o diabo. Passado
o espanto, seguiram-se os olhares de reprovação, desapontamento e nojo,
todos misturados em um só.
"Há muito nós temos acompanhado teus passos, Halig MaArchard.
Estou desapontado contigo. Justamente tu, que era um dos mais promissores
sacerdotes de nossa Igreja, te deixaste cegar e corromper pelas forças
negras!"
"Não, Johan!" gritou Halig, vendo Dawn se debater enquanto era
arrastada por um aldeão. "Não fui corrompido por ninguém! Deixe de lado
teu ódio! Não é um dos mandamentos da bíblia, não julgares para não
seres julgado? Quem és tu para condenar alguém de forma tão vil? Deus
disse: amarás aos teus irmãos assim como a ti mesmo! Somos todos irmãos,
Johan, será que não entendes isto?"
A garota tinha os braços presos por dois homens, que a seguravam
firmemente contra o chão. Seus olhos estavam marejados, não pela dor física
que sentia, mas pela dor de seu coração.
"Olha para essa menina, Johan! Achas mesmo que ela é um demônio?
Se a tal veredicto tu chegares, então és tu quem te deixaste cegar!"
bradou Halig, fazendo força para se livrar dos braços firmes que o
seguravam.
"Basta!" falou Johan. "Tu estás cego de amores pelo diabo, não
percebes que a mais vil das almas se esconde sob a pele de um cordeiro. Vós
sereis condenados."
O padre arregalou os olhos perante as palavras do bispo. Condenados?
Mas como eles poderiam ser condenados sem ao menos terem tido um julgamento
decente?
"Ensandeceste por completo, Johan? Que tipo de julgamento é este
onde se condenam inocentes sem ao menos terem uma chance de rendição?"
"Este, Halig McArchard, filho de Eldred McArchard, é o julgamento
de Johan von Meyer, em nome da Santa Igreja Católica."
Halig não soube o que dizer. A indignação que lhe tomou o peito
naquele instante foi forte demais para que ele sequer pudesse pensar em
dizer algo.
Fitou novamente o rosto assustado de Dawn, que se debatia para se
livrar do homem que a segurava. Sua expressão se retorcia em uma máscara
de medo e raiva. Medo do que pudesse acontecer com ela e com Halig. Raiva
daquelas pessoas, que se deixavam levar por palavras tão superficiais de um
homem insano.
Tinha que sair dali. Ela não suportaria passar por todo aquele
terror novamente. Em um ato desesperado, a garota ateou fogo no homem que a
prendia. O aldeão gritou em agonia e pânico à medida que as chamas
consumiam seu corpo. Correndo em desespero ele se embrenhou no meio da
floresta, de onde não saiu mais.
Todos a olhavam amedrontados. Embora furiosos, as pessoas se
afastavam da garota, apavoradas com o que ela havia feito. Tamanha euforia e
hesitação deu a Halig a oportunidade que ele precisava. Livrando-se dos
braços fortes que o mantinham cativo, o padre avançou pesadamente contra o
Bispo, pedindo perdão mentalmente por aquele ato violento.
"Corra, Dawn! Corra e busque ajuda!"
A garota olhou para os lados, assustada. Em seguida, desatou a
correr, embrenhando-se floresta adentro. Johan se levantou e limpou o sangue
dos lábios, olhando furiosamente para Halig, que permanecia lá, lutando
para impedir que as pessoas corressem trás da menina.
"Deixem-na!" gritou o bispo. "Ela vai voltar. E mesmo que não
volte, temos conosco o traidor. Executem-no imediatamente!"
A multidão bradou histericamente enquanto Halig era carregado por
dois noviços da Igreja. Johan ia na frente, com seu porte altivo e ameaçador,
conduzindo a multidão rumo ao desfecho daquele episódio sombrio.
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Dawn corria desesperadamente pela floresta, desviando de todas
aquelas árvores e tentando por tudo encontrar Katrina e os outros. Estava
preocupada com Halig. Sabia que o padre não podia enfrentar aquela multidão
sozinho. Ele corria perigo e cada segundo era precioso.
"Por favor, socorro!" ela gritou e sua surpresa não poderia ter
sido maior quando, diante de seus olhos, um ser alado surgiu vindo dos céus.
Ela o fitou, estupefata, seu coração batendo rápido enquanto tentava
assimilar a visão. O porte altivo e os olhos profundamente azuis pareciam
hipnotizá-la. As asas, brancas como a neve que cai no inverno, reluziam e
cintilavam sob a luz do Sol, que naquele momento parecia ter seu brilho
ofuscado pela beleza daquele ser.
Dawn recuou um passo quando os olhos daquele ser celestial recaíram
sobre ela. Seu olhar era profundo, penetrante, quase pungente, e ela temeu
aqueles olhos. Teria corrido daquele anjo não fosse sua voz, que se fez
ouvir em meio às árvores e aos sons dos animais.
"O que te aflige?" ele indagou.
"Meu amigo vai ser executado pelas pessoas dessa vila! Por favor,
me ajude, ele não fez nada senão me proteger!"
Ele pareceu ponderar por um instante antes de responder.
"Sinto auras místicas se aproximando e sei a quem pertencem tais
energias. Devemos nos reunir a elas primeiro." disse ele, tomando a garota
em seus braços e alçando vôo. Subiram até acima das copas das árvores e
passaram a voar a uma velocidade incrível. Então, alguns segundos depois,
tornaram a pousar.
"Sakura! Katrina!" chamou ele, deparando-se com a Dama das Carta.
"Yue!" ela exclamou, franzindo as sobrancelhas ao ver Dawn sendo
carregada por seu guardião. "O que faz aqui? E o que Dawn está fazendo
contigo?"
"Sakura!" gritou a menina, livrando-se rapidamente dos braços de
Yue e correndo para as duas mulheres. "Eles levaram Halig! Nós temos que
ajudá-lo!"
"Tenha calma, pequena. Quem levou Halig?" disse Katrina,
ajoelhando-se diante de Dawn.
"O Bispo e as pessoas da cidade! Eles nos descobriram, Katrina! E
disseram que vão condená-lo!" falou ela, com a voz embargada pelo choro.
"Não quero perder-vos. Não quero que vós morrais."
"E nós não vamos." disse Sakura, invocando seu báculo. "Não
temos tempo a perder."
Desataram a correr, fazendo de tudo para acalmar Dawn, que estava
nervosa e apreensiva. Sakura concentrou-se no ambiente ao redor e logo
Patrick e Spinel se juntavam a eles, correndo contra o tempo para salvar seu
amigo.
Patrick sacou sua espada da bainha, rezando para que Halig fosse
poupado. Não queria perder um amigo tão valoroso quanto ele. Em uma época
permeada de ódio e intolerância, ele era uma das poucas pessoas cujo coração
se mantinha aberto e cuja bondade era sincera e aparente. Sua sina não
poderia ser aquela, tão cruel e injusta com seus atos.
Saíram da floresta e se depararam com o casebre vazio. Não havia
mais ninguém lá com exceção de um cachorro que roia um pedaço de pão
roubado da cabana, onde a mesa do desjejum continuava posta. Alguns pratos
estavam no chão, mas no geral a construção continuava intacta.
Patrick correu os olhos pelo cenário, buscando pistas que pudessem
ajudar. Não demorou muito para notar marcas no chão de terra batida, que
explicitavam diante de seus olhos treinados o que havia acontecido.
"Halig deve ter tentado lutar contra aquelas pessoas. Há gotas de
sangue no chão e marcas de quedas. Ele deve ter sido carregado daqui. Notem
as pegadas e os rastros."
"Carregado para onde?" indagou Dawn, apreensiva. Patrick ergueu
os olhos na direção que as pegadas apontavam.
"Para a cidade." disse o Cavaleiro. "E é para lá que nós
vamos."
Todos concordaram e sem perder mais nenhum minuto se puseram a correr
em direção ao amontoado de casas que ficava há alguns metros dali.
Conforme se aproximavam, os altos brados dos aldeões se tornavam cada vez
mais perceptíveis. Decerto a cidade toda estava tomada por uma grande
euforia. Os gritos começaram a aumentar e passaram a condenar e a
escarnecer aquele que era o alvo de sua fúria. Em meio a tantas vozes, uma
se ergueu mais alto, berrando a plenos pulmões o desejo de sangue e
incitando a multidão.
"Mate! Mate!" gritavam.
O grupo correu com todas as forças que conseguiram reunir. As vozes
continuavam a gritar, tomadas pela cólera insana que cega e mutila. Do alto
do seu trono, o Rei Sol assistia a tudo, envolto pelas nuvens brancas que
passeavam pelo cenário, alheias àquela comoção homérica.
Percorreram as ruas da cidadela apressadamente, passando por becos
mal iluminados e dobrando esquinas fechadas em direção à praça central.
Os gritos se elevaram às alturas e logo em seguida cessaram, ao mesmo tempo
em que o grupo alcançava a multidão. Um pesado silêncio tomou o ambiente.
Aquele ato chegara ao seu clímax.
Do alto de um palanque, o corpo de Halig balançava ao vento, inerte
como a presa de um leão em sua boca carniceira. Os olhos claros estavam
vidrados e já não tinham mais o brilho que os tornava tão vivos e
sagazes: haviam perdido seu resplendor.
"Não!" gritou Dawn, cujas rosto era inundado pelas lágrimas de
dor e desespero. As atenções se voltaram para o grupo.
"Matem-nos!" bradou Johan do alto do palanque.
"Corram!" gritou Patrick. Todos começaram a fugir da enorme
multidão que partia em seu encalço. Todos menos Dawn, que ficou parada,
estática, como se seus pés estivessem presos ao chão.
"Dawn, venha!" gritou Yue, mas a garota continuou lá, encarando
as centenas de pessoas que se aproximavam cada vez mais. Sentia seu corpo
tremer levemente, muito embora não soubesse ao certo se o que sentia era
raiva, tristeza ou um misto dos dois.
"O que ela vai fazer?" indagou Patrick vendo a feiticeira erguer
as mãos lentamente. Seus olhos estavam frios, insensíveis a tudo e a
todos.
"Fogo." ela murmurou. Uma densa muralha de chamas avermelhadas se
acendeu, rodeando os aldeões e arrancando gritos de pavor. Dawn os fitou do
fundo de seus olhos castanhos. Não os machucaria, mas os faria sentir muito
medo.
Passou a caminhar lentamente, atravessando as chamas e se dirigindo
ao palanque onde Halig havia sido enforcado. Com um único gesto de suas mãos,
a corda que mantinha o padre preso se queimou mas ele permaneceu lá,
flutuando, seguro por uma mão invisível. A muralha flamejante se dissipou
e, uma a uma, as casas da cidade entraram em combustão. Não demorou muito
e um grande incêndio havia tomado conta da cidadela. Assustadas, as pessoas
correram e abandonaram aquele lugar.
Sakura e os outros continuavam parados enquanto as pessoas passavam
por elas correndo. Logo não restava ninguém a não ser o grupo de amigos.
Patrick pegou o corpo de Halig nos braços e juntos eles começaram a
caminhar para longe daquela cidade amaldiçoada.
Alcançaram a floresta uma hora depois, onde sepultaram Halig debaixo
do antigo carvalho que Sakura e Katrina haviam visto na noite em que haviam
chegado àquele lugar.
Dawn chorava copiosamente sobre o túmulo daquele que a ensinara a
confiar e lhe mostrara o valor da bondade. E foi em meio às lagrimas que
sentiu uma mão pousar em seu ombro.
"Tranqüiliza teu coração, pequena." disse Katrina. "Este era
o destino dele. Halig morreu para que você vivesse. Ele te amou, Dawn,
muito mais do que podes imaginar."
"Halig deu a vida por mim, mas no instante em que ele morreu, um
pedaço do meu coração morreu também." ela respondeu, levantando-se e
caminhando para junto dos outros.
"E ainda assim você continua viva, em pé sobre este mundo,
respirando o mesmo ar e banhando-se na mesma água. Guarde Halig em seu coração,
pois lá é o lugar onde ele viverá para sempre, te dando esperança e amor.
Você pode se sentir triste e chorar se quiser, mas lembre-se que Halig quis
que você vivesse. Continue sempre em frente, por ele." disse Sakura. Dawn
balançou a cabeça concordando.
Em silêncio, rezaram uma pequena prece em respeito à alma de Halig.
Então, levantaram-se. E foi então que Spinel perguntou:
"Apenas não entendi um coisa. Você usou seus poderes aquela hora
de forma agressiva, mas por que não matou ninguém, nem mesmo o Bispo?"
"Eu não tenho o direito de tirar vidas de tal modo, Spinel.
Aprendi isso da pior maneira possível. E Halig também me ensinou que a
vingança nunca é o melhor caminho a ser trilhado. Ela nunca traz nada senão
mais dor."
"Estás certa. Teu corpo pode ser infantil, mas teu espírito é
adulto, pequena. Estou admirado com a maturidade de teus atos." falou
Patrick, sorrindo.
"Quando se passa por tudo aquilo que passei, acaba-se por
amadurecer mais rápido do que os outros. Entretanto, tal maturidade é
cruel e dolorosa demais. Tal sina é algo que não desejo a ninguém."
Patrick balançou a cabeça
concordando ao mesmo tempo que estendia uma fina corrente de ouro. Na ponta
havia um pequeno pingente na forma de uma ampulheta.
"Escute, Dawn, não podemos te deixar aqui. Em outra ocasião, o
que estou fazendo seria proibido, entretanto nós te levaremos conosco em
nossa Jornada. No caminho te explicaremos tudo, apenas coloca isto no pescoço
e nos acompanhe."
Dawn assentiu e fez o que lhe foi dito.
"Está na hora de partir." falou Katrina. "Estas pronta para
deixar esta terra maculada de uma vez por todas?"
A garota sorriu e balançou a cabeça.
"Estou." ela disse.
"Pois então vamos!"
Em um gesto único e contínuo os seis amigos levaram as mãos ao
pingente. Dawn contemplou pela última vez o túmulo de Halig, antes de ver
tudo desvanecer diante de si e desaparecer na imensidão do tempo.
"Obrigada." ela murmurou, e o som de sua voz se espalhou pela
floresta e se perdeu.
____________________
Nome: Anna den Adel
País de Origem: Canadá
Idade: 45 anos
Data de Nascimento: 16 de Abril de 1961
Tipo Sangüíneo: AB +
Elemento Regente: Ar
Ocupação: Guardiã do Ar do Supremo Conselho de Magos e Mestra da Ordem
dos Senhores da Tempestade.
Passatempo: Cantar e cuidar de seu jardim.
Ficha pessoal: Anna é filha de imigrantes Holandeses, que se mudaram
para o Canadá no final da década de 50.
Extremamente tímida e recatada, ela cresceu em um colégio interno
em Toronto, no Sul do país, onde estudou até os 15 anos. Foi exatamente
nessa época que Anna foi apresentada à Ordem da Tempestade por um de seus
professores, que percebeu os dons mágicos da garota e a convidou a estudar
magia, tornando-se seu mentor e guia. Anna aceitou a proposta mais por causa
do tom inovador do que propriamente por alguma responsabilidade mágica, mas
aquilo que a princípio parecia uma aventura adolescente ganhou importância
para ela a ponto de se tornar sua grande paixão e motivação.
Quando iniciou a faculdade de música ela já tinha uma fama considerável
dentro da Ordem. Com o passar do tempo sua influência cresceu, juntamente
com sua reputação, levando-a a ser convidada a fazer parte do Conselho no
dia em que completou 42 anos. Anna foi a última pessoa a integrar o
Conselho em sua formação atual.
Apesar do pouco tempo de atuação, ela já mostrou seu valor inúmeras
vezes ao servir de Juíza em Julgamentos dentro de sua Ordem e ao atuar como
Mediadora da Terra no 209º Fórum Celestial.
Anna é docente da Universidade de Toronto e professora de canto lírico.
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Espero imensamente que tenham gostado deste capítulo tanto quanto eu
gostei de escrever. Foi um capítulo muito especial, não apenas por
envolver temas como a morte e a Inquisição, mas também por marcar a
chegada de mais uma pessoa ao grupo. Dawn, a pequena feiticeira, se junta ao
time em sua Jornada através do tempo. O que o Destino reserva para a jovem
só futuro dirá. Por hora, digo apenas que ela terá um grande papel a ser
desempenhado.
E aguardem! No próximo capítulo muitas surpresas os aguardam quando
Durval, a pedido de Magno, infiltra-se na biblioteca secreta do Vaticano e
descobre detalhes sobre os rituais encontrados nos registros dos Iluminados.
Este foi o primeiro capítulo publicado no ano de 2004. Hoje, dia 03
de Janeiro de 2004, Chrono
faz aniversário! Um ano de existência! Puxa, não acredito que já se
passou tudo isso! Há um ano, quando eu comecei a publicar esse fic, eu não
esperava que ele fizesse tanto sucesso. Muito obrigado a todos que
acompanharam minha história até aqui. Espero que ela continue agradando a
todos, pois ela foi feita exatamente para vocês!
É até engraçado, pois quando eu tive a idéia para este fic, eu não
sabia se conseguiria conduzir uma história tão grande por tanto tempo.
Primeiro porque eu nunca tinha escrito nada em capítulos. Segundo porque o
desafio de desenvolver uma trama como esta, sem entretanto deixá-la pesada
ou complexa demais era grande. Fico feliz que meus esforços estejam sendo
compensados. Cada vez que recebo um e-mail ou leio um review eu fico mais
motivado a continuar.
Mas não é só Chrono que faz aniversário hoje! Gostaria de dedicar
este capítulo à Yoruki Mizunotsuki, nossa aniversariante do dia. Bruna,
meu anjo lindo, feliz aniversário! Espero que este capítulo tenha te
agradado, muito embora eu ache que ele não combina muito com uma data
alegre como esta, não é mesmo? De qualquer modo, desejo-te muitas
felicidades sempre. Jamais perca sua simpatia e seu carisma, qualidades que
eu tanto admiro em você.
Aqui eu me despeço, desejando a todos uma ótima semana. Até o próximo
capítulo.
Peace, Love and
Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai
The author would like to thank you for your continued support. Your review has been posted.