Capítulo Quatorze — De Lágrimas e Carinhos
Houve uma batida forte na porta, que logo em seguida se abriu abruptamente, revelando a figura de um homem em trajes religiosos. Não era muito alto, mas possuía um porte característico, o que lhe conferia uma aparência até certo ponto respeitosa. Os cabelos claros eram bem aparados, penteados cuidadosamente, mantendo uma aparência impecável. Algumas gotículas de suor teimavam em correr por sua testa, evidenciando que o homem estivera correndo, apressado.
"Enfim eu vos encontrei!" bradou o padre, exasperado. "Eu estive atrás de vós a noite toda!"
Sakura e Katrina imediatamente se colocaram na defensiva.
"Ora, Halig, eu te disse que estaríamos escondidos em uma casa abandonada no subúrbio!" falou Patrick, surpreendendo as duas mulheres.
"Tens noção da quantidade de casas semelhantes esta cidade possui?" indagou o padre, sentando-se em uma cadeira. Patrick nada disse, apenas sorriu e se sentou.
Katrina, Sakura e Spinel se olharam com uma expressão interrogativa estampada em seus rostos, mas foi o guardião de Eriol que traduziu em palavras o pensamento que lhes passava pela cabeça naquele momento:
"Gostaríamos de saber o que está acontecendo aqui!" bradou o pequeno, fitando o homem que há pouco entrara no casebre. Patrick e Halig sorriram.
"Este é Halig McArchard, um amigo que conheci durante minhas muitas viagens." falou Patrick. "Ele é o padre da cidade."
Os três companheiros se entreolharam, ainda confusos com o que estava acontecendo. Estavam em plena Inquisição e Patrick trazia um padre para dentro do esconderijo? Tentaram buscar um sentido aparente naquilo tudo, apenas conseguindo mais dúvidas nas quais pensar.
"Não vos amedronteis." disse Halig, compreendendo o porquê de tamanho desconforto. "O fato de ser padre não me torna necessariamente um Inquisitor. De fato, confesso que o Tribunal da Inquisição em muito diminuiu minha simpatia pela Igreja."
Sakura e Katrina se olharam e logo em seguida o fitaram de forma inquiridora. O homem encontrou os olhos verde-esmeralda de Sakura e o cinza profundos dos olhos de Katrina, imediatamente compreendendo a dúvida que ambas possuíam.
"O meu desagrado quanto à postura adotada pela Igreja não diminuíram minha fé em Deus. Ele é sábio e eu rezo para que meu irmãos possam ter seus olhos abertos em tempo." declarou o sacerdote, fazendo o sinal da cruz.
As duas mulheres sorriram, satisfeitas com a resposta. Voltaram a se acomodar, envolvidas pelo silêncio que ficara após a resposta de Halig. O Sol já se levantara por completo e naquele momento lançava sua luz por cima das árvores do bosque que havia ao longe até atingir o topo das casas da cidadela.
Se as outras vilas e cidades próximas estavam acordando naquele momento, as pessoas daquele lugar estavam começando a adormecer. Como as buscas da noite anterior haviam sido de todo infrutíferas, os habitantes da cidadela não tiveram outra opção senão recolherem-se para dentro de suas casas e descansar da árdua caçada.
Halig observou quando a porta da última casa se fechou, lacrando consigo o último homem. Mentalmente pediu perdão por ter dissimulado de tal forma. Mentira para aquelas pessoas dizendo que ajudaria nas buscas e conseguira distrair o foco de suas atenções por meio da confiança da qual gozava. Não aprovava a mentira, mas às vezes esconder a verdade era o ato mais sensato, principalmente se essa verdade pudesse condenar a vida de um inocente.
"O que pretendeis fazer daqui por diante?" indagou o padre, virando-se para Patrick.
"Não sei. Nossa trilha foi alterada no momento em que essa criança cruzou nosso caminho. Não podemos abandoná-la à própria sorte. Seria um tanto quando imprudente deixá-la à mercê do Destino. Ela precisa de ajuda e eu pretendo ajudá-la." declarou o Cavaleiro, fitando a pequena forma que se revirava na cama de palha. Sakura e Katrina imediatamente concordaram.
"Ela está perturbada." falou Halig, olhando-a com ternura. "Seu espírito está fragilizado e sua fé está abalada. Ela precisa re-aprender a confiar nas pessoas."
Patrick meneou a cabeça positivamente, concordando com o amigo. Como que escutando a conversa que se desenrolava, a garota lentamente começou a acordar. Revirou na cama durante alguns minutos até que finalmente abriu os olhos. Piscou algumas vezes até se acostumar com a claridade que lhe ofuscava a vista, sentando-se na cama logo em seguida.
A garota olhou para os lados, ainda um pouco tonta, tentando entender o que estava acontecendo.
"O que aconteceu?" indagou a menina, confusa ao extremo.
"Não tenha medo, querida." falou Katrina docemente. "Não queremos te machucar. Estás segura conosco."
Dawn encolheu na cama, fitando Katrina com desconfiança.
"Não chegueis perto de mim! Eu juro que queimo todos vós!" gritou a pequena, ao mesmo tempo em que dezenas de pequenas chamas a rodeavam de forma defensiva.
Katrina recuou um passo, tomando cuidado para não amedrontar ainda mais a garota.
"Por favor!" falou Sakura. "Confie em nós!"
"Confiar?!" gritou a menina, exasperada, as chamas ao seu redor aumentando ainda mais. "Confiar para depois sofrer? Confiar para ser traída por aqueles que ganharam nossa confiança? Quando se confia apenas se sofre. Quando se confia a única coisa que se ganha é a solidão! Minha família foi destruída por pessoas como vós, por pessoas em quem confiavam!"
"Nem todas as pessoas são iguais, minha querida." falou Katrina docemente. "Há pessoas boas, pessoas que merecem nossa confiança e nosso amor."
"Mentira! Vós estais mentindo, eu sei! As pessoas são todas iguais! Vão à missa, prestam juramentos, fazem votos pela manhã! Mas de noite elas freqüentam os bordéis imundos da cidade! Elas difamam umas às outras pelas costas, têm pensamentos obscuros. Elas pecam durante a noite, em seus sonhos! Eu sei! Eu vi!"
Os cinco se olharam, surpresos com as palavras de Dawn.
"Tenha calma, criança." falou Halig, aproximando-se. "Não julgues as pessoas de forma tão precipitada. É verdade que existe muita maldade e hipocrisia neste mundo, mas isso não significa que não haja algo de bom."
"Como o que?"
"Como tu, como aqueles que te trouxeram a este mundo. Não acredito que pessoas más possam ter trazido a este mundo uma menina tão linda como tu."
As palavras de Halig pareceram surtir algum efeito sobre ela. A lembrança do que acontecera há tantos anos ainda a assombrava. Suas noites ainda eram tenebrosas e seus dias ainda eram nublados pelas memórias do passado, que cobriam o céu de sua vida como uma sombria nuvem negra que se espalha pelas campinas e escurece o horizonte.
Katrina e Sakura perceberam que Dawn vacilava. Entretanto, após um breve momento de silêncio, a garota se recompôs:
"Dizem que a maldade se esconde sob a forma mais improvável. Não tente me enganar! Eu sou a cria do Demônio!" bradou a garota, muito embora estivesse com uma imensa vontade de chorar.
"Não acredito nisso." interpelou Halig. "O demônio jamais teria esses olhos tristes e assustados. Tudo o que vejo é uma garota confusa, que apenas não encontrou seu verdadeiro caminho."
Dawn vacilou uma vez mais, dando a Halig a brecha que ele precisava.
"Não tenha mais medo. Sei que foi magoada, mas é hora de recomeçar. Dê-nos uma chance. Eu sei que tu tens um coração puro. Apenas tens medo de procurá-lo."
As chamas que pairavam ao redor de Dawn vacilaram, tremeluziram e desapareceram, deixando somente um fiapo de fumaça, que logo foi dissipado pelo vento que entrava pela janela. A garota abraçou os próprio joelhos e irrompeu em um choro tímido, contido. Havia anos que não chorava, que guardara sua mágoa e sua raiva somente para si. Não podia mais suportar tudo aquilo, não depois do que ouvira. As palavras de Halig haviam conseguido quebrar o escudo que ela erguera ao seu redor e alcançado seu espírito ferido.
"Tenha calma, criança. Tudo há de ficar bem." sussurrou Katrina em seu ouvido, enquanto a abraçava. Dawn se agarrou desesperadamente ao abraço de Katrina, soluçando nos braços da Guardiã como nunca antes pensara poder fazer. Katrina sorriu e acariciou os longos cabelos da jovem.
"É tão gostoso..." pensou a garota, deixando-se envolver pelo suave calor que emanava do corpo da feiticeira. Abriu os olhos e fitou o rosto de Katrina. A mulher parecia irradiar uma suave luz branca, que a envolvia e a embalava de forma protetora.
Fechou os olhos novamente, deixando que todas aquelas sensações maravilhosas tomassem seu corpo e sua mente. Será que finalmente, após tantos anos de solidão, poderia encontrar um pouco de paz? Ela queria acreditar que sim, queria acreditar que tudo iria melhorar...
"Tudo vai dar certo." disse Sakura, sentando-se ao lado de Katrina e acariciando o rosto de Dawn. A garota sorriu em meio às lágrimas, finalmente seu sofrimento teria fim; não ficaria mais sozinha.
Foi com o coração mais leve e a alma plena de tranqüilidade que Dawn deixou os braços de Katrina, ainda soluçando. Mantinha os olhos baixos, como que temendo encarar a todos os presentes.
"Me perdoem." ela sussurrou de uma forma quase inaudível. "Me perdoem por tudo o que eu fiz."
Os cinco companheiros sorriram.
"Não te preocupes, está tudo bem." falou Patrick. "Eu também peço desculpas pelo feitiço que lancei sobre ti ontem."
Dawn acenou a cabeça, concordando. Não sabia ao certo porquê, mas aquelas pessoas lhe transmitiam um sentimento muito bom e reconfortante. Sentia-se preenchida de uma tranqüilidade nova e acolhedora, que acalmava seu coração agitado e embalava seu espírito, que há muito havia sido despedaçado pela crueldade e demência das pessoas daquela cidade.
Olhou ao longe o horizonte de sua própria vida e pôde discernir vislumbres de alegria. A densa cortina de melancolia que bloqueava a janela para sua liberdade aos poucos se erguia, desnudando um mundo novo e desconhecido a ela; um mundo onde a bondade era real, onde as pessoas realmente se importavam umas com as outras. Seria aquilo possível? Será que de fato existiam pessoas boas naquele mundo insano? Ela queria acreditar que sim! Queria acreditar que aqueles que a ajudavam eram pessoas dignas e justas.
Correu os olhos sobre aqueles cinco. A pantera negra era estranha. Embora possuísse uma aura pesada e sombria não era hostil tampouco maligna. A mulher que a abraçara momentos antes tinha ao redor de si uma luz suave que aquecia seu coração. A outra aparentava ter uma grande bondade e uma alegria contagiante. O homem com a espada tinha um porte altivo, digno de um verdadeiro Cavaleiro, ao passo em que o padre, embora dono de uma boa constituição física, era mais recatado e contido.
Eles não aparentavam perigo. Em seu íntimo, alguma coisa a incitava a confiar naquele inusitado grupo de amigos. Sorriu. Pela primeira vez em muitos anos ela podia sorrir abertamente sem que lhe acusassem de algo que ela não entendia e não tinha feito. Finalmente podia sorrir sem culpa, sem que fosse assombrada pelos fantasmas que habitavam os becos escuros de sua consciência.
"Então." falou Sakura, sentando-se ao lado dela e tomando as mãos da garota entre as suas. "Agora que já está mais calma, que tal se começássemos novamente? Meu nome é Sakura Kinomoto. Esta é Katrina, Guardiã da Luz do Supremo Conselho de Magos. Estes são Patrick, Cavaleiro da Ordem dos Dragões do Tempo e Halig, padre desta cidade. E aquele é Spinel Sun. Agora que já sabe nossos nomes, que tal se soubéssemos o seu?"
"Dawn." ela disse timidamente. "Dawn Donnovan."
"Deves estar cansada, Dawn." falou Katrina. Que tal tomar um banho para relaxar? Patrick, Halig, onde podemos encontrar água?"
Os dois sorriram. Halig saiu do casebre, retornando alguns minutos depois com dois grande baldes de água limpa. Esquentaram a água e encheram uma pequena banheira. Katrina e Sakura guiaram a jovem até o banheiro e a despiram completamente. Dawn mergulhou na água quente, maravilhada com os diversos perfumes que a rodeavam. Há quanto tempo não tomava um verdadeiro banho? Mal podia se lembrar da última vez.
A transformação pela qual a garota passava à medida que a água levava as impurezas de seu corpo era visível e fascinante. De fato, Dawn era uma menina muito bonita, com longos cabelos castanhos claros que formavam ondas suaves, emoldurando perfeitamente seu rosto pequeno e afilado. Os olhos castanhos fitaram Katrina, que massageava suas costas. Viu quando a mulher sorriu para ela. Sorriu de volta, muito embora tal gesto ainda fosse algo difícil e até certo ponto estranho após tantos anos de sofrimento sem fim.
Ouviram algumas batidas na porta do banheiro e Sakura rapidamente correu para abrir. O rosto de Halig se fez ver em meio ao vapor que rodeava o ambiente. O padre trazia nas mãos um bonito vestido de algodão, juntamente com um pente.
"Fui até a Igreja buscar roupas novas para ela." disse ele, parecendo um pouco embaraçado por estar interrompendo aquele pequeno ritual. "Algumas das doações que recebemos acabam sendo úteis no final das contas."
Sakura sorriu e pegou os objetos das mãos do homem, que se retirou sem mais demoras. Finalizaram o banho e em alguns minutos Dawn estava renovada. Parecia outra pessoa. O vestido acentuava o corpo da garota, que oscilava entre o infantil e o maduro, conferindo-lhe uma aparência ao mesmo tempo inocente e precoce.
"Você é muito linda." disse Sakura enquanto penteava os cabelos da garota suavemente. Dawn corou de leve, agradecendo o elogio daquela mulher cuja vivacidade tanto a encantava. Queria ser como ela, sempre disposta a um sorriso, sempre feliz, contagiando a todos com sua alegria radiante. Queria ser também como Katrina, com sua serenidade e seu toque suave, sua aura reconfortante e seus braços acolhedores. Por que não as conhecera antes? Por que tivera que sofrer tanto? Seria um castigo de Deus por seus pecados, por ter feito tantas coisas ruins durante tanto tempo? Ela não sabia. Sabia apenas que não queria mais se separar daquelas pessoas, que não se importavam com o fato de ela ter poderes sobrenaturais. Pessoas iguais a ela, que a entendiam e a faziam se sentir alegre e completa pela primeira vez.
As três saíram do banheiro e se depararam com a mesa posta. Patrick aparentemente aproveitara o tempo que elas tinham passado juntas para sair e colher algumas frutas no bosque que havia perto dali. Os olhos de Dawn brilharam diante das maçãs vermelhas e dos morangos e figos maduros. Havia também uma jarra de leite e alguns pães que Halig trouxera do convento.
"Sirva-se, pequena!" disse Spinel, voando sobre a cabeça da garota, que não esperou um segundo convite. Há muito tempo não comia um pedaço de pão fresco ou tomava uma caneca de leite. Mal podia se recordar do gosto do figo e da textura do morango. Para quem vivia do lixo, aquilo era um banquete divino.
Os cinco sorriram entre si, e logo todos estavam comendo e conversando, deixando de pensar momentaneamente em todos os problemas que os circundavam. E foi somente então que Sakura percebeu algo:
"Espere um instante." disse a jovem. "Ontem à noite eu não conseguia entender uma palavra do que Dawn dizia. Então como eu a entendo tão bem hoje?"
Katrina riu, deixando evidente que havia uma dedo dela naquilo tudo. Sakura apenas balançou a cabeça, sorrindo de volta para a amiga e levando um pedaço de pão à boca.
Quando finalmente terminaram o desjejum, sentiam-se saciados. Recolheram a louça e rapidamente colocaram tudo em ordem. Sentaram-se cada um em um canto do cômodo que era ao mesmo tempo a sala e o quarto. Então, como se a realidade voltasse a atormentá-los, a voz de Patrick se fez ouvir:
"Não podemos nos demorar muito mais aqui, o nosso tempo é escasso. Entretanto, não podemos deixar Dawn sozinha mais uma vez. Temos aqui um dilema, meus amigos, e agora eu lhes pergunto o que devemos fazer."
Todos se entreolharam, pensando em uma solução. Tal dilema era por demais complicado para ser resolvido de uma hora para outra.
"Eu poderia cuidar dela." prontificou-se Halig. Patrick pareceu ponderar por um instante sobre a proposta do amigo entretanto a própria Dawn parecia desconfortável com a idéia. O impasse durou algum tempo. Percebendo que não chegariam a lugar algum, Patrick se levantou.
"Acho que vou caminhar um pouco pela floresta para pensar com mais calma." disse o Cavaleiro. Sem mais uma palavra pegou seu manto e saiu, fechando rapidamente a porta logo atrás de si. Spinel foi atrás, decidido a acompanhá-lo. Não estavam em dias favoráveis e perambular sozinho por aquelas terras estava fora de cogitação até mesmo para um Cavaleiro do Tempo.
Sakura e Katrina também pareciam ter o que pensar, e saíram deixando Dawn aos cuidados de Halig.
A garota não parecia totalmente confortável com a presença dele ali. Talvez por ter tentado prejudicar tantas pessoas ao longo de sua solidão através dos anos, ela talvez temesse algum castigo vindo dos céus.
Halig não demorou a perceber o desconforto da jovem. Sentando-se ao lado dela, o padre sorriu:
"O que te aflige, minha filha?" indagou em tom paternal.
"Tenho medo." ela disse. "Tenho medo do que possa acontecer comigo. Vós sois padre, um representante de Deus! Eu tenho medo do que Ele possa fazer comigo. Eu não fiz tudo aquilo por maldade, eu juro!"
"Acalma-te." disse Halig, levando um dedo aos lábios da menina. "Não há motivo para temer a Deus! Deus é todo misericórdia. Ele sabe que não és uma pessoa maligna e jamais te castigaria por isso. Estavas apenas confusa, minha criança, mas agora deves encontrar teu rumo. Tenho diante de meus olhos um cordeiro perdido. Afasta o temor do teu coração pois motivo não há."
"Por que?" indagou Dawn, cujo olhar não compreendia aquele homem.
"Perdão, mas não entendi tua pergunta."
"Por que vós me ajudais? Sois um padre, um representante da Igreja! E a Igreja caça pessoas como eu!" disse Dawn com a voz embargada. Ela ainda se lembrava dos aldeões proclamando o nome de Deus enquanto seus pais ardiam em chamas.
"Escuros têm sido os últimos anos, minha criança. Meus irmãos se desviaram de seu caminho, iludidos por uma falsa justiça que não traz nada senão dor e lágrimas. A insanidade dos últimos tempos de fato está trazendo a discórdia para dentro dos corações das pessoas."
"Entretanto, Deus é sábio! Rezo para que as pessoas possam ver isso. Deus é o Senhor todo poderoso e sua compaixão não conhece limites."
Dawn o fitou longamente. As palavras de Halig não continham mentiras. Ao contrário, estavam carregadas de verdade. Mais ainda, ela podia sentir o pesar nas palavras que o padre proferia, como se seu coração lamentasse tamanho infortúnio.
"Mas então como vós explicais meus poderes? Nenhuma pessoa que vai à Igreja tem esses poderes."
"Todos nós temos potencial para o Bem, sim, e para o Mal também." disse Halig, segurando a mão branca de Dawn. "Não acredito que tu sejas o Demônio apenas pelos poderes que possuis. Acredito que Deus, em sua sabedoria infinita, te deu estes poderes e que algum dia eles serão muito úteis."
"Eu queria ter nascido normal!" exclamou ela. "Esses poderes só me atrapalharam!"
Halig a olhou com compaixão.
"Tu és normal, minha criança. Todos nós somos. Somos todos filhos de Deus e iguais perante seus olhos. Entretanto, somos também diferentes. Teus poderes te tornam diferente de mim, mas jamais te tornariam anormal."
Dawn baixou os olhos, pensativa. Não podia deixar de ver as verdades contidas na fala de Halig. O homem de fato era uma pessoa bondosa. Em um impulso, a jovem o abraçou, sentindo o coração mais leve.
"Cuide bem de teus poderes, pequena. Chegará o dia em que eles serão necessários e então tu entenderás porquê nasceste com eles. Tudo na vida tem um propósito. Mesmo as coisas más nos ensinam lições preciosas. O simples vento que sopra neste momento tem um propósito. É ele que vai semear o solo e espalhar o pólem das flores."
Dawn sorriu, e desta vez não lhe pareceu tão difícil sorrir. Em seu íntimo, agradeceu por ter encontrado uma pessoa bondosa em meio a tantas outras regidas pela hipocrisia e pela ganância.
"Obrigada." ela pensou. "Muito obrigada."
Seguiu-se um suave silêncio. Não o silêncio incômodo que traz o desconforto e a desconfiança, mas aquele silêncio manso, que chega aos poucos e se instala deixando uma atmosfera agradável ao redor; aquele silêncio que propicia a reflexão e faz a confiança nascer, semeando a tranqüilidade e o amor entre as pessoas.
As horas se passaram uma após a outra. Um após o outro, os quatro companheiros foram retornando. Primeiro Sakura e Katrina. Por fim, Spinel e Patrick chegaram trazendo frutas frescas e um pouco de caça. Katrina rapidamente acendeu o fogão à lenha da cabana e juntos eles prepararam o jantar enquanto Dawn e Halig aprontavam a mesa.
Sakura sorriu ao ver como Dawn estava animada e não deixou de notar o entrosamento com o padre. Certamente aquelas horas que os dois haviam passado sozinhos não tinham sido de todo improdutivas. Havia um brilho novo nos olhos da garota, que Sakura deduziu ser fruto da conversa com Halig.
Mentalmente ela agradeceu por ainda haverem pessoas boas no mundo, em uma época dominada pela demência de mentes obstinadas e fanáticas.
"Vamos comer?" indagou Patrick, colocando uma travessa com o cozido que haviam preparado com a caça. Sakura sorriu e concordou.
Sentaram-se à mesa e deram início à ceia. Dawn olhou para aquelas pessoas. Pareciam uma verdadeira família. Sorriu perante o pensamento que lhe veio à cabeça. Havia perdido sua família muito cedo. Será que encontrara uma nova? Afastou aqueles pensamentos de sua mente e se concentrou na comida que tinha no prato. Quanto tempo não sentia o sabor da carne ou a doçura do mel? Muito mais do que ela podia contar.
Terminaram o jantar calmamente. Halig levantou-se logo em seguida:
"Preciso retornar para o convento agora. Passei o dia todo fora e sei que o Bispo e os noviços vão achar estranho."
O padre recebeu apenas um aceno de cabeça concordando. Sem dizer mais nada pediu licença e se levantou. Quando estava prestes a abrir a porta, sentiu uma mão segurar seu braço. Era Dawn, que rapidamente se levantou e o abraçou.
"Obrigada... Pai..." ela agradeceu. Halig sorriu e a abraçou de volta, beijando-lhe a fronte.
"Não agradeça. Eu não fiz nada, minha criança."
"Fizeste mais do que podes imaginar." ela murmurou, soltando-o.
Halig então se virou e saiu. Pela janela, Dawn ainda pôde ver sua silhueta se distanciar e se perder no meio das casas da cidade. Ao longe, os sinos da Igreja anunciavam as dez horas da noite.
Terminado o jantar o grupo rapidamente recolheu a louça. Logo tudo estava no seu devido lugar e eles se preparavam para dormir. Entretanto, o perigo não havia passado. A Inquisição ainda estava em seus calcanhares.
Depois de discutirem algum tempo, decidiram que se revezariam em turnos de duas horas cada um. Todos, incluindo Dawn deveriam ajudar. A garota concordou prontamente. Estava disposta a auxiliar aquelas pessoas que haviam dado a ela tanto carinho e compreensão.
"Dawn, você fica primeiro." disse Patrick. "Depois terá o restante da noite para descansar."
A garota concordou e se levantou, assumindo seu posto.
"Vou recomeçar minha vida!" ela disse para si mesma quando todos pegaram no sono. Olhou para Katrina e sorriu. Definitivamente, dias melhores a aguardavam.
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Foi-se a Lua, nasceu o Sol. Tão silenciosa e calma como havia chegado a noite partiu, sem deixar rastros ou pistas, levando consigo os mistérios que somente a escuridão carrega. O céu aquele dia estava limpo, com nuvens esparsas que se faziam ver aqui e acolá.
Lentamente as pessoas começaram a acordar. Spinel observou seus companheiros se mexerem e abrirem os olhos lentamente. Havia ficado no último turno de vigília, mas a calmaria que observou durante a madrugada em nada refletia a inquietude de seu coração.
"Bom dia." cumprimentou o guardião observando seus amigos. Katrina levantou-se e esticou os braços ao mesmo tempo em que Patrick e Sakura soltavam um longo e demorado bocejo.
"Bom dia, Suppi." disse Sakura.
Dawn revirou na cama e sentou, esfregando os olhos. Sorriu ao ver os quatro companheiros, parecendo satisfeita por vê-los ali, como se estivesse aliviada.
"Não foi um sonho afinal." ela pensou.
O início daquele dia foi descontraído. Terminaram com o restante das frutas que Patrick havia colhido na noite anterior e se puseram a arrumar o local. Não poderiam ficar ali por muito mais tempo e sabiam disso. Cada minuto passado na pequena cabana era um momento precioso perdido.
Dado momento, quando o Sol já havia nascido por completo e quase alcançava o topo do firmamento, assomou-lhes novamente a dúvida: o que fazer dali por diante? Agora Dawn estava com eles e não poderiam simplesmente abandoná-la à própria sorte novamente.
Sentaram-se cada um onde lhes foi mais conveniente e puseram-se a pensar, muito embora a indecisão ainda permeasse de forma palpável suas mentes. O olhar de cada um deles refletia o sentimento de dúvida, deixando transparecer a ansiedade que todos sentiam.
Era quase meio dia quando a porta se abriu, revelando a figura de Halig. O homem entrou em silêncio e cumprimentou a todos com um aceno de cabeça, sentando-se logo em seguida. Permanecia com o semblante fechado, quase tenso, como se algo o consternasse em demasia.
"O que houve, Halig?" inquiriu Patrick, sabendo de imediato que algo havia acontecido. Conhecia o amigo o bastante para deduzir da expressão em seu rosto que algo não ia bem. De fato, quando Halig suspirou e hesitou antes de responder, veio-lhe a certeza de que algo saíra do planejado.
"A Igreja suspeita de algo. O Bispo está inquieto e disse que estão ampliando as buscas. Tenho a leve suspeita de que estão me vigiando. Não posso me demorar aqui, vim apenas trazer-vos um pouco de mantimentos para o dia de hoje."
Halig recebeu apenas um aceno afirmativo dos amigos que o fitaram enquanto ele depositava sobre a mesa alguns pães e uma garrafa de leite.
"Isso é tudo que posso vos oferecer no momento. Estou roubando comida do monastério e isso não é uma atitude digna de um padre nem mesmo se realizada com bom intuito."
"Obrigada, Halig. Agradecemos tua preocupação, mas creio que seja melhor tu ficares afastado deste lugar por um tempo. Não podemos pedir que te arrisques por nossa causa muito menos que aja contra teus votos."
Halig sorriu perante as palavras de Katrina, que o olhava com um misto de preocupação e gratidão. Baixou os olhos e meneou a cabeça de uma lado para o outro.
"Não, vós não podeis. Entretanto também não podeis me pedir para parar. Faço apenas o que meu coração me diz para fazer."
A sinceridade na voz de Halig despertava em seus corações um grande sentimento de gratidão, muito embora eles soubessem que o amigo se arriscava em demasia agindo daquela forma. Observaram o homem se levantar e ajeitar a gola da camisa. Halig olhou pela janela, fazendo seus olhos percorrerem cuidadosamente todo o ambiente ao redor em busca de alguma movimentação suspeita. O Sol lançava seus raios e iluminava aquela terra de discórdia onde ele crescera mas que, entretanto, não podia realmente chamar de lar. Se pudesse iria embora daquela cidade, mas sentia que tinha um dever a cumprir naquele lugar de ninguém, onde a intolerância era tão perceptível quanto o grasnar de corvos em um dia silencioso.
Levantou-se lentamente e se despediu do grupo, dizendo que precisava voltar o mais rápido possível. Do modo como as coisas estavam, o risco de serem descobertos era muito grande e eles já tinham problemas demais com os quais se preocupar fora a Inquisição.
Halig saiu, deixando para trás um grupo preocupado e apreensivo. A tensão que se formava incomodava-lhes ao extremo, à medida que se instalava e tomava todo o ambiente. Porque o perigo daqueles dias fosse tão amplo, sentiam que seus atos se limitavam cada vez mais. Semelhante à uma presa acuada por seu caçador, suas ações diminuíam e se tornavam cada vez mais restritas.
O céu já não estava tão limpo como no início do dia, e o Sol das quatro horas lançava seus raios difusos por entre algumas nuvens intrusas que se postavam em seu caminho. A tarde aos poucos caminhava para seu fim, aproximando-se do momento derradeiro onde luz e sombras se encontravam em um jogo de cores que se fundiam em um único ser, extasiando os expectadores daquela cena do teatro da vida.
Por fim, chegou a noite, encerrando aquele ato e dando início a um outro, tão mágico quanto o anterior. Entrava em cena a Rainha Lua, mítica soberana da escuridão, e as estrelas, que dançavam no céu como figurantes naquele cenário monocromático.
Que o dia fosse o ato da alegria, com sua luminosidade ofuscante e sua magnificência absoluta, ardente como o fogo e vivaz como o riso pueril das crianças que correm sobre as campinas verdejantes durante a primavera. Mas era a noite o ato da introspecção, que trazia consigo a sensualidade sublime e a beleza surreal da criação. Era em meio ao cenário iluminado pela Lua e pelas estrelas que os mais profundos mistérios da existência se manifestavam, desnudando diante dos olhos dos expectadores mais atentos os detalhes escondidos presentes no palco daquela grande encenação.
Contracenando com a Lua, uma coruja lançava sua voz de dentro do bosque, compondo uma melodia suave, quase tétrica, enquanto observava o mundo mudar do alto de seu galho. O vento também havia sido chamado para atuar, assoviando por entre as ramagens e contrapondo sua voz à da pequenina coruja — apenas uma minúscula parte de um coral de múltiplas vozes.
Embalados pela canção composta pela natureza, que naquele momento carregava consigo as palavras de Morfeu, o grupo decidiu adormecer, mantendo o esquema de vigília estabelecido durante a noite anterior.
No dia seguinte, Patrick acordou cedo e acabou por decidir buscar mais lenha, visto que seu suprimento havia acabado. Katrina e Sakura foram colher frutas para o desjejum e Dawn ficou encarregada de preparar a mesa.
A menina observou seus amigos se distanciarem e fechou a janela, iniciando rapidamente seu serviço. Em poucos minutos a mesa estava posta e Halig chegava com um novo suprimento de pão e leite.
"Bom dia, minha filha." cumprimentou o padre olhando para os lados. Sua expressão adquiriu um tom sombrio ao notar que a garota estava só. "Onde estão todos?"
"Foram recolher lenha e frutas." ela disse se olhar para ele, ajeitando uma cadeira para que o homem pudesse se sentar.
"Isso não é bom." ele comentou em voz tão baixa que Dawn teve dúvidas se ele havia dito aquilo para ela ou para si mesmo. "O cerco está se fechando, pequena. Vós não podeis mais ficar aqui, não é mais seguro. Tão logo o desjejum tenha sido feito, vós deveis partir, para o bem de todos."
Dawn ficou em silêncio. Então era isso, finalmente o que ela temia iria acontecer. Teriam que fugir novamente.
"Entendo." ela murmurou. Nem bem suas palavras terminaram de soar, uma forte batida foi ouvida na porta, seguida de uma segunda e uma terceira e ainda uma quarta. Logo a porta havia sido derrubada e três homens em trajes religiosos entravam. Seu olhar se deteve em Dawn por um momento, mas logo em seguida cravaram em Halig.
"Bispo Johan!" exclamou o padre.
"Então era verdade." rosnou o homem por entre os dentes. "Tu estás de conluio com o demônio! Deus seja misericordioso com a tua alma, pecador!"
Os dois homens que o acompanhavam arrastaram Halig para fora da cabana, sob os olhares assustados de Dawn. Do lado de fora, inúmeras pessoas se postavam, como que esperando sua presa. Não foram poucos os suspiros de surpresa quando Halig foi jogado no chão. Justamente ele, tão querido por aquelas pessoas, era o acusado de conspirar com o diabo. Passado o espanto, seguiram-se os olhares de reprovação, desapontamento e nojo, todos misturados em um só.
"Há muito nós temos acompanhado teus passos, Halig MaArchard. Estou desapontado contigo. Justamente tu, que era um dos mais promissores sacerdotes de nossa Igreja, te deixaste cegar e corromper pelas forças negras!"
"Não, Johan!" gritou Halig, vendo Dawn se debater enquanto era arrastada por um aldeão. "Não fui corrompido por ninguém! Deixe de lado teu ódio! Não é um dos mandamentos da bíblia, não julgares para não seres julgado? Quem és tu para condenar alguém de forma tão vil? Deus disse: amarás aos teus irmãos assim como a ti mesmo! Somos todos irmãos, Johan, será que não entendes isto?"
A garota tinha os braços presos por dois homens, que a seguravam firmemente contra o chão. Seus olhos estavam marejados, não pela dor física que sentia, mas pela dor de seu coração.
"Olha para essa menina, Johan! Achas mesmo que ela é um demônio? Se a tal veredicto tu chegares, então és tu quem te deixaste cegar!" bradou Halig, fazendo força para se livrar dos braços firmes que o seguravam.
"Basta!" falou Johan. "Tu estás cego de amores pelo diabo, não percebes que a mais vil das almas se esconde sob a pele de um cordeiro. Vós sereis condenados."
O padre arregalou os olhos perante as palavras do bispo. Condenados? Mas como eles poderiam ser condenados sem ao menos terem tido um julgamento decente?
"Ensandeceste por completo, Johan? Que tipo de julgamento é este onde se condenam inocentes sem ao menos terem uma chance de rendição?"
"Este, Halig McArchard, filho de Eldred McArchard, é o julgamento de Johan von Meyer, em nome da Santa Igreja Católica."
Halig não soube o que dizer. A indignação que lhe tomou o peito naquele instante foi forte demais para que ele sequer pudesse pensar em dizer algo.
Fitou novamente o rosto assustado de Dawn, que se debatia para se livrar do homem que a segurava. Sua expressão se retorcia em uma máscara de medo e raiva. Medo do que pudesse acontecer com ela e com Halig. Raiva daquelas pessoas, que se deixavam levar por palavras tão superficiais de um homem insano.
Tinha que sair dali. Ela não suportaria passar por todo aquele terror novamente. Em um ato desesperado, a garota ateou fogo no homem que a prendia. O aldeão gritou em agonia e pânico à medida que as chamas consumiam seu corpo. Correndo em desespero ele se embrenhou no meio da floresta, de onde não saiu mais.
Todos a olhavam amedrontados. Embora furiosos, as pessoas se afastavam da garota, apavoradas com o que ela havia feito. Tamanha euforia e hesitação deu a Halig a oportunidade que ele precisava. Livrando-se dos braços fortes que o mantinham cativo, o padre avançou pesadamente contra o Bispo, pedindo perdão mentalmente por aquele ato violento.
"Corra, Dawn! Corra e busque ajuda!"
A garota olhou para os lados, assustada. Em seguida, desatou a correr, embrenhando-se floresta adentro. Johan se levantou e limpou o sangue dos lábios, olhando furiosamente para Halig, que permanecia lá, lutando para impedir que as pessoas corressem trás da menina.
"Deixem-na!" gritou o bispo. "Ela vai voltar. E mesmo que não volte, temos conosco o traidor. Executem-no imediatamente!"
A multidão bradou histericamente enquanto Halig era carregado por dois noviços da Igreja. Johan ia na frente, com seu porte altivo e ameaçador, conduzindo a multidão rumo ao desfecho daquele episódio sombrio.
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Dawn corria desesperadamente pela floresta, desviando de todas aquelas árvores e tentando por tudo encontrar Katrina e os outros. Estava preocupada com Halig. Sabia que o padre não podia enfrentar aquela multidão sozinho. Ele corria perigo e cada segundo era precioso.
"Por favor, socorro!" ela gritou e sua surpresa não poderia ter sido maior quando, diante de seus olhos, um ser alado surgiu vindo dos céus. Ela o fitou, estupefata, seu coração batendo rápido enquanto tentava assimilar a visão. O porte altivo e os olhos profundamente azuis pareciam hipnotizá-la. As asas, brancas como a neve que cai no inverno, reluziam e cintilavam sob a luz do Sol, que naquele momento parecia ter seu brilho ofuscado pela beleza daquele ser.
Dawn recuou um passo quando os olhos daquele ser celestial recaíram sobre ela. Seu olhar era profundo, penetrante, quase pungente, e ela temeu aqueles olhos. Teria corrido daquele anjo não fosse sua voz, que se fez ouvir em meio às árvores e aos sons dos animais.
"O que te aflige?" ele indagou.
"Meu amigo vai ser executado pelas pessoas dessa vila! Por favor, me ajude, ele não fez nada senão me proteger!"
Ele pareceu ponderar por um instante antes de responder.
"Sinto auras místicas se aproximando e sei a quem pertencem tais energias. Devemos nos reunir a elas primeiro." disse ele, tomando a garota em seus braços e alçando vôo. Subiram até acima das copas das árvores e passaram a voar a uma velocidade incrível. Então, alguns segundos depois, tornaram a pousar.
"Sakura! Katrina!" chamou ele, deparando-se com a Dama das Carta.
"Yue!" ela exclamou, franzindo as sobrancelhas ao ver Dawn sendo carregada por seu guardião. "O que faz aqui? E o que Dawn está fazendo contigo?"
"Sakura!" gritou a menina, livrando-se rapidamente dos braços de Yue e correndo para as duas mulheres. "Eles levaram Halig! Nós temos que ajudá-lo!"
"Tenha calma, pequena. Quem levou Halig?" disse Katrina, ajoelhando-se diante de Dawn.
"O Bispo e as pessoas da cidade! Eles nos descobriram, Katrina! E disseram que vão condená-lo!" falou ela, com a voz embargada pelo choro. "Não quero perder-vos. Não quero que vós morrais."
"E nós não vamos." disse Sakura, invocando seu báculo. "Não temos tempo a perder."
Desataram a correr, fazendo de tudo para acalmar Dawn, que estava nervosa e apreensiva. Sakura concentrou-se no ambiente ao redor e logo Patrick e Spinel se juntavam a eles, correndo contra o tempo para salvar seu amigo.
Patrick sacou sua espada da bainha, rezando para que Halig fosse poupado. Não queria perder um amigo tão valoroso quanto ele. Em uma época permeada de ódio e intolerância, ele era uma das poucas pessoas cujo coração se mantinha aberto e cuja bondade era sincera e aparente. Sua sina não poderia ser aquela, tão cruel e injusta com seus atos.
Saíram da floresta e se depararam com o casebre vazio. Não havia mais ninguém lá com exceção de um cachorro que roia um pedaço de pão roubado da cabana, onde a mesa do desjejum continuava posta. Alguns pratos estavam no chão, mas no geral a construção continuava intacta.
Patrick correu os olhos pelo cenário, buscando pistas que pudessem ajudar. Não demorou muito para notar marcas no chão de terra batida, que explicitavam diante de seus olhos treinados o que havia acontecido.
"Halig deve ter tentado lutar contra aquelas pessoas. Há gotas de sangue no chão e marcas de quedas. Ele deve ter sido carregado daqui. Notem as pegadas e os rastros."
"Carregado para onde?" indagou Dawn, apreensiva. Patrick ergueu os olhos na direção que as pegadas apontavam.
"Para a cidade." disse o Cavaleiro. "E é para lá que nós vamos."
Todos concordaram e sem perder mais nenhum minuto se puseram a correr em direção ao amontoado de casas que ficava há alguns metros dali. Conforme se aproximavam, os altos brados dos aldeões se tornavam cada vez mais perceptíveis. Decerto a cidade toda estava tomada por uma grande euforia. Os gritos começaram a aumentar e passaram a condenar e a escarnecer aquele que era o alvo de sua fúria. Em meio a tantas vozes, uma se ergueu mais alto, berrando a plenos pulmões o desejo de sangue e incitando a multidão.
"Mate! Mate!" gritavam.
O grupo correu com todas as forças que conseguiram reunir. As vozes continuavam a gritar, tomadas pela cólera insana que cega e mutila. Do alto do seu trono, o Rei Sol assistia a tudo, envolto pelas nuvens brancas que passeavam pelo cenário, alheias àquela comoção homérica.
Percorreram as ruas da cidadela apressadamente, passando por becos mal iluminados e dobrando esquinas fechadas em direção à praça central. Os gritos se elevaram às alturas e logo em seguida cessaram, ao mesmo tempo em que o grupo alcançava a multidão. Um pesado silêncio tomou o ambiente. Aquele ato chegara ao seu clímax.
Do alto de um palanque, o corpo de Halig balançava ao vento, inerte como a presa de um leão em sua boca carniceira. Os olhos claros estavam vidrados e já não tinham mais o brilho que os tornava tão vivos e sagazes: haviam perdido seu resplendor.
"Não!" gritou Dawn, cujas rosto era inundado pelas lágrimas de dor e desespero. As atenções se voltaram para o grupo.
"Matem-nos!" bradou Johan do alto do palanque.
"Corram!" gritou Patrick. Todos começaram a fugir da enorme multidão que partia em seu encalço. Todos menos Dawn, que ficou parada, estática, como se seus pés estivessem presos ao chão.
"Dawn, venha!" gritou Yue, mas a garota continuou lá, encarando as centenas de pessoas que se aproximavam cada vez mais. Sentia seu corpo tremer levemente, muito embora não soubesse ao certo se o que sentia era raiva, tristeza ou um misto dos dois.
"O que ela vai fazer?" indagou Patrick vendo a feiticeira erguer as mãos lentamente. Seus olhos estavam frios, insensíveis a tudo e a todos.
"Fogo." ela murmurou. Uma densa muralha de chamas avermelhadas se acendeu, rodeando os aldeões e arrancando gritos de pavor. Dawn os fitou do fundo de seus olhos castanhos. Não os machucaria, mas os faria sentir muito medo.
Passou a caminhar lentamente, atravessando as chamas e se dirigindo ao palanque onde Halig havia sido enforcado. Com um único gesto de suas mãos, a corda que mantinha o padre preso se queimou mas ele permaneceu lá, flutuando, seguro por uma mão invisível. A muralha flamejante se dissipou e, uma a uma, as casas da cidade entraram em combustão. Não demorou muito e um grande incêndio havia tomado conta da cidadela. Assustadas, as pessoas correram e abandonaram aquele lugar.
Sakura e os outros continuavam parados enquanto as pessoas passavam por elas correndo. Logo não restava ninguém a não ser o grupo de amigos. Patrick pegou o corpo de Halig nos braços e juntos eles começaram a caminhar para longe daquela cidade amaldiçoada.
Alcançaram a floresta uma hora depois, onde sepultaram Halig debaixo do antigo carvalho que Sakura e Katrina haviam visto na noite em que haviam chegado àquele lugar.
Dawn chorava copiosamente sobre o túmulo daquele que a ensinara a confiar e lhe mostrara o valor da bondade. E foi em meio às lagrimas que sentiu uma mão pousar em seu ombro.
"Tranqüiliza teu coração, pequena." disse Katrina. "Este era o destino dele. Halig morreu para que você vivesse. Ele te amou, Dawn, muito mais do que podes imaginar."
"Halig deu a vida por mim, mas no instante em que ele morreu, um pedaço do meu coração morreu também." ela respondeu, levantando-se e caminhando para junto dos outros.
"E ainda assim você continua viva, em pé sobre este mundo, respirando o mesmo ar e banhando-se na mesma água. Guarde Halig em seu coração, pois lá é o lugar onde ele viverá para sempre, te dando esperança e amor. Você pode se sentir triste e chorar se quiser, mas lembre-se que Halig quis que você vivesse. Continue sempre em frente, por ele." disse Sakura. Dawn balançou a cabeça concordando.
Em silêncio, rezaram uma pequena prece em respeito à alma de Halig. Então, levantaram-se. E foi então que Spinel perguntou:
"Apenas não entendi um coisa. Você usou seus poderes aquela hora de forma agressiva, mas por que não matou ninguém, nem mesmo o Bispo?"
"Eu não tenho o direito de tirar vidas de tal modo, Spinel. Aprendi isso da pior maneira possível. E Halig também me ensinou que a vingança nunca é o melhor caminho a ser trilhado. Ela nunca traz nada senão mais dor."
"Estás certa. Teu corpo pode ser infantil, mas teu espírito é adulto, pequena. Estou admirado com a maturidade de teus atos." falou Patrick, sorrindo.
"Quando se passa por tudo aquilo que passei, acaba-se por amadurecer mais rápido do que os outros. Entretanto, tal maturidade é cruel e dolorosa demais. Tal sina é algo que não desejo a ninguém."
Patrick balançou a cabeça concordando ao mesmo tempo que estendia uma fina corrente de ouro. Na ponta havia um pequeno pingente na forma de uma ampulheta.
"Escute, Dawn, não podemos te deixar aqui. Em outra ocasião, o que estou fazendo seria proibido, entretanto nós te levaremos conosco em nossa Jornada. No caminho te explicaremos tudo, apenas coloca isto no pescoço e nos acompanhe."
Dawn assentiu e fez o que lhe foi dito.
"Está na hora de partir." falou Katrina. "Estas pronta para deixar esta terra maculada de uma vez por todas?"
A garota sorriu e balançou a cabeça.
"Estou." ela disse.
"Pois então vamos!"
Em um gesto único e contínuo os seis amigos levaram as mãos ao pingente. Dawn contemplou pela última vez o túmulo de Halig, antes de ver tudo desvanecer diante de si e desaparecer na imensidão do tempo.
"Obrigada." ela murmurou, e o som de sua voz se espalhou pela floresta e se perdeu.
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Nome: Anna den Adel
País de Origem: Canadá
Idade: 45 anos
Data de Nascimento: 16 de Abril de 1961
Tipo Sangüíneo: AB +
Elemento Regente: Ar
Ocupação: Guardiã do Ar do Supremo Conselho de Magos e Mestra da Ordem dos Senhores da Tempestade.
Passatempo: Cantar e cuidar de seu jardim.
Ficha pessoal: Anna é filha de imigrantes Holandeses, que se mudaram para o Canadá no final da década de 50.
Extremamente tímida e recatada, ela cresceu em um colégio interno em Toronto, no Sul do país, onde estudou até os 15 anos. Foi exatamente nessa época que Anna foi apresentada à Ordem da Tempestade por um de seus professores, que percebeu os dons mágicos da garota e a convidou a estudar magia, tornando-se seu mentor e guia. Anna aceitou a proposta mais por causa do tom inovador do que propriamente por alguma responsabilidade mágica, mas aquilo que a princípio parecia uma aventura adolescente ganhou importância para ela a ponto de se tornar sua grande paixão e motivação.
Quando iniciou a faculdade de música ela já tinha uma fama considerável dentro da Ordem. Com o passar do tempo sua influência cresceu, juntamente com sua reputação, levando-a a ser convidada a fazer parte do Conselho no dia em que completou 42 anos. Anna foi a última pessoa a integrar o Conselho em sua formação atual.
Apesar do pouco tempo de atuação, ela já mostrou seu valor inúmeras vezes ao servir de Juíza em Julgamentos dentro de sua Ordem e ao atuar como Mediadora da Terra no 209º Fórum Celestial.
Anna é docente da Universidade de Toronto e professora de canto lírico.
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Espero imensamente que tenham gostado deste capítulo tanto quanto eu gostei de escrever. Foi um capítulo muito especial, não apenas por envolver temas como a morte e a Inquisição, mas também por marcar a chegada de mais uma pessoa ao grupo. Dawn, a pequena feiticeira, se junta ao time em sua Jornada através do tempo. O que o Destino reserva para a jovem só futuro dirá. Por hora, digo apenas que ela terá um grande papel a ser desempenhado.
E aguardem! No próximo capítulo muitas surpresas os aguardam quando Durval, a pedido de Magno, infiltra-se na biblioteca secreta do Vaticano e descobre detalhes sobre os rituais encontrados nos registros dos Iluminados.
Este foi o primeiro capítulo publicado no ano de 2004. Hoje, dia 03 de Janeiro de 2004, Chrono faz aniversário! Um ano de existência! Puxa, não acredito que já se passou tudo isso! Há um ano, quando eu comecei a publicar esse fic, eu não esperava que ele fizesse tanto sucesso. Muito obrigado a todos que acompanharam minha história até aqui. Espero que ela continue agradando a todos, pois ela foi feita exatamente para vocês!
É até engraçado, pois quando eu tive a idéia para este fic, eu não sabia se conseguiria conduzir uma história tão grande por tanto tempo. Primeiro porque eu nunca tinha escrito nada em capítulos. Segundo porque o desafio de desenvolver uma trama como esta, sem entretanto deixá-la pesada ou complexa demais era grande. Fico feliz que meus esforços estejam sendo compensados. Cada vez que recebo um e-mail ou leio um review eu fico mais motivado a continuar.
Mas não é só Chrono que faz aniversário hoje! Gostaria de dedicar este capítulo à Yoruki Mizunotsuki, nossa aniversariante do dia. Bruna, meu anjo lindo, feliz aniversário! Espero que este capítulo tenha te agradado, muito embora eu ache que ele não combina muito com uma data alegre como esta, não é mesmo? De qualquer modo, desejo-te muitas felicidades sempre. Jamais perca sua simpatia e seu carisma, qualidades que eu tanto admiro em você.
Aqui eu me despeço, desejando a todos uma ótima semana. Até o próximo capítulo.
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai