Capítulo Dezesseis — Cai o Pano
"Eriol, como será que estão os outros?" indagou Kirsten, olhando ao seu redor e contemplando longamente o imenso descampado que se estendia para todos os lados a perder de vista. Os dois estavam sentados sobre a relva macia, onde o orvalho ainda brilhava e refletia a luz, conforme o Sol, que nascia ao longe, lançava seus raios quentes e renovantes sobre eles.
Eriol não respondeu imediatamente. Ainda fitando a alvorada que despontava no horizonte, ele meneou levemente a cabeça.
"Não sei." disse o rapaz, pensativo. "Espero sinceramente que todos estejam bem e que possamos nos reencontrar o quanto antes. Já ficamos separados o suficiente e nosso tempo se esgota tão rápido quanto o tempo que o Sol leva para nascer dia após dia."
Assistiram juntos ao amanhecer. Tal como disse Eriol, o Sol rapidamente subiu no horizonte e alcançou o céu, despertando o mundo para um novo dia que começava. Vistos de longe, nem pareceria que eles estavam enfrentando problemas tão profundos, complexos e intrigantes. Qualquer pessoa os tomaria apenas como um casal qualquer que apreciava a paisagem majestosa que se abria diante de seus olhos. O engano não poderia ser maior.
"Não é estranho?" falou Kirsten, suspirando e captando a atenção do parceiro. "Não é estranho que estejamos correndo contra o Tempo em uma busca frenética, quase obsessiva, bem debaixo dos narizes que bilhões de pessoas, e elas não tenham a mais vaga suspeita do que está acontecendo e do que as rodeia? Quero dizer, tanta coisa está acontecendo ao mesmo tempo, e a maioria dos seres deste mundo continuam vivendo suas vidas ordinárias, dia após dia, sem consciência da teia que as envolve."
"Seria quase impossível listar tudo aquilo que a humanidade não tem ciência." falou o mago contemplando o firmamento, onde algumas nuvens começavam a aparecer, carregadas pelo vento. "O mundo é estranho. Nem mesmo eu, que já testemunhei duas vidas no tempo dos homens, consigo compreender completamente. Tamanha magnitude, tamanha perfeição, condensada em coisas tão pequenas."
O jovem estendeu a mão direita, onde um rouxinol foi pousar em seu dedo. Kirsten sorriu para a cena. Eriol continuou.
"Mas as pessoas são tão estranhas quanto o mundo em que habitam, você não concorda comigo? Possuem à sua total disposição tamanha diversidade, beleza e encanto, e ainda assim insistem em sustentar guerras tolas, conflitos infundados, justificados apenas pelo injustificável. Alguns passam a vida toda buscando felicidade, desejam aquilo que lhes parece mais distante; voltam seus olhos para longe e se tornam cegos para tudo aquilo que têm perto de si. Idealizam encantos e não vêem que a magia que tanto procuram está dentro deles próprios."
A guerreira refletiu por um instante antes de responder.
"A ambição das pessoas de fato não conhece limites. Ela é uma característica própria dos seres que habitam este mundo. É da natureza humana desejar sempre mais e mais, querer coisas cada vez mais complexas, sem saber que a maior de todas as perfeições é aquela que encontramos nas coisas simples."
Eriol balançou a cabeça, concordando com as palavras da jovem.
"Coisas simples e que por sua simplicidade são tão complexas quanto o milagre da Criação." ele falou serenamente. "A ambição sem dúvida é, ao mesmo tempo, um dos maiores defeitos e uma das maiores qualidades dos homens. Afinal, como dizem por aí, se ninguém desejasse mais do que já tem, a humanidade ainda estaria vivendo em cavernas e vestindo peles de animais."
Kirsten riu diante de tal colocação. Esticou os braços para o alto e soltou um longo bocejo, sentindo seus ossos estalarem com um sonoro 'clac'. Suspirou e olhou ao redor. O ambiente era de profunda descontração, muito embora a situação fosse completamente adversa a tal clima de tranqüilidade e paz.
Eriol também suspirou, vendo a relva balançar junto ao vento e as nuvens se dissiparem lentamente, como pequenas ovelhas dispersas em um pasto azul brilhante. Se a situação fosse outra, se tudo aquilo não estivesse acontecendo, aquele seria um dia perfeito para um piquenique com os amigos. Convidaria Tomoyo para uma caminhada pelo campo, conversariam de mãos dadas, e fariam planos, e contariam seus sonhos, e ririam tolamente como somente os corações apaixonados são capazes.
"Um dia, talvez." ele pensou, esboçando um sorriso em seus lábios.
Kirsten observou cuidadosamente o semblante sereno do rapaz ao seu lado. Ela sempre admirara e invejara aquela capacidade de Eriol de manter a compostura e a calma mesmo diante dos maiores problemas. Ele sempre parecia saber o que fazer, que direção tomar; mesmo se estivessem debaixo da mais terrível tempestade, Eriol encontraria um caminho. Aquela serenidade era uma característica que ela não possuía e que muito duvidava que um dia viesse a possuir.
Por um momento ela se esqueceu de onde estava e o que estava fazendo apenas para observar o jovem inglês com seu porte altivo e seu rosto de feições delicadas. Os olhos de Eriol, de um azul muito profundo, se destacavam de sua face, acentuados pelos óculos de aros finos. Os cabelos longos estavam soltos de seu habitual rabo-de-cavalo e caíam sobre os ombros do rapaz conferindo-lhe um aspecto levemente rebelde. E Kirsten pegou-se pensando em como Eriol era bonito.
Contornou com os olhos cada pedaço do rosto do jovem, esquadrinhando minuciosamente aqueles traços que mais pareciam uma obra renascentista, traços que se aproximavam da perfeição. Uma perfeita combinação de suavidade e austeridade, sentimento e inteligência, força e sabedoria. Sempre achara aqueles olhos bonitos, mas naquele momento seus lábios também pareciam bastante atraentes.
Sacudiu a cabeça com força na tentativa de afastar aqueles pensamentos e virou o rosto, tornando a contemplar o horizonte ao longe. Não sabia porque havia pensado em tudo aquilo, mas não queria mais olhar para o rapaz. O gesto da moça, entretanto, não passou desapercebido pelo feiticeiro, que se virou para encará-la com uma expressão suave no rosto.
"Aconteceu alguma coisa?" ele perguntou, sorrindo gentilmente para ela. Kirsten pareceu ligeiramente confusa.
"Aconteceu? Sim... digo, não... Ah, quero dizer..." ela tornou a virar o rosto, tentando por tudo não corar, feito na qual estava falhando miseravelmente. Chegou a se perguntar onde estava todo o autocontrole que adquirira depois de tantos anos, parecia que ele simplesmente evaporara de uma hora para outra.
Sentiu a mão morna de Eriol ir pousar em seu ombro e estremeceu levemente. Sabia que o jovem a olhava e não poderia ignorá-lo daquela forma. Então, Kirsten se obrigou a se virar e olhar para Eriol, deparando-se com seu sorriso delicado.
"O que aconteceu, Kirsten?" indagou o inglês. "Sabe que pode confiar em mim."
Eriol abriu mais o sorriso enquanto pensava que, por mais que a amiga tivesse amadurecido, ela ainda conservava em muito seu jeito tímido e retraído. Certas coisas, nem mesmo o tempo poderia modificar, mas ele tinha que admitir que gostava daquele jeito dela e que sentira falta daquela leve insegurança de Kirsten.
A jovem guerreira sorriu mais uma vez diante das palavras e da expressão que Eriol lhe lançava. Era verdade, sempre pudera contar com ele em todos os momentos, não importando qual fosse o problema. Os laços que os uniam eram fortes. Mesmo durante todo o tempo que Eriol permaneceu no Japão, há mais de 5 anos atrás, não foram poucas as vezes que ela lhe telefonou, fosse para pedir conselhos, fosse para desabafar suas frustrações, fosse somente para ficar em silêncio ouvindo-o falar. E ele sempre estivera lá, sempre a escutara, como se o que dissesse, por mais trivial ou bobo que fosse, parecesse a coisa mais importante do universo. Ele a fazia se sentir especial.
Mais uma vez Kirsten flagrou-se pensando na beleza surreal de Eriol e fitando seus lábios, que ainda sorriam calorosamente para ela, como que esperando uma resposta.
"Está vermelha, Kirsten, o que aconteceu?" ele perguntou delicadamente. A jovem pareceu despertar de seus pensamentos, assustando-se levemente.
"Meu coração está batendo tão rápido." ela falou, quase num sussurro, fazendo com que Eriol tivesse que se esforçar para compreender.
"Por que?" ele perguntou, erguendo seu rosto de forma que seus olhares se encontraram.
Kirsten hesitou. Por um momento ela pareceu engasgar, como se falar lhe custasse um imenso esforço. As palavras estavam presas em sua garganta, pedindo para serem ditas. Tinha que dizer, muito embora não soubesse ao certo o que havia para ser falado. Seus lábios se moveram algumas vezes e por fim sua voz soou, proferindo algo que ela mesma não esperava falar.
"Está batendo por você." falou a jovem num súbito impulso de coragem e, em sua própria opinião, ousadia.
Os olhos azuis de Eriol piscaram algumas vezes e se arregalaram em surpresa. Sabia que Kirsten gostava muito dele, mas aquilo era a última coisa que esperava ouvir. Ele suspirou, procurando algo para dizer, ainda espantado com as palavras da jovem.
"Eu te amo, Eriol." continuou a garota, sem dar tempo para ele dizer coisa alguma. "Eu te amo. Talvez eu sempre tenha te amado, mas não tive coragem para admitir isso para mim mesma."
Eriol tornou a suspirar, dessa vez pesadamente. Ele sempre fora bom com as palavras, e naquele momento buscava as palavras certas a dizer. Teria que quebrar o coração de Kirsten, mas a consciência do fato não o tornava menos penoso. Gostava da jovem, eram como irmãos, mas nada mais. Talvez por se importar tanto com ela estivesse sendo tão complicado saber o que dizer.
"Kirsten..." ele começou, mas foi logo calado pelo toque suave e doce dos lábios da jovem contra os seus. Segurou-a levemente pelos ombros e a afastou do modo mais brando e gentil que conseguiu.
"Kirsten." ele tornou a falar. "Me perdoe, mas não posso."
Ele viu a esperança que havia nos olhos da garota cederem lugar à tristeza e ao desapontamento. Ela tentou falar, mas tudo o que conseguiu fazer foi abaixar a cabeça e suspirar. Por fim, transcorridos alguns minutos, a jovem recuperou a voz.
"Por que?" foi a única coisa que ela conseguiu pronunciar, e sua voz estava embargada e vacilante.
"Porque você não ama Eriol Hiiragizawa, mas sim a reencarnação do Mago Clow Reed." disse ele ternamente. "O que você ama, Kirsten, é apenas uma memória, alguém idealizado e perfeito. Esquece-se, entretanto, que eu sou tão humano quanto qualquer outro ser humano. Tenho meus anseios e minha motivações, minhas dúvidas, meus medos e ambições. Tenho qualidades, sim, mas também tenho muitos defeitos. Sinto muito, mas o homem que você ama não é Eriol Hiiragizawa."
Kirsten fitou os olhos de Eriol e naquele momento soube que havia alguém.
"E quem é a mulher que ama Eriol?" ela perguntou, tristemente, mas ainda assim se esforçando para sorrir. "Como é a mulher que ama o homem e não o mago?"
Eriol não conseguiu deixar de sorrir à lembrança de Tomoyo. O rosto da garota se desenhou perfeitamente em sua mente, sorrindo para ele e acenando da mesma forma que ela fizeram quando se despediram, antes de toda aquela loucura começar. Então, voltando-se para Kirsten, pôs-se a falar, e havia um quê de satisfação em seu tom de voz.
"Ela é um anjo de pele branca e longos cabelos muito escuros, ondulados graciosamente em torno de seu rosto delicado e gentil. Seus olhos, de um violeta tão profundo e brilhante quanto o céu durante o crepúsculo, mais parecem duas pedras de ametista contra um fundo de cristal. Sua voz é mais doce que a melodia de cem rouxinóis e seu toque, mais suave e delicado que a mais fina seda jamais produzida por mãos mortais. Seu sorriso é mais luminoso que a chama de uma bela tocha e mais belo que a flores da primavera."
Eriol tinha um ar levemente sonhador, e Kirsten não conseguiu deixar de sorrir diante da expressão do jovem, muito embora seu coração ainda doesse pela confissão recente.
"E qual é o nome desse anjo?" ela indagou, embora o tom melancólico de sua voz houvesse cedido lugar a uma ponta de interesse genuíno e forte. Queria saber quem fora a pessoa que encantara Eriol daquela forma.
"Daidouji. Tomoyo Daidouji." ele respondeu simplesmente.
Kirsten suspirou e ergueu a cabeça, seus olhos fitando os de Eriol.
"Ela tem muita sorte por ter alguém como você." ela proclamou lentamente, e Eriol pôde ver a sinceridade que aquelas palavras transmitiam.
"Talvez. Creio que sim." disse o rapaz, muito embora soubesse o quanto aquelas palavras machucavam o coração de Kirsten. Entretanto, infelizmente, era desse modo que o mundo funcionava. A felicidade de alguns sempre significaria a tristeza de outros.
Kirsten soluçou levemente ao lado de Eriol. O rapaz levou a mão gentilmente ao rosto da amiga, aparando uma singela e solitária lágrima que teimava em escorrer.
"Não se preocupe comigo, Eriol." ela falou suavemente. Sua voz não estava mais pesada, tinha uma certa leveza de satisfação e não o peso do desapontamento. "Eu vou ficar bem, só preciso de um tempo para me acostumar. Fico feliz que você tenha alguém que te mereça. Talvez eu realmente não te ame como ela, mas saiba que meu coração vai estar sempre com você. Nossa amizade é eterna, Eriol. Nossos laços são fortes demais para serem quebrados."
"Fico muito feliz por ouvir isso, Kirsten." disse Eriol, sorrindo. Abraçaram-se ternamente, sabendo que a amizade que os unia era forte e pura, e que jamais seria rompida, não importando o tempo ou a distância.
Permaneceram abraçados por alguns minutos, transmitindo energia um ao outro. Por fim, separaram-se, e o inglês rapidamente colocou-se de pé. Estendeu a mão para Kirsten, que sorriu e aceitou a ajuda oferecida pelo rapaz. O tempo de descanso havia acabado e já era hora de continuar a caminhada. Devia ser por volta de nove horas da manhã e mesmo com o Sol brilhando forte no céu uma brisa gelada cortava o descampado de uma ponta a outra, fazendo com que um arrepio percorresse o corpo dos dois jovens de vez em quando, à medida que retomavam sua trilha.
Eriol seguia um pouco mais a frente, sempre acompanhado de perto por Kirsten, que mantinha os sentidos alerta para qualquer imprevisto e a mão esquerda na bainha da espada, pronta para reagir ao menor sinal de ameaça. A recente confissão dos seus sentimentos parecia ter sido esquecida no momento em que retomaram a caminhada.
A guerreira ergueu um pouco o olhar e percebeu que o jovem inglês também estava alerta e carregava sua chave mística na mão esquerda. Ela podia sentir a aura de Eriol sondando o local, percorrendo cada pedaço da planície em busca de algum sinal.
Viu quando o companheiro parou e olhou para o lados, virando-se para ela logo em seguida. Sua capa esvoaçou levemente, e por um momento fugaz Kirsten pensou ter visto um brilho metálico por entre as vestes do rapaz. Entretanto, tão logo quanto veio, o brilho se foi, no momento em que a capa voltou ao seu lugar e se ajeitou sobre os ombros largos do jovem mago.
"Sinto uma presença. Alguém se aproxima." ele falou lentamente. Kirsten balançou a cabeça, indicando que também sentia algo. Não apenas uma, mas várias energias que se mesclavam e se moviam rapidamente. Aquelas presenças eram familiares e ela teve a certeza de conhecê-las.
"São eles." ela murmurou, recebendo um aceno afirmativo por parte de Eriol.
De fato, alguns segundos depois, a dupla divisou duas figuras caminhando pelo gramado em sua direção. Uma delas, mais baixa, parecia uma tanto eufórica por tê-los avistado. Tinha os longos cabelos castanhos e sorria abertamente, carregando algumas flores nas mãos. A segunda era, na verdade, um homem de constituição física avantajada. Tinha os ombros largos e cabelos castanhos rebeldes. Trazia no ombro um pequenino ser de cor amarela, que parecia tagarelar sem parar.
"Shaoran, Kerberus, Nakuru!" chamou Kirsten, acenando para o trio de amigos ao longe. Aproximaram-se correndo e Shaoran os saudou com um aceno de cabeça e um sorriso, ao mesmo tempo que Kero deixava seu ombro para voar em torno do grupo. Nakuru, ao contrário do chinês, não se esforçara para ser discreta. Abraçou os dois jovens exageradamente e sorriu, dizendo que sentira saudades.
"É bom vê-los novamente também." falou Eriol, sorrindo abertamente e tornando a colocar a chave em torno do pescoço. Olhou para os lados, talvez na esperança de ver os outros membros do grupo correndo pare se juntar a eles mas, não avistando sinal de viva alma nos arredores, tornou a voltar o olhar para os amigos recém encontrados.
Nakuru relatava o que vira durante todo o tempo em que haviam permanecido separados. Alguma coisa envolvendo um safári pela savana africana e uma tribo primitiva venerando-a como uma deusa. O feiticeiro sorriu, divertido com a narração feita pela moça, que ainda insistia em imitar uma dança aborígine que presenciara, arrancando gargalhadas de todos.
Entretanto, quem realmente chamou a atenção do mago foi Shaoran. Embora o rapaz permanecesse quieto, apenas ouvindo a história de Nakuru e eventualmente concordando com uma ou outra palavra da guardiã, Eriol percebeu que seus olhos possuíam um brilho novo e diferente. Estavam mais leves, quase mais felizes.
"Aconteceu alguma coisa, meu amigo?" indagou o inglês discretamente quando retomaram a caminhada. Shaoran piscou por um momento.
"Como?" ele replicou. Eriol sorriu.
"Sinto que você está mudado, Shaoran." ele disse, deixando-se ficar para trás para poderem conversar melhor. "De alguma forma sinto que uma mudança operou em você durante todo o tempo que ficamos separados. Já não é mais o mesmo. Aconteceu algo ou eu estou enganado?"
Shaoran sorriu, como se já esperasse que o amigo tocasse no assunto e o questionasse. Eriol era astuto para esse tipo de coisa e o chinês não se espantou que o feiticeiro tivesse notado algo de diferente.
"De fato, muitas coisas aconteceram." falou o guerreiro em uma mescla de satisfação e triunfo. "Vi e ouvi muitas coisas, coisas que certamente vou me recordar pelo resto de minha vida. Descobri muitas coisas e aprendi com meus erros e acertos. E, a exemplo dos grande sábios, hoje tenho o conhecimento como minha maior arma e meu maior tesouro."
Eriol pareceu feliz e satisfeito com as palavras ditas por Shaoran. Sorriu para o rapaz e disse que estava alegre por ele e que a maior força de um homem estava em reconhecer a grandeza nas coisas simples. Shaoran assentiu e sorriu de volta para o colega. Ainda pensava nas palavras de Eriol quando ouviu a voz de Nakuru soar ao longe:
"Vocês dois são lerdos demais! Andem mais depressa ou vão ficar para trás! Estamos com pressa!"
Os dois riram e balançaram a cabeça de um lado para o outro. Então apertaram o passo e foram se juntar ao resto do grupo, sob os protestos e sermões de Nakuru e os sorrisos divertidos de Kirsten e Kero.
Caminharam durante mais três horas ininterruptas, quando o Sol já estava alto. O vento gélido parara de soprar e agitar a grama sob seus pés cansados. Sentaram-se por um instante para descansar e recuperar as forças.
Shaoran suspirou e esticou os braços acima da cabeça. Estava satisfeito por encontrar Eriol, a recente conversa que tivera com o amigo o havia animado bastante. Não podia negar que Eriol sabia ser um bom ouvinte.
O rapaz fechou os olhos por alguns segundos, sentindo o aroma da terra e da relva sob si e desejando que aquela paz pudesse durar para sempre. Todavia, ele sabia que aquele era um desejo impossível. A Jornada havia começado e, de uma forma ou de outra, deveria terminar. Era assim que o mundo funcionava, sempre buscando o início e o final de tudo.
"Nada pode começar sem antes algo terminar." ponderou Shaoran. "Todos os acontecimentos que passamos nos trazem algo de valioso, e eu sinto em meu coração que tudo isso tem um propósito maior e mais grandioso do que aparenta."
Tornou a abrir os olhos e fitou o horizonte ao longe. Mergulhado em seu devaneios, o jovem guerreiro conseguiu discernir alguns sons que pareciam gargalhadas ao longe. Elas ecoavam em sua mente e a traziam de volta à razão.
"Que lugar lindo!" exclamou uma voz aguda subitamente. Parecia distante mas era claramente uma voz feminina.
O grupo de amigos levantou-se rapidamente e olhou ao redor. Ao longe uma garota corria pela campina, sorrindo, e seus longos cabelos ondulavam pelo ar, dando-lhe um aspecto levemente angelical. Logo atrás dela, uma outra mulher também vinha correndo.
Shaoran forçou os olhos e sua surpresa não poderia ser maior ao constatar que a mulher que perseguia a menina era ninguém menos que Sakura. Um pouco mais atrás vinha Katrina com sua inigualável graciosidade, acompanhada de Patrick, Yukito e de um compenetrado Spinel, que voava apreciando o local, com sua relva macia e suas flores esparsas.
"Quem é a garota?" indagou Kirsten, parando ao lado do rapaz. Shaoran deu com o ombro e desatou a caminhar.
"Sakura!" ele chamou, acenando exageradamente para a moça. Dawn parou de correr imediatamente e fitou o rapaz que acenava de longe. Recuou alguns passos, receosa, e olhou para Sakura, que a havia alcançado naquele momento.
"Está tudo bem." falou ela, sorrindo para a menina. "Eu os conheço, são meu amigos."
Sakura acenou de volta para Shaoran , que já se aproximava a largas passadas, juntamente de Eriol e os outros. Dawn reparou imediatamente em Kero, notando certa semelhança entre ele e Spinel. Entretanto, ao invés da sobriedade deste, o pequeno ser amarelo tinha um aspecto risonho e transmitia um calor suave e uma vivacidade quase frenética.
"Dois lados da mesma moeda." ela murmurou. "Tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes."
"O que disse, meu anjo?" perguntou Sakura. Dawn apenas sorriu e balançou a cabeça.
"Nada, eu apenas pensei alto."
Sakura não deu importância, apenas abriu um largo sorriso quando seus amigos se aproximaram. Estava com saudades de todos. A separação, embora não tivesse sido longa, fora bastante penosa. Ajudara Clow, sim, mas perdera um amigo. A lembrança da morte de Halig ainda estava nítida em sua memória, e ela desejou que aquilo não voltasse nunca a se repetir.
A jovem abraçou os companheiros recém encontrados e esperou que Katrina, Patrick e Spinel se aproximassem. Logo, estavam todos sorrindo e cumprimentando uns aos outros. Havia muitas perguntas rondando as cabeças de todos, mas nenhuma era tão evidente quanto aquela que se referia à identidade da menina que estava com Sakura.
"Esta é Dawn Donnovan." disse Sakura, puxando a garota pela mão e apresentando-a ao restante do grupo. "Dawn, estes são Eriol, Shaoran, Nakuru, Kirsten e Kerberus. Lembra-se quando lhe contamos que havíamos nos separado de nosso grupo? Pois bem, parece que nos reencontramos mais rápido do que eu esperava."
"Espero que isso seja um bom sinal." falou Kirsten, sorrindo, e todos concordaram. Eram tempos difíceis e toda ajuda dada pelo Destino era recebida com apreço sem igual. Sentiam-se gratos por terem tido a oportunidade de se reunirem novamente. Eram fortes juntos e sabiam que a união era algo imprescindível para que tudo aquilo terminasse bem.
Seguiu-se um suave silêncio às palavras da guerreira, um silêncio reflexivo e renovador, mas que logo foi quebrado por Eriol, que fitava Dawn com seus olhos azuis sagazes.
"Parece-me, e eu posso estar enganado, que ela sabe algo sobre nós." ele disse, sorrindo para Sakura. "Nós, entretanto, não sabemos nada sobre ela. Sinto que há mais nisso do que as aparências revelam. Gostaria de ouvir o que têm a contar."
Sakura sorriu, era óbvio que Eriol não deixaria aquilo passar em branco. O simples fato de um novo membro se juntar inesperadamente a eles já era, por si só, intrigante, e o fato de Dawn ainda ser tão jovem despertara a curiosidade do Guardião do Sol.
"Está certo como sempre, Eriol." falou Katrina, fazendo sinal para todos se sentarem. "A narrativa é longa e profunda, mas tentaremos simplificá-la ao máximo."
E eles começaram a contar sobre Dawn e sua família, como haviam sido perseguidos pela Inquisição e pelas pessoas da cidadela. Tomaram o cuidado de não omitir nenhum fato importante. Dawn permanecia calada a maior parte do tempo, interferindo apenas de vez em quando para acrescentar ou corrigir algo. Todo o sofrimento pela qual passara ainda era recente em seu coração e ela entristecia-se perante a lembrança amarga de tudo aquilo.
A jovem olhou para Katrina e Sakura, que falavam a maior parte do tempo e agradeceu por tê-las conhecido.
"Infelizmente não pudemos fazer nada por ele." disse a Guardiã da Luz, dando a história por encerrada. O rosto de Halig desenhou-se na memória de Dawn e uma única lágrima rolou pela sua face. Sakura sorriu ternamente e a abraçou, beijando-lhe a fronte de forma suave. Sabia que por mais forte que fosse, Dawn ainda era humana e como todas as pessoas sentia falta daquele que a salvara de si mesma.
"Sinto muito por ele." falou Eriol, levantando-se. "Eu rezaria por sua alma se o momento permitisse e as circunstâncias fossem outras. Entretanto, estamos correndo contra o tempo e não devemos nos demorar muito mais."
Levantaram-se todos e ajeitaram suas roupas. Eriol não queria ter interrompido o momento de forma tão brusca, mas os minutos corriam rapidamente.
"Quanto antes sairmos daqui, mais rápido alcançaremos a plataforma e mais rápido tudo isso terminará." ele pensou, tomando a dianteira do grupo juntamente com Kirsten e Patrick e passando a caminhar pela planície verdejante.
Alguma coisa começava a perturbá-lo. Um sentimento estranho e indefinido corria-lhe a alma e incomodava sua mente. Não via a razão daquela preocupação, mas algo não o permitia ignorar sua intuição.
Tentou afastar aqueles pensamentos de sua cabeça, mas algo acabou chamando sua atenção. Solitária em meio à grama, uma flor exibia o que restara de sua beleza. Estava murcha e as poucas pétalas que haviam restado mostravam uma coloração azulada, pálida e melancólica. Sozinha, ela parecia lutar contra um rival impiedoso para se manter no lugar. E observando aquela flor singular, Eriol soube que dificuldades os aguardavam.
Caminharam durante mais algumas horas em silêncio. Eriol continuava à frente junto com Kirsten. Katrina e Patrick vinham um pouco mais atrás dos demais, atentos para o ambiente que os cercava. Quando o Sol subitamente pareceu escurecer, Eriol soube que seu pressentimento estava correto.
"Preparem-se!" ele bradou, invocando seu báculo. A ordem não podia ser mais desnecessária pois antes mesmo que ele terminasse de falar todos já haviam assumido postura defensiva e elevado seus sentidos para sondar todas as direções daquele descampado.
"Presas fujonas." cantarolou uma voz rouca e aguda. "Escaparam uma vez, mas não podem escapar para sempre."
Do chão emergiram quatro seres já familiares ao grupo. Christian os olhava com desdém enquanto continuava a cantarolar com sua voz envelhecida. Mikhael trazia uma expressão ligeiramente descontente.
"Duas vezes nos enfrentamos e duas vezes você escapou, Clow. Não são todos que têm a mesma sorte." ele falou polidamente.
"A sorte sempre fez parte da minha vida, Mikhael, e creio que ela ainda não me abandonou." respondeu o inglês mantendo o semblante fechado.
"Pois chegou a hora de arrancá-la de sua vida de uma vez por todas." ele replicou, e sua presença se espalhou pelo local como a epidemia de uma doença contagiosa que dizima civilizações e reinos.
Ergueu as mãos e clamou a fúria de Baal. Nuvens negras cobriram o que restara do Sol e, no instante seguinte, uma intensa chuva de fogo açoitou o campo.
Sakura rapidamente ergueu um escudo para proteger o grupo, observando Zilah, Eric e Christian se aproximarem. Dawn crispou os lábios e levou as mãos à frente, pronta para enfrentar aqueles desconhecidos. Sakura a olhou com o canto dos olhos e sorriu de leve, admirada com a coragem da garota.
As labaredas caíam intermitentemente, incendiando a campina outrora verdejante e trazendo a cor da morte ao local de antiga paz. Dawn olhou para aquele cenário que era rapidamente consumido pelo fogo e a lembrança de seus pais ardendo em chamas há sete anos atrás voltou à sua memória com força avassaladora. Um desespero leve e cruel começou a brotar em seu coração: e se seus amigos também acabassem tendo o mesmo destino de sua família? Não poderia suportar isso, não depois de descobrir a alegria após tanto tempo de solidão.
"Isso não vai acontecer!" ela murmurou, levando as mãos a frente na direção de Mikhael. O chão sob seus pés estremeceu e se abriu, revelando lanças de madeira que se elevaram ameaçadoramente. Pego de surpresa, o bruxo mal teve tempo de agir, ganhando cortes profundos nas costas e nas mãos. Por pouco não tinha tido a perna esquerda atravessada. Seu grito de dor encheu e ar e quebrou sua concentração, fazendo com que a chuva cessasse.
As atenções se voltaram para Dawn, admirados que estavam com o que a garota havia feito. Christian, Eric e Zilah a fitavam com espanto e receio. Os olhos de Mikhael cravaram na menina mas, mesmo com o medo correndo em suas veias, ela se manteve firme. Por um breve momento tudo parou, congelado, estático como um bizarro retrato em preto e branco de uma cena irreal e de difícil concepção. Mikhael e Dawn se olhavam fixamente, alheios aos demais.
Katrina viu naquela pequena distração a oportunidade que precisava. Concentrou-se e um raio de luz sólida riscou os céus na direção de Mikhael. E os atores daquela encenação tornaram a acordar para o mundo que os cercava. O sacerdote ergueu a mão direita e bloqueou o ataque da Guardiã da Luz com habilidade.
Aquilo foi o que bastou para que o combate se instalasse definitivamente. O escudo de Sakura foi desfeito e eles se espalharam. Os quatro bruxos fecharam os flancos e atacaram por todos os lados, como chacais que encurralam sua presa.
Patrick e Kirsten empunharam as espadas junto ao peito, sondando o local em busca de alguma brecha. Eles sentiam uma vibração não muito longe dali. Se ao menos pudessem chegar até lá.
Logo ao lado, Sakura encarava Zilah uma vez mais. O embate havia ficado sem decisão da última vez, mas não podia ficar sem um resultado para sempre. Ambas sabiam disso e por esta razão se analisavam mutuamente, sondando cada movimento, atentas à respiração, ao simples esvoaçar dos cabelos da oponente.
Sakura esperou o ataque de Zilah, que não tardou a vir. A feiticeira esquivou-se habilmente das investidas rápidas de sua rival, esperando uma brecha por onde pudesse contra-atacar. Não restava dúvidas de que Zilah era uma oponente perigosa. A mulher tinha uma grande agilidade e seu poder não podia ser subestimado.
A sacerdotisa levou as mãos a frente na tentativa de tocar Sakura, mas a jovem conseguiu escapar com um salto rápido e inesperado. Nem bem tornou a pisar no chão, a feiticeira invocou o poder da Espada. Virou-se para sua oponente e golpeou forte e seguidamente. Os papéis tinham se invertido, e agora era Zilah quem se esforçava para escapar das sucessivas investidas de Sakura.
Zilah parecia encontrar dificuldades para se esquivar dos golpes precisos desferidos pela feiticeira. A Espada dançava graciosamente nas mãos de Sakura, desenhando arcos abertos e curvas fechadas, traçando retas ascendentes e descendentes que se mesclavam num bailado ao mesmo tempo belo e insano. Não demorou muito e a guerreira rival foi atingida na perna. Cambaleou, vacilou e caiu desajeitadamente sobre a terra, perdendo segundos preciosos e decisivos.
Sakura avançou sobre sua oponente de forma ameaçadora. Ergueu a espada, pronta para golpear a guerreira, mas no último instante hesitou. Sua coragem era grande, mas sua compaixão também. A bondade no coração da jovem falou mais alto que a razão em sua mente, parando-a a centímetros de distância de sua oponente. E ali, diante do momento decisivo da disputa, Sakura não teve coragem de matar Zilah.
Era a única oportunidade que a sacerdotisa precisava. Recompondo-se rapidamente, Zilah ergueu-se do chão como um pássaro e se elevou aos céus. Só por um instante. Então, como um cometa, iniciou uma descida frenética na direção da jovem feiticeira, olhos vidrados e mãos estendidas.
Sakura fechou os olhos, esperando por um golpe que nunca veio. Instantes antes de ser atingida algo fez Zilah parar. Ouviu-se um grito agudo e macabro. A bruxa não percebera a presença de Patrick, que investira com sua espada e acabara por decepar a sua mão direita.
"Não hesite, Sakura!" bradou Patrick. "Uma hesitação como essa pode custar sua vida."
Sakura concordou e recuou, ainda atordoada pela visão de Zilah gritando de dor, mas sua atenção logo foi capturada por Kirsten.
"Preciso de cobertura." ela sussurrou. "Siga-me."
Sakura foi atrás da companheira e não demorou a notar que Shaoran seguia Patrick. Ambos pararam em um local um pouco mais afastado e olharam para os dois jovens.
"Ouçam com atenção." pediu Patrick. "Vamos abrir novamente a passagem para a Passarela, mas nesse meio tempo ficaremos totalmente vulneráveis. Precisamos que vocês nos dêem cobertura durante todo o tempo, pois uma única distração pode arruinar todo o ritual."
Shaoran e Sakura concordaram imediatamente e tomaram posição. Ao longe, Zilah mirava Patrick com uma expressão de extrema fúria. Mas não foi dela que partiu o primeiro ataque contra o Cavaleiro. Christian se aproximou, cantarolando algo com sua voz irritante e mantendo seu sorriso demente nos lábios, revelando seus dentes em desalinho. O bruxo ergueu as mãos e um novo enxame de zumbis se levantou do solo e passou a infestar o campo.
"De novo não!" pensou Shaoran, cuja espada bailava por entre os corpos apodrecidos com a graça de uma serpente que dá o bote em sua presa.
O cenário em nada lembrava a campina verdejante de minutos atrás. O fogo já queimara boa parte da relva e o que restara era brutalmente pisoteado naquela batalha feroz, fazendo com que lentamente aquele lugar que antes transmitira tanta harmonia adquirisse um aspecto tão medonho quanto o dos zumbis que maculavam aquele solo.
A batalha prosseguia, insana e caótica, exaurindo as forças de todos. Por fim o portal foi aberto, trazendo uma grande onda de alívio para os dois Guerreiros do Tempo.
"Entrem todos!" eles gritaram o mesmo tempo. "Sakura! Shaoran! Entrem!"
Os dois jovens fizeram o que lhes fora pedido. Desviando-se da maré de zumbis eles se aproximaram da passagem de luz e a atravessaram. Depois deles, mais ninguém.
Zilah concentrara sua raiva e seu ódio em um ataque fulminante contra Patrick, que acabou tendo que desviar energia do portal para conter a fúria da bruxa. A luz da passagem vacilou e se perdeu em meio ao caos do descampado, emoldurado pelos gritos histéricos de Zilah, que proferia um onda de amargos palavrões contra o Cavaleiro do Tempo.
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Sakura e Shaoran atravessaram o portal rapidamente, apressados pelas vozes de Kirsten e Patrick. Sua surpresa não poderia ter sido maior quando, logo após deixarem a luz ofuscante do portal, a passagem se fechou às suas costas.
"Mas que droga!" exclamou Shaoran. Olharam ao redor: estavam de volta à Passarela do Tempo, com sua trilha que seguia a perder de vista. "Não gosto disso. O que aconteceu?"
"Não sei." respondeu Sakura, olhando para todos os cantos. "Mas também não gosto disso. Era para estarmos todos aqui, não só nós dois..."
"Não podemos voltar para o campo, não sabemos o caminho certo." Shaoran pensou em voz alta. "Estou com um mal pressentimento. Tem alguém aqui."
Sakura acenou a cabeça confirmando. Ambos podiam sentir uma energia incomum por todo aquele lugar, mas não havia qualquer sinal de vida por perto. Concentraram-se, buscando encontrar alguma pista que lhes indicasse a identidade daquela presença tão curiosa.
Não precisaram buscar muito. Logo Shaoran avistou um vulto ao longe, escondido pelas sombras que envolviam o local. Aquela visão não era de todo estranha e uma sensação de familiaridade passou por sua mente.
"O sonho em Jerusalém." ele pensou.
Sacou sua espada rapidamente e entrou em guarda, acompanhado de Sakura. Nenhum dos dois se mexeu, não foi necessário, pois a estranha figura logo passou a se mover em sua direção.
"Não precisam ser tão hostis comigo." falou uma voz melodiosa, grave e aveludada. Um ser alto e de aparência imponente se revelou. Tinha os longos cabelos escuros soltos e seus olhos, tão negros quanto o ébano, tinham um forte brilho. Trazia um sorriso nos lábios e um pequenino corvo nos ombros. A dupla de jovens o encarou profundamente, esperando que o estranho se identificasse, mas para sua surpresa não foi o homem quem falou e sim o corvo que o acompanhava.
"Eu sou Hanz von Kasa, Guardião da Passarela a seu dispor." e o homem fez uma reverência exagerada, voltando a se erguer logo em seguida.
"Guardião da Passarela?" indagou Shaoran, desconfiado. O homem confirmou e o corvo tornou a abrir o bico.
"Por favor, não me olhe assim, seu olhar me magoa, meu jovem!" Shaoran permaneceu impassível.
"Guardião? Quem em sã consciência nomearia um corvo como Guardião?" ele alfinetou.
"Corvo?" o animal pareceu confuso por um instante. Então os olhos do homem se arregalaram e o corvo soltou uma gargalhada, como se houvesse acabado de ouvir uma ótima piada. "Perdoe-me, mas eu me esqueci desse detalhe! O corvo é apenas um instrumento que uso para falar. Como pode ver, meu rapaz, eu sou mudo, e este corvo foi o único método que eu encontrei de me comunicar com o mundo."
Sakura e Shaoran se olharam, um tanto confusos e espantados. De fato, era a primeira vez que se deparavam com um caso parecido, mesmo após tantos anos lidando com o mundo da magia. O pensamento que correu pela cabeça de Shaoran foi inevitável:
"Essa Jornada está sendo mais imprevisível e reveladora do que eu imaginei... Impressionante os tipos que a gente encontra por aí..."
Mal o pensamento deixara sua mente, uma forte dor lhe tomou o peito. Shaoran não podia imaginar que aquilo pudesse acontecer em momento mais inoportuno e a única coisa que passou pela sua cabeça foi o desejo de fazer aquilo parar.
Sakura se abaixou para tentar ajudar, mas não foi a única. Hanz também se curvou sobre Shaoran, virando sua cabeça para trás e colocando a mão sobre sua testa. Nada aconteceu e ele pareceu momentaneamente perdido ao constatar que o jovem continuava se contorcendo em espasmos violentos.
"Temos que ajudá-lo!" exclamou Sakura.
"Não se preocupe." replicou Hanz, e sua voz adquiriu um tom sombrio. "A dor dele já vai acabar."
Sakura quase não teve tempo de reagir ao que viu. Rapidamente a mão direita do homem se ergueu e ela viu sua garras descerem ameaçadora e rapidamente de encontro ao coração do rapaz.
A proteção do Escudo quase não pôde ser invocada a tempo. Sakura empurrou Hanz para longe do corpo de Shaoran.
"Fique longe dele!" ela berrou, colocando-se entre os dois.
Hanz a olhou diabolicamente. Sua voz já não tinha mais o tom aveludado e naquele momento soava como uma sinfonia sinistra e demente.
"Não me atrapalhe, minha jovem. Será um esforço em vão."
Mas Sakura não se moveu um centímetro sequer e Hanz tampouco esperou que ela o fizesse. Em poucos segundo os dois haviam mergulhado em uma batalha feroz.
Logo ao lado, Shaoran sentia como se braços invisíveis o puxassem de encontro a algo. Não eram braços hostis, mas muito persistentes. O rosto de Sakura apareceu, sorridente, chamando-o de volta para casa. Por um momento ele hesitou, mas a razão falou mais alto.
"Não posso." ele disse em seu delírio. "Tenho uma missão a cumprir aqui e até que tenha terminado meu dever, não posso voltar. Me perdoe."
Mas a voz continuava, insistente e tentadora, atormentando sua alma e sua mente. Ele tentou se livrar daquilo, em vão. Por fim, quando sua resistência já estava no limite, ele novamente se voltou para a voz que o chamava.
"Me perdoe, mas não posso. Eu não vou, não ainda." ele murmurou, mas nada pareceu fazer efeito, então sua paciência se esgotou. "Já disse que não vou!"
Seu grito pareceu libertá-lo dos braços que o prendiam. Levantou-se a tempo de ver Sakura ser atingida nas costas e cair sobre a passarela, atordoada. O estado da garota era lamentável. Ferimentos e cortes profundos marcavam seu corpo esbelto e ela parecia não suportar mais a dor. Shaoran fitou Hanz com seus olhos castanhos, a raiva transbordando sua alma.
"Maldito seja." ele falou entre os dentes. "Não vou perdoá-lo por machucar Sakura. Nunca!"
Shaoran avançou pesadamente contra o homem, atacando com sua espada com uma ferocidade fora do normal. Hanz apenas ria do esforço do jovem.
"Poupe seu fôlego, rapaz. Logo todos vocês morrerão, de que vale afinal postergar o inevitável? Seria apenas um alívio rápido, passageiro e fugaz; um ópio que em breve perderia o efeito."
"Mortos? Não, não pretendo morrer ainda." retruco o rapaz, cínico.
"Este é o destino de todos que habitam este mundo insignificante. Logo a gloriosa Amanda abrirá a passagem para Tenebras e se tornará uma Deusa. Nenhum de vocês pode lutar contra ela."
Shaoran piscou por alguns segundos.
"Amanda? Deusa?" ele murmurou para si mesmo. Foi o erro que bastou para que Hanz o atingisse fortemente na cabeça. Cambaleante, o rapaz sentiu-se desfalecer sobre o chão. Ainda tonto viu Hanz se aproximar de Sakura, que permanecia caída.
"Sim. A gloriosa Amanda se tornará uma Deusa formidável. Vamos acabar com a princesa primeiro e pegar as famosas Cartas. Depois poderemos ter o príncipe encantado." ele murmurou sadicamente, levando as mãos ao pescoço de Sakura. Shaoran desesperou-se ao ver a cena, porém suas pernas não respondiam ao seu comando.
O medo e a angústia começaram a brotar em seu coração e tomar toda sua alma. Não poderia suportar a idéia de ver Sakura morta. Não suportaria vê-la morrer daquela forma.
"O que eu posso fazer?" ele perguntou a si mesmo. "Ele é forte demais, até mesmo para mim. Não posso vencer esse demônio..."
A resposta não tardou a vir. Sua mente retornou alguns anos antes, relembrando o árduo treinamento pela qual passara, e a voz de um dos anciãos soou forte em sua cabeça.
"Lutamos contra as Forças das Trevas, rapaz, e de vez em quando temos que agir como elas para proteger esse mundo do Mal."
"Agir como elas." ele pensou, e foi a vez da voz de seu pai soar em sua cabeça, forte e austera como somente o patriarca de sua família podia falar:
"Pare de duvidar de si, meu filho! Já é hora de parar de ser um cãozinho domesticado para se tornar o Lobo que você nasceu para ser. Deixe sair o Lobo que habita a sua alma!"
"O Lobo que habita minha alma." Shaoran murmurou, e naquele momento ele soube o que tinha que fazer.
Esticou a mão e agarrou fortemente o punho da espada, trazendo-a para junto de si.
"O Lobo dentro de mim, acorde. Escute minha voz e atenda o meu chamado. Eu clamo a sua força, sua ferocidade e seu poder. Faça-me triunfar sobre meu adversário."
Foi como se Shaoran tivesse mergulhado em um balde de gelo. Suas pupilas dilataram e sua visão ficou turva e desfocada. Ele sentiu todos os músculos de seu corpo se contraírem em suaves espasmos ao mesmo tempo em que forçava-se a ficar em pé. A primeira coisa que conseguiu discernir foi a visão de Sakura sendo estrangulada brutalmente por Hanz. A cena fez brotar em seu interior um forte sentimento de proteção pela garota. Não perdoaria aquele demônio por tê-la ferido daquela forma.
"Vou matar você!" ele rosnou entre os dentes. Shaoran se lançou na direção de Hanz com um uivo alto e agudo, como um lobo no comando de sua matilha. O homem olhou para o rapaz e surpreendeu-se com o que viu. Ali, diante dele, não havia mais o jovem guerreiro que enfrentara momentos antes, mas sim um Lobo feroz e sedento de sangue.
Hanz se afastou de Sakura, mas já era tarde demais. Antes que pudesse sequer pensar em fazer algo ele sentiu a espada de Shaoran decepar seus braços. Seu grito de dor ficou preso em sua garganta, pois no momento seguinte o guerreiro já havia cortado sua cabeça. Mas Shaoran não parou e continuou a investir contra o corpo sem vida de Hanz. Golpeou uma, duas, várias vezes; continuou golpeando muito tempo após o demônio já estar morto. Logo, não havia nada mais além de um amontoado disforme de carne envolta em uma grande poça de sangue.
Shaoran uivou novamente, regozijando-se com a vitória. Ergueu os olhos e contemplou o Abismo... E o Abismo olhou de volta para ele. Havia clamado pelo lado sombrio de seus poderes e havia sido atendido.
Arfando, seus olhos vislumbraram Sakura, e somente então a razão pareceu voltar à sua mente. Sua visão voltou ao normal e ele sentiu-se subitamente enjoado. Suas pernas começaram a tremer e ele foi de encontro ao chão. Não acreditava que havia feito tudo aquilo, não acreditava que aquela obra macabra havia sido fruto de suas mãos.
"Sakura!" ele exclamou, erguendo-se e correndo na direção da garota. Shaoran a tomou em seus braços e a abraçou forte. "Como você está?"
"Vou ficar bem." ela sussurrou fracamente, livrando-se dos braços do rapaz. Olhou para o lado, parecendo ligeiramente incomodada com a visão deformada de Hanz. "Como você fez isso?"
"Não sei." ele respondeu. "Mas quando eu vi ele te estrangulando um grande desespero tomou conta da minha mente. Tudo o que eu queria era te proteger..."
Olharam-se novamente, e seus olhares carregavam ternura e carinho. Sakura sentiu os braços de Shaoran envolverem-na uma vez mais e não fez objeção. Então, movidos pela profunda saudade que sentiam um do outro, seus lábio se encontraram em uma carícia suave e carregada de sentimento. Sakura sentia como se pela primeira vez em anos pudesse ser feliz novamente.
Entretanto, logo Shaoran a empurrou bruscamente. A garota o olhou, confusa e decepcionada, mas não teve tempo para nada. Uma nova onda de dor e angústia tornou a atormentar o jovem e dessa vez era como se estivesse sendo rasgado ao meio por mãos impiedosas e cruéis. O rapaz deixou escapar um grito forte e carregado, contorcendo-se involuntariamente.
Sakura não sabia fazer, tampouco teve tempo de pensar em algo. No instante seguinte todo o chão estremeceu. O solo se rompeu e colunas negras como o ébano se ergueram em direção às alturas. Tudo havia se transformado em um caos. Shaoran ainda tentou fazer algo, mas seu corpo não respondia aos seus comandos. Tudo que sentiu antes de ser engolfado pela escuridão foi a forte dor queimando-lhe o peito.
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Nome: Kirsten van der Veen
País de Origem: Holanda
Idade: 23 anos
Data de Nascimento: 04 de Março de 1983
Tipo Sanguíneo: AB+
Posto: Amazona Veterana e Terceira Sacerdotisa da Sagrada Ordem dos Dragões do Tempo.
Passatempo: Ler e praticar com sua espada.
Ficha Pessoal: Kirsten nasceu em Roterdã, na Holanda, mas mudou-se para Londres aos dois anos. Lá conheceu a família de Eriol, que acabou tornando-se seu melhor e mais querido amigo.
Kirsten foi criada rigidamente, preparada desde cedo para assumir o cargo de sacerdotisa na Ordem dos Dragões do Tempo, a exemplo dos seus pais, membros influentes e conceituados. Entretanto, a dúvida sobre sua capacidade sempre a dominava, cabendo a Eriol tranqüilizar seu coração com suas palavras sempre suaves e carregadas de ternura. Isso terminou por tocar o coração da jovem, que acabou se apaixonando pelo rapaz.
Aos 18 anos foi submetida a um rigoroso teste perante os Dragões, sendo aprovada com louvor e imediatamente iniciando sua carreira na Ordem, sempre apoiada por seus pais, orgulhosos da filha. Os anos acabaram por fazê-la amadurecer e carregaram a insegurança que havia em seu coração, deixando somente sua personalidade doce e carismática.
Apesar de jovem, Kirsten já participou de inúmeras missões para seus superiores, mas a Jornada com Shaoran está sendo a maior e mais importante tarefa jamais concedida a ela.
Grande apreciadora das artes marciais, um dos passatempos favoritos de Kirsten é praticar com sua espada nos grandes salões do Castelo do Tempo. Ela também é uma fã fervorosa da literatura e sempre que pode está com um livro debaixo do braço.
Longe de seu cargo dentro da ordem, Kirsten estuda Direito em Bristol, fazendo o máximo para conciliar os estudos com suas obrigações como guerreira e sacerdotisa.
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Aqui termina mais este capítulo de Chrono. Espero sinceramente que todos tenham gostado. Sei que foi um capítulo pesado e, sobretudo, violento, mas como eu disse nas notas iniciais, esta não é uma história para crianças.
Hanz acaba por revelar o verdadeiro objetivo de Amanda Kasperhouser: abrir a passagem para o mundo de Tenebras para ela própria tornar-se uma divindade demoníaca. Tanto poder em uma mente tão insana. Dificuldades aguardam nossos heróis.
No próximo capítulo, Shaoran acorda e se vê perdido em meio a uma grande escuridão. Onde o jovem guerreiro foi parar? A resposta a esta pergunta será respondida somente no capítulo que está por vir. Não percam! A seguir: "Aquele Que Veio Antes do Tempo".
Gostaria de dedicar este capítulo a nossa aniversariante da semana. Stella, minha amiga, parabéns. Feliz aniversário. Apesar de nos conhecermos a relativamente pouco tempo, tenho uma grande consideração por você. Seja sempre essa pessoa vivaz e alegre. Jamais deixe de sorrir. Te adoro.
Bem, por hoje é só. Fico aguardando reviews, ok?
Peace, Love and Hope to all and each one of you. Now and Forever.
Felipe S. Kai