Atos de Vingança

Capítulo 10

Selene estava em seus aposentos perdida em pensamentos. Enquanto se banhava pensava no quanto sua vida era injusta. No quanto a fortuna lhe virou as costas. Mas parte da culpa fora dela. Não havia o menor motivo para ter feito o que fez há mais de vinte anos.

Se bem que, no fim das contas, ela não fizera nada demais. Simplesmente seguiu à risca a regra imposta às amazonas. E graças a isso perdeu a chance de alterar a história. Se tivesse sido mais firme, se não tivesse se rendido aos anseios de seu coração, de seu corpo.

- Selene, Amazona Dourada de Câncer – ela murmura em meio a um mundo de espuma e essências.- Unf, que tola eu fui...

- Seu nome não era Helena?

- Hã?

Um homem vestindo uma túnica púrpura sobre uma armadura vermelha está sentado na cama brincando com a tiara de Selene. Seus olhos possuem uma curiosa cor cinza, cabelos dourados pendem em cachos de sua cabeça. Ao vê-lo Selene se protege com a espuma afundando ainda mais na água.

- O que está fazendo aqui, Thallas?

- Unnnnnffffff...- ele deita – Não foi para admirar seu corpo nu, tenha certeza disso.

- Folgo em sabê-lo. – ela deixa apenas a cabeça fora d'água- Mas o que é tão importante para que invada meus aposentos desse jeito?

- Manticore caiu. – ele fala sem emoção.

- Já são dois cães que se vão – murmura – E qual o problema? Servos não faltam às deusas.

- Não é por isso que devemos desperdiçá-los. As Senhoras estão impacientes.

Pegando uma toalha ela sai da imensa banheira e se dirige a um adendo do cômodo para se trocar.

- Elas...ou você? – Selene pergunta com uma pitada de ironia.

- Porque diz isso?

- Nêmesis e as Erínias são pacientes ao extremo, jamais manifestaram nada que lembrasse o sentimento de urgência no desempenhar de seus papéis. Já você...

- Feh...Culpado. – ele sorri- Não nego que estou subindo pelas paredes com a excitação da batalha. Sou um homem paciente mas já são anos de espera.

Selene sai do anexo vestindo sua armadura prateada. Thallas, se levantando, lhe entrega a tiara.

- Obrigada. – ela diz colocando o acessório – Mas me responda...vocês deveriam apenas investir contra Athena e os de bronze no máximo não contra os cavaleiros de ouro, certo?

- Eu sei, mas Andros e Lisandro não pensavam assim.

- Lisandro?

- Aquele que tomou para si a função de treinar os cavaleiros negros e morreu no Templo de Posseidon.

- Ah. Não foi grande perda não é? – ela veste sua túnica branca sobre a armadura.

- Sim e não. A morte deles deixou os cavaleiros negros apreensivos.

- Não nos preocupemos com isso. Eles são dispensáveis.

- Estou mais preocupado com...

Antes que Thallas pronuncie o resto da frase quatro vozes retumbam por toda a extensão do templo.

"É chegado o momento."

"Venham a nós..."

"humildes servos..."

"... VEJAM A FACE DE VOSSAS MESTRAS!"

- Sua espera acabou. – Selene diz para Thallas

- Finalmente...- ele sorri

Por toda a extensão do lugar, cavaleiros atendem ao chamado das Deusas da Vingança. Exceto em um dos salões, onde Eurus e Notus ainda medem forças.

Os irredutíveis guerreiros não se moveram um único milímetro. Se fossem Cavaleiros de Ouro, poder-se-ia dizer que começaram uma luta de mil dias.

- Até quando vão ficar com essa palhaçada?

Um homem alto com um vasto bigode branco, curtos e ondulados cabelos grisalhos entra no salão. Seu cosmo chega ao cúmulo de congelar o próprio ar, fazendo com que o ciclone formado por Filipe e Nicomedes se torne uma diáfana escultura cristalina no centro da sala.

Seu nome é Máximus de Bóreas, o Guerreiro do Vento Norte. É indiscutivelmente o mais forte e o menos paciente dos quatro. Sua entrada fez com que Notus e Eurus cessassem imediatamente as hostilidades e se preparassem para uma dura e violenta reprimenda.

- Bó...- Notus começa

- NEM TENTE SE JUSTIFICAR, NICOMEDES! – Notus é arremessado de encontro ao ciclone congelado - SEI MUITO BEM O MOTIVO DESSA BRIGA DE COMADRES! E CONCORDO EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU COM AS OPINIÕES DE EURUS!

Euros não consegue evitar um ligeiro sorriso, percebido por Bóreas.

- O QUE NÃO SIGNIFICA QUE VOCÊ TENHA DE TENTAR ENFIAR JUÍZO NESSE PALERMA DEBAIXO DE PORRADA! – agora é a vez de Eurus ser atingido no rosto.

- Máximus, isso não é necessário... – dizem os dois juntos erguendo-se com dificuldade

- TEM RAZÃO, NÃO É NECESSÁRIO! NÃO TEMOS TEMPO PARA BRINCADEIRAS INFANTIS. AS DEUSAS NÃO NOS TROUXERAM DE VOLTA PARA LUTARMOS ENTRE NÓS, E QUE ELAS OS PROTEJAM SE OS VIR SE ENFRENTANDO DE NOVO!

Dizendo isso ele se retira, Eurus e Notus o acompanham satisfeitos por ele não ter sido tão violento como costuma ser ao intervir nesse tipo de assunto.

Os corredores estão apinhados de soldados que abandonaram seus afazeres para atender a convocação. É quase impossível identificar alguém na multidão.

- Você, venha cá –diz Notus a um cavaleiro.

ooooo

Máscara da Morte abre os olhos, seu corpo machucado dói e arde em contato com a nojenta crosta que recobre o chão. Uma rica fauna brinca entre suas feridas. Ele sorri levemente, conseguira se soltar. Tudo o que lhe resta agora é abrir a porta da cela.

Ao tentar se colocar de joelhos percebe que não se livrou completamente das pesadas correntes. Elas romperam-se na metade de seu comprimento, ele ainda tem um metro e meio delas preso a cada grilhão. Quanto tempo desmaiara dessa vez?

Não há tempo suficiente para pensar nisso, há alguém próximo à porta. Antes que ele possa terminar de se por de pé ela se abre devagar. Será que finalmente decidiram eliminá-lo?

Na fraca contra luz ele divisa o corpo de um homem. Não é nenhum dos ventos.

- Um capanga? Mandaram um capanga me matar?A mim que já derrubei deuses? – ele pensa- Tolos! Fraco ou não ainda sou Máscara de Morte de Câncer, um Cavaleiro de Ouro! Alguém a ser temido e respeitado!

O guerreiro espera alguns segundos para que sua visão se acostume à escuridão da cela antes de entrar para cumprir seu serviço. São os últimos segundos de sua vida.

Imprimindo a maior força possível aos seus braços Câncer lança as correntes ao encontro do pescoço do homem que desaba no chão com as vértebras partidas. Sem nem ao menos olhar para sua vítima o dourado sai em direção à liberdade. A luz das tochas incomoda seus olhos, as pernas se recusam a obedecer direito. Seus pés deixam um rastro de sujeira por onde passam.

Máscara não tinha a mínima idéia de onde estava e agora o tem menos ainda. A ausência de janelas, e até mesmo de correntes de ar tornam difícil sua movimentação. Investigando cuidadosamente cada alcova por onde passa ele encontra retira puído manto vermelho de uma imagem de Ares recobrindo seu corpo com ele.

Em uma das alcovas ele encontra um danificado espelho de prata e nele vê sua face refletida: a barba e os cabelos estão enormes e desgrenhados, a quantidade de sujeira é tal que os fios tem um tom esverdeado de mofo, os olhos são fundos e pálidos, seus lábios estão ressecados e partidos, pústulas recobrem sua pele, as unhas fariam Afrodite cometer suicídio se estivessem nas mãos dele, já vira ursos com garras menores.

A exploração continua. Em um corredor ladeado de imensas colunas dóricas ele houve os primeiros sinais de vida. Alguém se aproxima, seus enfraquecidos sentidos não conseguem precisar de onde. Para evitar ser pego Máscara da Morte se esconde de cócoras em uma grande fissura de uma das colunas.

São dois cavaleiros negros, ele não consegue reconhecer suas armaduras. Os cavaleiros parecem excitados com alguma coisa, de seu esconderijo ele não consegue ouvir direito. Se estivesse com o corpo são nem faria questão da armadura simplesmente os mataria com as mãos nuas, agora ele não precisa apenas de sua proteção, mas de uma escolta.

Cling!

Não conseguira ficar naquela posição desconfortável por muito tempo, ao se mexer as correntes acabaram se chocando e chamando a atenção dos inimigos.

- Hm? Ouviu alguma coisa?

- Nada - Responde o outro dando a volta na coluna e sinalizando para que o primeiro espere.

Quando o cavaleiro negro o vê Máscara o empurra e corre para fora do esconderijo. O segundo, surpreso com a sua aparição, não o ataca. Já o defensor de Athena não perde tempo e arrisca. Seu dedo brilha e apaga como uma lâmpada queimada, seu estômago faz revoluções que deixariam a esquadrilha da fumaça com inveja.

Golfando surpreso, Máscara da Morte observa a poça de bílis formada à sua frente. Seu estado está tão lastimável que não fora capaz nem de lançar as Ondas do Inferno.

- Unf...quem é o animal? – diz o primeiro que parece usar a armadura do Corvo

- Seja quem for vai morrer. – responde o segundo, que parece ser o Mosca, chutando Máscara da Morte.

Sua fuga estaria fadada ao fracasso se não fosse os imensos orgulho e ódio que borbulham em sua alma. Quase dois anos de torturas e humilhações, ele até relevaria se aquela cópia barata tivesse sido seu torturador, o canalha era forte, mas Nicomedes? E agora ter uma morte ignóbil nas mãos de Cavaleiros Negros?

- NUNCA!

Máscara da Morte grita e lança as correntes contra as pernas do agressor derrubando-o no chão, após o que pega uma pontiaguda pedra e crava em sua barriga desprotegida.

- Argh!

Corvo lança seu cosmo contra ele mas o dourado esquiva. Batendo as correntes uma contra a outra faz com que elas se trancem e com elas acerta o rosto do inimigo.

- Beu dariz! Biserábel! O gue bocê acha gue bode bazer bom esa goguente ?

Jogando-se com temeridade sobre os cavaleiros negros ele os pega de surpresa, eles rolam pelo chão repleto de escombros trocando golpes. A adrenalina permite que o guardião da quarta casa ignore a dor de seus ferimentos e lute.

Só com muita boa vontade esses dois seriam capazes de se comparar a um cavaleiro de bronze no quesito habilidade, embora, seu cosmo alcance brincando o nível da prata. A inexperiência os deixa à mercê de um sanguinário e desesperado Cavaleiro de Ouro.

Embolado com um deles cai por sobre um altar derrubando artefatos de valor histórico inestimável. O adversário monta sobre seu corpo e o soca repetidamente.

Perfeitamente ciente de suas condições, ele agarra uma antiga travessa de ouro cheia de coisas mofadas que em alguma era longínqua devem ter sido oferendas para os deuses e o golpeia na cabeça invertendo posições, mas ainda assim o guerreiro lhe segura o pescoço pronto para partí-lo. Máscara o acerta na garganta com a travessa na tentativa de se soltar mas a armadura do homem atrapalha.

- Palerma, acha que só com essa força romperá minha armadura antes que eu lhe remodele a coluna? – diz Mosca Negro

Nos últimos anos Máscara da Morte fora forçado a conter sua força.

Thud!

A controlar seus instintos para novamente se provar digno de servir Athena. Os adversários mortos nessa missão foram fatalidades, não prazer.

Thud!

Mas agora, ahhh...agora. Dane-se Athena e suas ordens estúpidas!

Thud!

Que se foda sua armadura que o abandonou por considerá-lo indigno!

Thud!

Pro inferno com as regras de conduta e a moral dos cavaleiros!

Thud!

Com corpo extenuado pelas torturas, o ego ferido pelas humilhações, e o cosmo reduzido a zero tudo que lhe resta é violência, a mais pura e irracional violência. Só uma idéia reverbera em sua mente: matar seus adversários.

- MORRAAAA!

Schruncht!

- Feh...hehehehe – Máscara da Morte passa as mãos ensangüentadas pelos cabelos e ri o riso insano daqueles que viram a morte de perto várias vezes – hehehehahahahahahaha...!

- Biserábel! – o segundo guerreiro avança sobre ele mas Máscara o derruba com a corrente sem nem ao menos olhar para trás.

- Ser ou não ser... – erguendo a cabeça ensangüentada do Mosca ele observa o outro por cima dos ombros com um olhar desvairado –...eis a questão...heheheAHAHAHAAHAHAHAHAA...!

- Guéus! Bocê...bocê é douco!

- Apesar de considerá-los moscas-mortas indignos de consideração, creio que vou recomeçar minha coleção de troféus com as suas cabeças.

Assustado o homem dispara no sentido contrário mas é derrubado pela cabeça de seualiado que fora lançada contra suas pernas.

- Dão...dão...dãurck!

- Agora vou mostrar pra você o que eu posso fazer com essa corrente ridícula. – ele fala no ouvido do cavaleiro enquanto aperta a corrente contra sua traquéia.

- Bi...biedade...

- Se eu tivesse certeza que está implorando piedade por ter um plano, ainda que desesperado e fadado ao fracasso, como eu fiz no passado, até lhe daria chance de executá-lo, só por curiosidade. Mas sua covardia me enoja.

- Bor baboooooorrr...

O sangue quente de sua vítima recém-executada e as lágrimas do covarde guerreiro à sua frente lhe deram mais vigor do que jamais alcançaria com um ano de sono. Hoje, agora, ele é mais uma vez Máscara da Morte de Câncer, o temido e terrível guardião da quarta morada do zodíaco.

- Onde eu posso encontrar a minha armadura? E a saída? Diga e serei misericordioso. – ele fala saboreando o efeito que cada sílaba tem no inimigo.

- Nos níbeis inberiores debendo aguela isgada. – o homem aponta.- há a obicina onde borjam nossas agmaduas. Nho jalão im brente à unha bassagem à esguerda gue leba bra bora...

- Obrigado – Câncer força as correntes. – e adeus.

- Bo...borra! Eu de gontei!

- E teria me matado se seu permitisse, e pode muito bem ter me enviado para um beco sem saída, alojamento de soldados, um fosso de crocodilos ou qualquer coisa que o valha...

- Bas...bas...

- ...como também poderia pedir ajuda assim que eu o deixasse sozinho, afinal, apesar de ter sido vencido e estar se borrando todo não significa que a sua coragem não vá voltar, não é?

Sem mais delongas Câncer força as correntes tirando sangue do pescoço do homem.

- Bocê...disse gue deria biserigórdiaarrrgh...- diz Corvo Negro numa última tentativa.

- Estou tendo – ele gira o corpo modo que o homem possa encará-lo enquanto sufoca até a morte – Só arrancarei sua cabeça depois que estiver morto. Morra rápido, sim? – conclui com um sorriso doce.

Continua...


Peço perdão pela sanguinolência desse capítulo, mas não pude deixar de imaginar que Máscara da Morte numa situação limite como essa se tornaria uma criatura extremamente violenta.