Quem de Nós Dois

Fic por Ly Anne Black

Do outro lá da janela havia o mundo. O mundo estava nublado e chuvoso, o céu com poucas estrelas, a lua crescente, em seu último dia, brilhava como uma grande esfera de maus presságios, principalmente para Remus Lupin. Aquele mês passara depressa demais. Quando pensara que ainda faltava muito tempo até a próxima temporada no inferno, lá estava ele, batendo a sua porta.

Remus deixou a água esquentando e deu a volta na bancada que separava sua sala da sua cozinha. A lua cintilou para os seus olhos, quase completamente redonda - na noite seguinte seria uma esfera perfeita. Ele sabia que podia fechar janelas e cortinas, meter-se em seu quarto debaixo de mil cobertas, e ainda assim o doloroso brilho do astro o perseguiria no mais profundo de suas consciência.

Já podia sentir o animal rugindo dentro de seu peito, ansioso para se libertar. Remus nõ tinha qualquer controle sobre o monstro, enquanto este tomava o lugar de sua humanidade pouco a pouco.

Ele largou-se deprimido no sofá, como sempre ficava nas ocasiões. O olhar correu rápido das prateleiras abarrotadas de livros de todos os calibres. Ao redor tapete, poucos móveis, um sufocante ar de solidão. Quanto mais ele se dava conta de que a sua casa estava vazia e sem alma, mais seu coração o avisava de quem era uma única pessoa a capaz de encher de brilho, alegria e sorrisos a sua solitária existência, mas que isso era improvável, impossível, e completamente fora dos padrões morais e sócias aos quais muito prezava

A campanhia tocou, interrompendo seu ciclo de auto-comiseração.

Eu e você

Não é assim tão complicado,

Não é difícil perceber

Quem de nós dois

Vai dizer que é impossível o amor acontecer?

Poderia ser a vizinha do lado, pedindo ajudas inconvenientes para cuidar da tia doente, poderia ser o síndico para avisar de alguma nova tacha abusiva e poderia ser alguém da Ordem para verificar se estava vivo e bem.

Só não imaginara que fosse ela.

Seu aspecto destoava completamente de todo o entorno velho, acabado e mofado do corredor. Vestia camiseta preta e jeans no corpo quase magro demais. O cabelo azul turquesa florescente, o nariz pequeno e reto, a pele alva uma sandália de dedo e um embrulho nas mãos. Doce e adorável...

- Nymphadora. – foi tudo que pode murmurar, surpreso.

Ela fez uma careta de desagrado.

- Remus, quantas vezes preciso falar que...

- Que é que você está fazendo aqui? – ela imediatamente ergueu uma sobrancelha. – Quero dizer, eu não esperava que você aparecesse sem avisar.

Tonks abriu um sorriso que o desarmou de imediato. Sem ar, ele deu espaço, o nervoso imediatamente tomando-o. Tinha consciência de que sua casa estava longe de ser um lugar agradável para alguém como ela.

- Desculpe a bagunça. Eu não tive... eu não sabia...

Tonks olhou da estante de livros bem alinhados de acordo com o tamanho em cada uma das prateleiras para os quadros perfeitamente retos da parede e tudo mais quase maniacamente arrumado e deu um sorriso.

- Não se preocupe, Remus. Você não sabe o que é bagunça.

O fato de que ela estivesse sorrido o fez relaxar um pouco. Temera ter sido grosseiro demais em sua surpresa.

- Aconteceu alguma coisa, quero dizer, para você estar aqui?

Ela estava analisando fotos nos porta-retratos em cima da sua lareira.

- Essa é sua mãe?

- Sim.

- E esse, seu pai? Ai, desculpa! – ela bateu a mão no objeto que quase foi ao chão.

Ele observou a graciosa nuca da garota, que o cabelo curto deixava entrever.

- Nimphadora...

- Tonks, Remus, pelo amor de Merlin! – mas ao encará-lo, ela sorriu. Como olhar para Remus Lupin e não sorrir, se perguntou. Ele conseguia ter aquela postura disciplinar mesmo vestido numa calça de flanela e com o cabelo desalinhado... – Vim trazer sua poção... – mostrou o pacote. Agora que o encarava, ele via que ela não estava menos nervosa. – e ver você, se está bem...

- Eu estou bem. – ele se apressou em dizer. – Estou acostumado.

- Eu não sei como alguém pode se acostumar com isso – ela disse rápido cruzando a extensão da sala. – Eu não me acostumari... AI! – Gritou ao dar com a canela na quina da mesa de centro.

- Tonks! – Remus se aproximou correndo, com preocupação. – Você se machucou?

Mas ela sorria.

- Você me chamou de Tonks!

- Acho que sim... – admitiu. – Mas foi um acidente.

- Humpf. – ela fez outra careta.

Ele estava perto demais, quase a tocando, e quando os olhares se cruzaram, o sorriso dela foi substituído por um olhar perdido nas cores dos olhos dele, e Remus simplesmente não pode refrear seu olhar a correr nas feições muito delicadas na menina, até pousar em seus pequenos lábios.

Se eu disser que já não sinto nada

Que a estrada sem você é mais segura

Eu sei, você vai rir da minha cara

Eu já conheço o teu sorriso, li no teu olhar

Teu sorriso é só disfarce, que eu já nem preciso...

O tempo pareceu se arrastar até a próxima palavra dela.

- Snape ia trazer a poção, mas eu disse pra ele que eu mesmo podia vir, digo, eu achei que você preferia a mim do que ele, quero dizer, eu pensei que seria melhor eu... ele... anh...

- Obrigado. – Remus disse sorrindo, recuperando o controle e se afastando algum passos dela, que estava de faces coradas tanto quanto ele. O perfume delicado de Nymphadora tinha acabado de invadir seu sentido e provocar-lhe um arrepio.

Ela ficou meio sem jeito, olhando para os lados, até Remus se lembrar que era o anfitrião de forma que deveria portar-se como tal.

- Você quer beber alguma coisa, um café, um chá?

- Se você for beber comigo, acho que sim.

- Certo, eu vou fazer... é só um minuto.

- Ok, Remus.

Ele já ia se virar, mas o tom que Tonks usara para falar "Remus" fez uma coisa quente escorrer por dentro dele. "Ora, Remus Lupin, você não é mais nenhum adolescente!", falou para si mesmo, irritado. Mas o sorriso dela, bem ali na sua frente, perfeitamente inocente, não estava ajudando.

A essa altura, a água que pusera para ferver já tinha evaporado e ele teve de pôr outra. Tentou ficar de costas para ela enquanto isso, mas o perfume entrava por suas narinas e algo instintivo dentro dele estava em rebuliço em seu interior como uma fera faminta.

Tentar se lembrar de que Tonks ainda era Tonks, de que era sobrinha de seu melhor amigo, de que tinha praticamente a metade da sua idade... nada disso estava adiantando.

- Posso te ajudar?

- Claro... – disse sem pensar. Ela se precipitou para o armário. Mexeu em alguma coisa que fez barulho. Remus deu um pulo quando um barulho enorme sacudiu toda a sua casa junto a um grito de Tonks – ela tinha derrubado as panelas praticamente em cima de si.

- Droga! Droga! – exclamou, nervosa. – Desculpa por isso, Remus, foi mal, eu conserto num instante! – disse puxando a varinha do bolso de trás.

O coração dele estava batendo forte e ele não ligava a mínima para as panelas. – Você se machucou? Hein, Tonks, machucou alguma coisa?

- Eu... eu... – responder fora inteiramente difícil. Não tinha como evitar estar chocada com o tom de extrema preocupação que ele usara. As mãos de Remus estavam espalhando o toque quente em seus braços finos antes que ele percebesse, e os olhares tinham se cruzado novamente. Daquela vez, com ainda mais significado.

- Está tudo bem. – disse por fim, baixinho, sem conseguir tirar os olhos dele. – Estou bem.

Remus pôs, com um feitiço, a panelaria em seu devido lugar. Encheu as xícaras de água quente e serviu o chá de saquinho, acompanhado de uma lata de biscoito escocês, enquanto Tonks acompanhava suas ações com os olhos, visivelmente envergonhada.

Ambos sentaram um de cada lado da bancada, nos bancos altos de madeira.

- Como foi o dia lá na Ordem? - Ele a viu estender a mão para a xícara. – Cuidado, está quente.

- Eu não sou criança, Remus. – ela o encarou emburrada.

- Eu sei, Nymphadora.

- Não me chame disso!

- Eu acho um nome bonito!

- Eu odeio!

Silêncio. Remus mexeu seu café com um sorriso atravessado.

- Harry perguntou por você.

- Que você disse?

- Que ia ser lua cheia amanhã e você achou inteligente se enclausurar em casa e curtir a deprimente solidão largando os amigos para trás.

- Nymphadora...

- É isso mesmo que eu acho! – seu aborrecimento dobrou por ele ter se referido a ela novamente pelo seu deprimente nome de batismo. – É injusto que você nos deixe sempre quando vai se transformar!

- Eu estou protegendo vocês!

- Está dizendo que prefere ficar sozinho à nossa companhia nos momentos difíceis da sua vida! – disse obstinada. – Nos queremos ajudar você, Remy!

Ele respirou forte ao mesmo tempo que Tonks corou profundamente. "Remy". Só ela o chamava assim. Ele sempre sentia arrepios na coluna quando ela o chamava assim, e ele se rendia a qualquer coisa quando ouvia seu apelido dito pela voz macia dela.

- Vocês ajudam bastante. – ele disse por fim. – Obrigado por trazer a poção, eu realmente prefiro você ao Severo, se posso escolher.

Com isso ela voltou a sorrir.

- Sinto saudades de você, Remy. Você se tornou distante de todos nós desde que Sirius...

- Tonks, não comece. Você sabe que eu tenho andado muito ocupado com a missão.

- Não é disso que eu estou falando! E você sabe que não é – completou quando ele abriu a boca para protestar. – Você não conversa mais conosco sobre sua vida. Não sabemos mais se está bem ou não, e você tem ficado cada vez mais enfiado nessa casa, Remy, parece sentir prazer em ficar sofrendo!

Remus abaixou a cabeça para a xícara. Apesar de serem tão diferentes, ela o lia com facilidade.

- Eu não vou deixar você ficar aqui fingindo que o resto do mundo não existe enquanto há tanto para se viver, Remus Lupin.

- Mas o que é que você quer afinal? – indagou afetado e nervoso, se levantando. Ela igualmente se levantou.

- Eu quero você, Remus!

- Tonks, - ele disse depois de olhar bem fundo nos olhos dela implorando para que voltasse atrás no que falara, mas via obstinação ali e aquilo o afetava – Pensei que já tínhamos conversado sobre isso!

- Não conversamos! É sempre você falando um monte de besteiras sobre ser velho demais e perigoso demais e pobre demais... o que é tudo uma grande idiotice da sua parte!

- Nymphadora, - ela teve de trincar os dentes ao ouvi-lo. – Isso nunca vai dar certo.

Sinto dizer que amo mesmo, tá ruim pra disfarçar

Entre nós dois não cabe mais nenhum segredo, além do que já combinamos

No vão das coisas que a gente disse, não cabe mais sermos somente amigos

E quando eu falo que eu já nem quero

A frase fica pelo avesso, meio na contramão

E quando finjo que esqueço, eu não esqueci nada!

- Você nunca nem nos deixou tentar. – ela rebateu, sem se dar por vencida. – Fica fugindo como se fosse bom para nós dois! Pra mim é horrível, Remus, e não venha me dizer que é bom para você porque não é isso que vejo em seus olhos!

- Você é só uma menina, Nymphadora. Você vai querer alguém que tenha um pique como o seu... que possa curtir as coisas que você curte... o que você quer não é um cara como eu, que gosta de ficar em casa, que tem montes de obrigações, que não pode ir para os lugares que você quer ir... não é um cara que tem idade para ser seu pai, que além disso não pode te dar o conforto que você merece e pode te por em perigo!

Ele parou ao ver os grandes olhos castanhos dela cheios de lágrimas.

- Eu não sei se falou isso para me magoar e me afastar, Remus – revidou, limpando-as com ferocidade – Mas você tem razão. O que eu quero não é "um cara como você", porque esse cara não existe. Só existe você, o único que me causa isso... essa angústia enorme... essa dor horrível... e essa alegria intensa ao seu sorriso, esse arrepio quando me encara... e todas essas coisas que eu sempre achei que fossem conto de fadas até conhecer você!

Ele perdeu o chão por um momento. A força de vontade dela era maior que a sua resistência.

- Eu devo estar ficando louco – foram suas rápidas palavras, antes de puxar o corpo dela para si e a beijar com sofreguidão e paixão e ser correspondido com igual intensidade.

E cada vez que eu fujo eu me aproximo mais

E te perder de vista assim, é ruim demais, yeah

Por isso que atravesso o teu futuro

E faço das lembranças um lugar seguro

Durante o beijo, ele pensou em se afastar, mas o sentimento não durava mais que do que segundos, ou até as mãos delicadas dela acariciarem seu corpo como se, pelo tato um tanto frenético, pudesse decorá-lo. Se tinha culpa por sentir-se daquela maneira por alguém da idade dela, aquilo desaparecia quando ele percebia que Tonks não era inocente, nem criança, e que o queria tanto quanto ele queria.

Eles se afastaram mas ela o abraçou em seguida, muito forte.

- Não vou deixar se afastar de mim novamente. – sussurrou – Nunca mais vou deixar que você saia de perto de mim.

- Eu não vou sair, Nymph.

Dessa vez ela não reclamou, até que o apelido não era tão ruim. Ela ainda estava anestesiada com o beijo.

Não é que eu queira reviver nenhum passado

Nem revirar um sentimento revirado

Mas toda vez que eu procuro uma saída

Acabo entrando sem querer na tua vida

Tonks alisou o fino cabelo de Remus com carinho. Ele a aconchegou com vontade em seus braços, sentindo toda a delicadeza e fragilidade do corpo da garota. Ela era - sempre fora, desde o momento em que a conhecera - algo que queria para cuidar, proteger e ver brilhar bem perto de si. Abriu os olhos e a encarou bem de perto, vendo cada suave linha dourada de suas íris castanhas, e admirando o modo como seu cabelo liso e sedoso caia pelo rosto, um belo tom castanho escuro que ganhava de qualquer verde-lustre, rosa-chiclete ou azul-aurora.

Os lábios dela estavam úmidos e vermelhos de seus beijos e o corpo nu dela, unido ao seu, quente e macio.

- Tem que ir pra casa, Nymph. Daqui a pouco vai escurecer e não é seguro que fique por aqui.

- Eu não vou para casa.

- Você não vai dar uma de teimosa agora, não é?

- Eu não sou criança, Remy. - repetiu.

- Sei bem que não é – ele disse com um sorrisinho. – Mas ainda assim não é seguro.

- Vou ficar aqui para que fique bem.

- Vou ficar bem, Tonks, a poção está ai, basta tomá-la...

- Você não fica bem sozinho e eu sei disso. Eu sei que Sirius sempre ficou na lua cheia. – acrescentou. – E quem vai ficar dessa vez sou eu.

Ele se mexeu desconfortável. Eles tinham acordado tarde, o dia tinha passara rápido e pouco faltava para o anoitecer.

- Tenho medo de machucar você, eu me mataria se lhe acontecesse alguma coisa.

- Ótimo, porque eu morreria se tivesse de passar por aquela porta sabendo que lhe deixaria aqui dessa maneira desumana.

- Largue de ser teimosa.

- Impossível, é da minha natureza.

- Eu ficaria mais tranqüilo sabendo que não corre perigo.

- Beleza, eu igualmente, mas para isso eu teria de ver com os meus próprios olhos.

- Nymphadora...

- Não tente, Remus Lupin. Eu deixei bem claro que não o deixaria novamente... você não vai conseguir mudar isso.

Eu procurei qualquer desculpa pra não te encarar

Pra não dizer de novo e sempre a mesma coisa, falar só por falar

Que eu já não tô nem ai pra essa conversa

Que a história de nós dois não me interessa

Se eu tento esconder meias verdades

Você conhece o meu sorriso, lê no meu olhar

O teu sorriso é só disfarce, que eu já nem preciso...


Música: Quem de Nós Dois - Ana Carolina

Beta: Fabri Malfoy

Primeira publicação: Janeiro, 2006. Revisada em dezembro, 2014.