In the same place
Ah, Diabos. O efeito do remédio passou. Olho pela janela e ainda é noite. Tudo pelo avesso. Penso quantas outras caixas eu vou ter que esvaziar até ter uma overdose, ou quantas garrafas ainda faltam para o meu coma. Nirvana. O bar já não pára mais cheio, não tenho tempo a perder. A vida é curta, viva ante que tudo se acabe. HAHA. Ironia. Num da você tem sua bela casa cheia de elfos, seu príncipe perfeitinho, o filho ideal. E claro, soberanos no castelo das ilusões, o rei e a rainha. Eu era a rainha utópica. Ah Lucius, você deslizou, escorregou e nosso castelo de cartas se desfez num piscar de olhos. Caiu, sumiu, e me deixou sozinha, mesmo sabendo que não sei montar castelos sozinha, onde está você agora? Maldito seja. Não cansava de se gabar que era quase Deus. Querido, deuses não comentem erros.
E bem, ham, no outro dia, apenas eu, saboreando o que me restou do dignidade em cada taça. Vendo todo meu império destruído, vendo meu próprio filho, sangue de príncipe, se tornando criado. Tudo pelo avesso. Olho para o teto vazio, tentando me lembrar que dia é hoje, e imaginando que horas são. Me custaria quanto levantar e sanar minha curiosidade? Quando tomo a iniciativa, a cabeça me parece a parte mais pesada do corpo. Culpa? Não. Dor. Ressaca desgraçada. Deveria continuar sempre bêbada, pulando as ressacas. Hahaha. Que decadência. Com gosto de álcool e remédios na boca, levanto e percebo que não tenho mais senso de equilíbrio. Seria efeito colateral?
Meio cambaleando, meio me arrastando consigo chegar até a cômoda perto da porta. No relógio da parede são três da manhã. "Ás três os demônios saem." Haha. O único demônio aqui é o reflexo no espelho. Olheiras e palidez. Só me dando um aperitivo de realidade, como se jogasse na minha cara: " Olha Narcissa, olha BEM no que você se tornou! Viu sua vagabunda, como você ainda é aquela garotinha assustada, que não consegue se virar sozinha. Mimada. Ninguém para cuidar de você, nem você mesma."
EU SEI! Cacos de vidro pelo chão, e um belo corte na mão. Sangue por toda a parte. Ótimo, realmente, tudo que eu precisava. Com a minha varinha, um ou dois toques e o ferimento já não é mais um problema. E a sujeira? Sempre há um elfo que pode resolver.
Me arrasto novamente até o armário. Um surte. Tantos vestidos, tantas roupas, tanto poder. E agora tudo trancado no armário. O verde sempre foi o favorito do Lucius. Visto-o em minutos. Ele adorava quando eu usava esse. Posso até ver o seu sorriso na escuridão e sua voz ecoando no quarto vazio: "Você está linda..." . Eu sou linda.
De volta a cômoda, ajeito os cabelos no coque que costumava fazer. Um pouco de lápis no olho e estou quase apresentável. Falta apenas o toque final. Batom cor de sangue. Vivo. Meu próprio sangue. Meus lábios estão vivos num sorriso cínico no que restou do espelho. Eu sou linda.
Linda e solitária. Arrumada para ninguém. Ah! Ao inferno a solidão. A cura sempre está nos analgésicos, remédios para dormir ou em outra garrafa de vinho. Que por coincidência, ou não, estão sorrindo para mim do canto da cômoda. Aquele velho sorriso enganador e acolhedor, como se me chamassem. Eles sabem dos meus medos, eles me entendem. Estico o braço. Abraço. Três comprimidos de uma vez só. Soníferos ou analgésicos, tanto faz. Os dois juntos? Melhor ainda. Tudo muito bem regado a meia garrafa de vinho. Com muito cuidado para não manchar o vestido. Tesouro. Calculo quanto tempo eu tenho até apagar. Muito pouco. Volto o mais rápido que consigo até a cama, sentindo meus pés e mãos ficando dormentes. Não chego nem a sentir meu próprio corpo caindo na cama. Já estou anestesiada pela cura. Insensível e imortal, no mesmo lugar.
- fim -
