Disclaimer: Os personagens de Saint Seiya são de propriedade do senhor Kuramada. As fictions publicadas com o tudo de seus personagens são meramente para diversão e não têm fins lucrativos. Os personagens Dante e o nome Horemheb, contudo, são de minha autoria.

Comentários: E lá vamos nós... ( Pica-Pau nas Cataratas! ). Capítulo dois, religiosamente postado uma semana depois da estréia. Um agradecimento muito especial a todos que se deram ao trabalho de comentar, via site, MSN, email, whatever. Dessa vez sim! Vai ter post no thesenseiclub ( ponto ) blogspot (ponto ) com. E até uma fanart muito meiga e propícia que a mestra Bélier me mandou para a MQT. Claro... Lá também estarão meus agradecimentos aos que comentam. Beijos, Rê.


MAIOR QUE TUDO

Capítulo 2

Suspeitas


– Dante e Afrodite! Onde vão tão cedo assim?

– Vamos ao hospital buscar os resultados dos exames do Dante.

– Como se sente, moleque? – Saga aproximou-se do menino, checando minuciosamente as feições do seu pupilo.

– Eu tô ótimo, mestre. E eu vou ao parque, de novo!

– Sério?

– Diz para Allyanda que eu trago um ursinho para ela dessa vez!

– Dante... Cuidado com minha filha, hein? Allyanda é uma feiticeira geniosa, pior do que a mãe!

– Pode deixar, mestre Saga. Eu dou o urso com o maior respeito!

– Mas eu não estou preocupado com a minha filha! Ela é uma monstrinha como a mãe! Eu estou preocupado é com você!

Afrodite puxou o filho pelo braço:

– Anda, principezinho! A gente vai chegar atrasado e o táxi não espera!

– Tchau, mestre! Amanhã eu volto pro treino, tá?

– Zeus te proteja, menino.


– Neném, espera o pai aqui fora? Eu pego seus exames e volto logo.

– Não demora, tá? Eu quero ir no parque.

Ao parque, cabeçudo. Você nunca aprende?

Ele empurrou o pisciano pelos quadris para dentro do consultório.

– Aaaaaanda, pai! Eu vou ficar esperando!


– Senhor Vündhegen, o seu filho tem leucemia.

Afrodite encarou o médico por alguns segundos. Depois, irrompeu em uma imensa gargalhada. Era tão alta, pura e límpida que rapidamente foi ouvida pelas alas adjacentes do hospital. Continuava rindo, um riso seco que foi morrendo aos poucos diante da expressão inalterável do médico. Por fim, já sem sorrir, encarou o jovem e proclamou, cético:

– É claro que houve um engano. Meu Dantezinho é estupidamente saudável, nunca teve nem uma gripe forte. Este exame deve ter sido trocado.

– Senhor, não houve engano.

Afrodite ficou subitamente sério.

– Confira o nome, doutor. É Dante Rafael Al Hat'sur Vündhegen.

– Os exames estão corretos, senhor Vündhegen.

– Impossível. Impossível! Estão trocados, é claro que estão. Estão errados. Esses laboratórios vagabundos daqui sempre cometem erros grosseiros desse tipo, mas o senhor fique ciente, doutor, de que eu processarei esta bodega pelo constrangimento que este erro me causou.

O médico, jovem, já tinha presenciado reações como aquelas centenas de vezes. Estendeu um envelope para o sueco.

– Aqui está uma cópia dos exames laboratoriais, caso o senhor deseje uma segunda opinião, pode mandar refazer os exames e compará-los. Entretanto, o diagnóstico me parece claro, até pela descrição de sintomas que seu filho mesmo nos fez.

O sueco começou a finalmente realizar a informação que recebera. Ele a via vindo na sua direção como uma bomba atômica, com toneladas de megatons, pronta para atingir sua vida, sua felicidade – deixando ruínas e seqüelas para sempre. Balançou os cabelos.

– Sono? Uma febrinha? Uma dor de cabeça? Fraqueza? Isso lá são sintomas? Uma bobagem... Uma coisinha à toa. Por causa disso o senhor se armou em copas para dar esse diagnóstico apressado? Ele deve ter anemia ou uma fraqueza de criança qualquer! Ele é adolescente, transformações dessa fase da vida são assim mesmo! Eu não sou nenhum ignorante, se é o que pensa!

– Eu compreendo que não é uma notícia facilmente digerível. Mas o hemograma é bastante expressivo; eu recomendaria que, mesmo o senhor procurando uma segunda opinião, já selecionasse doadores possíveis de sangue: ele vai precisar de muito. Talvez a quimioterapia seja suficiente, mas eu não descartaria a possibilidade de um transplante medular, então os melhores doadores são os irmãos e...

Afrodite o interrompeu, perplexo.

– Doutor... Eu sou... Sou... Homossexual... Eu vivo com um homem e... O Dantezinho é adotado... Eu não tenho idéia de quem sejam os pais dele ou parentes... Nada...

– Isso certamente complica muito a situação, mas não inviabiliza totalmente o transplante.

– Doutor, eu... Eu...

O médico viu o homem de cabelos azuis olhar desconsolado para a porta.

– O senhor trouxe o menino hoje?

– Eu não sabia que...

– Tudo bem. Quer que eu chame a enfermeira para que ela traga um calmante, uma água com açúcar?

– Eu tenho calmantes... Na minha bolsa... Eu preciso de água...

– Vou mandar vir, só um instante.

O médico, novo e bonito, foi até o interfone no canto do seu consultório e pediu à assistente que trouxesse alguma água. Aproveitou o espaço de tempo para medir a pressão de Afrodite. Ele não chorou, nem uma lágrima rolou do rosto empalidecido. Sentia, contudo, cada membro do seu corpo formigar com fraqueza. Suas mãos buscaram na bolsa cara o calmante que ele usava. Elas estavam tremendo e ele levou muito mais tempo do que o normal para achar o fecho e conseguir abri-lo.

No caminho para o consultório nove, a enfermeira que trazia a jarra d'água encontrou um menino ruivo que andava de um lado pra o outro perto da porta.

– Olá, posso ajudar?

– É o meu pai, senhorita enfermeira. Ele está aí dentro. Mas tá demorando. Demora para pegar exame?

– Normalmente não. Mas nunca se sabe. Espere aqui, está bem? Eu entro e pergunto o que está havendo, sim?

– Obrigado, senhorita enfermeira.

Quando a moça entrou na sala, o garoto voltou para o banquinho.

"Senhorita enfermeira... Será que é assim? Deve ser... Senhorita se for moça, senhora se for mais velha... Devia ter perguntado o nome dela... Droga de educação! Quem se lembra de tudo isso quando fala com os outros? Só meu pai mesmo!"

A enfermeira saiu logo da sala, mas antes que Dante pudesse interpelá-la, Afrodite saiu também. Ele estava lívido, andava com uma certa lentidão. Ao ver o filho, Afrodite ouviu o diagnóstico sendo soprado, outra vez, como uma sirene anti-aérea de guerra retumbando em seus ouvidos. E seu filho, seu lindo filho, parado, de pé, olhando-o abobalhado era o alvo. O único alvo daquela guerra iminente.

"Meu filho! Meu filhinho!"

Refreou o impulso de atirar-se aos pés do menino em prantos e agarrá-lo.

– Oi, pai. Você demorou. Você tá esquisito... O que foi?

– Nada. Nada... Va-Vamos ao parque? – ele murmurou, segurando a mãozinha do menino na sua.

– Mas pai... Você não está bem... Se você não quiser ir no parque hoje, tudo bem, eu não ligo.

– Não... Não, neném... Eu quero, vamos.

"Zeus... Quantas vezes mais poderei ver meu filho em um parque sorrindo?"

– Pai, você tá branco... Vamos para casa, a gente vem no parque outro dia...

– Não, o... o parque é perto... Vamos, Dante... Eu quero ir.

O menino o encarou, preocupado.

– Tá bom, pai... Mas você promete que se você sentir alguma coisa você me fala? Fala mesmo, viu?

– Falo...

– Deixa eu sentir o seu pulso, será que você está com a pressão baixa?

"Cuidando de mim... Ele... Meu principezinho... Tão meigo... Tão doce..."

– Estou bem, filhote, vamos? – pediu o sueco, desanuviando com os polegares a ruguinha de preocupação na testa ruiva do filho.

– Seu pulso tá fraquinho, pai... Você deve estar com pressão baixa... O senhor tem certeza? De que não prefere ir pra casa?

– Mas eu quero ir.

O garoto balançou a cabeça em contrariedade.

– Vamos devagar então, tá? – assentiu, finalmente.

– Está bem.

– Eu prometo que não demoro, só vou na Roda Gigante uma vez, tá?

– Pode andar o quanto quiser, filho. Já disse que estou bem.

Caminhou com Dante que lhe oferecera o braço de apoio. Era tão bonitinho vê-lo daquela maneira, protetor, guiando-o pelas ruas estreitas, perguntando o tempo todo se ele se sentia bem. Afrodite não podia culpar o filho, ele sentia-se muito mal e imaginava como devia ser claro em suas feições. Logo chegaram ao parque.

Era o mesmo parque onde tinham estado alguns dias trás, quando ele tinha então trazido Dante para um exame tolo, um exame de rotina. Agora, retornava, mas o parque lhe parecia sombrio, engolfado em sombras da incerteza. Sua têmpera antiga, de cavaleiro orgulhoso e egoísta, voltou com um força de vendaval varrendo sua alma: todas aquelas crianças feias e tolas... E por que seu filho? Podia ter sido qualquer uma delas... Uma vida insignificante poderia ter sido ceifada... Mas não o seu Dante! Um filho tão querido... Tantas mulheres abandonavam filhos... Por que justo o seu tinha que sofrer?

Afrodite debruçou-se na grade; ficou apenas observando, encantado e vaidoso, a criança comprar os tíquetes para a roda gigante. Depois, o menino foi para a fila, mas Dante não tirava os olhos do pai, encostado na grade e de quando em quando fazia sinais com o polegar para o alto, perguntando se estava tudo bem, ao que o sueco confirmava tudo, com acenos discretos de cabeça. O parque estava cheio de crianças, berros infantis, cheiro de pipoca e algodão doce.

Se, há alguns anos atrás, alguém tivesse lhe dito que ele iria freqüentar um lugar daqueles, teria rido na cara do ingênuo. Odiava criancinhas, coisas que lembrassem crianças, qualquer coisa que mexesse com sua confortável e adorável rotina de homem jovem e vaidoso, que vivia apenas para ele mesmo e para seu prazer e do seu amante. Passava horas pensando no que ia fazer para o outro comer – sempre tendo em vista o que era mais exótico e mais afrodisíaco. Também este padrão norteava a sua escolha de roupas e tecidos para casa. Perfumava-se e banhava-se o tempo todo, inebriado dos seus perfumes e de como eles excitariam mais e mais seu parceiro – se é que era possível que Máscara da Morte ficasse mais excitado do que o normal – viviam para seus prazeres e viviam muito felizes.

Cuidava-se demais, suas túnicas eram todas brancas e transparentes e esvoaçantes. Tinham de ser sedutoras e lindas: a praticidade nunca estivera em questão, o sueco nunca fazia nada que o pudesse amassar, amarrotar ou sujar. A única mancha que permitia às suas roupas e à sua casa eram manchas de amor. Tinha pavor de encontrar os filhos de Saga circulando pelo caminho e que insistiam em abraçá-lo, sempre sujos, suados, amassados.

Até que Shura, muito mais próximo dele, teve um filho. Então, todas as lembranças recalcadas da batalha do Hades e da sua curta – porém aterrorizante – passagem pelo Inferno nas mãos de Radhamanthys, assombraram-lhe a vida até então tão colorida e feliz. Sentiu-se miserável e só. Amava Horemheb, mas o seu companheiro também não era um modelo de virtude. Eles eram párias aos olhos do meninos mais jovens. Por mais que a deusa tentasse remodelar a mentalidade dos meninos, nada jamais mudaria. Ele seria sempre o traidor afetado amasiado com o traidor assassino. Como Shura, que também carregou o estigma de assassino por tanto tempo. Mas um filho... Ah, uma criança era uma semente de eternidade. Alguém que carregaria seu nome com orgulho para sempre. Alguém que levaria rosas ao seu túmulo e lembraria dele depois que morresse.

Então, em um gesto de amor que nunca esqueceria, seu querido cavaleiro de Câncer trouxe-lhe Dante. Ele colocou aquele embrulhinho de mantas cor de rosa na sua vida e o amou, amou-o desarmadamente, com tudo que tinha, com a entrega e a pureza de quem nunca amara nada antes daquela maneira, com a doçura de quem vê a possibilidade de ver tudo errado ser transformado em acerto; amou-o imaginando que poderia acertar com aquele filho tudo que tinha errado na vida, com todos que passaram por ele. Amou o menino com a persistência e a teimosia de quem cuida de um jardim de onde se imaginava que nada nasceria e vê nele brotar um rosa – uma rosa ruiva.

Amava aquela criança. Mesmo que no começo, isso tivesse sido difícil.

Era um bebê bonito e sadio – mas era um bebê!

Se lembrava bem do horror que sentiu na primeira madrugada insone de sua vida que não fora gasta com sexo: o bebê vomitou nele porque ele o tinha balançado com força demais depois de mamar. Estava com sono, fedendo a azedo, com uma criança aos gritos no seu colo. Nunca se esqueceu de nenhuma das muitas vezes naquela semana em que simplesmente se pegara no meio do caminho para o quarto de Horemheb, com Dante no colo, pensando em dizer ao amante que queria se desfazer do menino.

Ensaiava repetidamente o discurso de 'não precisamos de ninguém entre nós, seu amor me completa.' Bastava, no entanto, lançar um único olhar à criança em seus braços para fazê-lo voltar. O bebê de grandes olhos verdes que não desgrudavam dos seus, do sorriso fácil que brotava da boca sem nenhum dente, um sorriso de gengivas vermelhinhas, o bebê de bracinhos cândidos que buscavam seus cabelos, seu rosto... Nunca poderia deixá-lo. Nunca. A constatação era divertida agora, tantos anos depois. Nunca o teria deixado. Não poderia mais abrir mão daquele intruso espaçoso que o arrebatara à primeira vista. Sim, amara-o de primeira – sujo, fedendo e numa caixa de papelão. Amara-o sem razão e sem necessidade.

Assustava-o amar daquela maneira, sem recompensas. Era isso que o metia medo, o que, invariavelmente, o fazia andar com o bebê nos braços até o quarto para pedir que Horemheb o tirasse dali e o devolvesse para o orfanato. Tinha medo de ser incapaz. Para aquele bebê não importava se ele era belo ou poderoso. Tudo em sua vida sempre se resolvera com sua voz de veludo sedutora ou com suas rosas mortais. Mas para aquele neném, suas armas mortais não queriam dizer nada. Ele precisava apenas cuidar que ele comesse e se trocasse com a freqüência certa e agasalhá-lo: enfim, protegê-lo porque ele não o faria sozinho, era simples perto das incumbências naturais que ele sempre carregara nas costas: salvar o mundo, proteger a paz, guardar Athena. Entretanto, salvar o mundo lhe parecia tão mais fácil do que acertar com aquela criança!

Para aquele bebezinho ele precisava ser o que nunca tinha sido, ele precisava se transmutar de cavaleiro poderoso em um homem simples com preocupações mundanas como a temperatura da mamadeira e a quantidade de fraldas que ainda tinham no armário.

Ele tinha que ser alguém – alguém que não era ele. Alguém capaz de amar e se preocupar unicamente com o bem estar de outro que não ele mesmo. Sim, ele sabia que podia amar, porque amava Horemheb. Mas era diferente. Não era um amor desinteressado, era algo que esperava recompensa: se ele se perfumava e enfeitava, era para acender o desejo do amante. O que ele dispensava de carinhos e atenções, recebia também em carinhos. Era uma troca bem sucedida e feliz, mas era uma troca, afinal de contas.

Dante, aquele embrulho que não fazia nada além de cocô e gritos, precisava dele. Não era uma troca, porque Dante não tinha nada a oferecer. Afrodite sabia que Máscara da Morte não precisava dele. Era uma coisa que o entristecia às vezes: saber que o amante viveria muito bem sem ele; afinal, por mais que o amasse, era um adulto independente. Afrodite precisava da sensação de ser necessário como precisava do ar que respirava. Desejava ser indispensável a alguém. De certa forma, Dante necessitava dele de uma forma tão exclusiva e absoluta como ninguém jamais precisaria.

Então, veio um momento de revelação. Horemheb estava fora e ele com o menino que chorava sem mais parar. Em pânico, ele levou o filho até a casa de Shura e pediu socorro à mulher dele: uma espanhola pequenina e valente, que o acudiu. Lembrava-se perfeitamente das palavras dela: "Tudo assusta esse bebezinho... Tem medo de tudo. Por isso ele chora. Ele precisa sentir confiança em você. Ele precisa sentir que você está aqui para protegê-lo. Quando se sentir seguro, não vai mais chorar tanto. Mas se você não está seguro do que sente por ele, ele percebe. Se apavora ainda mais."

Então Afrodite soube – sentiu-se forte. Sentiu-se útil. Sabia que sua força era necessária. Ia cuidar e proteger aquele menino com todas as suas forças, ia abraçá-lo firme e ele saberia que estava ali... E sempre estaria. Sempre estaria ali para seu filho e nunca, nunca esperaria nada em troca.

Para sua surpresa, contudo, recebeu infinitamente mais do que ofereceu. Na época da adoção, quando ele e Horemheb viajaram para a Holanda para forjar os documentos deles ( na Grécia a adoção era vetada à casais de homossexuais ), muitos o parabenizavam pela sua bela iniciativa. Adotar um orfãozinho abandonado, que criança de sorte era o pequeno Dante, ganhando de graça toda a felicidade de ter pais tão sadios e ricos como Máscara da Morte e Afrodite.

Sorte de Dante!

Uma criança gerada de um pai e de uma mãe, como a natureza quer, ligada irremediavelmente pelo sangue aos que a colocaram no mundo – era natural que crianças assim amassem seus pais e vice-versa. Era tão natural e era assim desde que o mundo era mundo, quase uma obrigação da espécie que a fêmea tivesse filhotes para que sucedessem o macho no seu clã. Instinto natural. No entanto, amar e – Zeus, como era bom percebê-lo! – ser amado por alguém gratuitamente, sem nenhum laço que os forçasse a isso, era maravilhoso. Era inexplicável. Ele e Horemheb eram dois miseráveis secos que nada tinham a dar a ninguém: egoístas, assassinos, vaidosos.

Entretanto, Dante nunca os vira assim. Para Dante, e só para ele, havia um Máscara da Morte e um Afrodite que só mereciam amor, humanos com virtudes admiráveis, com todas as virtudes. Para o menino, eles eram heróis, os maiores de todos. E eles não fizeram muito: vestiram-no, alimentaram-no. E ele retribuíra tudo apenas... vivendo. Sendo feliz. Era uma coisa admirável e Afrodite nunca deixava de se surpreender que a felicidade de outrem lhe fosse tão cara.

Agora, todo aquele castelo rosado de felicidade estava ruindo em sua base; a criança que Máscara da Morte havia escolhido para ser um receptáculo, um símbolo do amor que os unia ( por mais miseravelmente cafona que a expressão lhe parecesse ), estava na iminência de sofrer o golpe de uma doença terrível, de cura difícil e de tratamento doloroso. Sua criança... Ele cuidou de Dante com tantos mimos! Protegera-o de tudo e de todos com a vivacidade de um leão enfurecido. E agora, estava impotente. Seus abraços, sua armadura, suas rosas, seu cosmos... Nada ajudaria Dante.

O mundo ao seu redor girava perigosamente, viu tudo com manchas pretas. Suas pernas bambas pareciam chamar pelos seus joelhos ao chão e antes de cair, apoiou-se na grade. O cheiro doce da pipoca e do algodão doce entraram por suas narinas revoltando seu estômago frágil. Sentiu o corpo dobrar pela força da golfada de vômito que veio sem aviso prévio, livrar seu estômago dos copos d' água e dos calmantes – a única coisa que ingeriria nas últimas horas.

Dante já estava sentando-se no banquinho do brinquedo quando viu que seu pai estava caído no canto da grade. Levantou-se apressado, correndo até onde Afrodite estava, sentado no chão, tentando se recompor do mal estar.

– Pai! Pai, o que você tem? – o menino se ajoelhou na frente dele, chorando. – Pai, desculpa, pai! Eu sou muito egoísta, você não tava bem e eu te trouxe aqui do mesmo jeito!

– Dante, ajuda seu pai a levantar... Estou um pouco zonzo...

– Dá o braço, pai, eu te levanto... Eu te levo no colo até o ponto de táxi...

Afrodite riu da proposta.

– Não precisa, eu posso andar. Só preciso de ar fresco... – olhou para o menino que o ajudava a se levantar com lágrimas nos olhos verdes. – O que foi, Dante? Por que você está chorando, meu filho?

Vendo-o de pé, a criança enlaçou-lhe a cintura.

– Pai... Me perdoa... Eu não queria que você passasse mal. Não devia ter vindo... Eu devia ter te levado para casa, o Hô tem razão de não querer te deixar sozinho comigo, eu não sei cuidar de você direito, pai.

"Oh, deuses... por que? Por que vocês tem que me atirar na cara o quanto ele é bom agora? Justo agora? Minha deusa... Por que ele é tão bom? Tão bom..."

– Filho...Vamos. Eu estou melhor agora.

– Tem certeza que não quer que eu te carregue? Eu te agüento, pai!

– Não precisa. A gente pega um táxi. Caminhar vai me fazer bem...

– Tudo bem, mas se você não se sentir bem eu te seguro, tá bom?

– Tudo bem, meu anjo.

Caminhou com Dante novamente. O menino comprou uma garrafa de água mineral para ele, que agradeceu a atenção. No caminho até o Santuário, dentro do táxi, percebia a agitação da criança, que segurava sua mão e o observava atento à cada variação da expressão em seu rosto.

Uma vez dentro do Santuário, porém, não houve como convencer o menino de que não era necessário que ele o carregasse no colo. Dante subiu as Doze Casas com o pai nos braços. Era forte o moleque – Saga já havia dito várias vezes que ele seria um cavaleiro muito bom, porque tinha força nos braços e um coração puro, embora fosse turrão.

Já em casa, Dante tomou todas as providências necessárias, acompanhando o pai no banho. Afrodite garantiu que podia se banhar sem ajuda, mas o garoto ficou o observando da porta, com medo de que ele passasse mal no banheiro.

Quando o sueco já estava com seus pijamas de seda na cama, Dante voltou com uma xícara de chá nas mãos. Trepou na cama equilibrando a xícara.

– Toma o chazinho, pai, toma... Eu que fiz, as servas não estão. É de folha de amora, é bom pra pressão. Eu até botei mel, pra ficar docinho.

– Obrigado, meu filho, mas não precisava, já estou me sentindo bem.

O ruivo segurou o rosto pálido do pai entre suas mão pequenas.

– Você jura que está bem, paizinho?

Afrodite sentiu um calafrio de revulsão percorrer seu corpo.

– Dante... Seus exames não saíram porque a máquina estava com defeito... Vamos ter que tirar mais sangue amanhã, está bem? Depois das sete da noite não coma nem beba nada, sim?

– Tá bom, pai. Você vai ficar bem? Eu tenho que ir para o treinamento...

– Vai sim, príncipe. Vai treinar... Mas não se canse muito.

– Não, eu já tô melhor! Eu nem vou para praia hoje... Vou vir direto para casa, tá?

– Por favor... Quero muito a sua companhia, meu filho...

– Quando acabar o treino, eu venho correndo, tá?

– Que Zeus te acompanhe, Dante Rafael.

Os olhos do menino resplandeceram de alegria por ouvir seu nome todo.

– 'brigado, pai!

Quando ele viu a esbelta silhueta do filho sair do quarto, sentiu os soluços brotarem instintivamente da sua garganta. Chorou livremente, horrorizado com a possibilidade que alguma coisa, por menor que fosse, viesse a acontecer com seu filho. Apanhou o celular que descansava na mesinha próxima da sua cama e discou o número do celular de Horemheb. Precisava ouvir a voz dele... Precisava da calma, do força daquela voz lhe dizendo que tudo ia ficar bem... Se sentia tão só... Tão miserável...

– Dite?

– Amor... Amor... Preciso de você...

– O que houve? Você está chorando?

– Hô... Estou tão sozinho...

– Ah, Dite... Eu volto logo...

– Não, você não entende... Preciso de você... Porque...

– Aconteceu alguma coisa com você?

– Com nosso filho...

– Dante? Aconteceu alguma coisa com o Dante?

– Ele... Passou mal... Eu o levei para fazer um exame e...

– Fala logo, Afrodite! Estou ficando preocupado!

– Ele... Ele... Tem aquela doença...

– Que doença?

– Câncer. Na medula.

Seguiu-se um longo silêncio que só foi interrompido por um cicio da voz rouca de Máscara da Morte.

– É um engano. Só pode ser...

– Vou repetir os exames... Mas eu... Eu já não tenho esperanças de que... Dê alguma coisa diferente, Hô... Eu sinto... Um aperto, meu coração parece que está parando... Sinto que algo está errado com nosso anjo... Nosso anjinho...

– Eu vou estar aí amanhã. Eu falo com a deusa. Não importa. Eu vou estar aí.

– Hô... Eu ainda não disse nada para ele. Ele... Eu passei mal quando soube da notícia e ele... O anjinho pensa que quem está doente sou eu...

– Melhor assim... Eu quero estar aí quando... Se ele estiver mesmo doente...

– Amanhã eu vou com ele ao outro laboratório fazer os exames...

– Eu quero ir com vocês...

– Eu vou gostar de te ter aqui, amor.

– Dite, me desculpe. Se eu soubesse, nunca teria me oferecido...

– Como você ia saber? O que importa é que você volta logo.

– Vou ver se saio daqui hoje. Assim chego aí o mais cedo possível.

– Amor... Eu...

– Dite, fica calmo. Eu amo você. Logo vou estar do seu lado.

– Vem logo... Vem Logo...


Quando o menino chegou em casa encontrou Afrodite, já refeito e ainda de pijamas azuis, na cozinha. Havia um pequeno basculante redondo que dava vista para uma das laterais mais desertas do Santuário. Mantinha os olhos azuis muito claros fitos no céu, pensando. Foi dragado de volta à realidade pelos bracinhos que enrolavam-se ao redor do seu pescoço.

– Demorei, pai?

– Não, anjo... Mas já tinha saudades suas...

– Falou com o pai?

– Falei.

– Quando ele vem?

– Amanhã.

– Já?

– Parece que a deusa o liberou.

– Que bom! A gente não vai fazer uma festa para ele?

"Festa... Como posso fazer uma festa, meu amor? Se você está tão doente... Eu nunca vou sorrir de novo do mesmo jeito enquanto esta espada estiver sobre minha cabeça..."

– Melhor não. Fazemos uma comemoração íntima...

O menino deu um muxoxo.

– Íntima? Mas aí eu não posso participar, pai!

– Venha cá, bobinho... Depois da comemoração íntima a gente sai para comer alguma coisa, está bem?

– A gente vai mesmo sair? Eu, você e o Hô?

– Se o Hô quiser...

– Ai, ele tem que querer!

– Vai tomar banho, filho. A serva deixou nosso jantar pronto. Tem lasanha...

– Ah... Mas...

– Mas?

– Eu não tô com fome.

Afrodite empalideceu. Dante era alucinado por massas. Mesmo que não estivesse faminto, iria ter vontade de comer.

– Mas é lasanha. De carne.

– Eu estou cansado. Com sono, muito sono.

"Sono... Sono... Está fraco! E não quer comer. Zeus... Será que é isso? Será que está mesmo doente?"

– Você se sente bem, Dantezinho?

– Sinto, pai. Eu só tô com sono.

– Então vai tomar banho que eu faço uma vitamina para você... Você não pode dormir de estômago vazio...

– Tá, eu já volto. – antes de sair, o garoto sentou-se no colo de Afrodite, enlaçando-lhe o corpo com as pernas, uma tênue ruguinha na testa. – Você está bem, Dite?

– Estou. – ele sacudiu os cabelos, diante do olhar embasbacado do menino, que parecia ficar fora de si de orgulho com as demonstrações de beleza afetadas do pisciano. – Não pareço bem?

– Você está lindo, o azul te caiu bem, mas... – ele acariciou o rosto do pai cuidadosamente com os dedinhos pequenos. – Você tá tão triste... Eu sinto...

– Eu estou muito triste. Mas vai passar...

O menino arregalou os olhos.

– Você tá chateado por minha causa?

– Sua causa? – o pisciano assustou-se com a possibilidade de seu filho desconfiar da doença. – Não entendi.

– Eu não me comportei bem esses dias... você já estava triste por causa do Hô, mas eu não te ajudei... Me comportei mal... mas eu juro que não é pirraça, eu não tenho fome mesmo, pai. E você sabe que eu tento, mas os garotos já me provocam... Se for por minha causa, me fala... Eu peço desculpas de novo, eu faço qualquer coisa... Mas não fica mais assim...

– Neném... Eu não estou chateado com você.

– Mesmo? No duro? De verdade?

– Mesmo. No duro. De verdade.

– Tá, então.

– Eu gosto tanto de você, menino.

– Ué... – o garoto riu, alisando os cabelos azuis do pai. – Eu também gosto de você, pai.

– Como vai seu namorico com a filha do Saga?

– Não vai. A Allyanda disse que eu era um pirralho! Ela disse que só ia me deixar beijar ela quando eu tivesse quinze anos e nem ia deixar eu pôr a língua!

– Mas você é pirralho! Onde já se viu? A garota tão mais velha!

– Mas eu gosto dela. E ela vai ser minha um dia.

Afrodite sorriu, deslizando os dedos pelas bochechas sardentas do menino.

– Anjinho... Você é tão bonito... Aquela bruxa vai cair aos seus pés... – beijou o rosto do filho, sentindo o rosto do menino febril. – É impossível não te amar... Não ia tomar banho, filhote?

– Ah... é...

– Posso ir com você? Um banho de espuma, na hidro? Que tal?

– Pai, é que nem quando eu era neném? Você e o Hô me davam banho de espuma na hidro? Na grandona, a branca? A da suíte?

– Claro, a melhor da casa! Vem, vamos...

Afrodite empurrou o menino pelos corredores. Estava começando a ficar desesperado e resolveu distrair o filho, antes que ele notasse que tinha febre. Preparou a banheira enquanto o menino se despia. Mandou que Dante acertasse a temperatura da água enquanto ele mesmo se preparava, trançando os longos cabelos azuis claros. Entraram na banheira, a água coberta por uma densa espuma branca perfumada com o mais delicado odor de rosas. Sentou a criança em um dos degraus da enorme hidromassagem e aproveitou para lavar os cabelos do filho.

– Ai, pai! Não puxa!

– Cabelo duro, você não usa condicionador?

– Condicionador é coisa de mulherzinha!

– Atrevido! Fica quieto!

– Vai cair no meu olho e vai arder! E eu vou gritar!

– Mulherzinha! Você sabe que eu só compro xampu e condicionador de neném para você! Não arde os olhos, bobão. Pára de se mexer!

Afrodite olhou para o corpo do filho preocupado.

– O que é isso nos seus braços, filho?

– Ah... é mematoma. O mestre Saga que disse.

– Hematoma. – corrigiu o pisciano. – Mas são tantos... Você anda brigando?

– Não.

– Então de onde veio isso?

– Não sei... Pai... Termina logo. Eu tô com sono.

– Fecha os olhos.

O pisciano esfregou as mãos cheias de espuma de sabonete no rosto da criança, sentindo o calor da febre contra a testa de Dante. Enxaguou o rostinho do menino.

– Abre os olhos.

Olhos verdes. Cor de esmeraldas, só que mais claros. Claros.

– Ih, pai... Tá olhando o quê? Tem remela no meu olho?

– Não... Você é bonito como um rei, meu filho.

– Xi, mas esse 'você é bonito' é a frase do dia, hein?

Afrodite riu.

– Oras, pirralho. Nunca ouviu falar que uma mentira dita mil vezes vira verdade?

– Ãaaaa! Engraçadinho!

Terminou logo o banho. Já não suportava mais observar seu filho e ficar imaginando o que a doença ia tirar dele primeiro... Aquele sorriso de criança, aquele olhar brilhante, aqueles cabelos macios de anjo. Até não sobrar mais nada para tirar e então...

– Dante, põe a camiseta.

– Precisa?

– Precisa. Está esfriando.

– Mas eu vou dormir de calça...

– Sim, mas para não pegar friagem nas costas, anda... põe a camiseta!

– Tá bom...

Deu o remédio para febre ao menino junto com a vitamina. Foi um custo fazê-lo beber, ele não queria. Ia ligar para Horemheb, mas a pouca prudência que tinha alertou-o de que acabaria desabar em choro na frente do menino, então preferiu evitar uma saia justa. Levou-o apenas para sua cama, dizendo que queria dormir perto dele. Mas não dormiu. Observou o filho dormir em todos os belos detalhes que podia até a exaustão o fazer cochilar. E nem tinha começado ainda... Era só uma suspeita... suspeita. "Talvez," pensou por último, antes de desmaiar de cansaço, "seja tudo um sonho ruim. Um erro. Um engano. Uma falsa suspeita."


That's all for today, folks!

Bom, desde já agradeço aos que leram e comentaram: Litha-chan, Amyzinha, Gemini-sama, Pipe, Lady Nina, Paola Scorpio e Calíope! Fora as minhas sempre queridas Verinha e Bélier que comentam om off a produção e feitura de cada capítulo. Obrigadas a todas vocês, meninas!