Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya não me pertencem e esta ficção não tem fins lucrativos de espécie alguma. Os nomes Horemheb, Dante Rafael e Allyanda são de minha autoria. Mozão e Mozinho são criações da Pipe, usadas aqui com a autorização dela.
Comentários da Autora: Muito bem! Vocês estão de parabéns pela delicadeza dos reviews. Eu adorei todos! Agora sim, eu posso agradecer oficialmente Nana e Amy, por serem indiretas responsáveis por este projeto. Eu não disse antes para manter a surpresa da revelação da doença do Dantezinho ( senão ia ficar na cara e estragar o suspense... ); no thesenseiclub (ponto) blogspot (ponto) com eu vou comentar um pouquinho sobre isso. No mais, obrigada por tudo, vocês são leitores maravilhosos.
... este texto deve estar calamitoso porque a Ada não estava on para betar... então, perdoem-me por qualquer deslize ( vão encontrar muitos! ).
Maior que Tudo
Capítulo 3
Coragem
Depois de quase forçar a caneca de vitamina goela abaixo do relutante menino, Afrodite foi dormir desconsolado. Agarrou a criança que dormia junto a ele com toda a força que podia – sabia que estava apertando o filho com força demais, mas o menino não reclamou. Quanto mais o apertava, mais parecia que o filho escapava do seu abraço. Tinha medo de perdê-lo e mais ainda, de não poder defender Dante da doença que ele tinha.
Na tristeza em que fora para a cama, esqueceu-se de baixar as persianas que protegiam o quarto da luz. Assim que amanheceu o cômodo imenso e branco encheu-se de sol. E foi no meio dessa luminosidade que Horemheb os encontrou, cedo ainda.
Horemheb chegou cansado. Desde o momento em que recebera o telefonema de Afrodite, não parou. Falou com a deusa que entendeu perfeitamente a situação e o ajudou a sair de lá o mais rápido possível. Ele não dormiu no caminho. Nem piscou. Era o inferno outra vez vindo buscá-lo. Sabia que nunca tinha sido santo e era verdadeiramente um assassino. Talvez nunca tivesse merecido ser feliz. Mas então, por que os deuses lhe deram tanto? Para que doesse mais quando decidissem por tirar tudo dele?
Chegou à Décima Segunda Casa para encontrar o amante na cama, enlaçado ao filho. A luz entrava pela janela, os dois pareciam mais bonitos do que quando ele os havia deixado: o cabelo de Dante brilhava alaranjado, parecia que ia pegar fogo. Afrodite parecia ainda mais branco, mais porcelanado, quase angelical, com os cabelos azuis de uma musa homérica emoldurando aquele rosto de um deus.
Decidiu fazer o teste dos filmes, aqueles filmes em que um mocinho rejeitado acaricia o rosto da amada dormindo e ela sussurra o nome de outro, em uma cena clichê de surpresa e dor. Era uma tolice, depois de tantos anos, Máscara da Morte se dar ao luxo de desconfiar do amor de Afrodite. Mas há sempre um quê de masoquismo no amor dos homens, com seu sentimento de posse – e se lembrou dos tempos em que Shura também achava que não havia nada mais lindo no mundo do que aqueles cabelos azuis como o Egeu. Largou a pequena mala ao lado da porta e atravessou o quarto, imenso. Encostou os dedos no rosto do pisciano, deixou-os resvalar pelo cantos, perto da orelha, puxando com as unhas alguns pequenos fios azuis, tão macios que pareciam de seda. Peixes deu um leve gemidinho e virou-se, ainda dormindo. Os lábios entreabriram-se em um sussurro: "Hô...Hô..."
Máscara da Morte sentiu seus joelhos trêmulos.
Incrível como Afrodite tinha o poder de sempre fazê-lo regredir ao estágio de um adolescente recebendo seu primeiro beijo. Afrodite... Nunca acreditou que aquele menino arrogante e presunçoso fosse ser todo seu. Ele era um sonho inatingível, um Graal perseguido por muitos. E como Afrodite não era nenhum puritano, muitos tocaram aquele Graal. Mas ninguém podia sustê-lo. Só ele. Afrodite era seu, todo seu.
E lá estava ele, em sua cama e abraçado a ele, seu filho.
Era um filho que ele também não queria ter.
Já tinha tido um filho e o perdido e estava mais do que conformado em ser sozinho. Ter um amor já lhe parecia um mimo mais do que suficiente e ele não pediria por mais nada na vida. Não queria sentir de novo o que sentiu naquela longínqua tarde siciliana abrasadora, quando tirou seu filho bebê de dentro das águas sujas do canal. Não ia ter seus olhos infamados pela visão de outro filho seu morto.
Mas então, Afrodite não tinha nada a ver com todo o seu passado sórdido. Ele merecia a chance de ser feliz com uma criaturinha em seus braços. Seu pisciano queria um filho. E se ele queria, ia ter. Máscara da Morte era assim: tudo para Afrodite era pouco.
Mas assim como permitira-se amar Afrodite, também amou o pequeno Dante e já não conseguia mais imaginar-se sem eles. Lutaria. Não importavam os malditos exames. O que quer que fosse, lutaria. Não ia perder aquele filho, nunca ia permitir que nada nem ninguém tocasse um dedo que fosse na sua família. Lutou por ela: merecia a felicidade que tinha. Já tinha perdido tudo várias vezes, seu mundo ruíra uma centena de vezes diante de seus olhos, mas não desta vez! Desta vez ia ser diferente. Dante e Afrodite não iam chorar, nem sofrer. Ele não permitiria. Não permitiria.
Estava embebido em seus pensamentos quando os olhos verdes encontraram os seus. Aquela voz tão amada murmurou rouca ainda: "Pai! Você voltou!"
Horemheb aproximou-se mais da cama, até que os braços do filho alcançassem seu pescoço. O menino enrolou-se nele e o canceriano o puxou, acomodando-o em seu colo. O barulho acordou o pisciano, que manteve-se na mesma posição. Seus olhos abertos, contudo, irradiavam luz: estava feliz, feliz! Seu Hô tinha chegado, não estava mais só!
– Pai... – gemeu o menino. – Quer que eu vá pro meu quarto para você e o Dite matarem as saudades?
Máscara da Morte beijou a testa do menino, refreando um lágrima que insistia em cair, um pontada em seu peito que era como uma flecha dourada. "Você é sempre assim, não é?" acariciou os cabelos cor de cenoura, "você sempre pensa nos outros mais do que em você mesmo."
O canceriano botou o filho de volta na cama, tirou os sapatos e atirou-se ao lado de Afrodite. Acomodaram Dante entre eles, com a cabeça mais baixa, para que eles pudessem se beijar sem que ele atrapalhasse.
– Zeus, Dite... Que saudades de você...
– E eu? Estava subindo pelas paredes...
– Você pelo menos tinha o Dante... E eu? Estava longe de tudo o que eu gosto...
Trocaram beijinhos cada vez mais próximos e mais intensos. Subitamente, Dante deu uma cotovelada gentil no peito do canceriano e se levantou, saltando da cama.
– Vou pro meu quarto.
Tinha um bom feeling para saber quando sair. Afrodite adorava isso nele.
– Filho... Vai escovar os dentes e espera a gente.. Quando a gente terminar aqui vamos tomar café juntos, está bom?
– Ih, eu tô com fome... Vai demorar muito?
O pisciano olhou eufórico para Máscara da Morte. Fome! Ele estava com fome!
– Não, anjo... Não vamos demorar nada, só o de sempre...
– O de sempre e mais quinze minutinhos, né, Dante? Eu estou há um mês fora! Eu mereço!
– Tá bom... Eu vou pedir pra serva fazer o café com tudo que a gente gosta... Posso comer Nutella, pai?
– Só porque hoje é um dia especial... Mas não exagera, chocolate demais te faz mal, esqueceu?
– Tá.
– Eu vou querer panquecas com mel. – resmungou Máscara da Morte, aproveitando para tirar a camisa, já que o menino não estava mais na cama.
– E eu vou querer minha geléia de damascos com pão de erva doce...
– Só isso? Seu escravo ruivo já vai sair...
– Abusado! Escova os dentes e não entra no quarto, espera a gente sair, ouviu?
– Vocês não vão fazer nada que eu não saiba o que é... – ele deu a língua da porta. – Mas tudo bem, se vocês demorarem eu chuto a porta para fazer barulho...
– Te vejo depois, amorzinho. – gemeu Afrodite sob os lençóis.
Dante já ia fechando a porta quando voltou para falar com Horemheb.
– Pai... Fiquei com saudade de você.
Fez sinal para que o filho chegasse junto dele, beijou-o na testa, acariciando os cabelos de cachos ruivos desalinhados.
– Também estava com saudades de você, ruivinho.
– Obrigado, pai.
Saiu do quarto saltitante, deixando atrás dele o casal.
– Ele é tão... docinho, Hô... Ele agradece por termos saudades dele...
– Mas ele tem tão bons exemplos...
– Você acha, Hô?
– Você não acredita, não é, Peixes? Nossa família é toda certa, mesmo que a gente seja todo errado. Agradeço pelo garoto gostar de me ter por perto – e por você ainda me amar...
– Hô... Eu também agradeço por vocês me quererem do jeito que eu sou...
O pisciano fechou os olhos claros, na espera certa e mansa do beijo que sabia que viria. Era assim desde sempre.e ele adorava...
"Ah... Como eu adoro esse homem... é tudo sempre tão igual quando estamos juntos e eu amo tanto essa rotina... ele me beija puxando meus cabelos para trás... Depois ele sempre desliza a minha roupas com a mão livre... É sempre assim que ele começa. Ele é sempre tão carinhoso... Desde aquele dia, eu soube... Ele não é um cordeirinho na cama, eu sei que ele se controla por mim... Eu gosto... de sentir... Como as mãos dele correm pela minha pele, ele sempre sabe onde tocar e como. Nunca pensei que ia encontrar alguém assim, a quem não precisasse mais ensinar nada. Gosto tanto de como ele consegue manter sua boca na minha o tempo todo, faz eu me sentir tão dele, tão protegido. É tão bom fazer amor com ele pela manhã... Pela noite também é bom, mas ele é particularmente quente pela manhã, diferente de mim, que sou gelado, ele é movido a sol e luz. Ele gosta de calor e muito sol... Pela manhã o humor dele é divino. Ele faz amor com mais intensidade e se tiver a sorte de me fazer suar – mesmo que eu quase nunca consiga ficar suado – ele fica ainda mais excitado, mais louco. Ele alterna seus momentos de fera e seus momentos de ternura... Adoro isso... Adoro tentar descobrir com que humor ele acordou... Hoje, depois de um mês longe, ele deveria estar rosnando como animal e bufando... Mas depois de tudo... Do nosso Dante... Ele está suave, delicado... Acho que quer que eu me sinta protegido e sereno... E ele consegue... Porque esse abraço é tão... Pleno, não sei que palavra melhor usar, quando ele me puxa assim, me colando sob ele, minha eloqüência desaparece... Eu já nem sei que palavras usar para descrever o que sinto... Quando era mais jovem, eu era verborrágico, eu tinha um vocabulário rico de expressões delirantes para falar da paixão que sentia por ele e tudo que acontecia entre nós... As palavras me fogem... Mas aquilo que aquecia o meu peito ainda permanece quente, uma sensação de que... Jamais estarei só outra vez... Sou necessário... Sou amado..."
– Horemheb... Eu amo você.
– Eu também amo você, Afrodite.
— # —
Quase sempre, a manhã de amores acabava com um banho de banheira e dessa vez não foi nada diferente, porque Peixes apreciava a rotina de hábitos bem delineados que passou a ter e quando questionado se não era monótono viver uma rotina tão fixa, ele declarava enfático que não se tratava de rotinas, mas de rituais diários dos quais ele não abriria mão por nada.
Ficou encostado na bancada de mármore do banheiro, fingindo brincar com as mechas desalinhadas da franja que tinham crescido demais. Observava atentamente o corpo de formas ainda perfeitas de Horemheb. O canceriano era mais moreno que ele, a pele, apesar da idade, mantinha-se firme e bem desenhada como quando eram adolescentes. Tentava afastar da sua mente o pensamento teimoso de que seu homem podia ter deitado com alguém durante a viagem. Para seu azar, sua língua era mais rápida que sua auto-censura.
– Você não dormiu com ninguém lá, dormiu, Hô? Eu prefiro que você me conte logo.
Máscara da Morte lhe deu um dos seus olhares mais frios – os que no passado dedicava aos seus inimigos. Mas não respondeu.
– Hô... Fala.
– Se eu disser que sim, você vai chorar. Se eu disser que não, você vai continuar pensando besteira. Melhor eu ficar em silêncio.
– Horemheb!
– Afrodite, minha cabeça está cheia. Nosso filho pode ter um problema de saúde muito sério e você está aí me perguntando se transei com alguém na viagem? E se eu tivesse? Você não tem como saber ou ter certeza. Então por que se tortura? Se eu tivesse enfeitado sua cabeça, você nunca ficaria sabendo.
– Você gosta de brincar comigo assim, não é?
– É um jogo para dois. E você gostava de brincar, não?
Shura! Afrodite se lembrou em que houve uma época em que gostava de fazer ciúmes no amante com o capricorniano, deixando 'dicas' de que podia haver algo entre eles. Nunca pensou seriamente em levar a cabo tal idéia – trair Horemheb não estava em seus planos. Shura acabou se casando e a brincadeira acabou. Mas o miserável do canceriano não esquecia! "Merda de memória de elefante."
– Se você prefere assim, Horemheb.
Ia passar por ele, ajeitando ainda o robe azul de seda, mas as mãos fortes do outro o seguraram.
– Me irrita você achar que toda hora que saio de casa é porque eu tenho que trepar com alguém, sabia?
– O que eu posso fazer? – ele abaixou a cabeça em de seus sorrisos premeditados e cheios de charme. – Se eu tenho tanto medo de te perder, Hô?
– Isso é charme ou é sério?
– É claro que é sério.
– Eu seria muito idiota se trocasse minha vida com você por uma trepada.
Afrodite se sentiu um tonto. Sempre fazia uma cena daquele tipo. Mas nunca teve reais motivos para desconfiar de seu canceriano. Afundou a cabeça nos ombros do outro, o narizinho empinado perdeu-se entre os fios escuros de cabelo do seu amor.
– Desculpe, Horemheb. É mais forte que eu...
– Já estou acostumado... Dessa vez você nem chorou... – Horemheb brincou, acariciando os cabelos úmidos do sueco. Não admitia, mas ficava normalmente envaidecido com as ceninhas de ciúmes do pisciano.
– Amor...
– O quê?
– Como vamos falar com ele?
– Com quem?
– Com o Dante... Ele vai ter que saber...
– Ainda não pensei nisso.
– Que tal se a gente saísse um pouco com ele... Esses dias em que saímos... Ele gostou muito... E depois...
– Não, sou contra.
– Mas por que?
– Levar nosso filho para passear, nos divertirmos juntos e depois chegar em casa e contar "olha só, moleque, você tem uma doença horrível." Isso seria uma traição com nosso filho... Seria enganá-lo. Vamos ser secos e diretos. Eu não quero nada para iludir o Dante. Ele é espertinho. Se perceber vai ficar magoado... Sabe como ele é genioso. E ele não é burro, Dite... Ele deve saber o que é esse doença...
– Está bem... Nós vamos ter tempo... E...
A porta sacudiu-se com uma pressão surda. A voz embaçada de Dante do outro lado. "Pai... Posso entrar?"
– Tadinho... Se estava com fome, deve estar roxo... Estamos há mais de duas horas aqui dentro... Já são quase dez da manhã...
– Abre, Dante...
O menino entrou, pálido, com um pano cobrindo a boca e o nariz. Ele balbuciou, a voz estranha ressoando por debaixo do tecido:
– Eu... Eu não queria interromper, pai... Mas... – ele abaixou o pano, para o pânico de Afrodite. – É... que não estava parando de sangrar...
– Filho... – o pisciano ajoelhou-se para ficar da altura do menino, pegou o pano encharcado de sangue. – O que foi isso? Você se machucou?
– Não... Saiu... Está assim... Eu tô... zonzo... Eu acho...
Máscara da Morte pôs as mão na testa do menino.
– Está com febre. Muita. – ele voltou para o banheiro. – Veste ele, Dite. Vamos para o hospital.
– Vem, meu amorzinho... – o pisciano empurrou o filho delicadamente para a porta.
– Mas, pai... Você não pode reverter o fluxo com um golpe? – Dante perguntou, buscando o olhar de Horemheb, que estava se trocando no banheiro.
– Claro... Mas eu quero saber o que está acontecendo com você, Dante. Se você não se machucou, o sangramento não é normal. – tentou parecer o mais calmo possível. Estava tão desesperado quando o sueco, mas sabia que se ele se desesperasse, Afrodite ia se descontrolar rapidamente também. Alguém ia ter de ser o adulto daquela família... E, aparentemente, seria ele...
— # —
Se vestiram e saíram rápido e , pela terceira vez, Afrodite entrava naquele hospital com seu filho. O médico levou o garoto para dentro, o examinou, estancou o sangramento com medicação e o deixou em observação em uma cama com alguns remédios para acalmá-lo, porque ele estava agitado.
— # —
– Senhor... Vündhegen e senhor Al Hat'sur.
– Somos nós, doutor.
– São os responsáveis pelo menino?
– Somos os pais.
– Bem, a hemorragia foi controlada. Ele está bem, pode ir para casa. Mas vou precisar de exames e...
Afrodite estendeu-lhe o envelope da clínica com os resultados dos exames de Dante.
– Fizemos estes exames aqui. Talvez o senhor queira ver e... Tirar suas conclusões. São bem recentes.
O médico apanhou o envelope e escrutinou os exames. Sua expressão foi mudando sensivelmente durante a leitura, mas ele julgou que, pelos soluços do homem tão efeminado na sua frente, ele já devia saber o que os exames queriam dizer.
– Seu filho parece ter leucemia.
– Parece?
– É o que tudo indica. Mas só a biópsia da medula vai poder dizer com certeza. Se vocês autorizarem, podemos fazer isso hoje mesmo.
– E se for isso?
– Isso explica a hemorragia e a febre sem outros sintomas que normalmente acompanham essas manifestações.
–O que vamos fazer com nosso filho?
– Se tudo for confirmado, ele vai ser submetido à sessões de quimioterapia, é claro. Mas só exames mais profundos vão determinar a intensidade do tratamento e talvez um transplante esteja fora de questão.
– Por que?
– Há alguns casos de leucemia infantil que regridem com a quimioterapia e se extinguem. O paciente fica em acompanhamento para sempre, é óbvio – a doença sempre pode reaparecer. Há casos mais agressivos da doença em que, infelizmente, o transplante é necessário. Há também casos em que, com a medicação, é possível regredir o quadro e obtermos amostras sadias da medula do próprio paciente que são re-implantadas. É um outro tipo de transplante, mais seguro. Mas, somente exames detalhados poderão nos dizer qual é o caso do filho de vocês e daí, qual o melhor tratamento a se seguir. Vocês precisarão de doadores de sangue, ele precisa de transfusões de plaquetas. Felizmente, o tipo de sangue dele é muito propício.
– Tipo AB. – Afrodite olhou para o exame e para a sigla que conhecia de cor. – Por que?
– Ele é um 'receptor universal'. Isso é bom.
– Mas... Ele é adotado, doutor... As chances...
– Não vou iludi-los. As chances são mínimas de se achar um doador de fora da família. Veja bem: não é impossível... Mas é improvável que ele sobreviva até vocês terem a sorte de achar um doador de fora da família. Vocês podem tentar achar a família biológica dele... Ou...
– Ou?
– Se vocês tiverem fé, pedirem muito para que a leucemia dele seja reversível apenas com os medicamentos.
– É só isso que temos? Fé? O senhor não pode nos dar mais nada?
– Infelizmente, a ciência ainda não avançou mais a ponto de eu poder prometer-lhes algo mais auspicioso. Em todo caso, preparem-se: o tratamento quimioterápico é extremamente desagradável. Ele causa muito desconforto, em especial quando os pacientes são crianças. A quimio destrói as células doentes – e tudo mais o que estiver em seu caminho. Mas ainda é a única solução que de que podemos dispor. Eu lamento.
"Lamentar..." pensou Afrodite, encarando os olhos firmes de Horemheb, que estavam recobertos por uma fina camada de brilho – lágrimas contidas. "Ele lamenta. E eu, minha deusa? Só o que me resta é lamentar também?"
– Doutor... Posso ver meu filho?
– Ele já está liberado. Podem ir buscá-lo.
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– Neném... – Máscara da Morte pôs a cabeça dentro do quarto onde a enfermeira terminava de prepará-lo para sair.
– Pai... Pai o que eu tenho?
Era preciso sangue frio para mentir para Dante. Os olhos verdes tremulavam de incerteza.
– Nada, você não viu?
– Não... Você está com uma cara ruim, muito ruim... Se não fosse nada você não ia estar assim. Me diz, pai... O que eu tenho?
– Eu já disse que nada, moleque.
– Cadê a Rosinha? – ele espichou o pescoço procurando pelo pisciano.
– Está lá fora.
– Por que ele não entrou?
– Ele está esperando, você pode sair.
– Não... Não vou se você não me disser o que é que eu tenho, pai!
– Mas que insistência é essa?
– Meu pai me traz aqui, tira sangue... Aí ele vem buscar os exames e passa mal e diz que o exame não saiu... Então, por que ele ficou tanto tempo com o médico? E depois eu passo mal e daí sangro e venho para cá e... Você aparece com essa cara de morto vivo e diz que eu não tenho nada? É mentira! O que eu tenho?
– Vem, garoto...
O menino se agitou na cama, pisoteando as colchas brancas "Fala! Fala!"
Afrodite apareceu na porta, os olhos inchados e vermelhos. Ao vê-lo daquela maneira, o garoto ficou ainda mais agitado.
– Fala! Fala!
Por fim, Máscara da Morte não suportou mais mentir para o filho; sentou-se a lado dele na cama, tentando amaciar suas voz rouca o máximo que podia, flexionando seu tom que misturava o egípcio antigo, com os sotaques do Sul da Itália e mais alguns anos de grego, apurando-o para um aveludado que só duas criaturas podiam dizer que tinham o privilégio de conhecer: Dite e Dante.
– Filhinho... Você tem... uma doença... ela... tem um nome... engraçado... é... leucemia.
– Leucemia? – o menino fez um pausa e segurou a respiração, o rosto sardento contraindo-se. – Espera ... isso é... aquela doença? Aquela! Aquela! Aquela... aquela... é câncer? Eu tenho câncer? E...
– Dante, escuta...
– Não! É aquela doença horrível! E não é como se... fosse em um peito ou útero que o médico vai lá e corta e joga fora... Não! É no sangue... É em mim todinho! Isso não tem como tirar... Eu... Eu... eu vou morrer, pai?
– Não é assim, Dante... – balbuciou Horemheb, aterrorizado com a reação do garoto – dez vezes pior do que imaginara. Nunca esperou que Dante soubesse do que se tratava leucemia.
– Você nem pode me dar a sua medula, pai... A gente não é parente de sangue... Nunca vamos achar... Eu vou morrer... – a voz infantil morreu suavemente em um cicio. Afrodite não moveu um passo da porta. Estava tão chocado que nem pôde tomar uma atitude. Horemheb tinha razão, ao repreender Afrodite por exageros, dizendo que uma criança não podia tomar conta de outra.
– Filho... Você...
Máscara da Morte acomodou a cabeça no colo da criança, como se pedisse que Dante o consolasse e gemeu: "filho... Eu vou lutar por você... Eu vou lutar! Com todas as minhas forças de cavaleiro... até estar exausto, até não sobrar um sopro de vida ou de cosmos em mim... Eu vou lutar! De armadura e sem... Você não confia em mim, moleque? Você acha que eu sou um cavaleiro poderoso? Você acredita na força do meu cosmo? Então! Então eu vou lutar... Só não me deixe lutar sozinho... Eu preciso que você me ajude... Me ajude, Dante... Me ajude!"
– Pai... – o menino levantou a cabeça do pai, com um sorriso forçado, porém muito desejado. – Vamos para casa agora, tá?
Correu os dedinhos magros sobre os princípios de pequenas rugas que surgiam aqui e ali ao redor dos olhos de Cavaleiro de Câncer. " Pai," suspirou o menino, "se você promete que cuida de mim, eu não fico mais com medo, tá?"
– Está bem. Então nós vamos, que o médico te liberou, hein?
– Tá bom.
– Nenzinho, quer vir no colo do pai?
Afrodite falou pela primeira vez. O menino lhe voltou os olhos verdes cheios de mágoa.
– Eu tenho 12 anos, Afrodite. Sei andar sozinho. – resmungou. Deu a mão para o Canceriano que o levou para fora.
– Hô... O que eu fiz? – gemeu Peixes ao ouvido do amante, quando este passou por ele na porta. Ao ouvir o lamento choroso, Horemheb tirou do bolso as chaves do carro e entregou-as na mão do menino.
– Vem, Dante. Vai para o carro e abre as portas, eu vou comprar água mineral, o Dite está nervoso.
– Tá.
Assim que o menino saiu das vistas deles, o Canceriano pôs as mãos sobre os ombros do outro, sacudindo-o levemente:
– Pare de tratar nosso filho como se ele estivesse morrendo... Afrodite, eu sei como você é... Todo coração, todo sensibilidade... Você tem que pôr a cabeça no lugar. O neném é uma criança, mas ele não é bobo. Ele já percebe e entende as nossas reações... Vamos ficar calmos. A gente tem que ser forte, está bem? Hein... Pisciano... Eu te amo, lembra? Te amo.
– Também te amo, Hô... Muito... Mas... Eu não sei o que fazer!
– Eu também não sei. Mas a gente vai descobrir fazendo. Anda, seca esse rosto de boneca e vamos em frente. Já passamos por poucas e boas e não vamos cair agora. Não antes de uma boa luta.
Encontraram Dante no carro, sentado no banco de trás com uma garrafinha d'água.
– Ué, Dantezinho... De onde veio essa garrafa? – perguntou Afrodite, tentando parecer o mais natural possível.
– Comprei ali, ó. Tem uma lanchonete na frente do hospital. – o menino sorriu, segurando a mão de Afrodite. – Eu sabia que vocês não iam comprar água coisa nenhuma, meu pai te puxou mesmo foi para conversar... Eu conheço vocês dois! Mas achei que você ia querer a água mesmo, peixinho.
– Você é tão atencioso, meu filho...
– Só porque eu comprei água? Eu, hein... Entra aí e bebe logo, senão fica quente.
Sem olhar para o banco de trás, Afrodite abriu a garrafa e bebeu um gole d'água. Olhou para o seu homem que dirigia com um meio sorriso nos lábios, pousou as mãos sobre a dele na marcha e beijou-o. Depois, murmurou, ainda sem olhar para trás.
– Já disse que te amo, menino?
Dante respondeu, a cabeça enfiada na janela do banco traseiro.
– Já. Mas pode repetir que eu não ligo.
As mãos do garoto procuraram o ombro de Afrodite no banco da frente.
– Pai... Eu vou ter que tomar aquele remédio que faz o cabelo cair, não é?
Afrodite engoliu o seco. Não tinha pensando naquilo ainda. Seu filho... Sem aqueles cachos cor de cenoura que o pisciano idolatrava como as franjas do manto de Deus.
– Nem sempre o cabelo cai. – finalmente, Máscara da Morte falou. – Tem gente que não perde o cabelo.
– Mas o meu vai cair. Será que eu fico muito feio careca?
O pisciano ligou o rádio do carro abruptamente interrompendo a conversa. Horemheb conhecia muito bem o comportamento do seu amante. Quando alguma coisa aborrecia demais Afrodite, ele simplesmente ignorava a questão o máximo que podia. Não ia deixá-lo, porém, exercitar sua infantilidade dessa vez, quando o que estava em questão era a vida do filho deles. Desligou o rádio.
– Você nunca foi vaidoso, Dante. E não vai ser ficar sem cabelos por alguns meses que vai te fazer mal, não é? – argumentou Horemheb, encarando o amante. – Você devia estar preocupado com outras coisas, meu filho.
– Com o quê?
– Com tudo que é importante de verdade: sua falta de ar, sua fraqueza, essas coisas que te atrapalham. Você vai ter que parar de treinar um pouco e evitar de ficar indo para praia o tempo todo.
– A praia só faz bem, pai!
– Não é verdade. É melhor você sossegar essa bunda sardenta em casa.
– Não gosto de ficar preso!
– Está vendo como tem coisa melhor do que o cabelo para se ocupar?
– Pai... Eu vou morrer, não vou? Eu já vi as crianças que tem essa doença. Elas ficam brancas e carecas e depois magras e daí morrem. Eu sei. Eu já vi na televisão.
– Pára o carro, Hô! – gritou Afrodite. – Pára essa merda de carro agora!
O egípcio parou o carro, atônito com a explosão de nervos do amante. O pisciano saltou do carro e entrou novamente, pela porta de trás, para sentar-se junto do filho. Apanhou o garoto, aconchegando-o ao peito.
– Anda, Hô. Vamos para casa.
O menino ia dizer alguma coisa, mas Afrodite o interrompeu. "Cala a boca você também, pirralho!"
– Ai, pai... Foi mal.
– Foi mal...humf... Cenourinha do mato! Hô... Liga o som.
– O que vocês querem ouvir?
– Eu quero Beethoven. – murmurou o pisciano.
– Eu quero Ayumi Hamasaki! – replicou Dante.
– Como não tem acordo o macho-mor da família decide: vamos ouvir uma calmante Tarantela.
– Ahhhh... brincou, pai! Faz alguma coisa, Rosinha!
– Tarantela... Quer que eu me jogue pela janela, Cavaleiro?
– Quando você queria me levar para cama... – murmurou Câncer, forçando singeleza na voz rouca. – Você fingia que gostava das minhas músicas...
– Para levar alguém para a cama a gente inventa de um tudo, você não sabe?
– Pai, põe Ayumi! Põe!
– Que porcaria de música é essa?
– A Allyanda gosta. Ela me deu o cd dela.
– Logo vi. Tinha que ter um rabo de saia na estória!
– Ah, pai... Mas eu gosto.
– Põe essa porcaria de música japonesa, Hô... Faz a vontade do anjinho...
– Mimado... Estragado... – o Canceriano ligou o som e enfiou o cd de música japonesa no player do carro. O garoto no banco de trás, meio sentado no colo de Afrodite, cantarolava a música.
"E nem começou de verdade," pensou Máscara da Morte, espiando de rabo de olho seus preciosos no banco de trás ensaiando um coro da musiquinha eletrônica.
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O exame de retirada da amostra da medula era doloroso. Introduzia-se uma agulha grande na bacia do paciente. Dante não chorou, mas partiu o coração de Afrodite ver que ele sentia dor.
Com a amostra da medula, que confirmou o diagnóstico de leucemia, os médicos precederam exames mais apurados sobre o tipo de câncer que Dante Rafael tinha. No dia acordado, foram até a clínica na companhia de Shaka – que prometera esperar do lado de fora com o menino. O médico tinha marcado a primeira sessão de quimioterapia e os pais não o queriam sozinho nem por um minuto. O virginiano se oferecera para acompanhar a criança e sabendo o quanto Dante gostava do cavaleiro loiro, Afrodite ficou mais do que feliz em aceitar a oferta.
Afrodite e Máscara da Morte entraram e saíram do consultório de mãos dadas. O resultado da biópsia da medula era assustador. Leucemia Mielóide Aguda Infantil. O médico não deu aos pais um prognóstico muito cor de rosa, advertiu-os de que a quimioterapia, devido às características e ao avanço demonstrado nos exames, seria do tipo 'vermelho', a mais forte e os efeitos seriam os menos agradáveis possíveis. Além do mais, preparou-os de imediato para começarem a busca pela medula. O médico não tinha esperanças de que a doença entrasse em fase de remissão – iam atacar com força, com quimioterapia e radioterapia, até que eles encontrassem o doador.
Quando o casal saiu da sala trêmulo, Shaka esperava ainda no hall de entrada e Dante em pé ao seu lado estava entretido em trançar os cabelos loiros do indiano, provando ao 'tio Shaka' que tinha aprendido muito bem a técnica com o próprio pai. O pequeno ruivo já estava se acostumando com aquele olhar permeado de pânico dos seus pais. Quando eles se aproximaram, ele notou um gota solitária e perolada de suor descer pelo rosto branco de Afrodite – Afrodite! –ele que nunca suava.
– Muito ruim, pai? – murmurou o menino.
– Não foi bom, filho. – suspirou Máscara da Morte. – Mas também não disseram nada que você e nós dois não soubéssemos. Pronto para começar a batalha?
– Meu cosmos ainda não está pronto.
– Ele vai estar na hora certa. – obtemperou o virginiano. – Enquanto isso, você tem o nosso.
Shaka beijou o menino na testa e se despediu com recomendações. Poderia ter ficado, mas achou que a primeira sessão de quimioterapia da criança não deveria ser um 'evento' com platéia, mas um momento íntimo da família.
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Afrodite envergava um biquinho de contrariedade perante a visão de seu adorado filho sentado na cama, com cateteres enfiado em seus braços e aquele olhar de uma desilusão profunda. Encostado na janela, Máscara da Morte apenas contemplava a cena de quando em quando, para checar se tudo ia bem. O filho ia ficando pálido e mais pálido.
Aproximou-se dele e perguntou baixinho:
– Está doendo, filho?
– Pai... – gemeu Dante. – Me chama daquele jeito, chama?
O canceriano encostou a cabeça na do menino.
– Bambino mio... Bambino mio... Não chora...
– Pai, eu tô com medo...
– Eu também, meu filho. Isso não importa. O que importa é que a gente vai seguir em frente, com medo ou sem medo, tá bom?
Antes que a quimioterapia acabasse, Máscara da Morte saiu do quarto para falar com o médico. O jovem doutor recomendou aos pais serenidade. Se o menino conseguisse andar normalmente, que o deixassem fazê-lo e não tratassem a criança com mais mimo do que o normal. Deu recomendações sobre o que ele poderia ou não comer e sobre os possíveis efeitos da quimio.
Quando o canceriano voltou ao quarto, já haviam retirado os cateteres e o pisciano arrumava o menino para ir. Com medo de que o perfume forte das rosas pudesse enjoar o filho prematuramente, Horemheb se precipitou em segurar a mãozinha de Dante e levá-lo para fora do quarto.
– Dite, pega a chave no meu bolso. Vai dirigindo.
– Eu? Dirigir? Você ficou maluco? – o pisciano debochou com um sorriso, enquanto abria a garrafa de água mineral que comprara para Dante.
– Eu vou no banco de trás com o moleque, você dirige, eu espero que você tenha aprendido o bastante para não matar nós todos.
– Eu sou um ótimo motorista, cavaleiro. – ele entregou a garrafa nas mãos do filho que os observava com um sorrisinho de canto de boca. – Dante! Não põe a boca na garrafa, deve estar cheia de germes! Eu trouxe um copinho com canudo de casa, limpinho, toma.
– Pai! Isso não é copo! Isso é a mamadeira que eu usei quando eu era neném! – resmungou o ruivo.
– Eu não achei nada melhor e não quis mandar as servas incompetentes irem buscar um copo. Depois eu compro. Anda, deixa de ser fresco.
– Mamadeira! Mas eu tenho doze anos!
– E daí? Da garrafa você não vai beber, eu não vou deixar.
Contrariado e furioso, mas vencido pela sede, ele pegou a mamadeira e a pôs na boca relutante. Antes que ele pudesse gritar "NÃO", sentiu o flash do celular contra seu rosto.
– Como você é LINDO, filho! Olha, Hô, que mimo o Dantezinho de mamadeira! Filho, não faz essa cara feroz! Você tava tão bonitinho que eu não resisti!
– Você sabe que vai apagar a foto,né?
– Vou imprimir tamanho pôster e pôr na sala.
– Chega de conversa vocês dois, vamos embora.
Máscara da Morte não gostava muito quando Afrodite tratava Dante como um bebê que nunca cresceria, como seu eterno neném ruivo que ele sentava com fraldinhas e chupetas na janela e exibia para todos os amigos como se fosse a oitava maravilha do mundo. Tanto ele estragava a criança, chamando-a de "meu neném", "neném do meu coração" ou "o neném do Dite" que a primeira palavra que Dante falou foi "neném". Ele ficou frustradíssimo, pois pretendia exibir na festa anual dos cavaleiros sua criança falante e é óbvio que esperava que o moleque os chamasse de "pai" na frente dos outros. Mas "pai" foi uma das palavras que o ruivinho mais demorou a aprender. Antes dela, aprendeu a dizer Dite, Mozinho, Mozão, Hô, Rosinha, fome, cocô e cosmos. Só então aprendeu a dizer "pai" – e com sotaque francês, dizia "papá", graças aos esforços de Camus, que nunca desistiu de ensinar o menino a falar palavras que ele julgava mais "apropriadas" para um bebê.
É verdade que ele também estava achando uma graça o menino de doze anos com a mamadeira na boca, mas não podia dar força aos comportamentos tresloucados de Afrodite. Sabia muito bem o quanto o pisciano amava aquela criança e conhecia bem o amor de Afrodite: incondicional, pleno, rico. O sueco não economizava uma gota das suas lágrimas ou sorrisos ou o que quer que fosse: quando amava, fazia-o cem por cento. Máscara da Morte tinha medo das reações de dele, tão infantil quanto o próprio filho. Os dois eram passionais, explosivos, sensíveis. Já previa as tempestades que estavam à vista.
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Mal chegaram no Santuário, a aparente calma de Dante foi se dissipando a medida que os enjôos começaram a aparecer. Todos os odores excêntricos do lugar – que antes faziam a alegria do menino – atacaram suas narinas e fizeram revolver seu estômago. Ele vomitou duas vezes antes de chegar à Décima Segunda Casa, onde, justamente pelos excessos de rosas, a crise se acentuou.
Afrodite correu com a criança para o banheiro. Apanhou no armário de Dante a "fralda da sorte", um fralda de pano velha onde o pisciano costumava a chupeta do filho; a chupeta se foi, mas a fralda ficou, porque durante alguns bons anos, o bebê ruivo não dormia se não estivesse enrolado nela. O pisciano normalmente a tirava do armário quando o menino ficava doente, porque ele parecia ficar mais sereno quando segurava a fralda, quase como um talismã da sorte.
Acabaram juntos no chão do banheiro, o menino debruçado sobre o vaso sanitário e Afrodite ao lado dele, com o copo d'água e a fralda molhada que usava para limpar o rosto de Dante. A criança misturava lágrimas e lamúrias junto com espasmos que seguiam os vômitos – ele estava só começando a perceber o que a doença lhe reservava. Ele já estava exausto e como não havia comido nada, já não tinha mais o que expelir, então ao invés de vomitar, ele apenas era sacudido por espasmos; ele se curvava, vermelho, suado e depois roxo. Demorou até que Afrodite percebesse que Dante estava histérico muito mais pelo medo do que pela reação à quimioterapia; ele abraçou o corpinho do filho por trás, envolvendo-o completamente e suspirando aos ouvidos dele "meu neném... neném..."
O menino empurrou-o para longe com toda as forças que ainda lhe restavam.
– Não, pai! Não... – ele soluçou seco. – Eu... Eu vou sujar você todo... sua roupa toda...
O sueco olhou à sua volta. O banheiro estava imundo, o chão molhado, a fralda em sua mão fedia a azedo – como se tivesse golfadas de um bebê de verdade. Ele também estava sujo, sua camisa de cambraia delicada e branca mostrava os sinais da devastação.
– Neném... Como se eu me importasse... – ele voltou a abraçar o menino. – Eu já limpei suas fraldinhas... Você já fez xixi no meu tapete persa... Agora eu limpo você de novo. E quantas vezes precisar, hein? Eu alguma vez reclamei, meu neném?
– Não... – balbuciou a criança. – Nunca...
– Então, neném... Então...
– Pai... Eu amo muito você...
– Eu amo você também, cenourinha...
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Máscara da Morte não chegou a ficar em casa para ver o desenrolar dos fatos. Ele tinha saído assim que eles chegaram, com uma lista quilométrica de itens para serem comprados, que incluíam remédios, determinados tipos de comida, utensílios e outros apetrechos que Afrodite decidira como 'indispensáveis' para os cuidados com o filho. E como o pisciano achava as servas burras demais para o serviço, confiou-o ao amante.
Quando o canceriano voltou, já começava a cair a tarde e ele encontrou Afrodite sentado ainda no chão do banheiro, cochilando enrolado em um roupão, com Dante deitado em seu colo, também enrolado em um roupão azul e cochilando de boca aberta. Horemheb então desvencilhou delicadamente o braço do pisciano que descansava sobre o menino e levou Dante para o quarto. Ajeitou-o na cama, cobriu-o, acendeu o abajur do Pink e Cérebro e beijou-o. Ele dormia como um anjo.
Voltou ao banheiro e tocou de leve no rosto do sueco, que ainda cochilava encostado contra a parede fria.
– Dante! – ele gemeu, acordando assustado, abraçando o vazio. – Cadê meu filho?
– Você estava tão cansado que nem notou quando eu tirei ele de você...
– Ai... Hô... Você está aí...
– Levanta... Você não comeu nada o dia todo. Eu mandei a servas fazerem um jantar para nós dois.
– Não estou com fome... – ele levantou-se, apoiado nos braços fortes de Câncer. – Cadê o neném?
– Botei na cama. Está dormindo tranqüilo.
– Mm.
– Vem...
– O que tem para comer?
– Ceasar Salad com carpacio. Também tem suco de amora e mousse de laranja. Está do seu gosto, milord? – brincou Horemheb, tentando animar Afrodite.
– Hô... Hô... – Afrodite atirou-se nos braços dele. – Se você não existisse, tinham que te inventar... Você é muito perfeito!
– Dite! Perfeito é você! Você não esmoreceu. Estou orgulhoso. Ficou sozinho com o menino e fez tudo direito.
– Não sei se fiz direito.
– Fez sim, você é um pai muito bom, pisciano... Muito bom.
– Será que eu sou? Será? O que eu fiz hoje com a mamadeira? Eu não fiz por querer, mas... É tão difícil, Horemheb, ver meu filho crescer assim. Eu queria que ele fosse meu neném para sempre, que eu podia me sentar no caramanchão com ele no meu colo, com a chupetinha na boca, a mamadeira de camomila do lado... Era tão simples cuidar dele naquele tempo... Ele estava tão à mercê do que nós decidíamos e da nossa vontade... Agora eu já não decido mais nada, eu só assisto. É uma sensação horrível a de sair da condição de piloto para a de carona da sua própria vida... Você não acha?
– Acho sim, Dite. Mas você hoje estava no volante...
– Me deixou dirigir por que?
– O cheiro das rosas... Eu fiquei com medo do moleque enjoar do cheiro das rosas...
– Ah... – pela primeira vez o pisciano pensou naquilo. Realmente, o cheiro que exalava dele era um odor de rosas acentuado. O bastante para enjoar o menino. – Hô... Será que eu faço mal ao meu filho?
Ele aconchegou a cabeça de belos fios azuis claros junto ao peito.
– Acho que não, amore mio... Mas mesmo que seu cheiro fizesse mal a ele, o Dante não ia suportar ficar longe de você, de qualquer maneira. Você sabe que ele te adora, não sabe?
– Meu menininho... Ele estava tão nervoso, Hô. Ele vomitou muito, muito. Foi horrível. Ele não parava de chorar, se engasgava, ficava sem ar. Reclamava que tinha dor de cabeça. Até eu abraçar ele, bem forte e acalmar ele aos pouquinhos e ele ficar menos agitado e poder parar. Quando ele ficou mais calminho, dei um banho em nós dois, porque a gente estava podre... As servas limparam tudo, desinfetaram tudo, mas ele continuou enjoado e acabamos voltando para o banheiro... Até parar de vez, ele estava tão esgotado, Hô, que eu comecei a cantar um pouco para ver se ele se distraía. Aí é que ele cochilou no meu colo e eu fiquei com medo de levantar e acordar ele... Acabei cochilando também...
– Eu sei que não deve ter sido bom, mas não era para ele ficar tão apavorado, você não acha, Afrodite?
– Eu não sei.
– O nosso pânico está deixando ele mais assustado do que deveria. A gente tem que se policiar, Dite.
– Como se fosse a coisa mais fácil... O que acha que eu sinto quando vejo meu filho com a cabeça enfiada nesse maldito vaso? Isso foi hoje, a primeira vez! Como vai ser das próximas? Quantas próximas vão acontecer ainda?
– Não interessa quantas, Afrodite. Serão quantas forem necessárias para o nosso filho ficar saudável de novo. Não adianta morrer de véspera. O que tiver de ser, será. Anda, vem comigo.
– Sabe... Falar com você me deu fome... – o pisciano caminhou até a cozinha escorado no corpo do amante, esticando os braços.
– Então vamos comer... Depois eu te dou uns carinhos... E a gente vai dormir que esse dia foi longo, não é?
– Se eu não tivesse ficado com fome, até pulava direto para o carinho, mas...
– ... Mas a gente tem tempo.
Afrodite fiou sério.
– Tem mesmo? Quanto tempo?
Máscara da Morte lhe devolveu o olhar sério. Sua voz seca proclamou:
– Uma semana.
– Uma semana?
–Para coletar e analisar o sangue de todos os nossos amigos e conhecidos e pessoas daqui do Santuário e mais a consulta de todos os bancos de doadores de medula possíveis na Europa toda. E aí...
"E aí... Ou tudo ou nada. Ou...". Voltou os olhos azuis piscina para o canceriano.
– Você teria coragem de fazer aquilo?
– Você teria?
– Para salvar o Dante? Eu teria coragem para tudo.
– Até para ficar sem ele?
– Até para isso. Se fosse para ele viver, até abrir mão dele eu abriria. Embora isso fosse como...
– Arrancar a vida da minha vida.
Afrodite suspirou contra o peito de Horemheb.
– Mais ou menos isso.
A cabeça ruiva apareceu na entrada da cozinha.
– Pai... eu tô com fome, posso comer?
– Anjinho, você levantou?
Dante estava já de pijamas. O rosto conservava um certo abatimento, mas ele não parecia muito triste.
– Ouvi que o Hô chegou. – ele enlaçou a cintura do canceriano. – Você demorou, pai. Onde você foi?
– Fui comprar coisas para você. – ele levantou o menino e sentou-o no balcão de inox da cozinha. – Quer que eu bata uma vitamina para você ou prefere comer a bananinha amassada com aveia e mel?
– Bananinha amassada. Faz pra mim?
– Faço.
Foi para o outro lado do balcão, preparar a banana e ficou de costas para o filho e Afrodite, que conversavam entusiasmados sobre certo álbum de figurinhas que ele queria comprar. Sentia as lágrimas descerem e as secava com a parte de dentro do antebraço, antes que caíssem junto à banana que ele amassava com o garfo. Queria ser como Afrodite. Queria poder rir e conversar sobre as figurinhas e chorar – gritar – quando tivesse vontade. Mas não podia. Alguém tinha que ser o valente, o durão, o que não ia chorar, o que ia levantar cabeças que estavam baixas, que ia dizer palavras de otimismo quando todos estivessem desesperando. Esse alguém não seria Dite, seria ele. Gostava de proteger o pisciano. Sentia-se bem em protegê-lo e cuidá-lo, mas Dite nunca tinha passado por aquilo. Ele sim. Já tinha tido um filho doente, já o vira morrer. Era uma dor que não desejava aos seus piores inimigos. Era um ferida. Que nunca sarava. Doía. Era uma cicatriz – não importava quando, se olhava, lá estava ela para lembrá-lo daquela dor e ela estava lá. "Osíris, meu pai, Íris, minha deusa... Meu Dante não... Por favor... Meu Dante não! "
Comeram silenciosamente, os três.
"Para salvar o Dante eu teria coragem para tudo."
As palavras de Afrodite pareciam repetir-se como um refrão enjoado na cabeça de Horemheb enquanto ele comia. O menino sentado no colo do sueco, dava o carpacio na boca do pai, alternando com as colheradas da banana amassada.
Ele também, pelo moleque, teria coragem para tudo.
Tudo.
– Pai, no que você tá pensando?
– Em tudo, filho. Tudo.
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Meus agradecimentos aos comentários sempre bem vindos de: Pipe ( me bate de gato morto sim, que eu mereço! ), Lola ( comentários offline também contam! ), Nana ( por ser uma das 'musas' do projeto todo... ), a Giselle, porque realmente a fic é triste, a Sini bobinha ( é claro que me lembro de você! ), a Paola e Litha – porque vão chorar muito! A Tsuki Koorime por ser uma Koorime e ficar triste assim mesmo, a Lady Nina e Cecília que apesar de toda a tristeza da fic, ainda conseguem gostar... A Amyzinha pelo carinho com meu ruivinho amado e a Adazinha por se prontificar a betar meus textos sempre e me alimentar com comentários que eu, como aluna de Letras, adoro...
