Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya não me pertencem e esta ficção não tem fins lucrativos de espécie alguma. Os nomes Horemheb, Dante Rafael e Allyanda são de minha autoria. Mozão e Mozinho são criações da Pipe, usadas aqui com a autorização dela.

Comentários da Autora: Alright. Um capítulo morninho entre dois capítulos de turbilhão. Uma hora essa poeira ia ter que baixar, né? Esse capítulo é longo e não tão emocionante quanto os outros, mas muito necessário. Espero que vocês gostem dele, me deu um trabalho de Hércules montar as partes. Beijocas. Obrigada pela receptividade – estou arriscando meu pescoço, mas resolvi responder às reviews no final.

Ps: outra vez a sensei não pôde betar minha fic, então... sejam bondosos...


MAIOR QUE TUDO

Capítulo 04

Sobrevivendo e Aprendendo

Dante seguiu com seu tratamento. Devidamente avisados, os cavaleiros, amazonas, aprendizes, cavaleiros de bronze – todos se dispuseram a ajudar no que pudessem, mas ninguém podia fazer grande coisa senão lamentar junto com os pais. A frase mais acertada foi a de Mu, que ao ouvir a notícia, comentou, em um sussurro que todos os cavaleiros reunidos em uma assembléia diante dele acataram: "Afrodite tem paixão, loucura por essa criança... Não importa o que aconteça. Ele vai sofrer muito se perder o menino." Saga, pai de quatro filhos, acrescentou, frio de medo: "Não é como perder um filho em uma acidente. Ou rápido. É uma doença, não? É ver aquilo que você mais ama se esvair dos seus dedos, dia após dia sem poder impedir."

Depois disso, ninguém mais disse nada. Porque nem mesmo havia mais o que ser dito.

— # —

Os efeitos da quimioterapia eram devastadores. Ninguém estava familiarizado com um tipo de medicamento que, ao invés de surtir melhoras na condição geral do paciente, fazia-o parecer miserável. A quimio tornara atividades simples como comer e sair de casa em um inferno, as rotinas da casa, dos empregados, de Afrodite e Máscara da Morte mudaram drasticamente.

Com os cuidados de higiene a casa ficou esterilizada e limpa como um hospital. Frutas de casca fina e legumes crus foram proibidos – com isso, mais da metade da dieta normal de Dante foi modificada. Ele comia, basicamente, batatas e uma ou outra receita macrobiótica que utilizasse alimentos que Dante podia comer. O menino, fragilizado pelas sessões de quimio, enjoava facilmente com tudo: para servir-lhe a comida era preciso um ventilador por perto, para que ele não sentisse o cheiro do que comia. A anemia se acentuava com o passar do tempo e ele ficava cada vez mais fraco – e embora os médicos dissessem que era absolutamente normal, Afrodite não conseguia ver nada de absolutamente normal em ter seu filho estirado em uma cama, fraco demais até para andar até o banheiro sem ajuda.

Sair de casa com Dante se tornou uma verdadeira operação de guerra. Era preciso esfregar o menino com bloqueadores solares – acima de 50 FPS, fazê-lo usar chapéu e mangas compridas. Afrodite não saía de casa sem sua enorme sacola da Kipling, preta. Em outros tempos, só andava com suas malas Victor Hugo e não trocava o couro da sofisticada grife por nada no mundo.

Em um dos raros ocasionais passeios no shopping com Afrodite, o menino ficou encantado com a bolsa que vira na vitrine – de onde pendia suwingando um macaquinho vermelho. Diante da fascinação de Dante, Afrodite entrou na loja e comprou uma bolsa para ele e outra para o menino. Sua bolsa, é claro, foi logo posta junto com outra dezena delas, daquelas que Afrodite comprara apenas para saciar sua vaidade, mas que não tinha planos de usar.

Quando Dante ficou doente, o pisciano desenterrou a enorme bolsa preta do armário para agradar o filho. Saía sempre com ela, carregando frutas que Dante podia comer, a fralda da sorte, os copos com tampa esterilizada com água, suco, chá gelado e tudo mais que a imaginação de pai de Afrodite podia conceber que fosse do gosto do menino. Trazia também mudas extras de roupa, para o caso dele vomitar e precisar se trocar, os livrinhos infantis, os brinquedinhos – cavaleiros de madeira – que ele gostava, o tocador de MP3, o guarda-chuva e o boné que serviam para aparar excessos de sol. Era uma bolsa multi-uso e que logo tornou-se uma lenda entre os cavaleiros de ouro como "o cinto da bat-mãe".

Quando saíam juntos, eram como um tropa. O canceriano carregava a bolsa de Afrodite e Afrodite corria atrás de Dante como uma galinha velha – ansiosa por estender suas asas protetoras sobre seu pintinho mais rebelde; pintinho que, por sua vez, tentava escapar das amarras da doença – até perceber, sozinho, que não podia lutar contra aquilo que se alimentava dentro dele e então, submeter-se mais docilmente à vontade dos pais.

— # —

Tudo parecia transcorrer mais calmamente a medida que os efeitos da quimio passavam, o período de aplasia. Feliz, Afrodite resolveu dar um presente para Dante.

– Anjinho, trouxemos um presente para você.

– Presente? Mas é nem é meu aniversário!

– Olha isso, Hô! Quem ouve até pensa que essa criança mimada só ganha coisas de nós uma vez por ano!

– Não, pai... Você me dá muitas coisas, mas você só chama de presente quando é no aniversário, né? Mas o que é? É de comer?

– Não! Vem...

O pisciano e Horemheb levaram o menino até o quarto e mostram-lhe o presente: uma televisão de vinte nove polegadas em uma das prateleiras de modelados do quarto verde-claro da criança.

Dante, mudo, olhava para a televisão e para os pais, os olhos verdes arregalados em espanto.

– Uma televisão! No meu quarto! Eu não quero! O que é que você quer, Rosinha? Me prender aqui? Me trancafiar? Vai pôr a minha comida por debaixo da porta quando eu ficar na cama de vez? É? Pois eu não quero!

– Mas...

– Você sempre me ensinou que não se põe televisão no quarto! No seu não tem televisão e no meu também nunca teve! Você disse, Dite! Você! Você disse que televisão no quarto é coisa de doente! Eu não quero! Não quero ficar preso, escondido, vendo essa caixa o dia todo!

– Dantezinho!

– Não! – o garoto atirou a televisão no chão e saiu do quarto correndo.

Horemheb lembrou-se, já tarde demais, que era um lema vital do sueco que não se devia ter televisões dentro de casa. Ele dizia que não poria um parelho daqueles no seu quarto jamais, para que eles não tivessem o mau hábito de 'ficarem sozinhos na companhia um do outro', que era como ele falava do ato de ver TV e que a televisão só estaria no quarto deles no dia em que não pudessem mais fazer amor ou conversar. No quarto do filho, também vetou o eletrônico ( a despeito da gritaria de Dante que queria uma TV para jogar videogame como os filhos de Shura ), dizendo que mais divertido que videogames eram os clássicos épicos gregos e que apenas doentes precisavam de uma distração como aquela da 'caixa de imagens' – uma criança sadia só ia para o quarto para dormir. Assim, havia uma belíssima TV de plasma 54'' na sala de estar da Casa de Peixes – era suntuosa, imensa e solitária.

Falta de sorte: tinha esquecido disso na hora em que o sueco lhe sugerira comprar a TV para o menino, já que imaginava que, graças à doença, a ele ficaria mais fragilizado e acabaria ficando mais em casa. Mas Dante não era estúpido e entendeu muito bem o que a TV em seu quarto queria dizer: a doença ia tirar dele o que mais amava – sua liberdade.

Olhou para o lado e viu Afrodite, sentado na cama do menino, banhado em lágrimas.

– Hô! Tudo o que eu faço agora dá errado! Olha o que esse garoto fez!

– Afrodite... – ia tocá-lo, mas o sueco levantou-se como se ele tivesse tomado um choque e foi para seu próprio quarto. Máscara da Morte já sabia que ele ia deitar-se e chorar até cansar e sair de lá com rodelas de pepino nos olhos, fingindo que nada tinha acontecido. Achou que, depois de tantos anos, estava bem que fosse assim. Mas uma guerra de nervos entre seu filho doente e seu amante sensível era tudo que ele não queria naquele momento.

Saiu calmamente para apagar o fogo do lado oposto da corda.

– Acha que o que fez foi bonito, Dante? – a voz de Máscara da Morte era grave e solene e sempre impunha respeito ao menino. Ele não respondeu e o cavaleiro continuou – Seu pai pode ter todos os defeitos do mundo e talvez a TV não tenha lá sido uma idéia genial, mas ele faz tudo pensando em você. Gastou um dinheiro, trouxe aquela bugiganga enorme pra cá e você me dá um show daqueles. Ele ficou muito magoado. Você já é um homenzinho. Quando estiver com sua armadura de ouro vai fazer assim também? Bater seu pé e fazer uma gritaria toda vez que alguma coisa te deixa puto?

– Pai, eu...

– Por mim, eu tinha te esquentado esse rabo com uma meia dúzia de palmadas para acabar com sua mal criação. Sabe... – o canceriano sentou-se do lado do menino, descascando uma maçã que pegara no caminho para o pátio interno. – Eu trouxe você do orfanato para fazer Afrodite feliz. Ver ele chorar por causa de coisas idiotas que você faz me dói muito, garoto.

Vendo que o menino estava ouvindo com atenção, aproveitou para dar todos os recados.

– Você não está doente por nossa causa. Se alguém me dissesse "Horemheb, se você se jogar de cabeça nas pedras, seu filho vai ficar bom", eu pulava na mesma hora. E o Afrodite também. Não é nossa culpa, então eu não vou aturar nenhuma gracinha sua, nenhuma mal criação. Não vamos tratar você como um pobrezinho moribundo, porque você não é. Entendeu? Nada mudou. Se você não anda na linha, apanha na bunda, entendeu? Se você é um bom moleque, a gente te trata macio. Tudo bem para você?

O ruivo levantou-se e saiu.

Ele andou pelos corredores escuros da Décima Segunda Casa, até chegar a porta do quarto do pai. Entrou sem bater e reconheceu o embrulho branco sobre a cama – era o pisciano.

– Pai... Me desculpa?

– Não. – gemeu Afrodite. – Não! Chega de tudo você entrar aqui pedindo desculpas com a cara de cachorro! Chega! Chega das suas pirraças de garoto mimado! Agora depois de doente você está ficando intragável! Nada pode perturbar o reizinho! Pedir desculpas não resolve tudo! Já está na hora de você aprender! Sai daqui! SAI! Estou de mau humor e não quero falar com você agora, sai!

– Mas... Mas...

– Sai, Dante! Quer que eu grite mais alto? SAIIIII!

Bateu a porta como um raio.

– O que foi, menino? Pediu desculpas pro seu pai?

– Não.

– Não?

– Ele não deixou!

– Não deixou?

– Ele me mandou embora.

– Dante...

O menino foi caminhando duro até a saída de casa.

– Onde você vai, Dante?

– Para a praia. Volto mais tarde.

– Eu não disse que pode sair.

– Mas eu já estou fora. – ele apontou para a linha do parapeito da porta. – Eu volto, pai. – acenou docemente para o Canceriano. Máscara da Morte limitou-se a acenar em consentimento.

Depois, balançou a cabeça. "Puta que me pariu".

— # —

– O que foi, Afrodite?

– Mandei ele embora.

– Você ficou maluco. Você é todo errado. Não dá a bronca quando tem que dar e quando resolve agir, ainda me esculhamba tudo. Afrodite, o menino tem doze anos e está com uma doença de merda que ninguém sabe se tem jeito. Agora não é a hora para forçar ele a ser educadinho. Já estragamos ele até aqui! – ele fez questão de esperar que o pisciano o olhasse nos olhos para continuar. – Eu devia ter te dado um poodle ao invés de um bebê. Você não sabe criar um menino.

Afrodite levantou-se da cama mais que imediatamente. Secou os olhos.

– Acha que não sou bom pai?

– Estou cansado de ficar no meio de vocês dois. Estou cansado de ser o bombeiro de vocês dois. Parece que eu tenho dois filhos doentes. Gerenciar vocês já está me dando nos nervos. Seja homem, Afrodite! Levanta dessa cama e pára de chorar que nem mulher por causa de tudo. O Dante é criança, mas você não!

O pisciano deu um dos seus sorrisos de sarcasmo dos velhos tempos.

– Você não achava isso antes.

– Porque quando era só você e eu estava tudo bem, Dite. Eu posso tolerar a sua criancice sem ficar magoado. Está bem, eu acho até bonitinho. Mas com o Dante, não. Você estragou essa criança e não foi por falta de aviso. Agora que ele está doente, não é a hora de corrigir tudo que a gente já fez de errado.

– Hô... Eu estou tão nervoso... Não sei o que fazer...

– Eu estou vendo que não sabe. Mas vai ter que aprender.

– Cadê o anjinho?

– Fugiu para a praia. Daqui a pouco ele volta. Vê se conversa com ele. Mas não é para passar a mão na cabeça dele, é para conversar.

– Praia? Mas não é perigoso?

– Ele já foi. Agora já era. – sentou-se na cama, vencido pelo olhar de menino indefeso que Afrodite fazia quando queria que ele o apoiasse. Como podia ter decaído de matador do Santuário para toyboy de Afrodite? Quando aconteceu de se importar mais com tudo que dizia respeito ao sueco do que com ele mesmo? – Ele estava cheio de bloqueador solar. E já passa das quatro. Não acho que vai ser tão ruim.

– Será, Hô?

– O médico disse que não tinha problema ele fazer as coisas que sempre fez, desde que tome uns cuidados extras.

– Então vou ficar na janela esperando ele...

– Já estou até vendo você correndo na direção dele de olhos molhados e pedindo desculpas ao neném...

– Hô... Eu juro que vou me controlar...

– Esse filme é de ontem. Eu te conheço.

— # —

– Que horas são, amor?

– Dez e quarenta.

– E cadê o anjinho?

– Ainda não voltou.

– Ai... Ai... Meu filhinho, Hô... Cadê ele?

– Ele volta, Dite. Está esperando você dormir, é isso.

– Mesmo?

– Ele deve estar morrendo de vergonha de você e sabe que horas você dorme, deve estar esperando, para não te pegar acordado.

– Como seu pudesse dormir com ele fora de casa!

– Pára, Dite, sossega. Esse anda pra lá-e-pra-cá já está me irritando.

— # —

Afrodite, que cochilava no sofá, pulou de susto.

– O que foi, Dite?

– Meu filho!

– Ele ainda não voltou.

– Eu sei que não. Vamos à praia buscar ele.

– Se ele já não estiver no caminho voltando.

Afrodite estava com lágrimas nos olhos, suas mãos tremiam.

– Ele precisa de mim!

– Afrodite...

– Ele precisa de mim... Ele está me chamando, Hô!

– Afrodite...

O som do telefone interrompeu a conversa. Até o frio Máscara da Morte sentiu o sangue sumir do seu rosto. Apanhou o aparelho do gancho. O sueco viu o rosto do amante ficar pálido como vela, enquanto ele repetia monossílabos entre curtos silêncios em que o provável interlocutor lhe falava.

– O que foi, Hô? Quem era?

– Era do hospital. Nosso filho caiu das pedras do rochedo e está lá.

– Ca-caiu? Como assim?

– Estava na praia brincando nas pedras e escorregou e caiu. Foi só isso que me disseram. Parece que uns pescadores, banhistas, não sei, pegaram ele e levaram para o hospital central. Por sorte é o mesmo onde ele se trata, vamos.

– Ele... Ele... se machucou muito?

– Não sei. Mas foi ele quem ditou o número daqui para ligarem. Então ele deve estar consciente. Anda, se veste, vamos buscar ele.

— # —

– O que houve, doutor?

– Ele estava brincando nas pedras, escorregou e caiu. Machucou o braço e estava fraco demais para nadar, então ficou boiando até conseguir se arrastar para areia. Encontraram ele e trouxeram para cá.

– Como meu filhinho está?

– Estava muito assustado, mas nada de muito grave. O braço está com arranhões e luxações superficiais, mas o problema é que no estado dele qualquer infecção é de risco. Eu acho melhor ele ficar no hospital pelo menos mais vinte quatro horas, em observação. Os exames dele não são bons, a imunidade dele está baixa. Será mais seguro que fique aqui, para evitar problemas.

– Posso ver o menino?

– Pode sim, senhor Al Hat'sur.

— # —

– Menino. Você aprontou, hein?

Máscara da Morte controlou seu impulso de correr até a cama e cobrir o menino de beijos, tamanho o seu alívio em vê-lo, sentadinho e despenteado sobre a cama, o braço todo enfaixado.

– Pai... foi sem querer... Eu sempre brinquei nas pedras, nunca caí.

– Devia tomar mais cuidado. Agora você tem que se cuidar mais.

– Tudo bem, eu não vou mais nas pedras. Mas é que eu não achei que fosse cair mesmo...

– Está tudo bem com você, cenourinha?

– Tá. Mas meu braço tá doendo muito.

– Mesmo?

– As enfermeiras esfregaram ele bastante... Doeu. Agora tá assim ó. – ele fez sinais com a mãozinha, indicando que o braço latejava.

– Elas esfregaram porque você não pode ficar com nenhuma infecção. Então tem que ficar com o machucado muito limpinho, entendeu?

– Entendi.

– Chorou na frente das enfermeiras?

– Não. Eu esperei elas saírem, aí eu chorei.

– Moleque esperto...

Afrodite entrou devagar no quarto. O menino abraçou-se a Horemheb, escondendo o rosto no peito do pai, evitando o sueco. Assim mesmo, Peixes andou até o menino e encostou a mão no ombro da criança, que mais que rapidamente o rechaçou com um tapa. Horrorizado com a violência do menino, Afrodite ficou com a mão estapeada no ar, boquiaberto, olhando para Máscara da Morte, até que a voz do filho o acordou do torpor: "pai, manda ele ir embora."

– Afrodite, sai. – a voz de Horemheb era calma e tranqüila, mas era uma voz que não permitia uma resposta. O sueco saiu imediatamente.

– Menino... por que você faz isso? Você não fica feliz de maltratar ele, fica? Olha a sua cara, Dante... Você fica mal quando fala assim com ele, então por que?

Os olhos verdes refulgiram, na sua imensa e desconcertante inocência infantil.

– Pai... Se ele não gostar de mim, ele não vai mais ficar triste, né?

Uma idéia idiota. Muito idiota. E muito adorável. Só poderia ter saído da cabeça de um filho de Afrodite mesmo.

– Acha que ele vai deixar de gostar de você por uma ou duas mal criações?

– Água mole em pedra dura...

– Você é bobo, garoto! Mas eu não consigo ficar chateado com você... Essa cabecinha dura e alaranjada é tão parecida com aquela cabeça dura e azul do Dite!

– Pai... Eu fiz tudo errado outra vez... Mas eu só não queria ver vocês assim, chorando por minha causa. Fiz tudo errado...

– Fez mesmo. Mas escuta... Nem eu nem o seu pai vamos gostar menos de você, por mais que você tente fazer merdas em seqüência, viu? Até porque o Dite já fez isso e eu não parei de gostar dele...

– Tá bom, pai. Depois você conta para ele que eu não tô chateado?

– Conto... Mas você vai dormir agora, não vai? Olha lá o relógio, hein? Meia noite e vinte... Isso é...

– Hora da cenoura dormir na horta.

– Muito bom.

– Pai, posso te contar como foi que eu caí do rochedo?

– Conta...

– Sabe que eu subo nas pedras assim, ó, de mão limpa, eu nem preciso de corda e nem de sapato, você sabia, pai?

– Não sabia, não.

– Não? Eu tenho que te mostrar então!

– Quem te pegou na água, Dante?

– O Mestre.

– Os pescadores?

– Não, o Mestre Posseidon.

– Posseidon? O Deus?

– Ele.

– Você conhece Posseidon?

– Ele que me ensinou a nadar, cabeção! Quem mais?

Máscara da Morte revirou os olhos, diante da naturalidade do menino.

– Quem mais...

– Ele disse que ia chamar meu pai, mas eu pedi para ele não ligar, imagina o Mozinho atendendo o telefone com o Posseidon? Ele ia ficar doido, né? Aí ele chamou umas pessoas para fazerem isso, mas elas não tinham celular, então só deu para avisar do hospital. Você ficou muito bravo?

– Não, imagina. Você já caiu de lugares mais altos antes!

– Valeu, pai!

O menino dormiu logo, assim que se fez um pouco de silêncio. O canceriano ficou ao lado dele, segurando a mão pequena na sua, brincando com os anéis alaranjados entre seus dedos. Só quando achou que ele dormia pesado, levantou e saiu do quarto. Afrodite estava sentado, encolhido, a cabeça de fios azuis afundada entre os joelhos juntos ao peito, o canceriano ouviu o doce arfar do peito daquele homem que ele amava tanto e ajoelhou-se aos pés da cadeira, alisando a barra da calça jeans de Afrodite.

– Como está?

– Meu filho está no hospital, doente e me odeia. Como posso estar? Mal.

– Seu filho está no hospital, doente e te ama. – passou a mão nos fios azuis, rebeldes, de quem saíra de casa sem tempo para vaidades. – Seu cavaleiro velho aqui também te ama, eu não mereço um olhar seu?

Afrodite levantou a cabeça. Os olhos azuis estavam acinzentados, escuros.

– Você viu o que ele me fez?

– Afrodite, se esse garoto fosse sangue seu, não seria tão parecido com você... Ouviu? Ele te adora tanto... Tanto... Que dá até para ficar com ciúmes...

– Ele estava com tanta raiva de mim, Hô...

– Não estava não... Ele só não queria que você ficasse mais preocupado... Ele acha que se você parar de gostar dele, não vai sofrer mais... – Horemheb riu. – É uma idéia tão estapafúrdia que até poderia ter saído da sua cabeça, né? Nunca pensei que ia dizer isso, mas... Eu SOU a pessoa racional nessa casa.

– É verdade isso?

Máscara da Morte ficava impressionado em como Afrodite ficava velho, mas nunca perdia seu ar de Peter Pan, como quando coçava os olhos com as costas das mãos, sem nenhum sinal de afetação sexual – que ele tinha em quase tudo. Era uma criança grande.

– É, amore mio...

– Ele se machucou muito?

– Nada. Um arranhadinho no braço. Mas tava com febre. Essa maledetta febre não vai embora.

– Ele dormiu?

– Dormiu. Me contando estória.

– Que gracinha... Ele é tão bonitinho, Hô.

– Vai lá ver ele, vai. Eu sei que você quer.

O pisciano levantou-se já com uma expressão mais animada. Beijou os lábios do outro e deixou com ele a gabardine que tinha apanhado para se proteger do frio. Entrou no quarto e se colocou sentado na cadeirinha do lado da cama do menino. Sorriu feliz, ao ver Dante dormindo tranqüilo. Beijou repetidamente a testa da criança, embevecido pela expressão inocente no rostinho do filho. Houve um tempo em que sentiu inveja da maneira como Dante dormia: tão sereno, sem medo, sem preocupações, sem aborrecimentos, sem remorsos – a consciência cristalina de alguém que nunca tinha feito mal a ninguém, nem cometido um ato vergonhoso, nem tinha sido magoado de verdade. Havia uma paz tão imensa no sono do seu filho que no começo teve inveja. Quando então passou a amá-lo, prometeu a si mesmo que a paz daquele sono jamais seria perturbada, nem que lhe custasse a vida.

Apanhou a mão do menino entre as suas, beijando-a com todo o amor, até colocar a cabeça sobre o abdômen dele, o subir e descer da respiração de Dante parecia a coisa mais bonita que Afrodita já tinha sentido. A mão do garoto pousou delicada sobre os cachos azuis do cabelo do sueco.

"Meu neném..." suspirou Afrodite.

— # —

Dante acordou cedo, com a pesada cabeça de fios azuis de Afrodite ainda deitada sobre sua barriga. Acariciou os cabelos do pai, antes de acordá-lo com seus sussurros infantis "Acorda... Mozinho... Neném... Acorda..."

Afrodite levantou os olhos, preguiçosamente e percebeu, antes mesmo de se mexer, que seu pescoço doía.

– Neném... Bom dia...

– Bom dia, Mozinho. Você não devia ter ficado assim, aposto que seu pescoço tá doendo.

– Um pouco. – riu da habilidade do menino de reparar em todas as suas menores vontades. – Dormiu bem?

– Não. Essa cama é dura. Mas hoje eu vou pra casa, né?

– Acho que não, o doutor quer que você fique por causa do braço, neném.

– Mas é só arranhão.

– Dante, é por causa da quimio. Você não pode ficar com nenhuma infecção, entendeu?

– Ah... Então vou ficar? – os olhos verdes estavam apagados. Afrodite sabia bem o quanto o filho odiava ficar encarcerado em hospitais. Não que achasse que alguém no mundo gostasse, mas seu Dante amava tanto ser livre.

– Filhote... Eu fico com você.

– Pai, eu nem te mereço, você é muito bonzinho...

O coração de Afrodite se apertou. Era seu filho falando – era a voz fina ainda da criança que ele criava com todo o amor, dizendo que não o merecia. Passou os dedos pelo rosto abatido do menino, traçando uma linha imaginária que ele ia preenchendo com beijos.

– Amor... Não faz mais mal criação como ontem, tá?

– Tá. Você me perdoa? Eu te dei mais trabalho ainda, não foi?

– Deu... Muito... Mas não é isso, Dantezinho... Eu te amo muito e ver você nessa cama me dói mais do que qualquer besteira que você me diga... Não faz mais assim, filho... Promete?

– Prometo... Pai, você dormiu tão mal, né? E o Hô também. Vai para casa. Vai tomar café em casa e tomar um banhinho de ofurô, eu espero.

– Não, anjo, não te quero sozinho.

– Mas eu não tô sozinho! O hospital tá cheio!

– Mas, meu amor...

– Vai, pai. Aproveita e busca meus bonequinhos e os meus mangás, tá? Já que eu vou ter que ficar, não quero morrer de tédio...

– Dite...

– Você dormiu aqui fora, Hô?

– Dormi. E o menino?

– Acordou, mandou a gente ir para casa e voltar com as coisinhas dele... Ele é sempre assim, né, Hô? – murmurou, já chorando, o pisciano.

– Sempre assim...

– Vamos para a casa, então?

– Ué, resolveu obedecer seu filho agora?

– Eu estou mesmo cansado, torto. Vou tomar um banho e trazer as coisinhas dele. Você vem?

Horemheb estendeu-lhe as chaves do carro.

– Vai na frente. Eu quero falar com ele um pouco e com o médico também.

– Então está bem. Quer que te espere pro café?

– Me espera para o banho, que eu prefiro...

— # —

Máscara da Morte entrou na Décima Segunda Casa para encontrar Afrodite.

– Sabia que ia te encontrar aqui. Exatamente aqui.

Máscara da Morte olhava para a esbelta silhueta de Afrodite, sentado de costas para ele no chão do largo quarto que serviu de 'playground' para o bebê Dante. O pisciano respondeu, ainda de costas.

– Sinal de que me conhece bem.

O outro sentou-se ao seu lado.

– Essa é bonita, mas preferia a azul.

– Era vagabunda, quebrou logo.

– Mas me trazia boas lembranças.

– Mas essa banheirinha branca também traz boas recordações, não?

– Lembra como era bom dar banho nele?

– Era a melhor hora do dia.

– E sabe o que eu acho que era melhor, Dite?

– O que?

Ninguém além de você dava banho no nosso filho. Doente, triste, cansado: você nunca abriu mão de fazer isso. Era você. As servas não fizeram quase nada nesses doze anos... Quando eu trouxe o Dante para essa casa, achei que ele ia ser seu bonequinho, seu brinquedo. Você ia gostar dele no começo e depois ia se cansar e deixar as servas cuidarem dele, como nos filmes: as crianças que passam o dia todo com as babás e só aparecem à noite na frente dos pais para um beijinho e mais nada? Mas não... Não... – ele passou os dedos curtos pela pele de seda do rosto do amante – Você cuidava dele de verdade, Dite. Só você. Nunca pediu ajuda, fez tudo, até o que não precisava fazer...

– É porque... porque eu amo o Dante, Hô! Eu tinha tantos ciúmes dele... Não queria que ninguém tirasse aqueles minutos comigo... Eu queria o sorriso do meu filhinho só para mim... E para você...

– Lembra, Dite... De como ele tomava banho com aquele sapo de borracha?

– Ai... Lembro... Que fazia aquele barulho horrível, aquele coaxar irritante?

– E quando ele aprendeu a apertar o sapo sozinho?

– Não... E quando ele aprendeu que o barulho do sapo chamava a nossa atenção?

– O barulho não parava! Eu queria jogar o sapo fora, mas você lembra?

– Ele chorava, fazia um beicinho de partir o coração! Ai... Me doía ver os beicinho que ele fazia quando a gente ralhava...

– Sapo de borracha... Tem tanta foto desse sapo aqui... Tudo que era foto que a gente ia tirar, tinha que ser com o sapo!

– Quando o apito quebrou foi uma choradeira...

– E você me fez sair de casa, às sete da noite de domingo, para ir na rua encontrar um sapo que fazia barulho!

– ... E você foi!

– Fui, o que eu ia fazer? Homem chorando, filho chorando... Tinha que sair de casa, né? Fiz a mulher abrir a loja que já estava fechando só para comprar o sapo e quando cheguei em casa o chorão já estava dormindo... – deu um beijo de leve na testa do pisciano. – E você também, dormindo como um bebê.

– Foi um alívio quando ele parou de chorar e dormiu. Eu sempre ficava tão nervoso quando ele chorava... Chorava junto!

– E eu não sei? Mas o pior era você, me chamando toda a hora para ver ele botar a mão na boca, engatinhar... Ele fazia tudo igual todo santo dia, mas você sempre me chamava para ver e dizia "ai, amor, mas ele botou a mão na boca diferente hoje..."

– Eu fazia isso, né?

– Você faz isso, Dite... Você me ligava de cinco em cinco minutos enquanto eu jogava bola nos domingos só para me avisar que ele estava com cólica, que ele estava espirrando ou que ele tinha ralado o dedinho no tapete da sala...

– Ah, você me deixava sozinho para jogar bola, né?

– Um único dia por semana, até eu mereço! E você podia vir junto! O Shura levava os moleques dele!

Afrodite deu um muxoxo, que se transformou em um sorrisinho.

– Eu adorava ver vocês dois juntos, lembra quando você cantava para ele? Eu achava tão meigo...

– Eu aprendi umas coisinhas em italiano... Ele gostava, né? Mas ele gostava mais daquela porcaria de música irritante de ovelha que você cantava, como era mesmo?

– Não era irritante... Era "Bä, Bä, Vita Lamm".

­– Dite, era muito irritante...

Afrodite começou a se balançar e cantar.

– Era tão bonitinho... "Bä, bä, vita lamm, har du någon ull?"

– Afrodite, você me atravessou o campo de futebol, com o menino pelado no colo, o menino não devia ter seis meses, berrando "Hô, ele ficou com o pintinho duro, olha só!". Eu não sabia onde enfiar a minha cara de tanta vergonha por mim e pelo meu filho!

Afrodite encostou a testa no ombro de Horemheb, com um meio sorriso envergonhado.

– Ai, eu fiz isso, Hô? Tadinho do meu filho, que vergonha!

– Naquela noite eles fizeram uma festa pra gente, lembra? E serviram charuto porque meu filho 'mostrou a macheza' dele pela primeira vez! O debochado do Aioria não perdia uma chance de fazer uma palhaçada dessas... Ele bebeu cinco garrafas de uísque para 'celebrar'. Safado!

– Foi tão engraçado! Ah, Hô... A gente era tão feliz... Por que tinha que acontecer com a gente? Por que com meu filho?

– Quem sabe...

– Hô... – o sueco levantou a cabeça com um ar de inquietude em seu belo rosto.

– O que?

– É hoje.

– Hoje?

– Os resultados dos exames. Hoje nós vamos saber se alguém é compatível para ser doador.

– É... O que você acha?

– Amor... Não ia ser um sonho se eu ou você fossemos os doadores?

– Ia ser mesmo um sonho, Afrodite.

— # —

– Então... Nenhum de nós é doador?

– Nenhuma das amostras é compatível com a do Dante. Agora nós colocamos o nome do menino na lista de espera. Mas as chances...

Máscara da Morte olhou para Afrodite. O sueco, de cabeça baixa, parecia não acreditar que o sonho que ele acalentava de ser o doador – o salvador – do filho, estava ruindo diante de seus olhos. Não apenas isso – ele não era doador e ninguém mais era, o que significava que restavam poucas opções.

– Bem poucas, para dizer a verdade. – completou o médico, quase que ouvindo os pensamentos de Afrodite. – Ele vai esperar... Ou vocês vão encontrar a família biológica que pode ter algum doador, mas isso também não é garantido.

– É só isso, doutor?

– Mais não podemos fazer. A leucemia do Dante é agressiva e está em estágio avançado. Não sabemos quanto tempo ele sobreviverá à quimioterapia. Ele está aparentemente bem, mas a doença é assim. Ele pode piorar repentinamente.

– Nós sabemos. Ele está acordado?

– Está sim.

– Vai poder ir para casa?

– De máscara. E com muitos cuidados. Qualquer sintoma, tragam ele de volta correndo, entenderam? Se não houver alterações, podem trazê-lo de novo na semana que vem para a próxima sessão de quimioterapia.

— # —

– No que está pensando, Afrodite?

Naquilo, Hô. O que você acha?

– É... Agora é a hora.

– Você vê isso para mim? Eu levo o anjinho para casa, instalo ele lá com todo o conforto, boto ele para descansar um pouco, chamo o Shaka ou o Camus para ficar com ele e depois... A gente vê aquilo.

– Tá. Fica então. Eu vou de carro para casa, você pega um táxi... Eu prefiro, que assim você fica com ele e alguém dirige para você...

– Está bem... Me dá um beijo?

Sentiu os lábios de Afrodite trêmulos e frios.

– Dite... Dite... Seu eu puder fazer alguma coisa por você...

– Já está fazendo, meu amor... Já está fazendo.

— # —

– Senhora...

– Pode me chamar de Saori. Sei porque veio.

– Então não vou perder nosso tempo repetindo.

– Sabe que o que quer é muito perigoso.

– Não tenho mais o que perder. Nada. Não agüento mais ver Afrodite e Dante sofrendo sem a gente poder fazer nada.

– O oráculo não é como um jogo de cartas, ou uma consulta astrológica, Horemheb. Ele costuma ser bastante vago nas suas respostas – isso quando ele oferece alguma. Ás vezes é preciso dias de insistência para conseguir uma frase, ou mesmo uma palavra que não faz sentido. O Oráculo não mente, mas escolhe maneiras 'sinuosas' de dizer a verdade.

– Eu sei. Mas uma fagulha de resposta já é melhor que resposta nenhuma.

Ela suspirou.

– Não houve doador, não é?

– Não.

– Não há garantias. É só o que eu quero que vocês saibam. Eu ia ficar muito mais apreensiva se eu visse vocês cheios de esperança e depois... O oráculo é muito incerto. Eu lamento não poder fazer muito mais.

– Já está bom assim, se puder conseguir que a gente consulte o oráculo para achar... Aquelas pessoas.

– Deve ser muito duro ter que recorrer a eles agora, não?

– Duro, não. Humilhante. Eu não contei para o Afrodite, porque ele não precisava saber, mas... Quando eu peguei o menino no orfanato, pedi pro Aioria pegar junto as fichas e todos os registros dele. Depois, eu li com calma. Encontraram o Dante na rua atrás do orfanato, enrolado em jornal e dentro de um caixote desses de papelão, parece que era a caixa de uma TV. Esse tipo de gente são os pais biológicos dele. Se eles deixaram o garoto para morrer assim, o que... O que garante que vão querer ajudar agora? Essa gente não dava a mínima para ele! Mas, por outro lado... O que nos resta? Esperar vendo nosso filho definhar até morrer, esperando por uma medula que pode não chegar nunca?

– Eu entendo. Falei com os sacerdotes. Podemos ir até Delfos amanhã mesmo. O sacerdote pediu que não levassem o Dante. Pode atrapalhar, porque ele está doente. A energia fica baixa ao redor de quem está doente, você sabe...

– Sei... Amanhã, então?

– Amanhã. Mas Máscara da Morte... Lembre-se... Talvez não consigam nada de primeira...

– Já entendi. Obrigado, Senhora...

— # —

– Pai, quando a gente vai embora?

– Estamos esperando o táxi. Eu pedi para ligarem para recepção avisando quando ele chegasse, não quero que você apanhe sol e poeira lá fora à toa.

O menino coçou os cabelos ruivos por debaixo do chapeuzinho.

– Ai, pai... Eu tô abominável homem das neves.

– Filhinho... Você não pode pegar sol.

– E onde é que eu ia pegar sol?

Afrodite olhou para o filho. Apesar de estar quente em Atenas, ele estava com calça jeans, camiseta, jaqueta, meias, tênis, chapéu e as poucas partes da mão que estavam descobertas, devidamente besuntadas de bloqueador solar. "É, não tem muitas partes descobertas onde ele poderia pegar sol..." pensou Afrodite, rindo suavemente. O menino estava mesmo engraçadinho, todo coberto.

A enfermeira entrou no quarto.

– Senhor, seu táxi chegou.

– Obrigada.

– Tchau, enfermeira Voulos.

– Tchau, menino Dante!

– Já fazendo graça para a mulherada, você é igual ao Hô... – brincou Afrodite, entrando no táxi.

– Pai, se as enfermeiras gostam de você, você tem muitas vantagens no hospital.

– Que menino esperto, Zeus! – ele viu o menino se ajeitar no banco e, suavemente, pousar a cabeça ruiva contra o ombro dele. – Neném... Eu tirei a TV do seu quarto...

– Paizinho, desculpa... Eu não devia ter feito aquilo.

– Tudo bem... Eu pensei melhor... Não interessa o que aconteça, anjo... Se você tiver que ficar no quarto, não vai precisar de TV: eu vou ficar com você o tempo todo... Quanto tempo for preciso, eu vou te distrair, eu vou brincar com você, ler seus mangás, brincar com seus bonequinhos. O tempo todo. Não vai precisar que uma caixa eletrônica te faça companhia, tá? Eu fico com você...

– Ah, Mozinho... Você é tão bonzinho... Você sempre me desculpa por tudo...

Afrodite não conseguiu conter suas lágrimas. Abraçou o menino, já soluçando.

– Amor da minha vida... Eu queria tanto doar minha medula para você... Tanto!

Com a cabeça acomodada nos braços do pai, o menino suspirou, tristonho "Eu também queria... a sua medula... Meu sangue ia ser um pouco como o seu... Daí eu ia ser mais seu filho ainda... Mas eu não ia ter tanta sorte assim, né?"

– Não tem nada nesse mundo que fizesse você mais meu filho do que você já é agora, garoto...

– Pai... Não acharam nada, né?

– Não... Mas não importa, meu filho, eu te juro: se tiver um único ser humano vivo sobre a face desse planeta com uma medula compatível com a sua, eu vou achar essa pessoa, onde quer que ela esteja e arrasto, arrasto esse infeliz até aqui para curar você!

– Eu sei... Não teve nada que eu pedi para você que você não me deu, Mozinho.

– Eu vou continuar te dando tudo que eu puder e que eu não puder também, Dante...

Quando Afrodite chegou ao Santuário, foi recebido por uma repentina mudança no tempo. Estava chovendo torrencialmente. O menino reclinado em morno abandono em seu colo dormia. Acordou-o, pagou o táxi e saltou, desconsolado, refugiando-se sob um pequeno resto de teto de uma ruína ainda nas vilas ainda próximas, mas já incluídas nos perímetros do santuário. Olhou em desespero para o menino, que ajeitava a máscara, incomodado.

– Neném, espera... Eu ligo pro teu pai e ele vem buscar a gente.

– Tá...

O Canceriano não demorou a aparecer, com dois guarda-chuvas. Deu um para Afrodite subir sozinho e carregou o menino no colo, olhando de soslaio para o pisciano. Ele, que conhecia bem aquele olhar de Horemheb, tratou de subir correndo. Chegaram na Décima Segunda Casa muito rápido e puseram a criança na cama, beijando-o ternamente enquanto ele resmungava alguma coisa sobre 'sentir muita falta de ar'. O canceriano puxou Afrodite para o lado de fora.

– Ele está com febre, Afrodite.

– De novo?

– Ele estava todo molinho, Dite. A gente não devia ter tirado ele do hospital.

– Ai, meu Zeus... Pega o termômetro, pega? Eu quero ter certeza antes de levar ele para lá de novo.

O termômetro confirmou o que Máscara da Morte dissera: trinta e nove graus.

– Filhotinho... – suspirou o pisciano, recolocando o termômetro na caixinha – Você tá com febre...

– Não... Eu não quero voltar para o hospital, pai, por favor...

Despencou o rosto entre as mechas azuis do cabelo de Afrodite, o corpinho balançando de tanto chorar.

– Neném, você precisa ir...

– Não, paizinho, não... Me deixa ficar, eu vou ficar bom, eu juro...

Afrodite olhou para Máscara da Morte, buscando alguma orientação. O canceriano foi categórico – como convinha ao adulto da família.

– Vamos levar ele agora. – viu o cansaço turvar os olhos azuis que tanto amava e ouviu o bufar de cansaço de Afrodite. Acrescentou:

– Se quiser... Pode ficar. Eu levo e fico com ele essa noite. Você está cansado, Dite. Fica em casa e descansa um pouco.

O sueco o encarou, o queixo apoiado na massa alaranjada dos cabelos do filho.

– Acho que vou ficar, então.

Ele segurou o rosto molhado do filho entre os dedos:

– Você se importa, neném, se eu não for hoje?

Horemheb viu o pânico estampado nos olhos do menino. Ele tremia, em silêncio, piscando os olhos úmidos muito rápido. Por fim, soltou-se aos poucos do corpo de Afrodite e sem ter como falar, apenas balançou a cabeça, como um 'não'.

– Obrigadinho, anjo. Amanhã de manhã bem cedo eu vou estar lá.

Máscara da Morte vigiou atentamente as reações do filho. Talvez não tivesse sido uma boa idéia sugerir que Afrodite ficasse. Por mais inofensiva que tivesse lhe parecido a oferta – feita ao amante tão cansado – esqueceu-se de que para o pequeno Dante Afrodite era o mundo. Teve ganas de pedir que o sueco fosse assim mesmo, mas teve pena dele. Olhou para Dante mais uma vez. "Calma, menino", pensou consigo mesmo, "é só uma noite... Só uma noite sem ele."

Um pálido Afrodite arrumou algumas coisas na bolsa preta, enrolou Dante em um edredom pesado e pôs uma touquinha nele, para 'proteger do sereno'. Horemheb apanhou o menino no colo e desceu novamente as Doze Casas, até o estacionamento próximo onde guardava seu carro. No seu colo, o menino não disse uma palavra. Mas o canceriano sentia seus ombros molhados. Ele estava chorando. Esperou chegarem no carro, acomodar Dante no banco da frente e começar a dirigir para conversar.

– Não chora, Dante. Você sabia que ia ter que ficar algumas vezes no hospital.

– Pai... Você não vai me deixar lá, né?

– Como assim?

– Assim, quando eu estiver muito doente, você não vai me devolver para o orfanato nem me dar para o hospital, né?

– Ninguém dá criança para hospital, não, cabeçudo. E tem mais: orfanato não aceita devolução. – olhou para o menino que ensaiou um soco de leve no braço dele. – O seu braço está melhor?

– Parou de fazer aquilo. – ele mostrou novamente o sinal de 'latejar'.

– Filho, você não pode ficar assim. Você não está se ajudando.

Olhou para o menino jogado no banco. As luzes dos postes passavam por ele, iluminando o rosto branco. Máscara da Morte nem conseguia explicar o quanto amava aqueles olhos verdes. Por fim, Dante falou.

– Desculpa, pai.

– Não pede desculpa o tempo todo. Você já é um homenzinho.

– Eu tenho medo.

– Medo de que?

– De ficar muito doente e o Dite não me querer mais.

– Isso não vai acontecer.

– E se acontecer?

Eu ainda vou te querer.

– Mesmo?

– Mesmo.

– Eu tenho medo de ficar sozinho.

– Não vai ficar. Escuta... Seu pai tá cansado. Ele é muito sensível. Mas não quer dizer que ele não te ame, viu? Lembra aquele dia? Que você e eu prometemos que a gente ia cuidar dele? Para sempre? Então. Vamos deixar ele descansar só por hoje. Amanhã ele vai estar cem por cento.

– Tá, Hô. Você tá certo.

– Olha, já chegamos.

Os olhos verdes do menino caíram em desdém sobre o prédio de três andares, lindamente decorado com um verde suave, encarrapitado no centro da cidade como um pequeno anel de esmeraldas incrustado no centro de um veludo escuro de uma caixinha.

– Odeio esse lugar... – gemeu Dante.

— # —

– Alô?

– Não pensei que fosse estar em casa, Peixes. Me disseram que viram Máscara da Morte sair com o menino.

Culpa.

Até a deusa o julgava. Sua voz de veludo baixou no tom.

– Senhora... É que eu fiquei. Estava muito cansado.

– Ah, sim. Pois bem. Liguei para confirmar – os sacerdotes prepararam tudo para vocês irem até Delfos amanhã consultar o Oráculo.

– Amanhã? Tão rápido...

– Eu pensei que vocês tinham urgência.

– Não, não... Está certo, temos mesmo, muita urgência.

– Então o meu carro vai passar para buscá-los. Vou mandar o carro passar e buscar o Máscara da Morte no hospital, está bem?

– Sim... Eu peço para Shaka ou Camus irem ficar com o Dante.

– Claro, eu os liberarei das atividades costumeiras para que eles fiquem com o menino. Mas não se preocupe – acredito que não vá demorar muito.

– Será?

– É o que eu sinto.

– Está bem, obrigado, Senhora.

– Vejo vocês amanhã. Boa sorte com o menino, Peixes.

– Obrigado. Boa noite.

"Amanhã", pensou Afrodite, caminhando, já nu, em direção à sua banheira. "Amanhã o maldito oráculo vai dizer o que será das nossas vidas... Minha deusa... Eu só posso recorrer a você... Proteja o menino e me dê forças... Eu preciso de forças... Hoje eu nem consegui voltar para o hospital... Não suporto mais ouvir meu filho chorando, minha deusa..." Ele entrou na água e viu seu reflexo enviesado no belo espelho do banheiro.

"Eu tenho um pressentimento sobre essa consulta."

"E não é bom."

— # —

Gente, muito obrigado pelos comentários de sempre. Vocês são maravilhosos. À Paola Scorpio, por ser esperta o bastante para adivinhar o que eles iam fazer ( embora eu deteste fazê-los procurarem os desnaturados pais do Dante! ), à Giselle, por suas reviews que sempre me deixam orgulhosa por comentarem detalhes do texto mais técnicos, à bobinha da Sini que acha que eu esqueço dos outros ( vou te mandar um email hoje, viu? ), à Pipe, que a despeito de ser uma pessoa de coração gelado capaz de matar o Mozinho ( depois eu é que sou má! ), ainda fica triste pelo ruivinho. Adoro seus comentários de 'mãe' – você deve ser dos poucos leitores que têm filhos, então para você esse universo 'materno' deve estar ainda mais próximo. Especial à Tsuki Koorime, pela sua delicadeza em repartir comigo ( e com todos ) a sua estória de vida. Fico feliz de saber que tudo deu certo na sua família! Minha mãe também teve câncer e também saiu dessa – mas eu lembro bem como foi difícil. À Bruna Apoena, por ser minha fã! Muito obrigada! E à Ada por tudo e mais um pouco. Xêro, Sensei! E para Pime-Chan por gostar da estória. Ok, Dante e Horemheb são nomes exóticos... mas depois que você acostuma... Hehehe. Beijinhos!