Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya não me pertencem e esta ficção não tem fins lucrativos de espécie alguma. Os nomes Horemheb, Dante Rafael e Allyanda são de minha autoria. Mozão e Mozinho são criações da Pipe, usadas aqui com a autorização dela.

Notas da Autora: Demorou, mas chegou. O capítulo 05 é imeeeeenso e ele foge um pouco ao meu padrão de manter capítulos girando em torno de um tema central. Este capítulo é um pouco disperso, porque se fala de muitos 'momentum'. Enfim... Muitos cortes bruscos. Estejam atentos. Beijocas, Rê.


MAIOR QUE TUDO

Capítulo 05

Sangue

— # —

– Dite...

– Hô? O que foi? Aconteceu alguma coisa?

– Não, só liguei porque... Fiquei com saudades...

– Não... Não repete isso senão me visto e vou correndo até o hospital só para te abraçar...

– Dite, eu... Não devia ter te dito para ficar. O menino ficou assustado, ele está com medo de você não gostar mais dele, ele chorou até a hora de dormir, acho até que só dormiu porque estava cansado de tanto chorar.

– Hô! Por que é que você não me ligou? Eu tinha ido correndo até aí! Zeus... Quer que eu vá agora?

– Não, ele já dormiu. E ele não pode ser tão apegado assim, Afrodite. A gente nunca vai faltar a ele por querer, mas já pensou se acontece alguma coisa? Se a gente fica doente ou não pode vir um dia, ele tem que agüentar passar uma noite sem nós.

– Não, ele não tem. Se ele me quer com ele, vai ter.

– Afrodite, você não está ajudando. – suspirou fundo, um abatimento profundo na voz rouca. – Vem amanhã bem cedo, antes do carro de Athena vir nos buscar. Assim quando ele acordar você vai estar aqui e... Com você aqui ele fica... Feliz...

– Tá, está bem... Amor, estou te achando cansado...

– Eu estou bem.

– Você comeu?

– Uma coisinha aqui na lanchonete do hospital.

– Uma coisinha, Hô?

– Afrodite, eu já passei fome na vida. Um folheado e um refrigerante enchem a minha barriga muito bem por uma noite.

– Eu sei muito bem como você é. Amanhã eu mesmo levo o café da manhã e você vai comer direitinho antes de nós irmos para Delfos...

– Afrodite, eu...

A voz do pisciano encheu-se daquele mel que estilhaçava em mil fragmentos o coração de Horemheb.

– Deixa eu mimar e cuidar de você? É a coisa que mais me dá prazer na vida...

– Tá bom... Tá bom... Como você quiser, Afrodite...

– Te amo.

– Também te amo.

— # —

Afrodite chegou cedo ao hospital, com uma bolsa térmica enorme onde carregava um 'mimozinho' para o canceriano – a palavra que ele usara, 'mimozinho', não fazia justiça ao tamanho da bolsa nem ao lauto café da manhã que preparara. Mas mal ele chegou, galgando corredores esbaforido e ensonado, viu Máscara da Morte que saía do quarto, com o celular na mão. Antes que dissesse algo, sentiu seu bolso vibrar.

– Hô! Estou aqui! – reclamou o pisciano, sem poder atender o celular que já tocava.

– Você demorou! O menino está desesperado, acordou e não me viu, porque eu tinha ido ao banheiro e ficou doido quando liguei para casa e você não estava, ele não pára de chorar.

– Hô... Eu cheguei o mais cedo que deu! São vinte para as cinco da manhã...

Só então Horemheb olhou o relógio no pulso e viu que era muito cedo ainda. Muito mais cedo do que Afrodite jamais acordava.

– Vai lá ver o menino, Dite...

Afrodite abriu a porta do quarto e viu seu filho despenteado e de olhos vermelhos sobre a cama, coçando os pés pequenos com um beiço enorme. O menino avançou contra o pai, pulando em seu colo e começou a chorar – alto, de boca aberta, inconsolável, como se alguém o estivesse batendo com força. O sueco levou longos quarenta minutos, sentado na cama, ninando o filho nos braços, até que as lágrimas secaram e Dante serenou, o pai afagando-lhe os cabelos ruivos, colados no rosto úmido.

– Psss... psss... O que foi, meu filho? O que foi?

– Pai... Pai...

– Não me diz que você achou que eu não ia voltar?

– Achei.

– Bobo! Bobo! – beijou a testa do menino – Você é minha alma, você é meu coração... (1) Ninguém pode viver sem sua alma e sem seu coração... Você é tudo para mim... Tudo.

– Pai... Você tá bonito, vai sair?

– Vou... Eu e o Hô... Vamos até Delfos. Vamos fazer de tudo para achar uma medula para você, meu filho.

– Não, pai... Não vai... Por favor...

– Eu volto, amor...

– Não é isso, pai... Eu tô com medo... Não vai... Você vai procurar eles... Eu não quero, por favor, eu não quero, eu tenho medo...

– Você tem medo de quê?

– Se eles me pegarem?

– Não vão pegar, nunca! Você é meu! Meu! Ninguém vai te tirar de mim!

– Pai... Melhor morrer sem medula do que perder você e o Mozão... Me salva, pai, eu não quero ir com ninguém, eu não quero ver eles, eu tenho medo!

– Pss... Amorzinho... Você não vai a lugar nenhum, tá? Você vai ficar com seu papai e pronto. Com seu pai, entendeu?

– Tá...

– Anjo, o Shaka está gripado então não vai poder vir. Quem vai ficar com você é o Camus, está bem?

– O Miro vem junto?

– Acho que sim, por que?

– Ele não gosta de mim.

– Você cismou com isso, né? Claro que o Miro não gosta de criança como o Shaka, por exemplo, mas ele não desgosta de você, Dantezinho.

– Mas é verdade. – ele puxou as mechas azuis de Afrodite e brincou com elas, já com um meio sorriso nos lábios. – Pai, a Allyanda não vem me ver por que?

– Não sei. O Saga disse que ela estava se preparando para receber alguma coisa de feiticeira na Ilha, não entendi bem, parece que ela não pode ficar perto de doentes.

O menino ficou pensativo. Depois, completou:

– A energia de quem tá doente é baixa. Se ela está se preparando pro ritual das feiticeiras, não pode ficar perto de doente nenhum.

–Então... Quando tudo estiver certo, ela volta, não é isso?

– Isso, pai. Tomara que não demore.

O Canceriano entrou no quarto com a bolsa, já de rosto lavado e parecendo menos com uma fronha amarrotada.

– Hô! Você está aí! Entra e toma o café que eu trouxe.

– Essa bolsa é pra mim?

– É sim! Tem suco de mamão, queijo branco, queijo de cabra, maçã, brioches, presunto de peru e geléia de morango. Está bom?

– Tudo ótimo. – debruçou-se para beijar os lábios carnudos de Afrodite. – Você é ótimo.

— # —

Depois do café em família, Afrodite pacientemente conversou com o filho sobre o tempo em que estaria fora e que talvez ficasse mais do que gostaria. Lembrou o menino das leituras dos épicos e tragédias gregas, fazendo-o entender que o Oráculo tinha seu próprio tempo e que eles não podiam fazer nada. Dante ouviu atentamente, bebendo o suco de mamão, enquanto Máscara da Morte penteava seus cabelos e o arrumava. Afrodite garantiu que Camus ou Shaka estariam sempre com ele, não ficaria sozinho no hospital nem por um minuto. Deu ao menino um celular com câmera, preso por uma bela corrente de ouro, que o pisciano pôs no pescoço do filho fazendo-o prometer que manteria o aparelho junto dele o tempo todo e que qualquer coisa ligasse para eles imediatamente. O carro da deusa veio buscá-los e com Saori, Camus, que veio para ficar com o garoto.

— # —

Delfos era quente e sufocante. As ruínas eram sujas e os sacerdotes tinham uma aparência que não lembrava em nada as adaptações glamurosas dos épicos gregos para as telas de cinema. Eram homens barbudos e sujos. Não havia estrutura de espécie alguma para hospedagem ou para alguém ficar instalado esperando a resposta do Oráculo e o hotel mais próximo ficava longe demais. Afrodite já chegou passando mal ao Templo – enjoado, tonto, com dores de cabeça. Máscara da Morte brincava que ele devia estar grávido. Estavam ambos tensos e de cara, os sacerdotes disseram que o oráculo precisava de ouro para falar.

Afrodite já tinha previsto tal coisa e levara algumas jóias. Era uma lição antiga do seu mestre que ele não esquecia: os deuses gregos não eram bonzinhos. Eles eram pragmáticos. Ajudavam quando lhes convinha e ponto. Se o pedinte era generoso, receberia generosidade. Para o sueco mesmo isso não era nada demais – só queria ter certeza de que fazia uma oferta justa pela grande coisa que estava pedindo. Imaginava que a deusa que lhe emprestava um nome ficaria contente com suas melhores jóias de família e o favoreceria com a resposta que queria.

A resposta, contudo, demorou. Passou-se um dia, dois, três. Todos os dias eles ficavam desde o amanhecer até a noite, na entrada do templo, sob o sol impiedoso da Grécia, esperando pelo sacerdote que saía de lá, sem nenhuma resposta.

Na manhã do quinto dia, Afrodite, já moído pelas acomodações horríveis e pela alimentação muito diferente da que estava acostumado, acompanhou o canceriano, subindo as escadas do templo com o amante. Máscara da Morte era um touro de tanta força, mas ele estava mais pálido do que de costume.

– Hô?

O canceriano cambaleou levemente. Afrodite ficou azul, sentiu o sangue fugir das suas veias ao ver aquela massa enorme de homem – a sua rocha – com as pernas moles, as mão grossas na cabeça, gemendo de dor.

– Hô, amor... Fala alguma coisa, o que você tem?

O canceriano continuava com as mãos na cabeça, gemendo. Afrodite sentou-se em um dos degraus externos do templo, junto com Horemheb, pôs a cabeça do seu homem no colo, afastando os cabelos grossos e lisos do amante.

– Fala, Hôzinho... – suspirou, já chorando – Zeus... Qualquer coisa, mas o Hô não... Ele não... Por favor...

Sacudiu suave a cabeça de Máscara da Morte, os olhos de seu homem se fecharam lentos, agoniados.

– HOREMHEB! Acorda, acorda! Você morreu, amor? Você me deixou?

Gritou em desespero o mais que pôde. Gritou tanto que os olhos de Horemheb reabriram-se com certo esforço.

– Que grito, Dio Mio... Ninguém pode morrer com tanto barulho...

– CRETINO! – Afrodite lhe deu um safanão, empurrando-o para fora do seu colo ao vê-lo erguer a cabeça com certa dificuldade. Estava sentindo dor, sem dúvidas, mas estava longe de parecer que ia morrer.

– Bobo você de achar que eu estava morrendo... Sabe que eu tenho isso sempre, não sabe? – murmurou baixinho o canceriano, massageando as têmporas doloridas.

– É mesmo, eu estava tão nervoso que esqueci... – olhou com um beicinho apaixonado para Máscara da Morte. – Isso não vai te matar, vai, meu amor?

– Ninguém coleciona cabeças mortas impunemente, Dite. A maldição da agonia da morte daquelas pessoas vai me perseguir para sempre, até o meu último morto resolver me perdoar. Mas... Se não me matou até hoje, depois de todos esses anos...

– Mortos estúpidos! Maldição estúpida!

– Se é só essa dor que vai me servir de castigo pelo que eu fui, não me incomoda em nada. Eu recebi muito. É justo que eu dê alguma coisa em troca, uns momentos de dor para me lembrar de quem eu sou... Mesmo que as cabeças não estejam mais lá, Dite... Elas estão aqui... – ele bateu no punho para Afrodite ver. – O cheiro do sangue me persegue.

– Por que então nenhum maldição me persegue? Sou tão assassino quanto você!

Máscara da Morte inclinou-se e beijou os lábios afogueados de Afrodite.

– Porque Zeus poupou você.

– Hô, você não me acha mesmo horrível, né?

– Você só era um menino vaidoso. Mais nada.

– Era tão ruim quanto você... Mas você foi mais punido do que eu...

– Não pensa nisso. Pensa que nós temos um ao outro e temos o nosso filho.

– Será que o Oráculo vai dizer alguma coisa?

– Vai... Senão eu agarro aqueles sacerdotes e forço eles a verem alguma coisa na base da porrada – como nos velhos tempos!

– Esse é o Hô que eu amo! Ainda dói?

– Vai doer até amanhã. Mas dá para ficar de pé. Olha – ele apontou para trás. – Vem o homem de saia...

– Pára, Hô! Respeita o sacerdote. Lá vem a empertigada da deusa também...

Saori, ao lado do sacerdote, ostentava suas vestes de deusa e seu báculo.

– O Oráculo trouxe um nome de mulher. – ela proclamou, séria. – E um país. Mas... Talvez essa não seja a mãe dele, nem este país seja o lugar de onde ele veio. Eu só posso garantir é que esta mulher de alguma maneira vai ajudá-los, porque o Oráculo não mente.

– Qual é o nome? – perguntou Máscara da Morte, ligeiramente desconfiado da súbita precisão do oráculo.

– Wilma von Platen e o país... – a deusa balançou a cabeça. – Suécia.

– Suécia... – Afrodite ficou atônito.

– Afrodite?

– Von Platen... von Platen... Não me é estranho totalmente.

– Pisciano, me escuta...

Qualquer tentativa do canceriano de tirar Afrodite daquele torpor era inútil. Ele parecia estar em outra dimensão.

– Mas von Platen também não é um nome de todo incomum na Escandinávia...

– Dite?

– Suécia... Por que? Maldita Suécia... Wilma... Wilma... Um nome velho... Só famílias tradicionais costumam dar esses nomes de velhos pros filhos...

– Dite? Você tá me ouvindo?

– Não devia me surpreender... Sangue ruim. Ruim.

– DITE!

– Hn? Máscara da Morte... Me deixa sozinho.

– Mas...

– Me deixa sozinho, por favor.

– O que você vai fazer sozinho?

– Pensar.

– Pensar no quê?

– No que vou fazer. Eu vou para aquela espelunca juntar as minhas coisas. Me espera no restaurante?

– Afrodite...

– Faz isso? Depois te encontro lá.

– Está bem.

– Psiu! – o sueco puxou o amante que já ia saindo cabisbaixo. – Te amo...Como você vai embora sem me dar um beijo?

– Se cuida.

– Vou me cuidar.

— # —

Afrodite fez a viagem de carro até Atenas chorando, as lágrimas escorriam por detrás das lentes grandes e arredondadas dos óculos escuros. Máscara da Morte o conhecia bem demais. Ele não chorava de tristeza, mas de raiva. Ele só não entendia o porquê. O pisciano era muito apegado às jóias, mas ele não ficaria menos rico por isso; além do mais, ele amava o filho mais do que qualquer anel ou cordão que ele tivesse entregado à deusa.

Quando chegaram em Atenas, o sueco mandou que o canceriano fosse buscar o menino no hospital – se o médico o tivesse liberado – e pediu que ele aproveitasse para comprar bananas, a fruta preferida de Dante. Era um pedido sincero, mas também era uma desculpa para ficar sozinho. Assim que o canceriano o deixou em casa e saiu de novo, Afrodite apanhou o telefone e brigou durante quase uma hora com seu orgulho até que – num supremo esforço – levantou o aparelho do gancho.

– Mansão Vündhegen. Pois não?

– A Senhora Vündhegen, por favor?

– Ela não se encontra. Quem deseja falar com ela?

– Diga para mamãe que sou eu, o Axel.

– Axel?

– Eu mesmo, Kolmen. Está surpreso? Não estou morto.

– O senhor seu pai...

– Eu não tenho pai. Avise ao professor que quero falar com a senhora.

– Quer que eles o procurem, Senhor Axel?

– Não. Não quero que cheguem perto nem do meu homem nem do meu filho. Diga para ela me ligar. Ela sabe como.

– Sim, senhor. Devo avisar seus irmãos?

– Avise ao Gunnar que eu vou à Suécia. Talvez... Se eu for, quero ficar perto do jardim, então mande ele desocupar o lado da casa. Se eu sou o cavaleiro, então eu tenho meu privilégios na família. Vou começar a exigir todos eles...

– Sim, senhor Axel.

Desligou o telefone, suando como se tivesse travado uma ferina luta. E tinha mesmo: uma luta interna. Voltar à mansão dos Vündhegen era tudo o que não queria.

Saiu da saleta, quando viu Máscara da Morte.

– Já chegou amor?

– O menino está no quarto.

– Está? Eu não ouvi o barulho.

– Você estava... distraído.

– É... – o sueco corou. – Mais ou menos. Como ele está?

– Veio dormindo. O médico disse que ele está mais animadinho.

– Que bom. Eu vou tomar um banho para tirar essa sujeira da viagem, lavar bem as mãos e ver meu filhote. Trouxe as bananas?

– Trouxe. E mandei fazer o bolo que ele gosta.

– Tá bom... Você está estranho, Hô.

– Eu?

– Você...

– Não é nada.

Afrodite terminou o banho e passou horas namorando o filho que dormia. Quando já estava perto da hora de se deitar, voltou para o quarto. Máscara da Morte o esperava, de costas para a cama.

– Boa noite, Axel. – a voz carregada de deboche que Máscara da Morte no passado usava com seus inimigos mais fracos. Afrodite definitivamente não gostou daquilo.

– Hô?

– Prefere seu antigo nome?

Os bons humores de Afrodite se esvaíram. Fechou a cara e perguntou azedo:

– Anda ouvindo atrás das portas? Que feio.

– Ouvi sem querer, mas foi bom. Impressionante como a gente descobre coisas. Pensei que a sua família estivesse morta.

– E estão. Para mim sempre estiveram.

– Foi você que escolheu? Afrodite? Você me disse que foi o nome que sua mãe e seu mestre te deram... Será que isso também é mentira?

– O que você quer, Horemheb?

– A verdade.

– Verdade?

– Descobrir depois de tanto tempo que não sei nada de você.

– Nada? Não sabe nada de mim? É uma piada?

– Eu estou rindo? Se for piada é das sem graça.

– Saber a verdade sobre mim? Quantos anos eu tinha quando você me conheceu?

– Dezesseis. E daí?

– Quantos anos tenho agora?

– Trinta e três.

– Você vive comigo há dezessete anos! Dezessete anos! Mais da metade da minha vida eu passei com você! O que de mim você não conhece? O que é a verdade que você não sabe? Uma merda de nome de batismo que me deram? Por pessoas que não me criaram, que não me amaram, que eu nunca considerei como família? É essa a sua verdade?

– Você está me enrolando.

O outro perdeu a paciência.

– Enrolando? Você não entende nada! Você sabe do que eu gosto, do que me deixa triste, minha cor preferida, a posição que eu mais gosto de fazer amor, o lado da cama em que durmo, minha música preferida, o meu perfume... Mas você não sabe nada sobre mim! Entendi! É a merda do nome que quer? Eu te digo! Me chamo Axel Joakim Vündhegen, o nome do meu tataravô... Quer mais verdade? Minha família começou com uma princesa Viking e um rei guerreiro bárbaro de uma vila esquecida sei lá de onde, numa cidadezinha no 9u da Suécia. Ficaram podres de ricos e na Idade Média morreram que nem moscas na mão da Inquisição porque era pagãos.

– Pagãos?

– Adoradores de Athena. Desde o princípio dos tempos. A cada cinqüenta anos eles davam uma criança da família de presente para o Santuário – para fazer dele o que quisesse e o Santuário pagava pelo privilégio. A mulher que paria essa criança era uma benemérita na família, recebia presentes e ouro. E era para ser minha tia, Anjelika, que ia parir mais um menininho para Athena. Mas ela teve um cisto teve que retirar o ovário. Daí a vaca oportunista da minha mãe burlou as regras da família e teve mais um filho – eu já tinha um irmão, o Gunnar. Daí eu nasci, sob a Constelação de Peixes. Que sorte da mamãe! Um filhinho para ser dado para Athena!

– Qual o nome da sua mãe?

– A primeira pecadora sobre a terra... – bufou entre os dentes cerrados.

– Eva?

– Eva. A dona Eva saiu da merda, da banda mais pobre e desprestigiada da família para ser uma grande dama Vündhegen. Mas ela me achava chorão e manhoso... Igual ao Dante... Então ela me mandou para o homem que o Santuário dizia que podia converter qualquer menininho chorão em Cavaleiro com instinto assassino. E aqui estou. Minha mãe ia me ver uma vez por ano, no dia do meu aniversário – e só fazia isso porque pelas leis da família ela só tinha direito aos prêmios do meu nascimento se ela mantivesse contato comigo! Com oito anos eu assinei de próprio punho um papel em que abria mão das visitas dela. Assim ela ganhou o dinheiro que queria e eu me livrei de ser um fardo para aquela família. Eu não devo mais nada a eles e nem eles a mim. E fiz questão de deixá-los mortos e enterrados na Suécia – um país onde eu não vivi, com pessoas que não conheço e com o qual eu tenho vínculo nenhum.

– Por que não me disse a verdade?

– A verdade? A verdade é: eu sou Afrodite de Peixes, esta é a minha casa, você é o meu homem e estamos tendo essa conversa absurda porque eu quero salvar a vida do nosso filho! Essa é a verdade. – olhou decepcionado para Máscara da Morte. – E a verdade é: você é um idiota.

– Onde vai?

O pisciano andou na direção da suíte luxuosa.

– Para outro lugar onde não precise olhar para sua cara de idiota. Você me deixa cansado da sua ignorância. Depois de tantos anos tentando te educar, vejo que desperdicei meu tempo e minha energia. Você é tão bronco e tão boçal quanto era quando tinha dezessete anos e vestia saias de faraó.

– Afrodite! – Máscara da Morte segurou o braço do pisciano, com muito mais força do que costumava usar, viu o sangue fugir dos músculos firmes dos bíceps do amante. – Eu sou um homem! Você não vai falar assim comigo e sair!

– E o que vai fazer? – murmurou Afrodite, o seu desprezo dardejante na voz. – Me bater?

– Como eu tenho feito todos esses anos? – bufou Horemheb, ironizando a frase.

– Como você fez.

– Eu ainda tenho as marcas! – o canceriano esfregou a mão, onde brilhava no centro a quelóide de uma cicatriz mal-curada, no rosto do amante. Uma cicatriz que tinha dezessete anos – feita por uma rosa.

– Talvez você ache que tenha sido injustiçado pela rosa. – sibilou o sueco. – Beber como um gambá, me bater e me estuprar não foi nada de muito grave, não é? Eu não valia grande coisa mesmo, era uma veado promíscuo e você só fez o que todos já faziam. Não é isso, Horemheb?

Máscara da Morte sabia que tinham atingido um ponto sem volta. Todas as palavras dispostas ali só trariam mais mágoas e mais mágoas, sem nenhuma reversibilidade. Não adiantava ignorar o passado e murmurar perdões –as dívidas e os erros vinham sempre à tona, revelando cicatrizes como a da palma da mão de Horemheb, varada de ponta a ponta por um cabo de rosa branca de vingança. Soltou o braço do amante e ficou de costas para ele, para que o sueco não visse seus olhos molhados de uma culpa que achava que não sentia mais.

– Você está cansado e eu também. – murmurou o canceriano. – Não estamos falando coisa com coisa. Melhor você ir dormir, amanhã a gente conversa.

– Não estou cansado. Estou magoado. Você não mudou nada.

– Você se engana. Se fosse como antes, tinha te enfiado a mão na cara e calado a sua boca na marra.

– Como se você pudesse me calar como calava aqueles aprendizes torpes da baixa que tinham medo do seu bafo de carne podre e seus cabelos de 'Mogli Menino Lobo'!

– Não acha que eu tenho força?

– Para me calar? Sempre fui um cavaleiro mais forte que você!

– Eu vou embora.

– Embora para onde? – Afrodite perguntou, já em pânico ao ver o amante de costas, tirando nervosamente algumas peças de roupa das gavetas do closet.

– Qualquer lugar. Quando você estiver calmo, a gente conversa sobre o que vai dizer ao menino.

– Você não está... Me deixando, está?

– Por que isso te preocupa? Não estava aí chiando que eu não mudei? Que sou o mesmo garoto sujo e mal encarado de sempre?

– Isso não é desculpa! Temos o nosso filho!

– Nosso filho é problema meu. Estou deixando você, não ele.

– Você é muito covarde! Covarde! Vai me deixar agora?

– Não. Você é que me deixou, está aí gritando que eu não te sirvo, que sou um bronco. Vou te poupar o trabalho de me pôr para fora da sua casa.

– Você... Você não pode!

Máscara da Morte continuou andando até a porta com a pequena sacola com algumas mudas de roupas e a escovas de dentes.

– Onde você vai? – perguntou Afrodite, a voz já trêmula de medo e amor.

Horemheb apenas lhe respondeu com um olhar gelado. Por fim, já nos degraus do lado de fora, com pena de Afrodite e de si mesmo por abandoná-lo, grunhiu:

– Para Câncer, onde mais?

O sueco voltou correndo para dentro da casa, atirou-se na cama do filho, soluçando.

– Filhinho! Me protege! Me protege!

– O que foi, Mozinho? – a voz de Dante era calma, melodiosa. Ajeitou a cabeça de fios azuis junto ao peito na cama e ajeitou-se para o pai caber junto dele. – Não me diz que brigou com Hô?

– Horemheb é um idiota. Idiota...

– Brigaram, foi?

– Um cretino! Fugiu de casa como um coelho covarde!

– Mozinho... Você não pode dizer aquelas coisas para ele toda vez que fica bravo.

– O que quer dizer? – gemeu o pisciano.

– Que chamar o velho de estuprador e bêbado não é um jeito bom de fazer as pazes. Ou você bem perdoa ou você bem larga dele de vez – o que não vale é dizer que perdoou e depois jogar isso na cara dele toda briga.

– Você viu! Foi ele que começou! – fungou contra as colchas da cama do menino.

– É, mas o velho também tem direito de ser ciumento lá uma vez ou outra, não é? Tadinho...

– Você está defendendo o carcamano?

– Ele não está aqui para se defender.

– Você acha que eu fiz mal?

– Não, ele tava de babaquice. Mas você pega pesado demais, sabia?

– Seu pai é idiota.

– Eu ouvi vocês discutindo.

– Você viu! Ele começou!

– Foi bobagem, mas você não tem que ser desse jeito... Caraca, pai! Falar que ele era menos forte que você!

– Por que eu tenho que ser mais fraco? Só porque eu fico por baixo? Eu sou a biba louca e não sou macho como o seu pai?

– Porque um homem não diminuiu o outro assim. Um homem não gosta de ouvir que outro é mais forte. Você devia saber disso.

– Carcamano! Falou que ia me bater!

– Caísse na porrada com ele. Mas não dissesse o que você disse.

– O que eu faço agora, anjo? Ele foi embora! Em-bo-ra!

– Ele está fazendo um 'número', Rosinha. Você sabe que não é sério... Pede desculpas pra ele...

– Eu? Por que eu?

– Porque alguém vai ter que pedir, por que não você?

– Por que não ele que estava errado desde o começo?

– Se você ama o meu pai, não faz diferença quem vai pedir desculpas. O que interessa é vocês fazerem as pazes. Ou não?

– Ai... filho... – roçou a cabeça contra o corpinho da criança, as mãozinhas do menino acariciando – Você é tão pequeno e tão esperto... A quem você puxou?

– Não foi a você, né? Vai lá logo...

– Agora, neném?

– Agora, Rosinha. Senão ele fica lá sozinho pensando e vai ficando cada vez mais puto... Melhor ir logo.

— # —

Casa de Câncer

– Hô? Horemheb? Você tá aí dentro?

– Veio apanhar alguma coisa que eu trouxe por engano?

Afrodite ajoelhou-se aos pés do seu homem, que estava deitado na única cama velha e empoeirada que resistia na Casa de Câncer, sem uso desde que voltaram de Hades.

– Vim. Vim apanhar você... Volta comigo? – segurou a mão calosa na sua. – Me desculpe, amor. Eu não queria ter mexido naquilo. Passou.

Horemheb puxou Afrodite para cama, em silêncio, acomodou-o junto dele.

– Desculpe, Dite. Você está certo.

– Minha vida só tem uma verdade, Hô: é você e nosso filho. Eu não quero ser Axel Joakim. Eu quero ser o pai do Dantezinho e o amado do Horemheb. Só.

– Quer ser amado do Horemheb?

– Eu ainda mereço as honras?

– Mesmo que não merecesse – agora é tarde. Você já é meu amado. E para sempre.

– Sou? Seu amado?

– Meu amado.

– Mesmo eu sendo Axel Joakim?

– Rosa... Deixarias de ter teu perfume se outro nome tivésseis? Este nome acaso é parte de ti?

– Shakespeare? Zeus! Hô! Você é espetacular!

– Mas não são essas as palavras, né?

– Mas não importa: o que vale é que você lembra da estória...

– Eu lembro de tudo que a gente já viveu junto, Afrodite.

– Eu também... Vamos voltar para casa? Dantezinho está esperando.

– O moleque é demais, né, Dite?

– É sim... Maravilhoso. Acho que a gente fez nosso 'trabalho de casa' como pais direitinho...

– Ou isso ou esse moleque é um bilhete premiado e é bom sem nenhuma responsabilidade nossa.

– Ou os dois. Ele é um bilhete premiado e nós fizemos tudo certo.

– Gosto dessa...

– Te amo, Horemheb.

– Te amo, Axel Joakim...

— # —

Afrodite, com o coração em frangalhos, deixou novamente o filho sozinho, aos cuidados de seus amigos e viajou para Suécia com o consentimento da mãe. Ele tinha passado o nome da tal mulher que o oráculo tinha apontado, por fax, para a sede da família e a mãe o respondera que a jovem Wilma von Platen era filha do ex primeiro ministro. O homem era um octogenário que tinha tido duas filhas meninas, Wilma e Hilma . A mais velha, Hilma , tinha casado com um diplomata de uma família de velhos políticos, Per von Platen. Depois de um tempo, Hilma morreu vítima de uma doença genética – Lupus. Não demorou muito, a irmã Wilma casou com o viúvo.

Com a 'ficha' da senhora Wilma von Platen em mãos, o sueco decidiu viajar até o país escandinavo para encontrar a tal moça e tentar saber no que ela podia ajudá-los a encontrar a medula de Dante.

O menino, percebendo a seriedade da situação, não fez nenhuma cena. Ao contrário despediu-se cheio de carinhos e recomendações aos pais, jurando se comportar e aproveitar a estada com Camus para estudar um pouco mais. O francês gostava de ensinar e com Hyoga morando longe, ele se distraia ensinando coisas para as crianças do Santuário e a mais atenta de todas era Dante.

E mais uma vez Afrodite quebrava uma promessa feita a si mesmo: de que jamais tornaria ver aquelas pessoas que chamara, um dia, de 'família'.

— # —

Máscara da Morte esperava, junto com Afrodite, no caramanchão da casa, pela 'autorização' para ver a senhora Vündhegen, a mãe de Afrodite. O sueco olhava para os cantos, observando cada detalhe da casa.

– Eu só vinha nessa casa uma vez por ano. Assim mesmo, só até os oito anos. Mas eu me lembro de cada detalhe daqui, cada desenho do papel de parede, cada flor do caramanchão, cada prataria, porcelana da Companhia das Índias, cada Baccarat, cada tapete Persa... Tudo...

– Afrodite...

– Sabe por que eu me lembro, Horemheb? Porque eu ficava doente, eu suspirava o ano todo para vir para cá, só por um dia, só uma vez, para ver gente ao meu redor. Quando meu mestre me levava no aeroporto para me entregar para o mordomo que minha mãe mandava ir me pegar... Ele passava mão na minha cabeça... E era tão bom, Hô... Tão quente, tão macio, aquela mão na minha cabeça! Um carinho, eu queria tanto! Quando o mordomo sentava perto de mim e eu sentia que tinha alguém perto! Eu queria que alguém me tocasse, que alguém gostasse de mim e me desse um afago! Minha mãe me achava chorão, manhoso... – ele enxugou os olhos, o belo rosto contraído de raiva, como se cada lembrança fosse uma farpa em seus olhos – Ela dizia que não ia ficar 'me pegando' porque isso ia enfraquecer o meu caráter... Então se meu mestre dizia para eu ser cruel e matar um, eu matava dez... Porque ele ficava mais feliz e a mão dele ficava no meu cabelo mais tempo... Tão quente! Tão bom! Eu me tornei um cachorrinho obediente esperando pelo afago do dono. O único ser vivo que eu podia ver no lugar da Groenlândia onde eu morava...

Quando eu fiquei mais velho, descobri o sexo! Ah! Eu descobri que era lindo, que me queriam! Todo aquele calor, todos aqueles abraços e beijos... beijos! Um beijo! Calor, corpos, um depois do outro, todos os beijos e abraços e afagos e os mimos que eu mendiguei, implorei para eles a vida toda – eu tinha! Eu tinha porque o sexo é poder e eu era lindo, lindo! Podia ter o que quisesse! Podia até me dar ao luxo de torturar quem eu quisesse...

Você diz que eu estrago meu filho! Deixa eu estragar esse menino! Deixa eu gostar dele, abraçar, beijar, acarinhar, mimar! Mas nunca, nunca o meu filho vai sentir falta de um abraço ou de um carinho! Ele vai crescer para ser uma pessoa que não vai dizer "ah, quero fazer com meus filhos tudo diferente do que meus pais fizeram comigo"... Não! Eu quero que ele se lembre dos meus carinhos e dos meu abraços e do meu cheiro! E que ele nunca precise ir para cama com qualquer um só para se sentir querido por algumas horas, se passando por pouco para qualquer um por migalhas de afeto e de atenção e elogios mentirosos que se diz na cama!

Se eu estou estragando meu filho, não me importo! Não... Mas até enquanto eu tiver força para pôr os braços em volta do corpinho do meu filho, eu vou mimar ele e ficar do lado dele – grudento, babão, idiota, fraco – de tudo que eu sei que me chamam pelas costas, que ficam fazendo graça porque o Dante tem doze anos e ainda dorme na nossa cama e senta no meu colo! Dane-se o que eles pensam! Dane-se! Mas o meu filho não vai ser como eu fui!

– Afrodite...

– Nunca, Hô... Nunca... Meu filho não vai sentir o frio que eu sentia, não vai...

– Senta aqui... No meu colo... Você nunca mais vai ficar sozinho, Pisciano...

– Eu sei... Eu sei... Hô... Ai... Eu tô com saudade do meu filho! Eu quero meu filho...

– Liga para ele. – estendeu o celular para o amante, que o apanhou sedento e discou o numero do aparelho que deixara com Dante, recomendando-o expressamente jamais ficar longe dele.

– Fi-Filhotinho?

– Oi, pai.

– Você está bem?

– Tô. E você e o Hô?

– Filho, você tá com saudade de mim?

– Claro, pai.

– Amor... O Camus tá aí?

– Tá no quarto, pegando os livros para mim.

– Anjinho, amor... Eu estou com tanta saudade de você!

– Eu também, mas você não demora, né?

– Não... Espero que não.

– Vai me trazer alguma coisa da Suécia?

"Todo meu amor? Sua medula? As pessoas que vão te tirar de mim?"

– Um suéter. – balbuciou.

– Suéter Sueco! Swedish Sweater! Hahaha! Ih, pai, isso tem nome!

– Que nome, bobo?

A voz do menino soou distante, como se ele abafasse o telefone com as mãos.

– Tio Camus... "suéter sueco" é assonância ou aliteração?

Afrodite ouviu a calma e modulada voz de Aquário.

– Assonância é com vogais. 'Suéter Sueco' é aliteração.

– É aliteração pai. Com som de 's'.

– Você está muito inteligente, menino!

– E você nem passou dois dias fora, o tio Camus já me deixou mais inteligente!

– Parabéns, filhote! O Miro fez maldades com você?

– Ai, pai. Nem vilão de estória em quadrinho tem coragem de fazer maldade com criancinha doente, né? O Miro se comportou direitinho, ele só roubou de mim no pôquer, mas como o ele rouba do tio Camus também... Eu agüento.

– Anjo... Te amo.

– Também te amo... Ah... Pai...

– O que?

– Cuida do Hô direitinho, tá? Ele só come porcaria quando você não está vigiando.

– Eu vigio direito.

– Vigia mesmo. Você não achou ele magro?

– Achei, sim. Pálido.

– Então, ele tem que comer melhor.

– Você está comendo bem?

– Batatas, batatas, batatas... Mas eu como todo dia nas horas certas. Mas não muda de assunto! Eu bem reparei que aquela calça jeans do Mozão tava quase caindo... Ele tá magrinho... Ele fica magro quando tá aborrecido.

– Ele não vai mais se aborrecer, pode deixar.

Virou-se para o canceriano e riu.

"Psss... Horemheb... Ele está preocupado com você... Disse que você está magro... Não é meiguinho?"

– Quer falar com o tio Camus, pai?

– Não precisa. Eu confio nele.

– Então tá.

– Te amo, meu filho... Te amo muito, estou com saudades de você...

– Também te amo, pai! Beijo, beijo! Tchau!

Camus achou graça o menino todo com trejeitos de adulto despedindo-se no telefone.

– O que foi, Dante?

– Ai, o Rosinha fica longe e fica todo emotivo... Ele fala "eu te amo" umas mil vezes no mesmo telefonema!

– E você também!

– Ele queria saber se eu estava bem e eu fiz direitinho o papel de "filho que se comporta quando os pais viajam".

– Mas você se comportou mesmo, Dante.

– Eu sei. Também não queria chatear eles. Eles já foram para essa viagem aborrecidos.

– Você não existe, criança...

— # —

Quando a mãe de Afrodite apareceu no caramanchão para chamá-lo, Máscara da Morte ficou pasmo com ela. Não fosse um ou outro pé de galinha, ele certamente a confundiria com Afrodite – pareciam irmãos gêmeos e não mãe e filho. A mulher fez um aceno de cabeça para o pisciano, indicando o caminho do seu gabinete particular e ignorou por completo a presença de Horemheb; Afrodite sabia que ela faria isso, por isso não quis que ela chegasse perto deles. Mas o canceriano quis acompanhá-lo e ele não teve como dizer não. Levantou-se e seguiu com ela.

– Mãe. Eu só quero que você me arranje um jeito de encontrar essa mulher – Wilma von Platen.

– É a filha do ex primeiro ministro.

– Eu sei quem ela é. Preciso falar com ela.

– Ela é a mãe do bastardo que você e o outro criam?

– Sim, mamãe. Me arrume um encontro com ela. Você consegue.

– Acha que ela vai ajudar, Axel?

– Mãe, não especule. Me arrume o encontro.

– Não sei se devo.

Afrodite olhou-a com seus furtivos olhos azuis. Aproximou o braço da parte aberta da cristaleira russa, enfeitada com o que havia de mais caro e mais fino.

Enfeitando a parte aberta, um pequeno tesouro, motivo de brigas entre as mulheres da família. Ele sorriu olhando as peças.

– Sabe, mamãe. É um belo aparelho de jantar da Companhia das Índias... Quase igual ao que a bisa deu para a tia Anjelika.

Ele passou o braço pela cristaleira, ente o olhar de pânico da mãe, varrendo para o chão a porcelana do século dezesseis.

Aquela mulher não ia intimidá-lo. Ele não tinha mais oito anos. Nem estava sedento de afeto. E agora, adulto, sabia exatamente o que a ofendia.

– É vulgar. – proclamou, olhando os cacos espalhados ao seus pés. – As cores não combinavam. O da tia Anjelika é bem mais charmoso.

– Está satisfeito em destruir um legado da família?

A voz dela era calma. Mas ele sabia – tinha feito um ponto. Agora ela sabia do que ele era capaz.

– Eu não estou brincando. Você vai me ajudar. E toda essa família vai fazer testes de compatibilidade.

– Uma medula Vündhegen para um bastardo é uma honra inesperada, não, Axel?

– É uma esperança para o sangue podre de estupradores Vikings e hereges germânicos bárbaros da nossa família virar alguma coisa melhor, mamãe.

– Falarei sobre o tópico na próxima reunião de família, mas não incentivarei ninguém a fazer o teste. Você sabe que eu penso que é um desperdício de energia. Você devia se casar com sua prima e ter um filho. Que mantivesse como teúdo e manteúdo o robusto, il bel selvaggio, mas que fizesse uma boa figura e conservasse os genes da família intactos.

–Frau Eva... Il bel selvaggio é ciumento. Eu não quero propagar essa nódoa que é o sangue da família. Graças à deusa eu tenho um filho puro como Dante – limpo de qualquer gene maligno que os Vündhegen poderiam passar para ele. Eu sei que você se decepciona por eu recusar a hipocrisia familiar.

– Ora, Axel. Não somos católicos... As convenções e o inferno não me assustam... Mas me preocupa que depois de mais de quinhentos anos de tradição familiar você se recuse a manter nossos hábitos. Não me importa com quem você dorme, se o robusto fica por cima ou por baixo – isso é uma discussão vulgar. O que quero é que seja pragmático. Há uma tradição de manutenção de consangüinidade há séculos entre nós. Dar nosso nome para um bastardo é uma ofensa muito além da honra – é uma coisa de ordem prática.

– Você tem Gunnar e Lars. Eles vão proliferar o maldito sangue da família.

– É o nome, Axel. Deu nosso nome para ele para que ele herdasse seu dinheiro.

– É só isso? Eu abro mão de tudo que tenho direito por herança de família. O grosso do dinheiro que eu tenho é de herança do mestre Hrothgar. Não preciso nem de uma safira do colar de minhas avós – eu tenho o suficiente para viver como um rei e garantir uma vida de rei ao Dante.

– Seja razoável, Axel.

– Seja razoável você, Eva. Eu não quero discutir sobre isso. Já sabe o quanto me enoja ter que ficar aqui. Faça isso ser rápido, pelo menos.

– Já disse que tratarei do tema com a família. Mas não insistirei – dependerá da consciência de cada um.

– Consciência é um apetrecho genético que nunca fez parte dos DNAs da família, mamãe.

– Pode se considerar desafortunado, então.

Você vai fazer o exame?

– É óbvio que não.

– E ele?

– Seu pai sim, naturalmente. Ele tem uma têmpera menos decidida.

– Ah, eu sei bem como ele é frouxo comparado com as saias desta casa. O sangue dele é tão ruim que não deve de servir para muita coisa... Vai marcar o encontro com a talzinha?

– Já falei com sua tataravó. Ela conhece o pai de Wilma e garante que terá uma resposta. Comporte-se. Não quero nosso nome em um escândalo com bastardos e veados.

– Sim, senhora. – ele sibilou. – Posso me retirar?

– Soube que mandou Gunnar desalojar-se dos seus aposentos.

– Eu tenho direitos nesta casa. Eu sou o Cavaleiro, a criança de Athena. Você surrupiou muitos dos meus privilégios em favor do Gunnar e dessa criança que eu nem sabia que você tinha tido, o Lars. Agora, mamãe, eu não preciso mais pedir permissões. Eu sei do que é meu e vou tomar posse.

Ela sorriu – um sorriso fundo de desprezo, como quem ri de uma ameaça de alguém fraco.

– Pode se retirar, Axel.

Afrodite estava tão nervoso que, ao invés de sair pela porta que dava para o caramanchão, saiu pela porta que dava para o interior da casa. Deu de cara com seu pai. Eram tão parecidos... Afrodite tinha esquecido de como todos eles eram tão iguais. Quinhentos anos de casamentos entre primos tinham trazido muitas desgraças para eles: loucos, enfermos, deficientes físicos – as piores características da família acentuadas em grau máximo e... Também... Isso: a semelhança absurda entre eles. Pareciam todos irmãos.

– Filho, eu...

– Não me chame de filho, Casper.

– Axel...

– Meu nome é Afrodite.

– Nunca vai me perdoar?

– Perdoar? Pelo quê? Por você ter deixado a sua mulher usar um bebê de colo como moeda de troca? Por nunca ter erguido sua mão para me proteger uma única vez apesar de nunca ter concordado com os métodos dela? Eu deveria perdoar você por ser covarde? Por ser um hipócrita como todos eles? É por isso que quer que eu te perdoe? Está perdoado, professor. Mas não me peça para correr para seus braços e chamar você de 'papai'. Você não é meu pai, sabe disso, não é? Seria um deboche para a minha inteligência imaginar que você esperaria isso de mim.

– Axel, eu só não sei porque você me odeia tanto.

– Você é pior do que ela, Professor de Engenharia Naval Casper Vündhegen.

– Acha mesmo isso?

– Mal ou bem, minha mãe fez o que fez porque levava essa baboseira de poder familiar a sério. Você não. Nunca levou nada disso a sério, mas não se importou a mínima com meu destino. Se eu não tivesse precisado ligar para cá, vocês sequer saberiam que eu não tinha morrido na Batalha de Hades.

– Achar que você não existe era o jeito mais fácil de lidar com a sua perda.

– Oh! É para chorar ou rir? Não faça graça comigo, senhor. Vocês são todos assim – vocês não ligam para ninguém. Está no sangue! No sangue! Você não fez nenhum sacrifício para me esquecer. Isso veio naturalmente, não?

– Filho...

– A-FRO-DI-TE.

– Afrodite... A esposa do seu irmão está grávida.

– Mais uma criancinha que vocês podem trocar por moedinhas de ouro?

– Lars se casou com a prima. Ela é ruiva e é do norte, da mesma área dos parentes de Wilma von Platen. Talvez o bebê... O bebê seja compatível.

– Isso se ele quiser ajudar.

– Bem... É só uma medula. Se regenera completamente em três dias. Não custa nada. Lars não vai se opor.

– É... Não custa nada... Um sorriso custa bem menos, uma mão no ombro, uma visita. E nem isso vocês me fizeram; acreditar que meu irmão vai me doar a medula do filho dele de 'graça' é esperar demais da nossa 'família'.

– Mesmo que ele cobre – já terá valido a pena, Axel.

– É uma possibilidade. E não posso mais descartar possibilidade nenhuma. Vou falar com Lars.

– Filho... Afrodite... A tata me disse que marcou o encontro com a moça Wilma para amanhã. Ela vai te chamar no escritório para avisar. Não leve o seu... companheiro.

– Ficou corado, papai? Quantos veados a nossa família abriga? Não me diga que sou o primeiro...

– A viver com um homem? Você é o primeiro. Você nunca teve vergonha de assumir suas escolhas, não é, Axel? Poderia ter se casado com a prima e mantido o rapaz como seu amante.

– Como todos os meus bisavôs fizeram antes de mim? Eu não sou hipócrita.

– Sim, mas o seu tataravô era um homem que tinha três amantes rapazinhos. E a sua tataravó nunca achou isso demais. Então, não leve seu namorado pra que ela o ofenda. Ela é uma mulher muito velha e se houver alguma coisa, teremos de ficar do lado dela, você compreende.

– Conheço o gênio das mulheres dessa família e não pretendia levar meu homem para se aborrecer vendo as pelancas da tata. Eu vou sozinho.

Afrodite passou por ele, tomando o caminho mais curto para o caramanchão. Se sentia fraco e estúpido conversando com seu pai. Odiava-o muito mais do que odiava a mãe. Ela não tinha caráter, ele nunca esperara nada dela. Mas seu pai... Ele sempre foi tão inteligente e tão especial. Lembrava-se sempre dele, dirigindo até o parque de diversões, silencioso, ouvindo suas músicas clássicas – sempre Bach. Do sorriso suave que ele esboçava pelo vidro retrovisor. Mas ele jamais sequer chegou perto. Nunca. Podia contar nos dedos da mão direita as vezes que ouvira a voz do pai... Uma voz tão doce... Ser abandonado por uma mulher ambiciosa não era nada – triste era reconhecer que sempre fora ignorado por ele por aquele homem delicado e educado. Seu pai.

"Meu pai é o caralho." Pensou Afrodite consigo mesmo. "Eles não são nada. Nada."

— # —

Afrodite estava tenso. Tinha se controlado bem, posado de adulto maduro e cheio de responsabilidades porque queria enfrentar aquela mulher ele mesmo: e não foi fácil convencer Máscara da Morte a ficar do lado de fora da sala. Mas agora já não tinha tanta confiança assim – quem poderia ser aquela mulher? Será que era patroa de alguma pobre mulher que pariu um filho indesejado e a ajudou a abandonar? Mas como? Na Grécia? Segurava o lenço nas mãos frias e úmidas. Filha do antigo primeiro ministro. Wilma Fälldin, casada com o diplomata Per von Platen. Quem era essa mulher? Quem?

Quando ela entrou na sala, Afrodite se odiou por ter vindo no lugar de Máscara da Morte.

Era uma mulher jovem – com todos os atributos que a beleza confere aos jovens: pele tenra, olhos brilhantes, cabelos cheios de vida.

Era linda. Olhos verdes como o mais verde do mar. Cabelos ruivos... Cor de cenoura.

Maldita! Mil vezes maldita!

– Eu sou Wilma von Platen. O senhor queria falar comigo, mas eu não entendi o porquê.

– Você teve um filho doze anos atrás.

A mulher ficou pálida, o choque roubou sua ação e sua fala.

– Não adianta negar eu sei de tudo.

O Rei do Blefe. Estava começando a recuperar o orgulho de si mesmo.

– Tudo o quê?

Ele abriu a carteira e mostrou a foto que carregava lá.

– Vê? É inútil negar.

Os olhos verdes da mulher estavam carregados de lágrimas. Não havia o que negar. Era ele. Não podia ser outro. Eram idênticos. Os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo cabelo e sardas.

– Eu... Eu...

– Não tenho tempo para a sua estória triste. Ele é meu, eu o adotei, é meu filho. Está doente e precisa de um transplante de medula. É por isso que vim. Só por isso. Então, não desperdice o tempo dele – ele não tem muito.

– Meu... Meu... Mathias...

– Seu? Mathias? – Afrodite sutilmente escolheu o seu mais sarcástico sorriso, encobrindo seu latente desespero. A presença daquela mulher linda, jovem, rica e culta lembrava-lhe dolorosamente de que Dante não era seu de verdade. – Não me diga que ficou emocionada de ver a foto do meu filho? Uma cadela que abandona os filhotes não tem o direito de ganir quando a cria se junta com outra matilha...

– Você...

– Psss. Eu vim atrás de uma coisa. E é dessa coisa que vou falar e só. Você nunca mais vai ver nem uma foto nem o rosto desse menino. Só me diga se vai ou não fazer o exame de compatibilidade. Se você o provedor de esperma tiverem outros filhos que não abandonaram, isso seria muito bom.

– O... O...

– O esperma-man é da família? Ou é o jardineiro da sua mansão? Não seria a primeira vez que uma coisa assim acontece... Já leu 'Lady Chatterly'? (2)

A moça se controlou melhor, sentando-se de frente para Afrodite; até então ela tinha ouvidos as acusações e ofensas do pisciano por estar atordoada para responder. Mas aos poucos, ia se recomponho. Um estranho brilho tomava conta dos seus olhos.

– O pai do Mathias é o meu marido.

– É um passatempo familiar abandonar crianças em países distantes? Que exótico. Byroniano (3), eu diria.

– Meu marido e eu somos casados há pouco tempo. Ele é viúvo.

– E...?

– A mulher dele era minha irmã. Minha irmã Hilma . Ela morreu e... Nós nos casamos. Mas eu... Sempre gostei dele... E ele de mim... Mas meu pai não achou conveniente que eu em casasse com ele porque era muito jovem.

– Já disse que isso não me interessa. Eu quero essa gosma que você tem na espinha. E se ela servir para o meu filho, vou arrancar de você!

– Eu quero ver ele.

O sueco irrompeu em uma ruidosa gargalhada.

– Você está surda ou quer que eu desenhe? Eu tenho certeza de que meu sueco ainda é tão bom quanto me lembro – bom o bastante para você entender que não vai botar esses seus olhos no meu filho nunca! NUNCA!

– O meu marido... O Per não sabe... Ele nunca ficou sabendo.

– Melhor ainda. Ele não precisa saber. Vá fazer o maldito exame de sangue com uma desculpa qualquer. Se vocês forem compatíveis vocês podem inventar uma estória. Qualquer coisa. Mas o meu filho vocês não vão ver – muito menos chegar perto!

– É claro que vou fazer o exame... Mas o Per tem que saber...

Afrodite contou até dez. Paciência. Que soubesse. Nada ia tirar seu filho dele.

– Fale o que quiser. Antes que você se anime: o menino é adotado legalmente. Eu tenho documentos que provam que eu e meu marido somos pais dele. Então, nem tente nada, ouviu?

– Você é homossexual? – havia um certo tênue tom de reprovação na pergunta, disfarçada sob camadas e mais camadas da boa educação tradicional sueca. Mas afinal, o que Dite esperava? Era a Suécia. Luterana. Hipócrita.

– Sim. Não notou pelos meu trejeitos? Eu percebi que você estava me olhando. Pois é isso mesmo que você pensou: eu sou delicado, efeminado e muito mais bonito do que você, além de ser a pessoa que cuida e ama o menino que você jogou fora há doze anos. Me respeite por isso, se não conseguir enxergar mais nada o que respeitar em mim.

– Eu falarei com meu marido. Nós não temos filhos, mas... Toda nossa família será testada. Ele... Ele está muito doente?

– Tem leucemia. Tem pouco tempo e poucas chances também. Mas eu não vou desistir, até o último minuto de vida do meu filho eu vou procurar. Eu não vou largá-lo numa calçada...

– Posso, falar com você depois?

– Não, você não precisa falar comigo. – estendeu secamente um cartão para ela. – Aqui está o nome do hospital que eu contatei. Você só precisa tirar sangue lá e fazer os testes. Se a compatibilidade for confirmada, eles vão fazer logo o transporte da amostra de medula.

– Mas.. Eu quero ver o menino.

– Não. Eu não quero.

– E se ele quiser?

– Fora de questão. Meu filho não quer e nem precisa de vocês.

– Já perguntou a ele? Eu só quero uma chance.

– Você já teve. E pôs a sua chance na frente de um orfanato. Você não vai ver meu filho, não vai magoar e assustar o meu bebê doentinho, não! Não!

Ela encheu-se de coragem e se levantou, encarando Afrodite.

– Se... Se você não me deixar ver o menino, eu não vou... Não vou fazer exame nenhum...

– O quê? Vaca! – ele avançou contra ela, mas ao primeiro ruído que o corpo dela fez ao ser atirado do outro lado da sala, dois homens entraram correndo e apartaram a briga. Um deles, o robusto Máscara da Morte, puxou Afrodite para um canto, antes que ele investisse contra a mulher assustada, que foi reerguida pelo marido, o diplomata – ruivo e de olhos verdes, tão parecido com a mulher como se fossem da mesma família.

– Maldita! Você tem que arder no inferno! Nem que eu tenha que te matar e te arrastar morta pelos cabelos até o hospital você VAI fazer esse teste!

– Dite! Você ficou louco!

–Você não vai conseguir, ouviu? Não vai! Não vai pôr esses seus olhos de ave de rapina em cima do meu filho! Nunca!

– O que esse louco quer, Wilma?

– Ele... Ele está com meu filho!

Ao ouvir o 'meu filho' na boca da mulher, Afrodite sacudiu-se vigorosamente nos braços de Máscara da Morte.

Seu filho? Seu? Você ficou louca? O que tem de seu? Não é nada seu!

– Per... Per... Eu... Lembra quando mamãe me fez viajar às pressas para Londres? E você nem teve tempo de se despedir de mim? Eu estava grávida... Mamãe me fez deixar o menino! Eu deixei ele na Grécia... E voltei! Mas ele está vivo! Está com eles!

– Wilma... Que estória é essa? Que estória é essa?

– Vamos embora, Dite...

– Não! Vocês não vão a lugar nenhum se estão com meu filho! – bradou o diplomata.

– O senhor está enganado. Não tem filho nenhum conosco. Vamos embora, Afrodite.

– Per, nosso menino está doente... Ele precisa de nós.

– Vamos embora, Hô! Eu é que fico doente de ver essa gente dizer 'meu menino' como se eles tivessem algum direito sobre o meu filho! O filho que eu criei por doze anos!

– Eu quero ver Mathias. É só!

– O nome do meu filho é DANTE. DANTE!

– Ou vamos ver nosso filho ou não faremos exame nenhum de sangue.

– Como vocês têm coragem de usar a vida do menino como moeda de barganha? E ainda chamar o garoto de 'filho'? Vocês só vão atrapalhar! Ele está doente e frágil!

– Tudo que o menino não precisa é de um disputa entre nós. Ele está doente e precisa de paz. – reiterou Máscara da Morte.

– Eu já disse: eu só quero ver o menino.

– Eu vou pensar.

– Pense. Nós temos todas as possibilidades de ser doadores. – Wilma argumentou.

Todas não... Trinta e cinco por cento. – devolveu Afrodite rápido.

– Já é muito para quem não tem muitas outras chances.

– É mesmo muito difícil de imaginar que o meu filho doce, carinhoso e cheio de caráter tenha vindo de vocês dois.

– É uma surpresa que tenha mantido algum caráter convivendo com vocês. – replicou o diplomata.

— # —

– Fiiiiiiiilho! Cheguei!

O menino saiu da Décima Segunda Casa em êxtase. Ao ver os pacotes nos braços do pai, começou a pular como um cabritinho.

– Semla (4)! Oba, pai! Me dá um pedaço! Dá! Dá!

– Calma, Dante! Deixa eu entrar em casa!

– Ah, pai, mas me dá o Semla! Eu gosto tanto de doce, dá! Me dá o Semla, pai! Pai! Dá! Dá!

– Você nem me notou chegar! – Afrodite desabou algumas bolsas no chão do hall de entrada, pôs o pão sobre a mesa da cozinha e abriu os braços. Dante entendeu a mensagem e jogou-se no colo dele.

– Ah... Eu tava com tanta saudade de você, papai...

– Mmm... Abraço mais gostoso do mundo! – Afrodite apanhou um pedaço do doce com as mãos e deu na boca do menino. – Come creme, criaturinha esfomeada!

– Hmmm! Creme!

– Afrodite. – finalmente Máscara da Morte venceu os degraus e o hall da casa, com todas as malas que o pisciano havia abandonado aos seus cuidados. – Você deu essa coisa ao menino sem lavar as mãos?

– Ai, meu Zeus! Desculpa, meu filho! Cospe o pão! Cospe!

– Pára, pai! Já engoli tudo!

– Ai, Hô... Ai, Hô... Como eu sou estúpido! Desculpa, filhotinho... Desculpa...

– Deixa para lá, pai.

Afrodite abriu sua bolsa de mão e tirou um tubo de gel anti-séptico que usava – compulsivamente­ – em todos que chegavam perto do garoto.

– Estende a mãozinha, Dante.

O sueco e o menino esfregaram as mãos no gel. O pai tomou a mão do menino e a examinou.

– Olha, filhote... Eu tô vendo um germe bem aqui, ó.

– É? Cadê? – Dante encarava a mão, sério, crendo sinceramente que o pai era capaz de ver germes.

– Aqui. Põe mais gel nele, toma.

– Limpou, pai?

"Tão ingênuo... Tão puro... Tão espertinho para algumas coisas, mas ainda assim, tão bobinho para outras!" pensou Afrodite, enternecido, escrutinando os dedinhos do menino entre os seus.

– Limpou.

– Agora eu posso comer o semla com a mão?

– Pode sim.

Afrodite o viu comer, alegre, o pão de creme fino sueco. Tirou da bolsa o suéter de um laranja-ocre forte, quase da mesma cor dos cabelos do menino, que ele vestiu imediatamente e sujou todo de creme, limpando as mãos na malha cara.

Cansado, o pisciano arrastou o filho para a sala da TV e acabaram dormindo abraçados no sofá sem assistir a metade do filme.

Máscara da Morte resolveu tirar a criança dali, com medo de que ele se virasse e caísse da beira do sofá; sua tentativa acordou Dante.

– Oi, pai.

– Oi, amor. Quer ir pra caminha?

– Tô com sono, não.

– Então vamos para cozinha... Agora sou eu que quero aproveitar você...

– O que você vai fazer na cozinha, Hô?

– Que tal a gente fazer uma broa de milho? A Italianona que você adora?

– Ah! Eu sei fazer broa, pai! Você assiste e eu faço!

– Faz? Sozinho?

– Você... mmm... Enfarinha a mesa! Para eu poder sovar a massa... De resto eu sei fazer tudo!

Horemheb passou a tarde toda enfurnado na cozinha, vendo Dante lhe ensinar como se fazia a broa de milho e tagarelar horas sobre o que tinha feito, comido e lido durante a ausência deles.

Se o menino pudesse só imaginar o quanto Horemheb também sentiu falta dele...

— # —

– Você está bem, Hô? – Afrodite saiu do banheiro, ajeitando o laço do robe de seda azul clara.

– Uma azia dos diabos.

– Eu falei para você não comer tanta broa.

– A broa do menino é melhor do que a minha.

– Eu também comi muito, mas eu não tenho problema de azia... Quer que eu pegue um antiácido para você, amor?

Máscara da Morte apenas o admirou, lindo como era, sentado à penteadeira, escovando os longos fios azuis. Dezessete anos. E depois de tanto tempo, Afrodite ainda tinha o mesmo jeito suave de chamá-lo de 'amor'.

– Hein, amor? Quer? Um chá, então, você prefere?

– Prefiro você. Senta aqui...

Mais que depressa o sueco caiu no colo do amante.

– Mmm, Hô... O menino... – apontou para o filho que dormia tranqüilo na cama deles, alheio aos pombinhos.

– Só vou te dar uns beijinhos... Huh? Beijinho pode, Afrodite de Peixes?

– Sim, senhor, Máscara da Morte de Câncer... Mas com muito respeito, hein?

Afrodite deixou-se beijar e abraçar. Suspirou por fim, olhando para o filho.

– Como vamos dizer ao neném, Hô? Que ele vai ter que ver aquelas pessoas? Nem mesmo eu sei se a gente fez bem em deixar.

– Eu só sei de uma coisa, Dite: eu não ia mais conseguir deitar minha cabeça num travesseiro e dormir em paz sabendo que meu filho tinha uma chance que eu não aproveitei por egoísmo de pai. – ele puxou o queixo de Afrodite, que lhe desviava o olhar. – Egoísmo, Dite. Que importa se eles levarem o Dante com eles? Se ele ficar vivo! A vida da nossa criança é o que interessa, é o que importa! Por mais que eu sangre, é por isso que eu vou lutar – para o menino ficar curado. Depois a gente pensa no que vai acontecer. Por enquanto, tudo o que a gente tem que fazer é: vestir o Dante, levar ele até um shopping center e mostrar ele para aquelas pessoas. Mais nada.

– Como sempre, você está certo, amor... Mas eu... Tenho... pressentimento.

– Eu acredito nos seus pressentimentos. Mas... A medula do Dante vale mais que meu coração de pai.

O pisciano beijou os cabelos macios do amante, escondendo o rosto no ombro forte do canceriano:

– Vale muito mais do que qualquer coisa no mundo, Hô. Qualquer coisa.

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Beijos e muitos carinhos para todos que comentaram on/offline os capítulos anteriores! Prometo agradecimentos decentes no blog assim que eu vencer essa preguiça monstruosa...

1 Adaptado de 'Wuthering Heights', de Emily Brontë.

2 'O Amante de Lady Chatterly', de D.H. Lawrence

3 Lord George Gordon Byron era fascinado – como seus contemporâneos – pela Grécia. Ele chegou a se alistar para luta pela independência grega dos turcos, mas morreu antes de atuar em alguma batalha.

4 Uma espécie de 'sonho' sueco, recheado com creme de amêndoas.