Disclaimer I: Saint Seiya não me pertence. A série original e seus personagens são propriedade de Masami Kurumada.
Disclaimer II: Mozão e Mozinho são expressões cunhadas por Pipe, usadas com a permissão dela nessa fiction. O enredo desta fanfiction, bem como seus personagens originais e nomes, quando não especificados, me pertencem.
Comentários da Autora: Gomen! Eu devo um pedido de desculpas a todos que acompanham a MQT. O capítulo 06 ficou empacado porque durante algum tempo eu fiquei sem computador. Meu HD queimou e eu – que não tinha backup de nada – perdi o capítulo todo. A fic toda. Tudo. Recomecei com alguns rascunhos que tinha mandando para alguns amigos e fui montando o que dava. O capítulo 06 originalmente deveria ter por volta de 40 páginas. Zeus sabe que eu não gosto de dividir partes importantes das fics, mas, para não matar vocês de tédio, separei em dois. Então aqui vai parte dele... Have fun, kids!
Ps: capítulo dedicado à minha fadinha debutante no ficwriting, Amy Black... Bobinha, eu não esqueço de você não, tá? Respondendo a pergunta que a senhorita fez à Lola – eu não abandonei a "Maior que Tudo". Beijinhos da tia que te ama!
MAIOR QUE TUDO
Capítulo 06
Canção de Ninar
Dante estava jogado no sofá da saleta de tv, olhos vidrados na janela, ignorando Máscara da Morte e Afrodite. O coração do pisciano se apartava ao ver o filho daquele jeito. Desde que disseram ao menino que ele teria que ver os suecos, ele simplesmente se recusou a falar com os pais. Afrodite esperara por gritos, por histeria, por choro; nunca imaginou que a criança fosse se virar contra eles, como se os culpasse por permitir aquela profanação.
– Anjo... Fala comigo...
– Quando, Mozão? – o menino ignorou o cavaleiro de Peixes e dirigiu-se direto o canceriano.
–Amanhã, Dante. No shopping. Vai ser rápido.
– Tá.
– Fala com seu pai, garoto. – exigiu Máscara da Morte. – Sua mal criação não serve para nada.
– Por que? Por que eu tenho que ver eles?
– Para você se curar. Pela sua medula. Acha que eu gosto de saber que aquela gente vai ver você, neném? – Afrodite estava quase chorando. No fundo, também se sentia culpado por infligir ao filho aquele sofrimento, quando o menino já estava tão doente.
– Acho! Acho que você está cansado de cuidar do menino que você apanhou na rua e quer se livrar dele logo! Vai me entregar para eles e pronto!
– Não... Você não pode acreditar nisso, garoto! Você não é tão burro assim!
– Sou mais esperto do que vocês pensam. Por que não arrumam logo todas as minhas coisas e me entregam para eles?
– É isso que você quer? É? Se você preferir, eu te entrego.
O menino lançou-lhe um olhar de dúvida.
– Afrodite...
– Afrodite? Agora é isso que eu sou? Afrodite? Não sou mais o seu pai?
– Pai... – o menino gemeu, os olhos já molhados. – Não deixa eles me levarem... Não deixa...
O pisciano sentou-se no sofá ao lado do filho, acomodando-o no seu colo.
– Neném... Eles nunca vão te levar de nós. Você é nosso... Nosso...
O menino fungou, o nariz enfiado entre as mechas azuis do pai.
– Pai, eu quero ficar com você... Eu quero ficar só com você e o Hô.
– Eu juro, anjinho... A gente vai te proteger... Você não vai ficar sozinho com eles, não vai...
– Pai, você não tá cansado de cuidar de mim?
– Ah. Meu amor... Estou cansado de te ver sofrer... Eu só queria que você ficasse bom de novo...
— # —
No dia acertado, Máscara da Morte e Afrodite se prepararam para levar o filho ao shopping center mais movimentado de Atenas – para o encontro com os suecos. Eles chiaram, os acertos feitos por telefone: queriam ver o menino na casa dele, queriam saber onde moravam para poder visitá-lo sempre que quisessem, o que obviamente não estava no arranjo. Ficou combinado o shopping, com todo o protesto e stress possível.
Revoltado, mas calmo, Afrodite foi vestir o filho. Dante estava de olhos inchados e vermelhos e o pisciano tinha certeza de que o garoto tinha dormido tanto quanto ele, ou seja, nada. Apesar da sua tristeza, sentiu um certo alívio: ao menos o menino chorara. Os silêncios de Dante lhe davam medo.
– Como está, amorzinho? – espiou o menino nu, sentado na cama, encolhido, sem vontade nenhuma de se arrumar.
– Pai, eu tô com medo.
– Já conversamos, príncipe. Eles vão te olhar e só. Mais nada.
Os olhos verdes encararam-no em fúria.
– Você acha isso pouco, Dite?
– Não, claro que não.
– O que eles querem, pai? Eu não entendo! O que eles querem de mim?
– Ver você... Você é tão lindo, Dante... Tão lindo... Todos querem te ver...
– Mentira... Eles me jogaram fora. Não tem razão para essa palhaçada toda agora, Mozinho...
Discussão infrutífera. Se fosse corajoso – ou louco o bastante – Afrodite mataria aqueles suecos pela petulância de atingir seu filho. Mas tinha que pensar... Pensar...
– Amor... Se veste? A gente não pode se atrasar... É por você... É pela sua medula...
– Mas eu não quero, pai...
Afrodite se sentou na cama do menino, puxando a parte de baixo, um gavetão onde o pisciano colocava as roupas que Dante usava menos. Puxou de lá uma calça jeans e uma camiseta pólo preta. Olhou a camiseta em suas mãos. Apertou-a, cheirou-a. Era tão bonita. Colocou-a de volta na gaveta.
Andou até o closet e pegou a malha sueca que trouxera para o filho, junto com a cueca que Dante não suportava usar, a calça jeans mais escura, as meias da cor do suéter e o tênis preto. Montou a combinação sobre a cama, penalizado ao ver o filho nu, tremendo, enquanto vestia a cueca.
– Não chora, Dantezinho... – implorou o sueco. – Não chora, meu amor...
– Pai... Posso usar uma coisa?
– Fala...
– O meu cordão... Posso usar?
"O cordão..." O pisciano lembrou-se logo. Quando Máscara da Morte lhe deu Dante como presente de aniversário, deu também um anel. Era uma jóia de ouro com rubis vermelhos, que Afrodite usava como pingente de um cordão que Dante usou até aprender a andar. Depois que o menino quase perdeu o anel no processador de lixo da cozinha, o sueco achou por bem guardar a jóia cara para que Dante só a usasse em ocasiões especiais.
– Você quer usar seu cordão, amor?
– Quero sim, pai. Pode?
– Claro... Termina de se arrumar que eu vou apanhar no porta-jóias, tá bom?
Afrodite caminhou em passos lentos até o seu quarto. O cordão com o anel. O anel que era seu presente, devia ter sido o único... Mas Horemheb resolveu dar a ele um menino. O seu menino. Quantas vezes desejou imensamente que os pais biológicos de Dante estivessem mortos... Como quis que a mãe fosse uma lavadeira solteira, uma prostituta, o pai um presidiário... Gente sem nome, sem voz e sem importância. Mas não... Wilma von Platen e Per von Platen eram ricos, cultos e bem informados. Eram canalhas, mas canalhas ricos. Dariam a Dante tudo o que o dinheiro podia comprar. Mas era só disso que seu filho precisava?
"Ele precisa de uma medula. E mais nada."
Entrou no quarto e viu Horemheb terminando de se arrumar. Adorava aquele canceriano grande e forte – vê-lo de vestes gregas era sedutor até dizer chega, mas vestido com roupas comuns ele também não ficava nada mal. Os anos tinham sido generosos com o seu homem. Ele ficava muito bem com aquela camisa de botões e mangas compridas jeans, a calça preta justa, os mocassins de couro escuro.
– Você está lindo, Hô...
– Você também está muito bonito, Dite.
Sim. Afrodite sabia que estava lindo. Arrumou-se especialmente belo porque queria humilhar aquela mulher. Sabia muito bem como realçar aquilo que a natureza lhe dera em excesso: beleza. Alisou os cabelos azuis com um prancha, gostava de vê-los bem lisos. Máscara da Morte sempre dizia que ficava mais charmoso. Estava todo de preto – a cor que realçava sua pele de cetim e seus cabelos azuis claríssimos. A pantalona de tecido macio que só contava pontos ao seu porte esguio e sua altura, a malha preta justa de gola alta que delineava seu pescoço longo e delicado e a gabardine 7/4, um toque de couro branco sobre as roupas pretas.
– Hô... Ele quer usar o anel de rubi.
– Põe nele, ué.
– Horemheb... Estou exausto. Não sei quanto mais disso eu vou agüentar...
– Eu nem dormi.
– O que vamos fazer? Hoje, quero dizer?
O canceriano suspirou. Estava cansado.
– Vamos apanhar um táxi até o centro e de lá pegamos o metrô. Não quero ir com meu carro, eles podem nos seguir e descobrir onde moramos. O metrô passa em várias estações, teriam de nos seguir a pé e o máximo que pensariam de nós é que depois do stress no shopping levamos Dante para passear nas ruínas. Irresponsáveis... Mas melhor do que acharem que moramos aqui.
– Você pensa em tudo, amor...
– Alguém tem que pensar enquanto você fica ocupado cuidando do menino, Dite. – estendeu a mão para Afrodite, que sentou-se em seu colo. – Como ele está?
– Como poderia estar? Péssimo! Com medo, estressado, nervoso. Aquela gente sem escrúpulos, Hô! Como eles podem fazer isso com o filho deles? O menino doente e nem por um minuto eles quiseram poupar ele!
– O que queria? Eles nunca tiveram um filho, para eles Dante é uma boneca que vieram buscar. Ele é bonito, ele é esperto. Claro que querem. Quem não ia querer um filho assim? De mão beijada? Criado, educado, bonito? Eles nem devem ter idéia do que se faz com uma criança. Escuta, Afrodite: estamos nisso pela medula do Dante. A gente pensa no que vai fazer com os idiotas depois, huh?
– Está bem, Hô.
– Arrumou as coisas dele?
– Ah, eu pus o remédio de vômito na bolsa, a máscara do rostinho, um cachecol e a touquinha de lã. O tempo está esfriando. Pus as luvinhas também... Mas ele não vai querer usar, eu já sei...
– Olha só quem pensa em tudo aqui...
– Eu vou levar o cordão para ele. – levantou-se e antes de sair, lançou um olhar ao seu homem. – Por que acha que ele quer usar o anel, Hô?
– Você não sabe?
– Não... Você não tem medo dele querer ir com eles?
– Você tem?
– Tenho. O sangue tem força.
– Você é bobo demais. Sangue... Sangue! O que é sangue? Quantos você já matou? Suas mãos já devem ter visto sangue e mais sangue! Algum 'sangue' já falou com você? Já viu algum amor, alguma família, algum sentimento no sangue que espirra nas suas botas quando você mata alguém? O sangue não vale nada, Afrodite. Amor não está no sangue. Está aqui! – bateu no peito. – Está no que a gente faz. Eu tenho certeza de que para esse garoto eu fui mais do que um pai, mais do que qualquer pai!
– Está bem, Horemheb. Vou levar o cordão para ele...
— # —
Dante adorava andar de metrô. Achava tudo na rua divertido. Estava nervoso e desconfortável, mas acabou se acalmando no caminho. Entretanto, bastou chegar ao shopping e se lembrou do porque estava ali e, então, voltou a ficar tenso. Segurava a mão de Afrodite nervosamente, puxava a máscara o tempo todo, olhava os corredores com medo de encontrar alguém que se parecesse com ele.
– Neném... Eles só chegam às três. Ainda é uma e meia. Quer comer?
– Não.
– Não? Tem crepe ali, você adora...
– Pai, eu...
– Esquece, anjo... Esquece isso. Estou aqui para proteger você. Quer o crepe?
O menino riu timidamente. Balançou a cabeça em afirmativa.
– Quer crepe de quê, Dantezinho?
– Queijo. Pode, pai?
– Melhor não, anjo... Queijo não é bom para você... Por que não um crepe de morango?
– Ta bom...
O menino relaxou um pouco sentado no banquinho de frente para o pai. Afrodite o provocou, fazendo piadinhas sobre quando ele ia, finalmente, beijar Allyanda. Ele ria, Máscara da Morte o mantinha sentado muito perto, os olhos experientes de cavaleiro vasculhando a área, temeroso de que a qualquer momento a paz daqueles sorrisos fosse perturbada pela intervenção dos malditos suecos.
Horemheb estava ajeitando os cachos ruivos rebeldes do filho com os dedos, quando ouviu o barulho do crepe despencar no chão. A pele do menino arrepiou-se sob sua mão.
– O que foi, Dante?
Ele avançou na direção de Afrodite, escondendo o rosto no peito do pai, com um longo soluço.
– Pai... Me esconde!
– O que foi, anjinho?
– Eles, Mozinho... Eles!
Peixes virou-se, para ver os dois suecos parados atrás dele. Dante não era estúpido e deve ter deduzido pela aparência de ambos que não podiam ser outros senão os pais biológicos. Os bracinhos do menino fecharam-se em um abraço furioso no pescoço de Afrodite.
– Pára, neném. Levanta, me solta e fica direito.
O garoto olhou-o, espantado.
– Tudo o que eles querem, neném, é te ver assim: medroso, chorando. O que eles vão dizer? Que não soubemos te educar, que você tem medo, é fraco e chorão. Fique em pé, se ajeite e encare eles dois. Eu estou aqui, papai está aqui, nada vai te acontecer, viu? Nada, filhotinho... Nada. – enxugou a trilha de lágrimas no rosto do filho com os polegares.
– Pai, eu tô com medo.
– Eu também estou, filho. Morrendo de medo. Mas não tem jeito, a gente tem que encarar... E tem o Hô... – Afrodite olhou para cima, os olhos do seu amante frios e calmos. – O Hô não tem medo de nada e ele vai proteger nós dois, né?
– Isso. – respondeu Horemheb. – Eu protejo minhas duas rosas.
Ele secou as lágrimas com as costas das mãos, mas tremia tanto que Afrodite achou que ele fosse tropeçar nas próprias pernas. Ajeitou as roupas do menino, os cabelos. Sentiu o coração sobressaltado – ele estava tão bonitinho!
– Vai, neném... Vai...
O garoto andou até metade do caminho entre Afrodite e a mãe biológica. Parou, olhou para frente e depois para trás, onde fixou o olhar, quase que implorando a Máscara da Morte que o tirasse dali. Estancado como estava, reparou que a mulher chorava e que o homem que se parecia com ele sorria vitorioso. Eles eram seus pais. Não sentia nada por eles a não ser aquele medo, ele pensou que era o mesmo medo que tinha do escuro. Não queria eles dois. Não queria ter a ver com eles.
A mulher andou até ele, vagarosamente. O bastante para os olhos treinados de cavaleiro do Dante. Arrepiado de medo, foi recuando aos poucos até trombar com Afrodite. O pisciano teve ganas de matar a mulher e o tal diplomata, sentia junto do seu corpo o corpo do seu filho tremendo, o pânico de Dante tão palpável que parecia transpirar da malha alaranjada da criança indo alcançá-lo. O menino puxou o braço de Afrodite, passando-o por sobre seu peito, como um cinto de segurança para mantê-lo preso aos seus. Estava tão nervoso que cravou as unhas no braço do pisciano.
– Eu sou sua mãe... – murmurou Wilma, olhando-o de perto. Ele era realmente bonito. Lindo. – E ele... Ele é seu pai. Você... Você entende o que eu digo?
– O sueco dele é perfeito. – retrucou Afrodite, furioso ao ver a mulher conversar com Dante soletrando e fazendo gestos como se ele fosse um macaquinho amestrado.
– Ele está tão quietinho... Você é tímido... ahã... Qual é mesmo o nome que deram para ele?
Nome que deram! Afrodite ficou ainda mais furioso. Como assim "deram"? Parecia que esse não era o nome de verdade da criança.
– O nome dele é Dante Rafael.
O menino continuava os encarando.
Era sua mãe... Mãe... E o seu pai. Pai e Mãe.
Ela era sua mãe! E tinha vindo de tão longe para buscá-lo!
E destruir sua vida!
Acabar com sua felicidade e a da sua família de verdade...
Wilma estendeu a mão para tocá-lo. Em um movimento brusco, o menino virou o corpo, escondendo o rosto no peito de Afrodite com um vago 'não'. Quando o garoto soluçou, agarrando a roupa do pai, o pisciano não agüentou mais, pôs o menino no colo e encarando a mulher, decretou:
– Chega!
– Mas...
– Pai... Medo, medo, medo... – suspirou o menino, junto ao ouvido do pai.
– Acabou, Dante... Acabou...
– Afrodite... – Máscara da Morte ia chamar seu amante de volta à razão, quando ele irrompeu em um berro – característico do pisciano quando ele estava agitado.
– Chega! Chega, Hô! Eu fingi que aceitava que essa gente viesse aqui botar os olhos no meu menino! Mas o Dante não tem que fingir! Ele não quer ver essa gente e eu muito menos! Ele está assustado e cansado e pra começo de conversa nem devia estar na rua – o sistema imunológico do neném está todo debilitado! É claro que um pai e uma mãe de verdade iam se preocupar com isso mas o Sr.e a Sra. Ego-Tamanho-do-Mundo não podem parar para pensar um minuto na saúde do neném!
– Mas eu só queria...
– Cala boca, sua cadela! Nem ouse estender sua pata suja para tocar no meu filho outra vez ou eu te mato!
– Podemos chamar as autoridades... Não quer um escândalo, quer? – falou Per pela primeira vez.
– Escândalo? – Máscara da Morte ironizou o homem. – Por que? Se chamasse um policial o máximo que ele poderia fazer era rir na minha cara por achar engraçado eu ser veado. Mas nada além disso: o garoto é nosso filho legalmente. Ninguém pode tirar ele de nós.
– Isso veremos. Eu ainda vou levar meu filho para Suécia. Legalmente.
Os soluços de Dante, no colo de Afrodite, se intensificaram quando ele ouviu a promessa de Per. E se um dia conseguissem tirá-lo de Dite e Máscara da Morte? O que ia fazer?
– Já fez ele chorar bastante. Está satisfeita, senhora von Platen?
– Ele... Ele precisa saber... – insistiu a mãe, vendo Afrodite ameaçar dar-lhe as costas levando o menino embora. – Ele precisa saber que muita coisa aconteceu e que não quero que me odeie por eu ter deixado ele...
Ao ouvir aquilo, o menino gemeu para Dite, "Pai, me põe no chão, eu quero falar com ela."
– Tem certeza? – hesitou Afrodite, com medo de deixar o filho falar com a mulher. No fundo do seu coração temia que aquela 'mãe' de araque pudesse encantar seu menino com seu canto de sereia e tomá-lo dele, por vontade própria. Conhecia as mulheres: eram todas vis, descendentes de Circe e Medeia, feiticeiras. Essa ruiva bruxa ia enfeitiçar seu filho com palavras doces e lágrimas e roubá-lo. Roubá-lo. Sentiu um calafrio.
– Tenho sim. – ele se ajeitou e coçou os olhos. Virou para Wilma e dirigiu-se a ela com sua voz mais doce e calma. – Eu não tenho raiva de você ter me deixado lá.
– Não?
– Nenhuma. Muito pelo contrário. Foi a melhor coisa que você poderia ter feito por mim.
– Mas, filho...
– Escuta, Wilma... É seu nome, né? Wilma?
– É! É o meu nome...
– Então, Wilma... Porque você me deixou lá, o Horemheb pôde me pegar e me dar de presente para o Dite. E por isso eu sou o que eu sou e moro onde moro e assim eu sou feliz. Então, não fica pensando que eu te odeio por isso...
– Não me odeia por ter te deixado?
– Não... Eu odeio você por querer me roubar da minha vida. Me deixe em paz. Olha, se não quiser me dar sua medula, eu nem ligo... Nem precisa. Mas não me tira da minha casa e dos meus pais...
– Vamos, Wilma... É óbvio que já envenenaram a criança contra nós. Vamos voltar a ver o nosso filho em outras ocasiões.
– Só por cima do meu cadáver... – bufou Afrodite.
– Discutiremos sobre cadáveres mais tarde. – retrucou o diplomata. Ele puxou a esposa relutante pelo braço e eles se perderam nos corredores do shopping. Mortificado, Afrodite olhava o menino, que segurava a sua mão.
– Pai, me leva para casa, minha perna tá mole e minha cabeça gira.
– Vamos sim, meu amor... Vamos agora.
— # —
Fazia frio. Afrodite pôs a touquinha, o cachecol e as luvas no menino. O metrô estava cheio, mas Máscara da Morte arranjou um lugar. Sentou-se, com o menino no colo. Afrodite os olhava em fúria silenciosa. Queria matar os suecos. Dante estava inconsolável nos braços do pai, agarrado a ele como se alguém fosse arrancá-lo de lá a qualquer momento e ele precisasse ficar alerta.
– Senta um pouco, Dite.
– Não, fica sentado você, Hô.
– No que está pensando?
– O ar condicionado está gelado. Enrola o neném no meu casaco.
Quando o pisciano abriu a boca e sua voz masculina se fez ouvir, todos os olhos próximos se voltaram para ele; sem casaco e falando, ficava evidente que não era mulher. Máscara da Morte sentiu os olhares. Aqueles. Os olhares que qualquer juiz teria para um casal de homossexuais com um menino de doze anos sob sua guarda. Estavam sendo ingênuos – não importava quão moderno o mundo se gabasse de ser, certas coisas nunca mudam. Afrodite também não era bobo. Ele também percebeu que o olhavam. Aqueles olhares sempre o acompanharam. Quando era jovem, divertia-se com a confusão dos outros, que tentavam adivinhar se ele era um homem ou uma mulher. Muitos só descobriam quando já era tarde... Outros, quando já estavam sob o seu corpo. Nunca era uma surpresa ingrata... Mas agora era diferente. Agora tinha Dante.
Abaixou-se e beijou a testa do filho.
– Como você está, meu filho?
Mais olhos arregalados.
– Tô bem, pai.
O desconforto de Afrodite estava ficando evidente. Três homens do outro lado apontavam discretamente, enquanto faziam gestos entre eles. O pisciano mantinha os olhos no menino, Dante retornava-lhe meigamente os olhares.
Máscara da Morte podia tolerar qualquer tipo de piadinha e brincadeiras, mas ficava irado quando as mesmas piadinhas e brincadeiras eram dirigidas a Afrodite. O pisciano era um príncipe e não merecia o escárnio daqueles hipócritas. Puxou o sueco pela barra da blusa, o trouxe próximo e o beijou, na boca.
– Já disse que te amo hoje? – sussurrou mais baixo no ouvido do outro – E já disse que tenho orgulho de você ser o meu homem?
O pisciano sorriu.
– Se você não existisse... Alguém teria que te inventar, Canceriano... Um mundo sem Horemheb... Seria um mundo muito chato...
— # —
– Dante, anda! A gente vai se atrasar para a quimioterapia!
– Ai, pai, tô calçando a meia...
– Mas que novela para pôr essa meia, vamos embora! Seu pai já está espumando lá embaixo!
O menino se apressou, pulando num pé só enquanto tentava calçar o tênis no outro, tropeçou na saída e caiu de cara no chão. Afrodite correu até o filho, ajudou-o a se levantar. Os olhos do menino, arregalados de medo, encaravam os olhos azuis piscina dele.
– Pai...
– O que foi, neném? Você não se machucou não, né? Levanta, você só arranhou o braço, tá doendo?
– Pai... Pai, eu tô morrendo, não tô?
Afrodite sentiu um calafrio. Apertou o menino em seus braços. Estava magro... Tão magro!
– Filho... Você não tá morrendo... Não está...
– Pai, ontem eu tentei usar meu cosmo para mandar uma mensagem para Allyanda... Em Gêmeos! Aqui pertinho! E eu não consegui... Ela fala na minha cabeça e eu na dela desde sempre e agora eu não tenho mais força! Força nenhuma...
O pisciano levantou, pôs o menino no colo, com seu sorriso mais gentil e sedutor.
– Você tem a mim. Você tem meu cosmo e minha força – toda a força que os deuses me deram é sua, filho. Se não der para chamar a Allyanda com seu cosmo, use o celular que eu te dei... Para tudo se dá um jeito, meu amor...
O menino sorriu, abraçou Afrodite com força.
– O Mozão deve tá uma fera agora, né, pai? Vamos logo...
– Vamos sim, meu filho. Vamos...
— # —
Afrodite não gostava de falar sobre aquilo. Também não gostava de pensar. Mas cada sessão de quimioterapia do menino o angustiava mais e mais. Não era o tempo passando, que lhe dizia que a falta de medula ia matar seu filho. Também não era a sensação de desconforto e impotência que lhe suscitava a visão do sofrimento do seu menino. Eram aqueles olhos verdes, tão amados, perdidos na sala, vagando vazios e cheios de um desespero contido, como um mar começando a se agitar em tempestade. Transbordando... Era a percepção da certeza estranha e mórbida com que o menino se entregava à dor, como se já soubesse que estava condenado – como se ele soubesse que a morte era inevitável e estivesse aos poucos perdendo seu apego infantil a tudo. Já não se importava com mangás, brinquedinhos e música. Passava os dias na cama, encarando a janela. Não recebia visitas exceto de Shaka. E não mais com seu sorriso doce ou suas brincadeiras de criança: ficava taciturno, abraçado ao cavaleiro de Virgem como não quisesse desperdiçar seu tempo com conversas sobre o 'mundo' que não lhe pertencia mais – os aprendizes, a rotina normal do Santuário, a vida ruidosa e alegre dos cavaleiros.
Não era a doença levando a saúde de Dante. Era a leucemia comendo a alma do seu filho, apagando o brilho da sua infância. Era o olhar de desolação do menino que o assustava. Mais que tudo.
– Filho... No que você está pensando?
– Eu pensei que...
– O quê?
– Se eu ficasse internado, não ia ser melhor, paizinho?
– Mas por que seria melhor, Dante Rafael?
– Aí, Axel Joakim – replicou o menino, sorrindo com a ironia de dizer o nome todo de Afrodite. – Você e o Mozão não iam precisar cuidar de mim o tempo todo, porque as enfermeiras iam cuidar. Aí você e o Hô iam poder ficar mais tempo juntos e também iam poder ir lá no seu Manoel Madeira comer pastelzinho de Santa Clara. Eu não posso, por causa das claras, né? Você não namora mais o Hô e quando vocês não namoram, ficam tristes e eu sempre ouço você chorar, Dite... Não gosto de te ouvir chorar... Porque eu também quero chorar... – o menino desviou os olhos de Afrodite. – Pai, quando eu morrer você vai voltar lá no orfanato e pegar outro menino?
O chão fugiu dos seus pés. Era um pai tão ruim assim? Tanto que seu filho esperava que ele corresse para substituí-lo? Segurou delicadamente a mão do menino. Beijou a testa pálida.
– Eu te amo. Se eu morresse você iria correndo procurar um pai substituto?
– Nunca, pai. Nunca.
– Então por que eu faria isso?
– Pai, eu já perguntei isso, mas... Eu tenho medo... Morrer dói?
– Não, meu anjo... Não... Você não vai morrer...
Dante retornou-lhe um olhar de tamanha melancolia que Afrodite sentiu sua espinha pulsar em uma calafrio que sacudiu seus ossos.
– Você ainda não se conformou, né, Mozinho?
Máscara da Morte entrou no quarto antes que o atordoado Afrodite conseguisse concatenar pensamentos para uma resposta mais lógica ao filho. O canceriano fez sinal, chamando-o para fora.
– O que foi, Hô?
– Estão aí.
– Quem está aí? Mu? Shaka?
– Os malditos suecos.
Afrodite sentiu o ar lhe faltar. Nas pontas dos seus dedos ardeu a presença de pétalas de cosmos que se formavam – velhos hábitos perdidos.
– Como acharam a gente?
– Fácil. É o único hospital de Atenas especializado em tratamento de câncer de medula infantil. A gente já devia estar esperando por isso.
– E daí? Não podem ver o menino. Não podem!
– Não podem. Mas estão aí. E quando tivermos que sair? Dante vai se perturbar com a presença deles de qualquer maneira. Eles podem vir aqui o quanto quiserem. Entrar e ver o moleque eles não podem, mas podem ficar aqui fora. Esperar ele passar e tentar conversar com ele.
– Eu não deixo! Eu sou cavaleiro e posso sair daqui incógnito.
– Não pode. Como vai fazer isso, Dite? E os enfermeiros? Médicos?
Entregou um envelope na mão do pisciano.
– O que é isso?
– Eles entraram com um pedido de contestação de paternidade. Querem fazer um DNA para provar que são pais biológicos do neném judicialmente. – Afrodite... Se eles comprovarem judicialmente que são pais biológicos dele, vão pedir a anulação de adoção. Se o pedido for aprovado, a guarda do Dante vai sair das nossas mãos durante o processo.
– Isso... Isso... Impossível... Absurdo...
– Absurdo, mas possível.
– Não podem tirar nosso filho de nós! O que vão argumentar?
– Tudo, Dite. Nossa vida é uma mentira. Se começarem a investigar nossos documentos... Nosso endereço é falso, eu nunca tive registro de nascimento no Egito, você não é professor de Artes e eu não sou instrutor de artes marciais... Também, Dante nunca foi a um colégio de verdade e ele já tem doze anos. Somos homossexuais. A adoção na Grécia é ilegal. Como vamos explicar o Dante ter sido adotado na Holanda? Legalmente ele não podia ter sido tirado da Grécia.
– Cala a boca, Horemheb! Chega de tanto "legal", "judicial", "processo". É meu filho! Ninguém vai tirar ele de mim! Eu vou lá fora e acerto uma rosa no peito de cada um daqueles miseráveis e pronto! Pronto!
– Por mim, eu já tinha arrancado a cabeça deles, Dite. Mas e a medula? E se eles forem os doadores?
– E quando eles vão fazer o maldito exame? Vão esperar Dante morrer?
– Eles querem ver o garoto.
– Já viram! Não foi suficiente torturarem o neném? Até ele chorar?
– Eles querem ver e no momento estão em condições de barganhar...
– Não acredito que estão nos chantageando desse jeito. Usando a vida do menino como moeda.
– Pois acredite. Um merda capaz de comer a irmã da mulher e uma puta que larga um filho numa esquina são capazes de coisas piores, Afrodite. Mas se eles estão brincando, nós não. É a vida do nosso filho. Eu não vou pagar para ver até onde vai essa guerra de nervos.
– Ele está muito fraquinho, Hô... Eu tenho medo...
– Fale com ele. Não tem outro jeito.
– Tá bom.
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A chegada dos suecos foi seguida de escândalo. Dante chorou, gritou, atraiu médicos, residentes, enfermeiras, visitas de outros pacientes. Berrou que odiava os suecos e que o deixassem em paz. Declarou em alto e bom som que ia morrer logo e que não pretendia gastar um minuto da sua curta vida na companhia "gnomosa" dos suecos. Obviamente, quis dizer "ignominiosa", palavra que Afrodite empregava com pompa para tudo que detestava.
Por fim, tamanha foi a comoção que o diretor do hospital veio conferir de perto o que se passava. O senhor de cabelos brancos, extremamente conservador, não disfarçou um discreto, porém indubitável, contentamento em saber que a 'pobre criança' que ele julgava tão mal assistida pelos 'indivíduos de pouca moral' tinha de fato uma boa e cristã família constituída de um honesto e decente pai adúltero e uma excelente mãe que deitava-se com o cunhado e abandonou o filho recém-nascido. Ele não ficou nem um pouco escandalizado com a ousadia de Wilma e Per e nem sensibilizado com o frágil estado de Dante.
– Acho perfeitamente aceitável – argumentou ele – que os verdadeiros pais dessa criança queiram estar junto dele nesse momento difícil.
O menino, sentado na cama, enrolado no abraço protetor de Máscara da Morte, replicou furioso.
– Eles não são meus pais!
– Menino...
– Doutor diretor...
– Sim, Dante.
– Eu sou obrigado a ver eles?
– Não, obrigado não, mas...
– Eu não quero eles aqui. Eles não podem me visitar sem a permissão dos meus pais – meus guardiões legais que são o Mozão e Rosinha. Eu não quero ver, não quero! E mais: se eles me querem, vão ter que fazer o exame de dna. E se querem o exame, vão precisar da autorização dos meus pais, porque eu sou menor e os meus pais não vão dar e eles vão ter que pedir pro juiz tirar meu sangue contra minha vontade! Daí se eles forem meus pais de sangue, vão ter ainda que pedir para eu não ser mais adotado, mas aí vai demorar e até lá, eles não são nada, nadinha de mim e eu não quero eles aqui, se eles vierem me ver eu posso até chamar a polícia, porque eles me perturbam e o doutor advogado do meu pai bem me disse que se eles me aborrecessem eu podia chamar a polícia sim e eu vou chamar!
Per, pálido, ouviu o discurso da criança de doze anos que devia ser seu filho. Gostou do que ouviu. Considerava a eloqüência repentina do bichinho do mato que conhecera no shopping uma evidência mais que suficiente de que a genética funcionara nele.
– Já mandaram o menino para ser consultado por um advogado? – debochou o sueco. Afrodite imediatamente rebateu.
– Vocês deixaram uma impressão tão boa nele... Eles quis se certificar de que podia manter vocês longe...
– Bem, não há o que fazer, senhores... – havia uma nota de decepção na voz do diretor do hospital ao se dirigir aos suecos. – Terão de buscar seus direitos junto aos órgãos competentes. Infelizmente, teremos de proibir a entrada de vocês nos hospital.
Per buscou as mãos trêmulas da esposa, que tentava encarar o filho, que escondia-se dela no peito largo de Horemheb.
– É isso mesmo que faremos, doutor. Vamos, Wilma. Em breve viremos buscar nosso garoto. Definitivamente.
Afrodite deu um longo suspiro de alívio quando eles saíram.
– Será que vamos ter que aturar isso todo o santo dia?
– Que bom que eles foram, não, Dantezinho? –a enfermeira ajeitou o menino, desligando-o dos cateteres por onde fluíra a quimio. – Graças a Deus que já foram. Uma gente esquisita...
– Liga não, enfermeira... Eles não vão voltar mais.
– Ah, tomara, não?
– É! Não vão voltar! Né, pai?
– É. – confirmou Máscara da Morte desconfiado. – Não voltam.
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– Você é inteligente, menino. Puxou a mim.
– Isso é discutível.
– Aquele seu discurso de ontem – me impressionei. Muito fluente.
– É verdade e você sabe, Per. Eles são meus pais legalmente, você gostando ou não. – o menino deu-lhe um olhar de desdém. – Aposto que subornou alguém para entrar...
– Claro que sim. Todo homem tem um preço. Sabe, Mathias, quero conversar com você.
– Você não tem nada a dizer que eu queira ouvir.
– É um assunto de seu interesse. Eu vou te levar de volta para a Suécia de um jeito ou de outro. Quem negaria a guarda de um menino ao pai e a mãe biológicos? Em favor deles? Ainda mais aqui. Você desconsiderou um detalhe.
– Que detalhe?
– Mais de um médico comentou comigo o quanto você é fisicamente apegado ao seu 'pai'... É estranho, não é? Um homem adulto que se veste quase como uma mulher e adota um menino... Que vive em seu colo, se esfregando nele... Claro, eu não estou insinuando que ele seja pedófilo, não... Isso é muito sério... Mas as pessoas são tão maldosas... Elas comentam. A maldade das pessoas não tem limite, não é mesmo? Imagine... Se alguém lança essa suspeita? Ia ser um caso de polícia. Ainda mais que neste país não se permite adoção por casais homossexuais... As pessoas se agitam nas ruas, tantas organizações de defesa de menores, grupos religiosos... Na Suécia há casos de linchamento de acusados que sequer tiveram chance de provar sua inocência. Trata-se de um crime horrível... Já ouviu falar? Pedofilia?
Os olhos do menino flamejavam de raiva.
– Ouviu, Mathias?
– Sei o que é.
– Então... É um crime horrível, não? E nem precisa ser comprovado. Você sabe como são essas coisas: a honra é um bem difícil de ser recuperado. Essas coisas contam e muito em um processo de reversão de adoção.
– Você quer mesmo ficar comigo, né?
– Pensei que tivesse sido claro o bastante. O traveco que você chama de pai disse que você fala um bom sueco.
– Você deve mesmo achar que eu fico ofendido quando chama o meu pai de traveco, né?
– Não fica?
– Hombridade para você é vestir calças?
– O que é hombridade, Mathias? Se vestir de mulher e falar como mulher?
– Sua idéia de ser homem é muito superficial.
– Sabe que eu andei olhando as fichas da sua adoção... Sua mãe jura que deixou você em Atenas, mas você foi adotado em Amsterdã... Interessante. Legalmente você não poderia ter sido tirado da Grécia, sabia?
– O que você quer?
– Você. Vai ser do jeito fácil? Ou do difícil, Mathias? A vida deles será devassada. Eles podem até vencer – mas a luta será longa e a vitória amarga.
– Por que quer me tirar daqui? Acha que vou ser feliz com vocês?
– Por que não seria? Com sua mãe e seu pai... Em uma casa boa, com uma família constituída.
– Você faria qualquer coisa para isso...
– Qualquer coisa.
– Você vai... Me matar para isso?
– Ora... Menino...
– Me matar! O que acha que acontece quando arranca uma rosa do lugar onde ela está plantada? Acha que pode vir aqui e me arrancar e levar para longe e ser tudo a mesma coisa? Acha que pode só me pegar e... Passar uma borracha nos doze anos da minha vida? Esta é o meu lugar... Eu fui plantado aqui... Aquelas pessoas que você julga tão mal são a minha vida! Eles me deram de comer e de vestir e gostaram de mim quando vocês estavam longe! É o traveco que segurou minha mão quando eu estava doente e que me ajudava com as lições de casa e o outro que você diz que tem cara de bandido – ele é que me levava para vacinar, que colocava band-aid nos machucados do meu joelho e que me ensinou que manipular as pessoas e julgar pelas aparências é errado! Errado! Acha que um dia eu vou gostar de você e da tal que se diz minha mãe mais do que eu gosto deles? Se você pensa assim, o bobinho aqui é você!
– Você é criança e está acostumado com essa vida porque não conhece outra. Vai se acostumar. A adaptabilidade está no sangue dos von Platen.
– Eu não sou von Platen.
– Mas pode vir a ser. O que me diz?
– Como você pode fazer isso? Você não diz que gosta de mim? Eu não tenho tempo... Eu vou morrer e não quero ficar longe dos meus pais...
– Você não vai morrer. Nossa medula certamente será compatível com a sua.
– Me deixa ficar com eles...
– Quando posso vir buscar você? Amanhã à tarde?
– Me dá dois dias pelo menos... O que acha que vou dizer para eles?
– Você é muito inteligente, Mathias... Saberá o que dizer.
– Você me dá nojo.
– Você vai mudar de idéia, meu filho.
O diplomata ensaiou chegar perto do menino para beijá-lo, mas ele o fuzilou com seus pequenos olhos verdes.
– Nem tente! Você pode me arrastar daqui a força, mas não pode me forçar a gostar de você.
– Ora, amor vem com o tempo. Depois de amanhã eu e sua mãe viremos apanhar você.
– Como quiser.
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– Mozão... Preciso falar com você...
– E por que não falou antes, Cenourinha?
– Eu estava esperando o Mozinho não estar.
– É segredo?
Perguntou, sorrindo suavemente. O sorriso do canceriano desvaneceu por completo diante os olhos marejados de lágrimas da criança.
– Papai... Eu... Eu vou com eles...
– Dante, você... Não precisa fazer nada... Nada que não queira, entendeu?
– Eu sei, pai. Eu quero ir. Sabe... Se eu morrer, pelo menos eu vou ter passado um tempo... Um tempo com eles, entendeu? É por um tempo, só... Eu fico um pouco...
– Um pouco quanto? Um final de semana?
– Pai... Até o transplante? Depois do pós-operatório?
– Dante, isso é muito tempo.
– Eu sei... Desculpa? Desculpa, pai...
– Se você quer mesmo ir, não precisa pedir desculpas.
– Pai... Eu amo você. Amo você muito, muito...
– Dante... Filho... – secou com a ponta dos dedos as lágrimas do menino. Estava tão atordoado que sequer sabia o que dizer para acalmar ou acalentar o filho. Um pensamento ainda mais dolorido perpassou sua mente rápida: como contaria para Afrodite?
O menino emendou, como que lendo seus pensamentos.
– Pai, você... Fala com o Mozinho? Eu... Não...
– Não quer ter que falar com ele, eu sei... Eu conto, não tem problema...
– Pai... Me abraça? Me abraça forte... Mais forte...
Beijou os cabelos e a testa da criança. Ele estava ardendo em febre.
– O que quer que eu diga para seu pai, amor?
– Que eu amo muito ele também... E que eu volto... Pai, eu juro que vou voltar...
– Tudo bem, Cenourinha... Fica calmo... Eu vou chamar o doutor...
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– Hô, amor! Cheguei para ficar com o neném... Como ele está?
– Afrodite, preciso falar com você.
– Você está sério... E pálido... O que aconte–... meu filho! Como está meu filho?
– Dite, ele está bem. Mas o problema é outro.
– Que problema? Fala logo! Está me assustando!
– Afrodite... Depois de amanhã aquela gente vem buscar nosso filho.
– Não seja bobo, Hô... Eles não podem...
– O menino pediu.
– Mentira! Mentira!
– Ele me falou e pediu para eu falar com você...
– Isso é ridículo! Ridículo! Eu quero falar com ele! Quero olhar nos olhos do meu filho e ouvir ele me dizer isso! E me explicar!
– Afrodite... Ele está com febre, está fraquinho, eu não vou te deixar entrar e fazer uma balbúrdia com o garoto!
– Eu quero entrar.
Máscara da Morte estendeu o braço, barrando a passagem de Afrodite.
– Já disse que você não vai.
– Vai me impedir?
– Se precisar te dar porrada até criar bicho, eu dou.
– Hô!
– Dite... Eu não vou deixar você melindrar o menino assim. Ele está sofrendo o cão. E eu não quero você piorando as coisas...
– Eu quero ver meu filho!
– Se você prometer não abrir essa boca grande para o garoto... Fica com ele até eu chamar o médico. Ele está com febre.
– Tá bom...
– Se disser uma palavra sobre isso dele ir embora, eu esgano você. E não é 'jeito de falar': é sério.
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– Oi, Dante...
– P-Pai? Você... você... Falou com o Hô?
– Falei. Ele passou para ir chamar o médico.
O pisciano sentou-se na poltrona de amamentação que ele instalara no quarto do menino, para dormir e ler nas longas vigílias junto à cama do doente. Lançou um olhar esfíngico para Dante.
– Você sentiu minha falta, Dantezinho?
– Senti...
– Imagine se a gente tivesse que se separar por mais tempo, né, filhote?
Uma suave ponta ironia despontou da sua voz de veludo. Dante endireitou-se na cama, lívido.
– Você sabe... O Hô te disse... Você... Você só é irônico assim com quem você não gosta... Mozinho... Você tá com raiva de mim?
– O que você acha?
– Desculpa...
– Se prefere eles não tem porque ficar constrangido...
– Pai, não fala assim... Você... Tá tão bravo assim?
– Por criar você por doze anos e depois te dar grande, forte e educado para quem te jogou fora?
– É só um pouco, depois eu volto.
– Não precisa ficar com pressa de voltar.
– Pai... Pai... Não fica com tanta raiva assim...
– Não estou com raiva. – fingiu olhar para outro lado. Estava ferido de morte. – Só acho estranho você querer tanto ir para junto daquela gente. Aquela mulher que te largou para morrer. Ela não gostava de você. Ela nunca gostou. Ela te jogou fora como quem joga um rato morto para fora de casa...
– Desculpa, pai...
– Já chamou o engomadinho diplomata de pai também?
– Não... – gemeu o menino abraçando as cobertas.
– Logo vai estar chamando ele de pai também e...
– Afrodite... – a porta abriu-se e Máscara da Morte entrou com o médico no quarto. Ao ver o rosto transtornado do menino, não precisou de muita imaginação para compreender que Afrodite não cumprira a sua promessa e no mínimo torturou a criança com seus ciúmes. Fez sinal que o queria fora do quarto. Mal o pisciano levantou-se da cabeceira junto ao menino, Horemheb tomou o seu lugar.
– Vou falar com o Mozinho, está bem, Dante? – sussurrou aos ouvidos do filho.
– Pai, ele me odeia agora. Desculpa? Não fiz por mal...
– Psss... – cobriu a testa febril do menino de beijos. – Ele é ciumento e está com medo de você gostar mais dos engomadinhos... Ele é bobo, todo pisciano é bobo, não é?
– É sim, pai... – ele sorriu. – Você não vai brigar com ele, né?
– Que nada. Eu volto já. Obedece o doutor, viu?
– Tá bom...
Máscara da Morte estava ardendo por dentro. Uma sensação que ele não sentia a tempos. Quando viu Afrodite parado, batendo o pé junto ao hall, não viu o seu adorado amante, que tornou sua vida colorida, nem o companheiro de lutas, nem o seu parceiro de todas as horas – viu nele um inimigo, alguém perigoso, capaz de perturbar e violar a paz de espírito do seu filho. Não teve dúvidas em reagir como reagiria diante de qualquer inimigo, com força bruta: deu um murro com tanta força na cara de Afrodite que o corpo do pisciano foi parar do outro lado do hall.
– Se você se atrever a chegar perto dele de novo, eu mato você.
Antes que Afrodite pudesse reagir, ele voltou calmamente para o quarto.
O sueco poderia ter ficado furioso, espumado de indignação, gritado, se defendido. Porém, quando a porta do quarto se abriu em uma fresta de luz que mesmo seu olho inchado do soco podia perceber, viu de relance um corpinho frágil e pequeno se lançar nos braços de Horemheb. Os soluços que se seguiram substituíram os seus soluços de dor pelo golpe. Sentado no chão, incapaz de chorar, a amarga conclusão varou seu cérebro como um golpe mortal de Fênix: "Zeus! Por que eu sou tão parecido com os meus pais? Egoísta como eles... Eu não posso tirar os olhos da minha dor... Tão egoísta..."
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Afrodite aproveitou a estadia em casa para usar os ungüentos que iam recuperar a deslumbrante beleza do seu rosto. O cretino do Horemheb tinha lhe batido com força, mas não o bastante para desfigurar seus traços por muito tempo. A força do seu cosmos acabou desinchando o lugar muito mais rápido que qualquer remédio. À noite, bem tarde, cometeu a loucura de telefonar para Horemheb, que havia ficado com Dante no hospital.
– Hô, sou eu...
Não havia nenhuma piedade na voz de gelo do canceriano.
– Desinchou?
– Um bocado... Como ele está?
– Preocupado com você. É um idiota.
– Eu vou aí amanhã.
– Não se atreva. Não apanhou o bastante? Eu ia me odiar se tivesse mesmo que te matar, Afrodite. Eu mato você, arranco sua cabeça, você sabe que eu não estou blefando.
– Eu juro, juro que me comporto. Você pode ficar junto e me vigiar.
Só aí a voz desanuviou-se para um tom mais morno – o que o canceriano reservava só para ele.
– Dite... Se você não está preparado, não venha. Eu sei que deve ter doído muito ouvir que ele vai com... aquela gente. Mas melindrar o garoto só vai piorar tudo. Ele é nosso filho, lembra? Não foi para isso que fomos atrás deles? Para salvar a vida do Dante? Para que ele fosse feliz?
– Acha que ele vai ser feliz longe de nós?
– Não sei. Quer dizer, não acho. Mas é ele que quer assim. Eu nem sei porque, mas ele quer. O que custa respeitar a vontade dele?
– Hô... Você já parou para pensar, por um único instante, se o nosso menino morresse longe de nós? Nas mãos daqueles desgraçados? Como você... Como? Como você ia se sentir se os últimos minutos de vida do nosso filho fossem passados entre aquela gente estranha?
– Eu ia morrer, Dite. Mas esse é o risco.
– Eu... Eu vou aí amanhã... Eu quero perguntar pro Dantezinho... O que ele vai levar daqui de casa... Roupinhas, brinquedinhos... Você sabe...
– Isso... Faz uma listinha do que ele quer e faz as malas. Eles vão buscar o garoto depois de amanhã.
– Depois de amanhã! É assim, Hô? Depois de doze anos cuidando e amando um filho alguém simplesmente passa e pega ele 'depois de amanhã'? Para sempre?
– Para sempre não. Por pouco tempo, Dite... Pouco tempo...
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– Pai... Posso dormir no seu colo?
– Filho, você não vai ficar toda amassado e com torcicolo? Você já está tão grandinho...
– Eu não ligo, pai. Me põe no colo?
– Tá bom... – Afrodite sentou-se na poltrona de amamentação e Máscara da Morte colocou a criança no colo do amante. O menino aninhou-se nos braços do sueco e o pai teve o cuidado de enfiar meias nos pés descobertos filho, cobrindo-o em seguida com a manta. Beijou a testa do menino – um gesto que já tinha se tornado um hábito quase mecânico – e suspirou aliviado ao perceber que ele não tinha febre. – Você não está quente hoje, viu, neném?
Vamos entregar você saudável e bem para aqueles malditos.
– É... – resmungou o menino, enfiando a cabeça mais fundo no peito firme do pisciano. Segurou os cabelos azuis que caíam em cachos desgrenhados e sem o brilho que costumavam ter. A vaidade do pisciano vinha se esvaindo aos poucos com a progressão da doença de Dante. Nos dois últimos dias, contudo, com a partida do menino, ele havia se desgostado completamente de tudo.
– O que foi?
– Você é tão cheiroso, paizinho... Tão gostoso esse cheiro de rosa...
Afrodite calou-se para sua voz não trair suas emoções. Também adorava o cheirinho do garoto... O perfume do xampu e dos creminhos de morango que o pisciano mandava fazer em farmácias de manipulação, aquele perfume morno, o cheiro da pasta de dentes de tutti-fruit, das roupas bem lavadas, a respiração suave contra seu peito... Como ia ser quando ele não estivesse mais ali? Como ia ser acordar e não ter que arrumar a bolsa correndo para ir ver o menino no hospital? E como ia ser não ter que arrumar as roupinhas para ele trocar, nem ter que passar álcool nas mãos para apertar as bochechas sardentas de Dante? Como ia ser?
– Dorme, neném... Tá tarde...
– Eu queria ficar acordado a noite toda com você, Dite.
– Mmm... Mas não pode... Você tem que descansar, neném. – a voz quase faltou, veio como um sussurro. – À que horas eles vêm te buscar?
O menino tremeu e esfregou a fronte contra o peito do pisciano.
– Não sei...
– Você me promete que nunca vai chamar aquela gente de 'pai e mãe'?
Máscara da Morte fuzilou Afrodite com os olhos.
– Por que eu ia chamar eles de 'pai' e 'mãe'?
– Por que? Porque eles são pai e mãe?
– Eu não tenho mãe e meu pai é você e o Hô.
– Mesmo?
– Você é bobo, Rosinha, de pensar que só porque eu vou com eles eu vou deixar de ser seu filho. Nada mudou. Nunca vai mudar.
– Filho... Eu te amo tanto...
– Também te amo, pai...
– Quer que eu te cante uma canção de ninar?
– Eu quero... Você canta, Mozinho?
– Uhum... Blinka lilla stjärna där, hur jag undrar var du är! Fjärran lockar du min synlikt en diamant i skyn.
– Blinka lilla stjärna där, hur jag undrar var du är!
– Lembra da letra, neném? Você é tão malandrinho... När den sköna sol gått ner,
strax du kommer fram och ler,börjar klar din stilla gång, glimmar, glimmar natten lång.
– Blinka lilla stjärna där, hur jag undrar var du ar! ( 1 )
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Afrodite arrumou o filho para ser levado pelos suecos. Pôs sapatinhos de couro e um macacão jeans com a camiseta azul da Lacoste. Depois, olhou-o bem, trocou a camiseta azul por uma verde. Depois por uma preta. Branca. Amarela. Laranja. Depois azul. Trocava o menino. Quanto mais tempo demorasse... Quando Dante estivesse pronto, poderia ir... Adiar... Precisava adiar... Quando ia virar-se para buscar uma outra camiseta, o menino abraçou-o por trás.
– Eu também te amo, pai...
– Filho... Filho, eu...
– Eu vou ficar bem, Mozinho... Eu vou...
– Dante... Fica comigo? Ninguém cuida melhor de você do que eu! Eu troquei suas fraldinhas e fiz chazinho de camomila para você beber fresquinho no verão... Eu cuido de você! Sempre cuidei! Não é justo! Não é justo.
– Justo não é, pai. Mas também não era justo eu ficar doente. Nem justo o besta do Radhamanthys machucar vocês... Você me disse uma vez que o mundo não era justo, né? Então...
Afrodite preparara Dante para ir com os pais biológicos – ele arrumou a mala do garoto com duas mudas de roupas e um ou dois brinquedinhos velhos e o livrinho de estórias que ele gostava. Ele fez tudo, mas não acreditava que, de verdade, teria de entregar o menino. Ele imaginou que, na hora h, o filho desistira daquela loucura, atiraria-se nos seus braços como sempre e tudo ficaria bem. Vê-lo sair do hospital, bem vestido, penteado e levado pela mão para ser dado a quem nunca o amara era uma coisa que o pisciano não estava preparado para ver. Não, não estava. Segurava os braços do menino entre seus dedos, como se não o quisesse deixar ir. A 'mãe' ansiosa esperava e o 'pai' parecia aborrecido com tanto mise en scène. Era o típico homem de sangue bárbaro: um saqueador. Ele avançaria contra aquelas praias roubando tudo que podia e atirando fogo no que ficava. Diabo! E ia levar seu filho.
– Dante, anjinho... Fica... Fica...
– Pai, eu não posso... Eu tenho que ir.
– Você não tem! Você vai porque quer! Fica!
– Pai, eu... Eu vou agora.
– Não! Não!
Afrodite logo extrapolou dos pedidos lamuriosos para os gritos. Os enfermeiros e médicos da ala correram até o quarto, mas ninguém quis intervir. Fosse o que fosse – e preconceito era uma constante entre os gregos – aqueles médicos, enfermeiras e funcionários aprenderam a respeitar aquela família e o amor que o menino devotava aos que o criaram. Eles acompanharam cada capítulo daquele drama, desde a primeira aparição dos pais biológicos, seguida de gritos e crises nervosas do menino, até aquele cena final, melancólica e deprimente. Era óbvio que Dante não queria ir.
– Afrodite, deixa eu me despedir do menino. – Máscara da Morte gentilmente afastou o amante, querendo lhe dar tempo para se acalmar. Abraçou o garoto, cobrindo-o de beijos ternos, o rostinho sardento aflito e pálido como a morte. Sussurrou no ouvido do menino, "filho, eu vou te buscar. Eu vou te tirar de lá quando você estiver bem, tá?"
– Mozão...
O canceriano fiz sinal de silêncio com o indicador.
– Nosso segredo, Dante. Nosso segredo.
– Segredo de homem, pai.
– Isso.
– Pai... Diz tchau para mim? – pediu o menino num sussurro. Afrodite ainda balançava a cabeça em negativa.
– Não, Dante... Fica com o papai? Eu faço qualquer coisa! Eu bato neles, nada do que eles podem ter te dito é sério, eu protejo você!
– Pai... Eu vou voltar um dia, eu juro...
– Não vai, Dante... Por Zeus...
– Pai, por favor, não chora...
– Pela deusa, Dante... Se você... Não ficar por amor... Fique por... Pena de mim... Eu não vou agüentar se eles te levarem embora...
– Eu volto, Dite... Eu volto...
– Não, filho, fica... Fica...
– Levanta a cabeça, Mozinho... Levanta... Eu tenho medo de te ver assim...
– Dante... Dante...
Afrodite segurou a mãozinha do menino, beijou a palma e fechou-a.
– Leva o meu beijo sempre com você, Dante...
O menino engoliu o soluço entalado na garganta. Virou as costas e foi para junto dos suecos, andando até o carro sem permitir que nem a 'mãe' nem o 'pai' o tocassem.
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Per e Wilma conseguiram, junto à embaixada da Suécia na Grécia, o aluguel de uma belíssima casa, para onde podiam levar o menino, até que conseguissem a permissão dos médicos para levar a criança de volta para o país deles.
Durante a curta viagem de carro do hospital no centro de Atenas até a casa, Dante se encolheu perto de uma das janelas, rosnando em fúria a cada tentativa dos pais biológicos o tocarem. Sim, eles podiam tê-lo chantageado e forçado a seguir com eles, para proteger Máscara da Morte e Afrodite, mas jamais tomariam com força e chantagem o seu afeto. Seu amor nunca poderia ser um presente para alguém que um dia quisera fazer mal aos seus queridos pais. Ele imaginava que, por mais que tentasse impedir, ia chegar a hora em que eles iam agir como 'pais' dele. Tinha enjôos só de pensar, mas o mestre Saga o havia dito que um bom cavaleiro está preparado por prever os ataques inimigos. Ele previa também, embora não pudesse revidar.
Foi levado para seu quarto novo: grande, neoclássico, com veludos e sedas e uma enorme janela com vista para ao jardim. Era uma gaiola. De ouro. Quando os pais o deixaram sozinho no quarto, ele sentou-se no chão e chorou, finalmente. Colada ao rostinho molhado, a mão com o beijo de Afrodite. Tremia e cantava, cantava as canções de ninar de Máscara da Morte lhe cantava, assim:
"Farfallina bella bianca
Vola, vola mai si stanca
Gira di qua, gira di la
Fin che 'posa su Papa" ( 2 )
Podia cantar as canções. Ainda que não estivesse em casa, não ia perder suas memórias. Allyanda lhe disse uma vez que a memória era um coração extra. E ele não ia desperdiçar nada daquele coração... Nada.
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– Venha jantar conosco, Mathias.
– Não... – apavorado, Dante escondeu-se atrás da cama. Desde quando tinha virado um coelhinho covarde, que corria quando alguma voz se levantava no ambiente? – Eu... Eu... Não posso... Preciso comer com o ventilador... Não posso cheirar a comida senão vomito... é a quimio...
– Ah, isso.
É, isso, Per. Seu filhotinho tem câncer... Obrigado por lembrar.
– E também tem coisas que eu não posso comer...
– Você tem restrições alimentares... Esqueci desse detalhe. Amanhã eu contratarei uma enfermeira qualificada para tomar conta de você e desses detalhes.
Claro, papai. Mande alguém fazer o trabalho sujo por você... Imagine se você tivesse tido que trocar alguma das minhas fraldas? Eu era um bebê cagão, você sabia?
– Eu... Eu não tô com fome...
– Você ter ou não fome não é a questão. Você tem que comer. Vou mandar trazer queijo.
Você é esperto, papai.
– Não posso comer queijo. Qualquer biscoito serve.
– Vou mandar trazer alguns pães e bolos. E o ventilador.
A porta bateu-se e Dante suspirou aliviado de ver-se livre daquele homenzinho asqueroso.
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– Onde está Mathias?
– Ele não vem. Há uma série de providências a tomar por conta da doença dele, Wilma. Ele não pode comer qualquer coisa e nem de qualquer maneira.
– Mas... Ele vai ficar com fome?
– Por hoje ele agüenta com biscoitos. Amanhã contrato uma enfermeira para cuidar de todos estes detalhes.
– O que vai fazer?
– Ligar para o médico e perguntar o que afinal de contas essa criança pode comer.
Alguns minutos depois Dante ainda estava sentado no mesmo lugar quando foi trazido ao quarto o ventilador, a bandeja com pão e geléias e o diplomata sueco.
– Seu médico me disse que você tem uma sessão de quimioterapia marcada para amanhã cedo. Por que não me contou?
Eu tenho leucemia, não pensei que precisava te dizer isso também, gênio. Como deixaram você virar diplomata?
– Porque era óbvio.
– Sua mãe vai te levar e na volta a enfermeira já vai estar aqui.
O menino o ignorou, olhando a bandeja. Ouviu a porta bater e chorou. Soluçou abraçado aos travesseiros, esfregando a mão onde 'guardara' o beijo que Afrodite lhe dera... Amanhã ia para quimioterapia. Ia voltar para casa passando mal e não ia ter Mozinho para segurá-lo e protegê-lo, nem Mozão para lhe dar força. Ia ter que voltar para essa casa horrível, essa gaiola de ouro onde estava preso... Ia ter que encarar aquele homem nojento, aquela mulher medonha que nem de longe era bonita como Afrodite era bonito e não estaria na sua casa... Entre seus brinquedos e suas coisas... Não tinha trazido quase nada.
Quando Afrodite perguntou o que Dante queria levar de casa para ir viver com os suecos, ele pensou em dizer "tudo". Queria agarrar-se com tudo que fosse de sua casa e de seus pais, assim teria ao que se apegar para lembrá-lo da vida que tanto amava. Mas, depois, pensou melhor. Não queria nada que lhe fosse querido e que viesse da sua família em contato com aquelas pessoas peçonhentas. Não ia sujar as lembranças da sua vida feliz arrastando-as com ele para... enfim, para sua prisão.
Estava com raiva. Muita raiva. Mas não podia voltar para casa. Jamais poderia voltar a sua casa sabendo que aquele pai de araque estava solto e podendo fazer de um tudo. Ele era mau e perigoso. Dante tinha um cosmo e tinha intuição. Sabia muito bem que Per não mediria esforços para ficar com ele – não ia parar, ia avançar como um rolo compressor sobre tudo que estivesse na sua frente. Ele não hesitaria em tentar tudo contra Afrodite e Horemheb. Eles eram fortes, eram cavaleiros. Mas nem tudo podia ser resolvido com os poderes que Athena lhes dera. O que iam fazer se Per levasse a diante a estória da pedofilia? Se ele fuçasse mais nos papéis da adoção e descobrisse algo sobre o Santuário? Afrodite não ia poder simplesmente lançar uma Rosa Diabólica contra ele; nem Máscara da Morte ia poder cortar fora a cabeça de cada um que os apontasse na rua, imaginando que dois homens pervertidos podiam ter abusado de um menininho doente e roubado de uma mãe rica e pai culto. Não... Se alguém podia e devia proteger o Hô e o Ditezinho era ele. Ele.
Debruçou-se na janela, depois de estar cansado de chorar e olhou para o jardim florido – não havia nenhuma rosa.
"Que desperdício de jardim... Se não tem rosas, para que ter um jardim?"
Manteve seu olhar firme para os espaços entre azaléias e hortênsias, concentrando seu cosmo o máximo que pode. Depois da luz dourada, o jardim reluzia suavemente, como embebido em glitter, com um perfume que encheu o quarto e o coração do menino.
Um jardim repleto de rosas.
Vermelhas.
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Bom, aí está. Era para ser o dobro disso, então... Estou um pouco decepcionada comigo mesmo. Perdoem-me os erros – estou sem beta porque os meus foram curtir o feriadão. Ah... Agradecimentos, assim que eu puder, mas desde já: Ada, Sini, BelaYoukai, Pipe, Litha-chan, Paola Scorpio, Giselle, Lininha, Lola, Arashi Kaminari, Tsuki Koorime, Bélier, Dark Lupina, Lady Nina, Ste e Athena Sagara, MUITO OBRIGADA por terem comentado a fic – eu espero que minha lerdeza não as tenha desanimado da estória e que este capítulo meio sem ritmo não esteja muito aquém do resto da fic... Aliás, se tudo der certo, este é o antepenúltimo. Só mais um e depois THE END! Beijocas!
ps: curiosidades afins, passem em http / thesenseiclub (ponto) blogspot (ponto) com
( 1 ) essa é a clássica "Brilha, Brilha, Estrelinha". Versão sueca.
( 2 ) Música para bêbes.
