Disclaimer I: Saint Seiya não me pertence. A série original e seus personagens são propriedade de Masami Kurumada.
Disclaimer II: Mozão e Mozinho são expressões cunhadas por Pipe, usadas com a permissão dela nessa fiction. O enredo desta fanfiction, bem como seus personagens originais e nomes, quando não especificados, me pertencem.
Ps1: não me atirem pedras pela caracterização do Shura. Ela foi toda baseada na pessoa Capricórnio que mais convive comigo: a senhora minha mãe. Ótimo coração, mas com a delicadeza de um elefante em loja de porcelanas.
Ps2: Não me atirem pedras, parte dois – O comportamento do Afrodite não foi tirado da minha cabeça não, mas veio de uma experiência pessoal. Aconteceu na família e eu achei tão impressionante que nunca esqueci – então, voilà!
ps3: FURIOSA depois de 4hs tentando dar upload disso... morte ao site!
MAIOR QUE TUDO
Capítulo 07
Pétalas Negras
– Doutor, ele está melhor?
– Está. Já vai poder ir para casa, mas observe-o atentamente.
– O que são essas coisas na mão dele? Os fios?
– Estamos injetando as drogas pelas veias. Da outra vez que ele esteve aqui com o senhor, se queixava de dores de estômago. Os anti-depressivos e calmantes em geral são muito agressivos. A aplicação intravenosa evita esse desgaste.
– Ah... E as convulsões?
– Nervosas. Ele deve acordar melhor, mas o senhor já deve saber como agir se ele tiver outra crise. A febre também era nervosa, com as drogas que estamos usando ele vai acordar um pouco sonolento. Mas é normal.
– Entendi.
– Não se deixe abater. Foi um choque muito grande para ele, mas tudo ficará bem.
– Eu espero que sim.
– Quando ele acordar, me chame.
– Obrigado, doutor.
Quando o médico saiu, o homem suspirou, alisando o rosto bonito, pálido, do outro na cama.
"Dite... Me desculpe por tudo..."
Assim que Dante saíra do hospital com os suecos, Afrodite começou a passar mal. Teve seguidas convulsões, febre alta. Os médicos tiveram de acudi-lo. Ele delirava, chamando o filho.
Máscara da Morte sentia-se pessoalmente culpado pela tragédia na sua vida. Trouxera o menino para fazer Afrodite feliz e sabia que estava brincando com uma coisa muito séria – sabia os riscos. Dar um filho para alguém não era como dar um cachorrinho. Uma criança era uma dádiva, mas quando ela era tirada, deixava um vazio que nunca podia ser preenchido. Afrodite sempre o amara – e nem Osíris podia explicar-lhe o porquê! – mas o pisciano poderia levar bem a vida sem ele. Sofreria, choraria. Mas Horemheb não duvidava que, depois de alguns anos de luto, Peixes já poderia se arranjar com amantes eventuais e, quem sabe, até um companheiro fixo. Mas e Dante? O que poderia substituir Dante na vida do pisciano? Nada. Nem mil amantes. Nem uma dezena de filhos.
– Horemheb? – a voz tênue de Afrodite o acordou de suas divagações.
– Amor... Pss... Não se mexe...
– Onde estou?
– No hospital. Você não se sentiu bem...
Afrodite puxou os fios que estavam em suas mãos, para choque de Horemheb.
– Dite, fica quieto!
– Vamos para casa.
– Você...
– Estou muito bem, Horemheb. Sou homem. Tive um fricote, mas passou. Vamos embora daqui.
– Dite...
– Chega desse hospital por hoje. Quero ir pra casa, tomar um banho, engolir um seis compridos de Prozac e dormir até morrer, vamos.
O pisciano já estava de pé, se arrumando para sair, quando reparou que Máscara da Morte continuava sentado, a cabeça entra as mãos. A voz de quem chorara.
– Me desculpe, Afrodite... Me desculpe...
– Desculpas?
– Eu trouxe ele... Eu coloquei você nisso... Eu só queria... Que você tivesse uma coisa especial, só sua, Dite...
– Não seja tolinho. Meu filho foi a melhor coisa que já tive na vida. Não interessa o quanto mais eu vou sofrer daqui até o final da minha vida, um dia que eu passei com o Dante valeu pela minha vida inteira antes dele, se é que você quer saber. Levanta daí. Perdemos uma... Mas vamos pegar nosso filho de volta.
— # —
– Horemheb, posso te contar uma coisa?
Máscara da Morte não desviou o olhar do volante, dirigindo.
– Fala.
– Sabe, Hô, aquela vez que eu fiquei sozinho no parque com o Dante? Ele tinha uns dois aninhos... Você ia levar o carro para uma revisão, para a nossa viagem. Lembra?
– Lembro, claro, eu mesmo disse que você não precisava ir comigo, era chato ficar esperando para revisarem tudo, mas você insistiu em levar o garoto para tomar sol.
– Eu nunca te contei o que aconteceu, porque sabia que você ia ficar muito chateado... Mas agora eu preciso falar.
– O que foi que você fez?
– Eu estava lá, com ele no parque, mas... Eu... Você sabe como eu sou, eu me distraio fácil... Eu estava chateado, porque ele tinha passado a noite toda chorando com a cólica...Eu me distraí... E... Ele... O neném caiu, caiu do brinquedo, caiu no chão, o brinquedo era tão alto, eu só ouvi aquele "tump" de uma coisa caindo no chão... As mães que estavam no parque, todas aquelas vacas estúpidas me olhando, com aquelas caras de reprovação... E o neném caído, estirado na grama... eu... fui devagar até ele, ele nem chorou, ficou só me olhando com aqueles olhos verdes enormes arregalados, a chupetinha, você sabe, ele ficava meigo com a chupeta...
– Afrodite...
– Aí, Hô, eu peguei ele no colo, apalpei ele todinho, para ver se estava machucado, mas ele estava quieto, não fez ruído nenhum... Parecia que tinha morrido, meu bebê... Aí, eu apertei ele com mais força, as mulheres escandalosas berrando, eu tirei a roupa dele, elas me ajudaram, ele ficou peladinho... Elas tiraram a roupa dele para ver se tinha algum roxo ou marca de sangramento... Mas não tinha... Eu estava tão chocado, Hô... Eu nem tinha chorado, aí eu só, não sei, suspirei e comecei a chorar, baixinho, com ele no colo, embalando o neném para ver se ele balbuciava alguma coisa, dava sinal de vida...
– E ele?
– Ele me olhou, Horemheb, com aqueles olhinhos verdes e fez aquele "papapapa", que ele fazia antes de aprender a dizer 'papai' e me abraçou, sem chorar, se enrolou no meu cabelo, olhou para as mulheres e ria... Mas eu sentia, sabe? Eu sentia que ele estava assustado, meu filho... Mas ele parece que entendeu o meu nervoso e não quis me deixar mais tenso então ele... Ele ficou calminho...
– Era impressão, Dite. Ele sempre foi calmo, era um bebê que quase não chorava, só se estivesse com muita dor.
– Talvez. Mas eu sei que fiquei um tempão com ele no meu colo, abraçado comigo, pensando no que eu ia te dizer se meu filho tivesse morrido, caído de um brinquedinho de parque por causa da minha irresponsabilidade... Mas ele não chorou... Ficou lá com o "papapapa" ... Eu vesti ele de novo... Ele dormiu no meu colo. Quando você chegou para apanhar a gente, ele estava no meu colo, calmo, rindo para mim... Eu passei o resto do dia em pânico, pensando se devia te dizer e levar o menino ao hospital... Eu ficava olhando, esperando qualquer reação do neném... Mas ele passou o dia todo enjoadinho, chorando, reclamando, querendo colo, nem banho ele quis tomar, ele que adorava banho... Eu me senti sujo, ruim... Como podia ter feito algo assim com meu filho? Ele não era uma boneca, era uma criança e eu o deixei brincando no parque enquanto ficava lá, pensando em 'pobre de mim'que não tinha dormido por causa da dor dele e que devia estar com olheiras enormes...
– Afrodite, passou...
– Não, não passou... Eu fui dormir com ele na nossa cama, para poder vigiar melhor, você ficou bravo, queria que a gente ficasse... junto, mas eu não tinha coragem de deixar ele sozinho... Ele dormiu e eu passei a noite toda em claro, admirando meu filho, pensando no que teria acontecido se ele tivesse morrido depois de cair do brinquedo... Mas ele só dormiu... E no dia seguinte...
– Do dia seguinte eu lembro...
– Você lembra, né?
– Foi das coisas mais bonitas que aconteceu na minha vida, Dite... Eu nunca vou esquecer daquele momento... Acordar, ver você, tão bonito, deitado de costas, o Dante deitado no seu peito e aí...
– E aí ele me olhou e disse "momo...momozinho..." .
– Era espertinho o nosso menino, né?
– Era... Eu precisava te dizer, você está com raiva de mim, Horemheb?
– Não aconteceu nada, Dite. Uma estória tão velha...
– Mas eu queria te dizer. Eu me sinto um idiota... Hoje eles vieram e levaram nosso filho. Eu também não tinha noção do quanto menino significava para mim até uma coisa daquelas acontecer... Eu estava sempre precisando de provas para meu amor por ele... Sempre... Eu... Tinha raiva de ficar acordado até tarde por causa dele, odiava ver minhas bolsas caras com fraldas, mamadeiras e chupetas dentro... Eu gostava dele, mas não gostava de ter trabalho... Até acontecer aquilo e eu ter certeza de que... Que eu não ia conseguir viver sem o nosso neném... Que ele valia mais que qualquer coisa... Que ele era um mundo para mim... E agora eles levaram ele embora... Por que? Por que? A deusa me deu um filho, instigou em mim um amor por ele e depois mandou aquela gente horrorosa me arrancar o garoto...
– A gente vai pegar ele de volta assim que ele estiver fora de perigo... Ouviu?
– Ouvi.
— # —
– Bom dia, Horemheb. Como está Afrodite?
– Melhor. Ele já até sai da cama. Às vezes. Anda de um lado para o outro, senta, vê televisão, lê um livro. Depois volta para cama. Desde que o menino foi, ele não vestiu nada além de pijamas. Não botou os pés nem no jardim, que ele gosta tanto...
– Ele vai se recuperar. É porque é muito recente ainda. Dói muito, não é?
– Dói. Dói pelo meu filho que eu sei que não está bem, dói pelo Dite que está definhando diante dos meus olhos e eu só posso assistir...
– Eu não entendi ainda o menino ir por vontade própria...
– Ah! Vontade própria! Eu tenho minhas dúvidas!
– Como assim?
– O menino estava sofrendo, Camus. Eu conheço meu filho, eu... Sinto que ele não queria ir. Eu posso ser a pior bosta de amante do mundo, mas quando ele estava indo embora eu não consegui ter pena do Afrodite, nem dos gritos dele... Eu só conseguia sentir pena do meu filho, como ele podia estar, saindo de casa ouvindo as coisas que o porra-louca do Afrodite diz quando perde a cabeça...
– O que acha que aconteceu, então?
– Aquela gente deve ter chantageado e apavorado o menino. Você sabe que tem muita coisa que eles poderiam fazer contra nós.
– Eu imagino...
– Mas nem posso compartilhar essa minha angústia com o Dite...
– Mas por que? Ele ia ficar felicíssimo de ter essa esperança. Ele acha que o menino quis ir com eles.
– Camus, eu não tenho certeza disso... Quem sabe o que se passa na cabeça de uma criança de doze anos com uma doença que mata? E se ele quis mesmo ir? E se ele sentiu alguma espécie de não sei... Obrigação, nostalgia? Não posso ser irresponsável e plantar nem que seja um única farpa de esperança no coração do Afrodite porque se não for verdade, Camus, ele não vai suportar... Não vai... Afrodite nunca amou ninguém com a força que ele ama Dante. Ele se entregou ao menino. Ele não está preparado para ser traído na única vez em que confiou plenamente em alguém. Se o garoto o rejeitar, ele vai morrer.
Camus olhou para aquele homem que ele e boa parte do Santuário desprezava, o assassino. Não teve mais vontade nenhuma de falar de Afrodite, que descabelara-se como uma mulher histérica na frente do filho doente. Teve vontade de fazer o que ninguém até agora tinha feito. Perguntar. Por ele.
– Como você está, Horemheb?
–Eu vou recuperar esse menino, Camus. Eu telefono todos os dias para o hospital para saber o que vai ser dele. Estou tentando de tudo. Já falei com o médico das minhas desconfianças e pedi que por tudo que é mais sagrado não liberem a viagem do garoto. Se eles tiverem o ok do médico vão carregar meu filho para longe.
– O você pretende?
– Ficar por perto até descobrir que eles são compatíveis e doarem a medula para a criança. Mas se eles não forem doadores, Camus, eu juro, eu invado aquela merda de casa onde trancaram minha criança, decepo a cabeça de todos! Mando eles e a casa para o Sekishiki!
– Assim que se fala, Máscara da Morte. Você é um... Grande cavaleiro.
– Obrigado, Aquário.
— # —
– Wilma, o que houve? Está chorando, outra vez?
– O cabelo, Per... O cabelo do Mathias começou a cair!
– E é por essa bobagem que você chora? Vamos lá, Wilma.
– Mas, Per...
– O menino está com leucemia, Wilma. O cabelo dele cair era uma questão de tempo. E eu não sei para que tanto choro – o cabelo voltará quando ele estiver curado.
– O que eu digo para ele? O cabelo está caindo aos poucos, eu pensei em tomarmos mais cuidado...
– Vamos cortar. Vamos raspar o cabelo dele hoje mesmo.
– Ele não quer. A gente dele também não queria.
– É uma coisa descabida! O que vai fazer? Esperar ele perder tufos de cabelo até parecer um símio com sarnas?
– Ele não quer. Vai ser complicado forçá-lo, ele vai se estressar e não vai ser bom...
– Podemos sedá-lo. Sirva um sedativo leve com o chá verde e eu mesmo passo a máquina no cabelo dele.
– Você, Per?
– Já fiz isso várias vezes, Wilma... Raspei os cabelos dos meus irmãos por conta da epidemia de piolhos em Budapeste, lembra?
– Lembro. Mas será que é uma boa idéia? E quando ele acordar e ver que está sem cabelos?
– Ficará histérico. Mas não poderá fazer mais nada. Melhor do que ver o cabelo cair aos poucos.
– Está bem, amor...
Assim foi feito. O menino realmente ficou histérico. Apavorado, escondido embaixo da cama, xingando tudo e todos baixinho, com o coração partido e cheio de medo. O que o Mozinho pensaria ao vê-lo daquele jeito? Como um rato pelado e feio? Afrodite tinha uma paixão sem limites pelo que era bonito – nunca ele ia querer um filho com cara de rato pelado.
"Nunca vai me querer assim, horroroso. Rato pelado. Eu sou um rato pelado."
— # —
A primeira sessão de quimioterapia sem os pais foi traumática.
Antes mesmo de voltar para casa, Dante já começou a sentir os efeitos e passou mal no caminho todo de volta para a bela casa que a embaixada sueca cedeu ao diplomata. Tentava esgueirar-se dos abraços da mãe e dos afagos duros do pai. Chegou em casa e trancou-se no quarto. Garantiu aos 'pais' preocupados que era assim mesmo e que ele ia ficar bem, depois de vomitar um tanto. Era normal e era só isso.
Sem grande surpresa para o menino, aceitaram placidamente a explicação dele e o deixaram sozinho. Ele ainda conferia a porta, checando se estava bem trancada, quando ouviu o telefone tocar. As vozes abafadas e confusas entraram pelos vãos das portas.
"Wilma..."
"Me diga..."
"Não somos compatíveis."
"Nenhum de nós dois?"
"Ninguém da nossa família. Ninguém."
"O que vamos fazer agora, Per?"
"O mesmo que estamos fazendo agora: continuar procurando."
Trêmulo, Dante não teve tempo de formular sequer um pensamento. Logo já estava debruçado sobre o vaso do seu pequeno suíte. Desencontrados fios de raciocínio tentavam se juntar na sua mente infantil. Tinha aceitado ir para aquela casa para proteger Máscara da Morte e Afrodite, mas nunca tinha abandonado a idéia de voltar. Primeiro, pensou em fugir quando estivesse operado. Mas agora... Nunca ia ser operado. Não havia medula. Tinha pensado até em ficar com suecos até os dezoito anos quando legalmente poderia voltar para Mozão e Mozinho sem nenhum perigo para eles. Mas também... Não chegaria aos dezoito anos. E agora, não havia mais nada... Nem esperança, nem nada... ia morrer... Podia fugir... Sim, era um cavaleiro, podia fugir... Mas para que? Para onde? Per ia perseguir seus pais, infernizar a vida deles; mesmo que vivesse bem pouco, ele ia se encarregar de tornar seus últimos dias de vida miseráveis.
"Zeus... Me ajude a não dar esse gostinho para eles... Me ajude... Me ajude a morrer..."
— # —
– Aiiiiiiii!
– O que foi, Afrodite?
– Ai, Hô, ai... Meu peito, uma dor, uma dor horrível...
– O que foi, Afrodite... Afrodite!
– Não consigo respirar direito...
– Eu vou chamar o médico, ok? Deita aqui, deita... respira fundo...
– Aiiii, ai meu peito...
— # —
– O que ele tem, doutor?
– Não sei. Pelos sintomas, parece um infarto.
– Infarto!
– Preciso de exames, mas... Eu sou o médico do Santuário há anos, o último check-up do Afrodite estava perfeito. Eu não acredito que seja um infarto, mas é preciso considerar tudo.
– O que o senhor acha, então?
– Psicossomático.
– Era só o que estava me faltando...
– Mesmo doenças psicossomáticas podem ser perigosas. Vamos fazer os exames, mas até lá, mantenha o Afrodite em repouso e dê a ele esses remedinho aqui, duas vezes ao dia. Entendeu?
– Está bem.
— # —
– Dite, como você está?
Somente Shura se atrevia a fazer aquela pergunta, já tão mastigada. O pisciano ajeitou o xale sobre os ombros.
– Você é pai, Shura. Deve imaginar o que é. Entrei no hospital com meu filho e saí de lá sem filho. Como você se sentiria?
– Mas você já está melhorando, né? Já está até usando batom.
Afrodite ficou pálido como a morte. Em um gesto instintivo, sua mão resvalou pelos lábios carnudos, cobertos por uma finíssima camada de gloss – que ele colocara apenas para aliviar o desconforto dos lábios que racharam, desacostumados a enfrentar a secura da Grécia sem o aparato de beleza de que o pisciano sempre dispusera.
Afrodite ouviu a voz que vinha do fundo do seu coração, ríspida. "Vaidoso. Como pode se importar tanto com você mesmo e se enfeitar? A agonia do seu filho não te impressiona?"
– Afrodite, eu não te critiquei. Eu... Estou feliz que você está se cuidando, você precisa ficar bem para lutar pelo Dante. Por que... Por que vocês não tentaram fugir com o menino?
– Fugir? – Afrodite gargalhou seco. – Fugir, Shura? Como? Meu filho não está com dor de barriga, ele tem leucemia! Onde eu ia escondê-lo? Ele não pode comer qualquer coisa, nem ficar em qualquer lugar e precisa de remédios, de tratamento... De uma medula... Onde eu ia ficar com ele?
– É, tem razão... Não havia como mesmo...
– Mas eu vou recuperar meu filho, Shura... Nem que eu morra para isso...
– Dite...
– Eu dei a vida por esta deusa de araque umas mil vezes! E ela não me serve de nada! Mais teria valido eu ter ficado no Inferno e nunca ter tido ninguém que dependesse de mim, como o Dantezinho, que depende de mim e eu não sirvo para nada... Não posso fazer nada por ele...
– Você amou o menino. Mais do que ninguém no mundo, Afrodite, você devia saber que ser amado é mais importante do que comer e vestir. A você nunca faltou nada... Trocaria tudo que tem de boa vontade para ter seu filho... E... Horemheb ao seu lado.
– Triste amar assim, sem poder proteger aqueles que você ama.
– A vida é assim.
– Uma merda de vida.
– Uma merda de vida.
— # —
– Quero viajar com meu filho. Levá-lo para Suécia, para uma casa com mais condições e mais conforto.
– Infelizmente, as condições de saúde de Dante não são propícias para uma viagem.
– Eu arrisco.
– Sr. Von Platen, eu não vou liberar o menino. E sem minha assinatura, não vai poder tirá-lo do hospital, exceto com a permissão dos pais adotivos.
– O senhor está querendo me criar embaraços?
– O senhor abaixe o seu tom de voz. O senhor é que está criando embaraços para o tratamento do seu filho. Dante não tem condições de fazer uma viagem de avião no estado em que ele está, ele vai ficar internado porque está com a imunidade muito baixa. É o procedimento padrão e isso já aconteceu antes.
– Quando ele vai poder sair?
– Depende do organismo do menino, quando os exames de sangue forem bons, ele vai poder sair. Um acompanhante pode ficar para dormir no hospital.
– É necessário que alguém fique?
– Na verdade, não. Mas é bom quando os pais acompanham crianças assim pequenas.
– Meu filho não é uma criança pequena. Já é um menino grande. Minha esposa está esgotada. Vamos para casa e voltamos amanhã.
– Como o senhor quiser.
Quando o homem se retirou, o médico foi ver Dante. Estava chocado com o sangue frio do diplomata em deixar o filho pequeno e doente sozinho no hospital. Depois, se deu conta de que estava sendo apenas tolo: como pessoas que abandonaram um filho para morrer nas ruas poderiam se importar?
– Como está, Dante?
– Doutor, eles foram embora?
– Foram. Mas voltam amanhã.
– Tomara que esqueçam... Doutor... Diz para eles que eu não posso viajar, diz? Eu vou ficar internado?
– Vai, mas...
– Manda eu ficar aqui! Diz para eles que eu tenho que ficar! Eu não quero voltar para aquela casa!
– Então por que você foi, Dante? Seu pai... O seu verdadeiro pai liga todos os dias querendo saber de você...
– O Hô?
– Ele mesmo.
– Eu não posso voltar agora, doutor... Mas eu... Eu queria muito, muito, ouvir a voz do meu pai... o senhor me empresta o seu celular?
– Empresto. Mas você vai ligar para eles?
– Pro Mozinho...
– Para o Senhor Vündhegen?
– É... Rosinha sempre desliga o celular depois das nove da noite,
– Então já são dez e vinte.
– Eu sei. Eu não quero que ele fale comigo... Eu vou deixar uma mensagem na caixa postal.
O médico ficou rindo suavemente, a criança de cabeça raspada, que parecia ser feita de vento de tão fraca que estava, suspirar com sua voz baixa a mensagem no celular.
"Pai... Estou com saudades de você e do Hô. Eu te amo muito. Muito. Cuida do meu jardim? Minhas rosas devem estar todas tristes e murchas. Eu penso em vocês todos os dias... O safado do sueco roubou meu anel e não deixa eu usar. Mas eu já convenci a safada que se diz minha mãe a devolver. Te amo, pai. Te amo muito. Tchau, tá? Beijos."
– Não quer avisar que está aqui? Eles podem vir te visitar. O horário de visitas já acabou, mas você sabe que, sendo um paciente especial como você é, eu posso abrir uma exceção.
O menino abriu um delicado sorriso.
– Ah... Mas eu não quero que eles me vejam assim... – ele coçou a cabeça pelada. – Que nem rato pelado...
– Eu tenho certeza de que eles não vão se importar com isso se puderem te ver.
– Eu não quero. Melhor assim. Eu tenho certeza que o urubuzão albino deixou os capangas dele na porta me vigiando. Imagina se eles resolvem brigar com o Mozinho e o Mozão?
– Você se preocupa tanto com eles, não é menino?
– Diz, doutor, se o senhor tivesse uns pais lindos e perfeitos como eu, o senhor também não se preocupava com eles?
– Preocupava sim, Dante, você tem toda razão.
— # —
– Dite, seu telefone ficou ligado na sala.
– Traz ele pra cá e desliga, Hô.
– Olha, tem uma ligação não atendida. Deve ter deixado mensagem. – virou o celular para o pisciano. – Conhece o número?
– Não.
– Posso recuperar a mensagem da caixa postal?
– Se tiver alguma...
– Qual a senha?
– Sexo69.
– Pára de brincadeira, Dite.
Os olhos marotos cor de céu do pisciano brilharam.
– É sério. Testa.
O canceriano digitou a senha. A mensagem abriu.
– Você é um pateta, Afrodite...
Da cama, o sueco viu o rosto do amante se iluminar e seus olhos brilharem.
– É para você, Dite. Ouve a mensagem...
O pisciano ouviu a mensagem do menino. A voz do filho lhe arrancava lágrimas – era um idiota, mas pela voz da criança sabia como ele estava : triste, abatido, sozinho.
– ... Filho... Meu filhinho, Hô... Eu quero meu filho!
– Eu também quero, Dite... Eu também quero.
– Eu estou morrendo, Horemheb... Morrendo de saudades do meu filho... Eu sinto tanta falta dele que... Que tem horas do dia que eu não consigo respirar direito, uma pressão no meu peito como se estivesse sufocando, uma pontada no peito... Eu preciso ver meu filho, abraçar meu anjinho, saber como ele está...
— # —
– Shura!
– Horemheb. O que foi? Você está esquisito...
– Você viu Afrodite?
– Não. faz dias que eu não vejo.
– Eu fui ao mercado bem cedo comprar o peixe que ele gosta... Não quis mandar a serva porque eu estava precisando espairecer... Quando voltei ele não estava... Já é tarde e ele não voltou... Não me deixou um bilhete nem levou o celular... Ele nunca sai sem me avisar, mesmo quando a gente briga ele deixa uns recados mal educados nas portas, mas... Nunca assim, sem me dizer...
– Bem, ele deve ter saído para espairecer também...
– Sair de casa às cinco da manhã e não ter voltado até agora? Já são sete e meia da noite!
– Do que você tem medo? Afrodite sabe se defender... Ele não é a sua garotinha...
Máscara da Morte o encarou em fúria. O "assunto" Afrodite nunca foi bem resolvido entre eles. Na época em que o pisciano disse ao espanhol com todas as letras que decidira-se por Horemheb, Shura o acusou de tratar Afrodite como uma boneca, uma menina e não como o cavaleiro poderoso que Peixes era – um homem vigoroso e forte. Por mais de uma vez se enfrentaram e o capricorniano disse-lhe que Afrodite não precisava da proteção nem de Horemheb nem de ninguém, que ao contrário, Máscara da Morte é que devia agradecer a proteção de Afrodite – graças a ele tinha conseguido um lugar ao sol no Santuário, até mesmo antes de ter sua armadura.
– Você não conhece a rua, Shura. Se acha esperto, mas não é. Os cavaleiros estão muito acostumados a lutar entre si, com todo esse ritual e essa pavonice que cercam as lutas, cheias de palavras bonitas, coreografias... Na rua é diferente... Atacam pelas costas... Em bandos... São covardes... Afrodite tem estado distraído, avoado. Ele chama atenção na rua, pode ter acontecido alguma coisa...
– Você não se conforma que ele seja mais forte do que você, não é?
– Só não arrebento a sua cara porque tenho o que fazer agora.
– Afrodite se vira bem sem você. Mas você gosta de ver ele fraco, foi assim que o conquistou, não é? Fez de um tudo para fragilizar o Dite, até ele estar no chão aí você foi lá e bancou o bonzinho super-protetor. Fez ele achar que era fraco, por isso ele morreu nas mãos de um moleque que mal tinha saído das fraldas como Shun!
– Você também caiu bem fácil nas mãos do ceguinho que era bem um frangote cheirando a leite! Quem fragilizou você? Eu também? Você não tem mais desculpas para justificar o fato de que ele preferiu a mim. Ele não te quis, caralho! Ele chutou o seu rabo! Seja homem e viva com isso!
– Seja homem você! Deixe Afrodite cuidar das coisas dele, ele não precisa de babá!
– Ainda tem ciúmes, seu espanhol de merda?
– Afrodite era um adolescente muito cabeça dura. Se ele tivesse sido esperto, não estaria passando por tudo isso... Eu nunca achei que você fosse fazer ele feliz de verdade!
– Você é um invejoso... Depois acerto minhas contas com você. Depois que eu achar o Afrodite...
— # —
Máscara da Morte caminhou pelas ruas de Atenas com a pequena foto de Afrodite que guardava na carteira. Desistira de encontrá-lo com o cosmos e perguntava aos transeuntes por seu amante. Tinha certeza de que a beleza do pisciano não passaria despercebida por ninguém. Vagou pelos lugares que o sueco costumava andar na cidade e acabou por conseguir duas ou três pistas que o levaram até uma igreja. Não conseguia imaginar uma razão para que Afrodite estivesse em uma igreja católica, mas não custava dar créditos aos poucos que se dignaram a lhe dar informações.
Andou um pouco dentro da igreja. Sempre sentira-se desconfortável em ambientes assim. Algo no fundo da sua alma dizia que ainda era um pária e que lugar santo nenhum merecia sua presença. Entrou.
Foi andando até visualizar, na penumbra da igreja um vulto nos primeiros bancos. Não se parecia em nada com o Afrodite da foto. Era uma figura alta, com certeza... Mas pelos pés... Eram pés que usavam chinelos de dedo. A calça também, jeans, era curta. Pelo pouco que se via das costas, o vulto usava um moletom. Os cabelos estavam desleixados, presos no alto da cabeça por um nó mal dado.
"Dite..." – sussurrou Máscara da Morte, sem muitas esperanças de ver seu Afrodite no lugar do estranho mal arrumado.
O vulto virou-se. O rosto branco e triste era o de Afrodite. Máscara da Morte correu e sentou-se ao lado dele, sem acreditar. Reconhecia as roupas... A calça jeans velha que Afrodite cortara na altura dos joelhos para pintar o quarto de Dante ( ele não gostava que ninguém estranho entrasse no quarto do filho, porque tinha medo de 'forças' negativas no ambiente ); o moletom era dele mesmo, o mais velho e mais surrado – o mesmo que Afrodite tentara em vão jogar fora, chamando de 'pano de chão imprestável'; os chinelos de dedo, havaianas que Aldebaram lhes dera de presente e que Afrodite achava tão feias que escondia debaixo da cama. Penalizado, Horemheb acariciou o rosto do sueco.
– O que foi, Dite? Você me assustou... Você sumiu...
– Eu... Eu... – o pisciano voltou-lhe as mãos. Uma vela que ele mal sustinha, tão fina e pequena, mas parecia pesar uma tonelada nos dedos longos de Afrodite. – Eu estou cansado de esperar, Horemheb... Fui a todos os lugares, falar com todos os deuses... Ninguém me ouve... Ninguém... É como se todos os deuses tivessem me esquecido... Eu... Eu... Eu quero meu filho... Quero meu filho, Hô...
– Afrodite... Amore mio... Me dá muita dor te ver assim... Do jeito que você está... Vestido assim...
– Peguei a primeira coisa que achei... Não estava agüentando aquela casa... Os templos... A estátua da maldita Athena, uma deusa de pedra que não fez nada nem por mim nem pelo meu neném... Eu fui falar com Saori... Sabe o que ela me disse? "Sinto muito"... Ha! Ela sente! E eu? EU! Eu, Horemheb! Eu não quero que ela sinta, eu quero que ela faça alguma coisa!
– Dite...
– Hô... Hô... Me diz, você ainda me ama? Ama de verdade?
– Claro... Claro...
– Então... Por Zeus... Ponha meu filho nos meus braços outra vez? Por favor... Por favor, Horemheb... Eu não quero ter que ver meu filho na companhia de um oficial de Justiça, nem ir passar férias com ele na Suécia, eu não vou agüentar... Traz meu filho de volta? Eu não tenho a quem pedir mais... Nem sinagogas, nem as igrejas, nem mesquitas nem nada... Lugar nenhum, deus nenhum, eu não confio em divindade nenhuma, mas eu confio em você... Eu só confio em você... Traz meu filho de volta?
– Nem que seja a última coisa que eu faça na vida, Dite... Eu vou pôr seu filho nos seus braços outra vez, como eu fiz no seu aniversário há doze anos atrás – o seu filho vai estar com você de novo. É a minha promessa... Levanta, amor... Vamos acender a sua vela... Se não for por nada... A luz é bonita...
– Sim... Eu estou cansado...
– Vou te levar para casa...
– Casa... Você acha que ainda quero ir para casa? Para um casa onde meu filho não está? Onde a cama dele está vazia e os brinquedos dele espalhados no chão?
– Ele vai voltar. Eu prometo.
— # —
– Mamãe... Mamãe...
– O que é, Allyanda? Não vê que estou fazendo oblações pela casa? O maldito templo parece que nunca fica limpo de vez... Maldição...
– Mamãe... Me ajude a invocar a Hydra...
– A Hydra? No Santuário? Você só pode estar maluca... Allyanda, o Santuário tem forças malignas agindo por todos os lados... O isolamento mágico da Ilha não existe aqui e eu tenho medo de que nenhuma de nós duas consiga manter a Hydra sob controle.
– Mas mamãe... O Mestre de Câncer quer achar o Rafael... Eu quero ajudar...
– Está se sentindo culpada porque desde que ele ficou doente você não foi vê-lo? – Pára, mamãe. Você me entende... Eu não suporto ver aquele pirralho doente. A primeira vez que o vi com dor me senti a mais inútil das criações da Deusa... A dor de Rafael me incomoda, mãe. Mas não queria ir vê-lo, compartilhar a sua dor e oferecer a ele minhas lágrimas... Isso não serviria de nada para ele. Eu quero terminar a sagração de feiticeira... Quando souber manipular elementos, eu poderei ajudá-lo de verdade... E tem mais: nunca deixei de falar com o cosmos dele.
– Conheço tuas razões, filha. Embora discorde. Não quero e não vou permitir que você invoque a Hydra no Santuário.
– Mamãe, você me conhece... Eu farei isso, com ou sem sua ajuda.
– Allyanda, não é sua mãe quem fala, mas a Sacerdotisa maior da sua ordem. Eu não permito.
– Me puna então, pela minha desobediência. Mas eu farei isso. Eu vou achar Rafael.
– Teimosa.
– Puxei minha mãe. E tenho o gênio de cão das feiticeiras, como diria Athena...
– Não culpe as feiticeiras! Sua teimosia e cabeça dura são heranças de pai... E por falar em pai, Allyanda, onde está o teu pai?
– Athena o chamou.
– Não gosto desta moça cercando Saga... – Silmara encolheu os ombros com um sorriso de vitória. – Mas não importa... Teu pai jamais me será infiel, sabeis...
– Como sabe, mamãe?
– Simples. Quando decidi que o amava, eu selei o membro dele com um feitiço e ele nunca será capaz de possuir outra mulher.
– Mamãe! Você teve coragem?
– Veja, eu creio que o coração de seu pai não me trairá – o amor de Saga é de uma única pessoa e não muda. Mas o que leva um homem a trair? O desejo. Seu pai não poderá consumar seu desejo, se o tiver. Vês? É um feitiço perfeito! A menos que...
– A menos que...
– Está selado contra os poderes de outra mulher...
Allyanda corou. – Ah... Entendi...
– Allyanda, minha filha...
– Mamãe... Eu amo Dante Rafael. Ele é um pirralhinho, mas...
– Eu sei, querida. – suspirou, por fim. Estava vencida. – Faça o jejum hoje. Amanhã à tarde me encontre em Star Hill. Esteja com as vestes e leve as lâminas. Eu levarei as adagas e a água.
– Não queria fazer isso, não é, meu amor... – o sussurro veio das costas da feiticeira. Fora descuidada: não sentiu o cosmos do marido.
– Não queria, mas tua filha herdou tua vontade de aço. Se eu não fizesse com ela, faria sozinha. – ela discretamente evitou o olhar de Saga. – Estava ouvindo a muito tempo?
– Quer saber se eu ouvi do feitiço?
Ela sorriu.
– Quer que eu o retire? Se te incomoda, eu o libero do selo.
Ele puxou os cabelos dela para trás, beijando a nuca da mulher.
– Tola. Eu sempre soube do feitiço. Mas nunca o vi em ação, porque nunca desejei nenhuma mulher que não você.
– Homens! Como confiar em sua sinceridade? Seu corpo responde em uma língua estranha ao seu coração. Não é o amor que move os músculos de um corpo masculino, mas o toque, o sangue que irriga as veias e torna rijo o que estava flácido. Saga, meu querido... Sentir-se tentado fisicamente é algo que eu não condenaria, sabeis...
– Penso diferente. Amo você. Nunca me deitaria com outra mulher para ter aquilo que tenho com você, Silmara, com o seu amor por mim e nossa confiança mútua.
– Belas palavras... De qualquer maneira, me faz feliz saber que não teve esforço para me ser fiel.
– Nenhum. Sempre me fascinaram pessoas ou extremamente doces, desprotegidas, ou muito poderosas. Aioros era o homem mais doce que já existiu, com seu coração que valia mais que mil cavaleiros em armaduras. Camus era uma criança frágil, um adolescente desprotegido que a despeito da força, era sempre tão carente e solícito. Mas você... É uma fera. Não há neste santuário mulher ou homem que me encantem como você me encanta, Silmarinha... Portanto, estou fadado à fidelidade, huh?
– Fadado à? Boa escolha de palavras, meu caro...
Ele a beijou. Voluntariosa. Esta era sua Silmara.
– Quer que eu te acompanhe, querida? Caso dê algo errado, você sabe.
– Prefiro que fique fora. Homens só atrapalham os rituais.
– Mas eu quero ter certeza de que você e minha filha vão estar seguras.
– Não confia em mim?
– Confio, mas...
– Então não se preocupe. Tire o dia de amanhã para descansar, você anda trabalhando demais, meu querido. Mandarei as servas preparem só o que você gosta. Direi à Athena que você está esgotado. Me espere na cama. E mastigue hortelã.
– Como quiser, senhora! Ah...Silmara...
– Huh?
– A Hydra pode mesmo encontrar o menino de Afrodite?
– Sim, se ela vier e estiver forte o bastante, pode encontrar uma agulha em um palheiro.
– Acha que vamos chegar a tempo de ajudar o menino?
– Isso já não é comigo. Mas achá-lo... Se a Hydra vier, eu garanto que o acho.
— # —
Fazia horas que ele estava daquele jeito. Entre desesperada e chocada, Wilma assistia o menino delirar de febre. Implorava ao marido que o deixasse levar para o hospital, mas o sueco estava irredutível. Ele havia contratado duas enfermeiras e achava que ela poderiam fazer pelo filho o mesmo que os plantonistas do hospital fariam: medicá-lo e colocá-lo em repouso.
Doía seu coração de mãe ouvir a criança gritar o nome dos pais adotivos. Chamava por eles, as mãos estendidas em súplica, os olhos vidrados no teto do quarto. De quando em vez, a febre – por força dos analgésicos – abaixava e, nesses poucos instantes de uma tênue lucidez, Dante implorava para ser devolvido aos pais.
– Me... Me deixa ir embora... Se você é mesmo minha mãe... Me deixa... Voltar para minha casa... Eu quero meus pais... Por favor... Me deixa ir...
– Mas, Mathias, Filho...
– Não me chama de Mathias, não me chama de filho! Você não é a minha mãe! Eu te odeio! Eu quero voltar para os meus pais!
– Você tem que se acalmar... Você vai gostar de mim e do seu pai de verdade...
– Você... Você não é nada para mim... Nada... Eu nem gosto nem desgosto de você, você é tão nada... Quantas vezes você vai ter que ouvir? Eu amo meus pais, eu quero voltar para casa, sem eles eu prefiro morrer... Você não gosta de ninguém, não sabe o que é, mas eu sei, meu coração dói, meu peito fica inchado assim quando eu penso neles... Eu sei que eles estão tristes e a tristeza deles dói mais que a minha...Você saberia – se você me amasse. Você e aquele nojento. Eu odeio ele. Odeio.
– Ele é seu pai!
– Ele não é ninguém! É um nojento que me chantageou... Fica sabendo que eu só disse o que vocês mandaram porque eu amo demais os meus pais, eu amo demais aqueles dois para deixar um sarnento como aquele fazer mal para eles! E só fiz porque eu vi que ele é ruim, ele muito ruim mesmo e eu não duvido de que ele ia tentar fazer mal para o Hô e o Dite... Vocês podem me fazer muito mal, mas não podem fazer nada pior pra mim do que maltratar os meus pais de verdade.
– Filho, eu...
– Me deixa ir para casa... acha... Você acha mesmo que essas cordas me prendem? O que vai dizer para seus amigos e seus parentes? Que você me amarrou na cama com medo de eu fugir de vocês?
– É preciso, Mathias... Seu pai e eu vamos cuidar de você... Sei que está revoltado... Mas vai dar tudo certo...
– Odeio vocês. Muito. Muito.
– Mas, Mathias...
– Me deixa sozinho... – ele a encarou, quando ela saía do quarto. – Escuta...
– O que, Mathias?
– Quando eu morrer, me promete que vai deixar eles me levarem? Pelo menos isso...
– Mathias, você...
– Promete? Promete?
— # —
Afrodite levantou na cama de um salto. Estava banhado em suor frio. Sacudiu o corpo de Horemheb ao seu lado.
– Hô!
– Você também sentiu?
– Vamos buscar nosso filho. Agora.
– Vamos. Vou apanhar as chaves do carro, me encontra lá embaixo.
– Você lembra do lugar que a Hydra apontou?
– Lembro. Não é tão longe assim.
— # —
O carro de Máscara da Morte parou na frente de um enorme portão.
– É aqui.
– Quantas pessoas?
– Um caseiro, dois vigias lá em cima, mais o cachorro.
– O problema é o portão. – Afrodite olhou para as grades firmes. – É melhor não fazer alarde. Não quero ter que matar ninguém hoje.
– Dite... Consegue enfiar um rosa ali? O cadeado da grade é eletrônico, se ele tiver um curto, vai abrir sem fazer barulho.
O pisciano botou o corpo todo para fora da janela do carro e lançou uma rosa contra o portão. O cabo entrou no cadeado. Depois de algumas faíscas furtivas, o portão se abriu.
– Pisciano, você continua perfeito em luta...
– Obrigado, Hô.
– E o resto das pessoas? Se não queremos matá-los...
– Deixe isso comigo. Se preocupe com nosso filho.
— # —
– Frau Kohl... Como ele está?
– Pior. Está ardendo em febre.
– Mas... Você não deu os remédios para ele?
– Não adianta, não baixa, senhora.
– Céus, ele está piorando... Tadinho desse menino... Tadinho!
Abaixou e segurou os rostinho da criança. Ouvia o bater dos dentes dele e os gemidos débeis. Ela o chamou pelo nome de 'Mathias', depois de 'Dante', mas ele a olhava como se ela não estivesse lá.
– Ele delira, senhora.
– Ele chama pelos nomes deles...
– Senhora?
– Chama pelos nomes dos que criaram ele, Frau Kohl... Cometemos um erro, ele não é feliz aqui...
– Senhora... há vozes... lá fora...
– Visitas? Mas quem nos visitaria aqui em Atenas?
— # —
– Mas... Que diabos! Onde estão os seguranças? Como vocês entraram aqui?
Afrodite interrompeu o homem.
– Vim ver meu filho.
– Ele não quer ver vocês...
– Mas eu quero ver meu filho, que quero que ele me diga que não quer me ver!
– Eu vou chamar a polícia!
Máscara da Morte fez sinal que Afrodite procurasse o menino pela casa.
– Chame! – desafiou o canceriano. – Chame e explique a eles porque seqüestrou nosso filho!
– Vocês não entendem que ele está melhor aqui?
Enquanto Máscara da Morte distraía o sueco, Afrodite subiu as escadas do hall, gritando o nome do filho. O barulho atraiu a atenção de uma das enfermeiras que tomava café na copa e de Wilma Von Platen e Frau Kohl,a outra enfermeira. As duas saíram do quarto tão esbaforidas que esqueceram-se de Dante, sozinho.
A mulher ruiva gelou os ver os olhos escurecidos e opacos de ro, faiscando de ódio.
– Cadê meu filho, sua vaca?
– O meu...
– Seu o caralho! Onde está o Dante?
– Frau Kohl... Ch-Chame o Per...
– Não adianta, ele está lá embaixo com o meu homem e eu te garanto, sua safadinha, que o cotovelo do meu marido é mais macho que o teu marido inteirinho!
A ruiva tentou, por desespero ou falta de inteligência, atacar Afrodite. Esperava que ele se distraísse e deixasse frau Kohl passar, indo buscar ajuda. É claro que pisciano precisou apenas de um pequeno empurrão para deslocá-la. Desviando-se da mulher caída, gritava o nome do filho, tentando achá-lo sem precisar arrombar todas as portas da imensa mansão.
— # —
– Papai... Papai... É a voz dele! Eu quero sair...
Ao ouvir o chamado de Afrodite, Dante reuniu as forças do seu cosmos e partiu as cordas que o atavam à cama do seu cativeiro. A porta trancada também foi aberta com a força do seu cosmos. Não queria usá-lo: Afrodite sempre o advertiu a jamais, nunca e em hipótese alguma usar seus poderes fora do Santuário, nunca fazer uso deles em benefício próprio. Por isso, não os tinha usado para fugir... Mas agora... Eles estavam lá fora... Precisava vê-los... Precisava abraçar a Rosinha... Seu pai...
– Papai! – o menino correu até os braços de Afrodite com o máximo das suas poucas forças. Sentiu que não podia mais andar nem correr e queria falar, mas também sua voz falhava. – Eu...Não queria eles... Eles... Iam fazer mal para vocês... Por isso... Só por isso... Mas eu não queria... Eu queria ficar com vocês... Me leva daqui... Me leva...
– Meu filho! Meu filho! Fala comigo... O que aconteceu com você... – ele voltou os olhos azuis claríssimos para a mulher ruiva que observava-o levantar com a criança no colo. – O que vocês fizeram com meu filho?
– Ele está com febre e...
– Febre? Febre? Ele está leve como uma pluma! Está magro... E o que você fez com o cabelo dele? Sua desgraçada! Sua vadia!
O pisciano pensou que, mesmo com o menino no colo, seria fácil matar aquela desgraçada que tinha quase matado seu filho. Estava começando a considerar a hipótese quando o rosto sóbrio de Máscara da Morte apareceu próximo ao corrimão da escada.
– Pegou o garoto? Vamos embora, Dite.
Peixes voltou seus olhos em fúria para a mulher.
– Vamos embora, Hô, vamos tirar nosso filho daqui!
– Vocês não vão a lugar nenhum! Eu vou chamar meus advogados! A adoção do Mathias foi absolutamente ilegal e é claro que ninguém vai se recusar a dar a guarda do meu filho para a mãe e o pai biológicos ao invés de dois... Dois... Pederastas como vocês!
Máscara da Morte agarrou o homem pelo colarinho e o ergueu do chão com absoluta facilidade.
–Você não entende, não é? Faça o que quiser! Me mate se for capaz! Mas você nunca mais vai fazer mal para minha criança! Nunca mais vai por suas patas nele!
Largou violentamente o homem que se espatifou no chão. Fez sinal para que Afrodite fosse na frente, carregando o corpo trêmulo do filho nos braços. Eles começaram a descer as escadas que davam para o carro de Máscara da Morte, quando o pisciano sentiu o corpo do menino se convulsionar em terror e ouviu o grito da criança.
– Paaaaaaaaai! Não!
Depois disso, Peixes só sentiu uma onda forte de calor junto de si e uma luz ofuscante brilhar sobre tudo. Quando conseguiu enxergar novamente, viu Dante desmaiado em seus braços e no chão perto dos pés de Máscara da Morte, cinco projéteis de balas. Só então entendeu. O maldito atirara no seu homem.
Pelas costas.
Mas seu menino, sua criança, vendo aquilo, usara todo o resto das suas forças para explodir seu cosmos e usá-lo como uma barreira. O olhar aterrorizado do homem que ainda segurava o revólver e a palidez de morte no rosto das mulheres era mais do que prova... Eles no mínimo imaginaram que se tratava de algum milagre.
– Deixa, Hô... deixa esses malditos! O Dante... Ele... Desmaiou... Estou com medo, vamos logo...
O Canceriano entrou no carro correndo, abrindo a porta de trás para que o amante entrasse com o menino. Saiu de lá cantando os pneus. Mal saíram da propriedade dos pais biológicos de Dante, procurou desesperadamente com a mão livre que tirara do volante, uma caixinha de primeiros socorros no porta luvas. Quando achou o estojo vermelho, atirou-o para Afrodite.
– Dite, vê quanto ele tem de febre...
– Hô... Estou com medo. Ele não responde...
– Calma, Dite, calma... A gente já, já chega no hospital...
– A gente devia ter lutado por ele... Trazido ele arrastado... A gente devia saber que ele nunca ia deixar de amar nós dois... Meu Zeus...
– Eu sei, foi muita burrice nossa... Muita... Aqueles dois maledettos usaram nosso filho contra a gente... Desgraçados!
– Quarenta e dois! Quarenta e dois! É muito, Hô, é muito!
– Calma! Vai dar tudo certo, confia em mim! – Horemheb já não tinha essa certeza, mas ia tentar. Osíris sabia, ele ia tentar. Tudo. Tudo pelo seu filho e por Afrodite.
O pisciano olhou para o corpinho magro e abatido do filho em seus braços, aconchegando-o mais.
– Horemheb ... – balbuciou Afrodite em desespero. – Nosso filhotinho... Sacrificou a vidinha dele para salvar você... Estava tão fraquinho, tão doente... E usou todo o cosmos dele para criar a barreira... Tão lindo... Tão puro... – ficou sério. Sombrio. – Ninguém nunca fez nada assim por nós antes...
– Eu sei. E não vou deixar ele morrer. Não vou.
Ele parou o carro bruscamente e tirou o meninos dos braços de Afrodite. Correu com ele até um das pequenas casas que ladeavam a estrada.
– O que está fazendo, Hô?
– Não vai dar tempo de chegar nos hospital... Não vai... A febre vai acabar matando ele antes. Corre, Dite, corre!
Bateu na primeira porta que viu. Diante do olhar de espanto da senhora que a abriu, pediu:
– Senhora, por favor... Meu filho está morrendo... Com febre... Posso usar seu chuveiro, uma banheira... Qualquer coisa... Por favor?
– C-Claro... E-Entre, moço... Eu levo o senhor até o chuveiro... É aqui, entra...
Entraram correndo na modesta casa da senhora, sendo seguidos logo por um rapaz que não devia ter mais que vinte anos. Chegaram ao pequeno banheiro. Afrodite tomou o menino no seu colo e sentou-se no chão do boxe, sob o chuveiro grande e potente que jorrou sobre eles a torrente de água morna. Trêmulo e silencioso, Afrodite observava a água cair sobre o filho e sobre ele mesmo. O rapaz surgiu logo da cozinha com um comprimido anti-térmico. Enquanto isso, a senhora arrastou Máscara da Morte para a cozinha, oferecendo-lhe um copo de água com açúcar.
– Obrigado, senhora...
– De nada, filho. Eu sou mãe de sete. Sei bem como é isso, um filho é sempre um filho, a gente fica maluco com eles... Não vê nada mais pela frente... Eu faria a mesma coisa se uma das minhas crianças estivesse na mesma situação... A sua esposa está com ele lá dentro e...
Máscara da Morte não era um homem que ficasse corado. E ele não ficou. Mas era como se houvesse um vermelhidão por dentro, na sua alma, toda vez que a masculinidade de Afrodite era posta em dúvida daquela maneira.
– Ela... Não é ela... É ele. O menino é nosso filho adotivo...
A senhora corou imediatamente.
– Mas...
– Ele é bem bonito, não é? Parece até uma mulher. Mas é homem. Somos... Companheiros...
– Me de-desculpe...
– Não há do que se desculpar... Estou acostumado com a reação...
Não estava não. Mas de uma pessoa que o ajudara a salvar seu filho, ele aceitaria até pedradas.
– O menino é... adotado?
– É. Adotamos o Dante... Faz 12 anos.
– O que ele tem? É doença de criança? Sarampo?
– Leucemia. Ele está fraco por causa da quimioterapia, acho que... Ele ficou gripado demais na casa dos...
– De quem?
– Dos pais biológicos. Uma gente má. Uma gente que o abandonou aqui e... Depois... Eu e o Dite... Procuramos essa gente porque... Talvez eles pudessem ajudar com o transplante... Mas até agora... Só atrapalharam e...
Eles ouviram os berros de dentro de banheiro. Era voz de Dante gemendo "Pai...". Ele acordara nos braços de Afrodite lembrando-se do episódio das balas. Quando não viu o canceriano junto deles, julgou-o morto e começou a gritar. Por mais que o sueco tentasse tranqüilizá-lo, ele não acreditava.
Quando Máscara da Morte entrou no banheiro apertado, o menino reuniu forças não se sabe de onde e pulou no colo dele, agarrando-se com tal fúria que parecia um polvo atracado a sua presa.
– Pai... Pai... Você tá machucado?
– Não, Dante... Você protegeu o papai. Você é muito forte...
O menino segurou o rosto do pai entre as mãozinhas fracas e trêmulas.
– Ele fez por minha causa... Ele ia te matar por minha culpa...
– Ele é o diabo. Não precisa de razão para fazer mal, entendeu?
– Jura que você tá bem, pai?
– Nunca mais faça isso, Dante...
– Mas ele ia...
– Psss... Descansa, meu filho... Descansa... Tá tudo bem agora.
— # —
Afrodite sentou-se molhado na modesta cozinha da senhora que os acolhera. No seu colo, Dante com um pijama velho e meias puídas providenciados pela dona da casa, que, parada na frente deles, usava um secador de cabelos para secar as madeixas azuis do pisciano.
Máscara da Morte colocava colheradas de leite na boca do menino.
– Hô... Por que não vamos logo para o hospital? – gemeu Afrodite.
– Eu tenho medo. Não acho que o neném esteja bem e assim que chegamos, liguei para o hospital, a ambulância vai pegar a gente, vai ser mais seguro. Eu expliquei ao médico mais ou menos o estado do menino, ele já tomou todas as providências.
– Melhor assim, amor.
– Melhor assim.
— # —
– Como está o neném, doutor?
– Sendo muito honesto com vocês, eu não estou animado.
– Como assim?
– As condições dele pioraram muito.
– Mas...
– Dante Rafael emagreceu nove quilos em pouco mais de um mês. Nem preciso dos exames de sangue para saber que ele está com anemia profunda. Ele tem um pneumonia no pulmão esquerdo, verificamos as condições dele e notamos uma lesão ulcerosa na garganta dele. Ele teve tempo de explicar do que se tratava?
– Não... Eu nem sabia...
– Ele, por algum motivo, ficou tão abalado na casa dos pais biológicos que... Enfim, ele decidiu parar de comer. Mas os "pais" descobriram e o forçaram a se alimentar, então ele passou a vomitar tudo o que comia. O esforço era tanto que causou uma lesão que realmente prejudica a alimentação dele. Terei que observar, mas é possível que ele já esteja desenvolvendo um surto bulímico.
– O que isso quer dizer? – Afrodite, estarrecido, perguntou.
– Que é possível que ele já não precise forçar o vômito e isso aconteça naturalmente, o que nos obrigaria a tratá-lo com outra medicação, além de retornar ao soro, claro.
– Mas... Mas... Ele está tão pior assim?
– Eu lamento muito, mas eu não nutriria muitas esperanças, se fosse vocês.
– O que o senhor está insinuando?
– Seja direto de uma vez.
– Não acredito que Dante sobreviva mais de um mês. Mesmo que encontrássemos uma medula, o estado geral dele já inviabilizaria a cirurgia. Ele não ia suportar a dose de quimioterapia necessária.
– O senhor está me dizendo que o meu filho vai morrer, simples assim?
– Infelizmente, sim. Enquanto há vida, há esperança. Mas eu não quero que vocês nutram expectativas e depois sintam-se piores. Estou sendo honesto, até porque vocês precisam saber o que está acontecendo para auxiliar melhor a criança. Ele vai precisar muito de vocês... Até o fim.
– O senhor está mentindo! Você não conhece meu filho! Meu filho não é uma criança comum, ele é...
– Afrodite!
– Ele não é comum! Ele vai se recuperar! Eu quero ficar com ele!
– Ele está em isolamento. Suas defesas estão baixas.
– Não! Eu não aceito isso! Não é possível que depois de passar o que ele passou, todo esse stress emocional, meu filho tenha que ficar sozinho! Não é possível que isso seja terapêutico!
– Senhor Vündhegen...
– Eu li! Eu li, em algum lugar, que... que crianças que nasciam prematuras ficavam nos colos das mães ao invés das incubadoras porque o calor da mãe fazia o bebê se recuperar mais depressa! Isso é verdade, não é? Meu filho vai se sentir melhor se estiver comigo, não vai? Eu sei que vai... Eu não sou mãe, mas... Eu e o Horemheb somos tudo que o Dantezinho tem...
– Está bem. Eu vou falar com o diretor. Ele não é adepto de práticas mais modernas, mas se eu explicar direito o caso do menino, talvez ele considere. Esperem aqui.
– Horemheb...
– Calma. Você quase se traiu na frente do médico.
– Ele falou como se meu filho já tivesse morrido.
– Ele não sabe. Dante é cavaleiro. Talvez se recupere, mas...
– Mas?
– Dite. O menino não está nada bem.
– Hô, você não pode acreditar que...
– Afrodite... Fizemos tudo que podíamos e que não podíamos. Não somos deuses. Eu fui junto do médico ver o neném. Ele está todo entubado. Ele nem consegue falar direito... Ele está muito fraquinho. Ele está sofrendo muito.
– Não! Não! Eu não vou deixar você dizer isso que eu sei que você quer dizer! Não!
– Afrodite... Ele...
– Não! Não ouse sequer insinuar que nosso filho está sofrendo demais e que se ele morresse ele ia descansar, não! Ele está sofrendo, mas ele vai melhorar!
— # —
– O diretor está incrédulo, mas ele considera o estado de Dante tão grave que já não vê muitas objeções a fazer as vontades do menino.
– Quando vou poder ficar com meu neném?
– Vá para a área da CTI, espera lá. Os enfermeiros vão tomar as providências de higienização para que possa entrar e ficar. Vou mandar ajeitar as acomodações do quarto. Veja bem, uma vez lá dentro, esperamos que o senhor saia o menos possível. O quarto do Dante é individual, ele tem um banheiro próprio e as enfermeiras vão servi-lo.
– Não me importo em ficar o quanto tempo for necessário para meu filho melhorar.
– Então hoje mesmo o senhor vai estar com o menino.
— # —
Máscara da Morte a princípio gostou da idéia de que Afrodite pudesse ficar junto do menino o maior tempo possível. Sabia que Dante era extremamente suscetível à presença física do pai e tinha certeza de que o filho melhoraria se pudesse ter o pisciano junto dele.
O que o canceriano não contava era que isso faria mal a Afrodite.
Aos poucos, o sueco foi ficando fraco, quase como se sincronizasse com os sentimentos do menino. Quando Dante estava esmorecendo, também o mesmo acontecia com Afrodite. Horemheb ia vê-los e perdia a fala ao ver seu pisciano branco e abatido, abraçado ao corpinho do menino, ligado em sondas e tubos de soro e medicamentos.
Não demorou muito, Afrodite adoeceu. Os médicos o retiraram do quarto com medo de que ele pudesse infectar o menino, já fragilizado demais. Foi diagnosticado uma infecção respiratória moderada, mas para Dante aquilo já era muito mais risco do que ele poderia correr. E mesmo que o menino sofresse por se separar de Afrodite, ele compreendeu e aceitou imediatamente as explicações de Máscara da Morte para levar o pai de volta para casa.
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Por algum motivo desconhecido, Afrodite levou muito mais tempo para se recuperar do que era esperado. Máscara da Morte tentava em vão levá-lo até o hospital para ver o menino pelo vidro da CTI, mas também logo Dante foi transferido para o quarto. O pisciano parecia ter medo de ir ver o próprio filho. Apesar da transferência, ele não tinha melhorado nada.
— # —
– Afrodite, por que você não vai mais ver seu filho?
– Shura... Você sabe que eu amo meu menino. E quando eu amo é pra sempre.
Os olhos de Shura o encararam entre deboche e rancor.
– Vindo de você, é uma afirmação engraçada.
– Shura... Eu não consigo mais ver o neném...
– Não consegue?
– Eu tenho... Medo... Naquele frenesi de quando a gente tirou ele daquela gente, eu... Era diferente, entende? Eu fiquei... Alterado... Parecia uma coisa de útero... – o pisciano riu. – Se eu tivesse um... Mas eu só queria ficar com meu anjo, ficar com ele. Depois, quando eu vim para casa... Ah! Shura... Você me conhece. Eu não gosto de ver dor nem sangue. Quer dizer: dor e sangue de quem eu amo. Claro, ninguém que ama gosta de ver dor dos seres amados, mas... É diferente. Eu não quero ver aquele ratinho pelado que roubou o meu filho de mim! Aquele garoto não é o meu menino, Shura! Ele é fraco, feio, chorão... Meu Dante era forte, vivo, os olhos dele tinham viço! Ele era um príncipe e agora ele parece um mendigo! Não é culpa dele, eu sei... Mas me dói demais ver meu filho assim... E eu tenho medo.
– Medo?
– Eu estava vendo televisão outro dia. Um daqueles homens, que falam com os espíritos... Eles estavam comentando que às vezes tudo o que uma pessoa espera é que seus amados estejam por perto para ela fazer a passagem. E se for isso, Shura? E se meu filho estiver esperando por mim para morrer?
– Isso é uma bobagem tão grande que nem merece resposta, sabia?
– Você acha? Você acha? É porque não foi seu filho! É porque não é nenhum dos seus espanhoizinhos remelentos que definhou numa cama na sua frente! Não é um dos seus remelentos que perdeu nove quilos em um mês e não consegue nem mais suspirar seu nome direto! Não foi seu filho que ficou careca da noite pro dia! Da noite pro dia, os cachinhos de anjo do meu filho sumiram! Eu não quero ter que ver meu anjo daquele jeito!
– De tanto que o Máscara da Morte fez que você era covarde e fraco, você acreditou, né? Eu nunca abandonaria um filho meu como você está fazendo. Eu ia segurar cada um dos meus 'espanhoizinhos remelentos' no colo. Se fosse preciso eu ia carregar meus hijos nas costas até eu ter força de andar. Se você ficou covarde, problema seu. Mas não justifique isso pra mim.
– Você sempre se achou melhor que todo mundo, né, Shura? "A palmatória do mundo", cheio de moral, cheio de princípios. E justo você...
– E justo eu o que?
– Assassino! Assassino! Quem é você para me repreender? Você que matou Aioros?
– Não vai jogar isso na minha cara não! Pode estar cansado e sofrendo, mas se abrir essa tua boca outra vez, juro, eu te faço engolir isso!
– É? E por que? Será que eu virei mentiroso? Falei uma mentira?
– Se eu começar a dizer todas a verdades de todos esses anos, você não vai querer ouvir. Principalmente a verdade simples de agora: você é covarde. Vai deixar seu filho morrer no hospital sem sequer ver o menino. A culpa vai te comer por dentro. Radhamanthys vai poder carregar sua alma para o Inferno sem nenhum medo, porque deus nenhum vai te salvar.
– Vai embora daqui, seu espanhol de merda.
– Eu vou. Mas você ainda vai se arrepender.
— # —
Uma semana e três dias depois.
O menino voltava seus olhos ansiosos para a porta; mal esta entreabriu-se, o olfato aguçado do pequeno cavaleiro sentiu o odor das rosas. Horemheb entrou e o menino fitou-o por cima do ombro, procurando a fonte do perfume de rosas.
– Pai! Cadê a Rosinha?
– Filho, o Afrodite não vem hoje... Ele está ocupado.
Câncer sentiu seu coração esmagado sob a pressão dos olhos do menino e da decepção insuportável no rostinho magro e abatido. Era a desculpa que tinham inventado, quando Afrodite sarou da sua doença: porque Máscara da Morte não podia mais sair do hospital, Afrodite teria ficado responsável pelas tarefas designadas pela deusa para o canceriano.
– De novo?
– Sabe como é, Dante... Como eu fico muito aqui... Athena precisa de Afrodite lá no Santuário, entendeu?
– Mas todo dia, pai? Eu anotei... – ele mostrou a Máscara da Morte as anotações que fazia com giz de cera em um pequeno bloco de papel que as enfermeiras tinham lhe dado para desenhar. – Faz 10 dias que ele não vem!
– Eu te disse, menino. Ele está... Muito ocupado...
– Ah, pai, me dá a caneta que está em cima da mesa, me dá...
– Para que, menino?
– Me dá, pai!
Máscara entregou ao menino a caneta.
– Não dá para escrever carta com giz de cera!
– Carta?
– Eu vou escrever uma carta para a Deusa, Hô! Vou pedir para ela, vou implorar, para ela deixar meu pai vir me ver...
Horemheb gelou ao ver o menino escrever a carta para Deusa.
Dante começou a escrever a carta, o pulso infantil ( e ele tinha uma péssima caligrafia ) vibrava em frenesi. Paulatinamente, contudo, seu entusiasmo arrefeceu à medida que suas lágrimas começaram a encharcar o papel e ele não pôde mais escrever; ergueu os olhos marejados e numa cruel epifania, balbuciou, desconcertado da sua própria descoberta:
– Ele não está ocupado, né, pai? ... Ele não vem porque não quer...
– Dante, ele...
– Meu pai não quer mais me ver...
– Filho, nós...
– Pai, foi por causa de rasparem meu cabelo? Pede desculpa para ele, pai, pede? Eu... Eu não queria, eu não pedi... Já tava caindo...
– Ele sabe, Dante... Ele sabe...
– Então por que? Ele não me quer mais? Vocês vão me deixar aqui? Para sempre?
– Não, Dante! Não vai ficar aqui para sempre!
– Só até... – o menino calou-se e abaixou a cabeça.
– Até você ficar bom, Dante.
– Ou até eu morrer. O que vier primeiro... – o ruivo ignorou o pai, deitou-se na cama e se virou, enrolando-se atabalhoado entre mantas.
– Vai fazer pirraça agora, menino?
– Não é pirraça. – resmungou por debaixo dos lençóis. – Eu só queria ver meu pai.
– Eu estar aqui não faz a menor diferença, né? Você só quer Afrodite! Desde que você ficou doente eu não saio da cabeceira da sua cama! Dite vai para casa comer, dormir, tomar banho, ver televisão! Mas eu fico aqui o dia todo! Eu tomo banho no hospital, eu durmo nessa cama dura e como pastel folheado todo santo dia para ficar mais perto de você, moleque! Mas eu não valho tanto quanto o 'Ditezinho'! Vou começar a vir aqui bem menos e te deixar mais tempo sozinho para ver se você me acha tão bom quanto o Dite!
O menino continuou com a cabeça coberta pela manta.
– Pode ir. Você não faz falta mesmo. Nem você nem ele.
Chocado com as palavras da criança, Máscara da Morte, desorientado, saiu do quarto e do hospital em passos largos sem falar com ninguém. Começou a andar pelos arredores do hospital. Só queria que Afrodite estivesse ali para abraçá-lo e dizer, com aquela voz sensual e despreocupada, que tudo ia dar certo, 'como sempre'.
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– Pai? – arrependido da sua mal-criação, Dante levantou a cabeça até então escondida sob as mantas. – Pai! Pai, cadê você?
Olhou para os lados e, em desespero, viu que estava sozinho.
"Ele foi embora... Eu mandei e ele foi... Ele me deixou sozinho... Sozinho... Primeiro a Rosinha e depois o Hô... O Hô... Mas... Ele não pode!"
– Pai!
Dante pulou da cama. Sentiu que suas pernas já não tinham a força de antes. Estava descalço, mas não fazia diferença. Seus pés era calosos e fortes: ele sempre andara descalço nas pedras do Santuário. Abriu a porta e espiou para o lado de fora. Não havia nenhum enfermeiro. Começou a correr desabaladamente, corredor após corredor, gritando "Pai, Pai..." na esperança de achar Máscara da Morte.
Um menino, com o avental do hospital, sem cabelo nenhum correndo e gritando nos corredores imediatamente chamou a atenção dos médicos e enfermeiros e logo empreendeu-se uma caçada de 'busca e captura ao Dante Rafael'. Acostumado com o treinamento do Santuário, o menino conseguiu escapar da perseguição e eventualmente saiu do hospital, ganhando as ruas com seus gritos de criança.
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Máscara da Morte já voltava com seus passos largos e seguros para o hospital, quando percebeu com seu faro aguçado que havia uma movimentação estranha de muitos enfermeiros e seguranças amontoados ao redor das entradas. Reparou também que não havia ambulância chegando e que, portanto, só podia ter havido alguma coisa com os internos. Aproximou-se de um dos enfermeiros já com um pressentimento ruim:
– O que aconteceu aí dentro?
– Um menino fugiu.
– Um menino?
– O garotinho ruivo com leucemia do quarto 414.
– Fugiu?
– Saiu gritando pelo pai.
– Por mim? Por mim?
Horemheb não esperou a resposta do enfermeiro.
"Maldição! Eu sou um idiota! Ele é uma criança, ele estava nervoso e eu fiz igual ao Dite: pensei mais em mim do que nele! Merda! Meu filho... Osíris, onde está meu filho?"
Usou seu cosmo poderosos para achar a criança. Dante não tinha ido muito longe, a correria aliada aos stress e ao efeito dos remédios da quimio o deixaram enjoado e ele caiu perto dos canteiros ainda nos perímetros do hospital. Máscara da Morte o encontrou caído perto de uma árvore pequena. Correu apavorado até o menino que gemia deitado e o tomou nos braços.
– Filho, Dante! Fala comigo...
– Pai... Pai... Desculpa, desculpa...
– Dante, me desculpe você... Eu sou um idiota...
– Pai, eu amo você muito...
– Eu sei, meu filho, eu sei! Eu também te amo...
– Eu tava mentindo, pai... Você faz falta, faz muita, sem você eu já tinha morrido...
– Ah, Dante... Eu também morreria sem você... Você é meu garotinho, meu príncipe, o nosso reizinho... O que sobraria para o Dite e para mim sem você, garoto? Nada!
– Hô... Eu queria ser filho do Dite... Ter o sangue dele... Ser bonito como ele. E me parecer com você. Ser turrão, grosso, forte que ninguém mexesse comigo...
– Mas você é assim, Dante! Você é lindo, moleque! Lindo, forte, grosso, põe medo nos meninos da baixa! Você parece com nós dois!
– Pareço mesmo?
– Parece! Parece demais...
– Você não se arrepende de ter pegado eu no lugar da menina?
– Não, nunca. Eu queria você. Eu só tive medo do Dite não ter coragem de criar um bebê... Um bebê tão pequeno... Mas eu queria você. Eu queria um menino...
– Mentira, pai! Não mente que Zeus castiga!
– Dante... O que mais preciso fazer para você acreditar em mim?
– Me leva para dentro pai... Eu tô com frio...
– Filhote... Você está com febre outra vez... Você não melhora, Osíris... Por que você não melhora?
— # —
Duas semanas depois.
– Dante, você tem que comer...
– Não quero, não tô com fome.
– Você precisa comer, filho.
– Pai, o Mozinho vem hoje?
– Não, Dante, ele...
– ... Está ocupado, eu já sei.
– Filho, come. Come a sua sopa, depois a gente vê se encontra teu pai no celular...
– Não consigo comer, pai.
– Come, garoto... Come! Você tem que me ajudar.
– Ele não vai voltar, né? Ele nunca mais vem... Eu sei porquê. Ele não quer me ver. Eu também não quero...
Os olhos verdes apagados no seu brilho caíram desdenhosos sobre o espelho que estava na mesinha ao lado de sua cama. O espelho que Afrodite trouxera no primeiro dia. Um presente muito infeliz para uma criança que estava indo para o hospital na iminência de uma quimioterapia.
– Você, como Afrodite, dá uma merda de uma importância grande demais para porcaria desse espelho! – ele pegou o espelho e, em um acesso de fúria, o esmigalhou contra a mesa.
– O espelho diz a verdade, pai! Verdade! Esse rato de cabeça pelada no espelho sou eu!
– Você não é só isso, Dante! Você é nosso filho!
– Mentira! Não sou! Sou adotado! Meu pai tem razão de não querer vir me ver, eu também não quero me ver! Antes eu parecia com vocês e ele gostava de mim, agora que eu não me pareço com vocês... Tá na cara que não somos uma família! Dois homens não podem ter filhos naturais e eu sou burro e feio! Não sou lindo como o Dite nem forte como você!
– Dante, seu ingrato! Nós quisemos você!
– É mesmo? – o menino sacudiu a manta. – Mestre Aioria me disse... Ele me pegou. Você quis a menina. A menina grande, a menina com cabelinho azul que nem ele! Você não me queria, você só me aceitou porque dava menos trabalho de ir trocar, que nem o tênis feio que meu pai te deu e ficou pequeno e você teve preguiça de ir trocar na loja!
– Dante!
– É isso mesmo, isso! Mas não é culpa do Dite! Nem sua! Vocês deviam ter ficado com a menina! Ela não ia ficar doente e nem ia ser burra como eu, que não consigo estudar em escola nenhuma! E nem ela ia envergonhar vocês peidando alto e falando palavrão como eu falo! Eu sou ruim! Eu vou morrer!
– Pára, Dante!
– Pára você, pai! O Mestre Shura vai ficar feliz quando eu morrer, naquele dia que eu escorreguei e caí da escada ele disse "bem feito, você mereceu porque você é mau!". Agora ele vai ver como eu sou mau! E vou morrer porque eu sou mau!
– Shura estava brincando, Dante! E ele disse 'bem-feito' porque você escorregou na escada fugindo dele, depois de atirar pedras dentro de Capricórnio!
– Ele estava certo! Em mereço. Bem feito para mim! Eu roubei o lugar dela.
– Você... Você não pode estar tão revoltado assim, menino! Nós fizemos tudo por você... Não é nossa culpa você ter ficado doente! Eu queria esse mal no meu sangue mas não no seu, meu filho!
– O que você quer não faz diferença nenhuma, pai... Agora não faz mais.
Transtornado com a revolta confusa e ingênua de Dante, que misturava culpa, raiva, rejeição e medo, Máscara da Morte apanhou o prato de sopa e segurou o menino pelo pescoço com toda a força que podia fazer sem enforcá-lo de vez:
– Você vai comer, sua peste! Por bem ou por mal! Vai comer!
– Não, não!
– Come!
Enfiou uma após outra as colheradas de sopa. O líquido escorria pela garganta, pescoço e peito do menino, que esperneava. Foi um esforço vão. O prato de sopa ficou vazio, mas nem se passaram cinco minutos da última colherada, o menino vomitou a sopa inteira, para desespero de Horemheb e das enfermeiras.
O fato se repetiu várias vezes: toda a vez que forçavam de alguma maneira para que Dante comesse, poucos minutos depois ele colocava tudo para fora. O médico pediu uma bateria detalhada de exames e o diagnóstico foi categórico: a criança não sofria de distúrbio estomacal algum, estava em perfeitas condições; sua rejeição aos alimentos era meramente psicológica. Assim mesmo, foi preciso colocá-lo no soro, porque a fraqueza dele ameaçava a continuidade do tratamento.
— # —
– O psicólogo acabou de me entregar o relatório.
– E o que diz?
– Dante é uma criança esperta.
– Disso eu já sabia, é meu filho, eu o conheço bem.
– O doutor diz aqui, basicamente, porque eu não quero entrar em termos específicos da psicologia, que Dante não come porque não quer e porque não pode.
– Eu não entendi.
– O abandono de Afrodite o marcou profundamente. Em suma: o menino está transformando essa perda em agressividade.
– Já percebi também que ele está agressivo: será que tem alguma coisa que esse doutor viu no meu filho que não seja o óbvio?
– Enfim, senhor Horemheb. O psicólogo diz que Dante entendeu que o abandono de Afrodite significa que ele já está condenado. Ele parou de comer porque ele quer morrer mais depressa.
– Isso é ridículo. Meu filho não faria isso!
O doutor abriu a gaveta e tirou um gravador de dentro dela. Tocou. Era a voz de um homem.
"Você sabe, Dante, que você está doente?"
"Sei. Eu tenho câncer numa parte do corpo que não se vê."
"E o que você precisa para se curar?"
"Uma medula nova. Porque a minha está doente e fodida."
"E você sabe que para receber a sua medula você precisa estar forte?"
"Sei sim."
"E se você não come, pode ficar muito fraco."
"Eu sei."
"Então, se você fica fraco a doença te ataca, não é isso?"
"Se a gente não come, morre mais rápido, né, doutor?"
"É verdade, mas você não quer morrer não é, Dante?"
"Tanto faz."
"Tanto faz?"
"É... Meus pais não ligam. Depois, eles vão adotar uma menina."
"É mesmo?"
"É... Menina dá menos trabalho."
"Mas você não quer voltar para casa, Dante Rafael?"
"Quero. Mas nem sempre o que a gente quer acontece, né? Por exemplo: meu pai, o bonito da pinta, não sei se o senhor viu... Pois é, meu pai queria uma menina. Ele bem preferia ter uma menina que se parecesse com ele. Daí o desastrado do meu outro pai..."
"Sua mãe?"
"Não, pai. Meus pais são homens... Assim... Como é que falam aqui embaixo? Ah! Homosual."
"Homossexual."
"Isso! Então, meus pais são homossexuais. Mas então, meu outro pai lerdo pediu pro Mestre Aioria pegar a menina lá no orfanato. Mas o mestre Aioria é lerdo! Ele pegou eu... Quer dizer, ele me pegou no lugar da menina. E dá trabalho trocar, né? Aí meus pais resolveram ficar comigo. Mas agora eles vão ficar com a menina."
"E você não ia gostar de ter uma irmã?"
"..."
"Hein, Dante?"
"Não. É melhor eu morrer antes mesmo. Eu não sei dividir. Eu sou egoísta."
"Quem disse isso para você, Dante?"
"Mestre Shura."
"Shura?"
"É, o mestre Shura sempre diz a verdade."
"Então está bem, Dante."
O médico desligou o gravador.
– Este é um pedaço da sessão. Compreendeu o que ele quis dizer?
Máscara da Morte tinha lágrimas nos olhos.
– Eu não... Não podia imaginar que... Tinha chegado a esse ponto!
– Entendeu porque eu insisto para que o senhor convença Afrodite a ver a criança?
– Afrodite... ele... É sensível... Não suporta ver Dante desse jeito... Eu confesso ao senhor que eu mesmo... Preciso de forças para ver meu filho tão fraco, tão doente... Ele está tão fraquinho, doutor! Tão fraquinho! E não só de corpo... Estou tendo conversas com ele que já não tinha desde que ele tinha três aninhos... Ele chora sem razão, me abraça... Pergunta se gosto dele de cinco em cinco minutos. Faz perguntas que... perguntas de crianças! Se quero que ele viva, se vou levar ele para casa... Diz que tem medo de morrer... Meu filho nunca foi medroso!
– Ele está confuso e enfraquecido. Tem doze anos apenas e uma doença como essas, para uma criança que sempre foi tão sadia, é assustadora.
– Isso é um pesadelo...
— # —
– Dante, filho...
– Oi, pai. Você demorou.
– Eu estava conversando com seu médico.
– E então?
– Você está melhorando.
– Mentira. Eu piorei muito. Mas não precisa mentir. As enfermeiras me contam: eu tô com pneumonia.
– Mas você vai melhorar.
– Pai...
– Fala, meu filho.
– Escuta, o Dite não vem?
– Ele... Ele... Está...
– Não diz que ele está ocupado. Eu sei que ele não vai vir porque não quer me ver.
– Dante, eu...
– Faz uma coisa: pede para ele vir para ver você. Daí, eu olho para ele daqui de dentro, escondido... Faz isso, pai? Eu quero muito ver o Afrodite, mesmo que não me olhe. Por favor, pai? Por favor... Eu juro que não falo com ele, eu só olho, eu só queria ver ele... Queria muito ver ele...
– Minha criança... Você sente tanta falta assim dele?
– Você não sente, Hô?
– Sinto...
– Era melhor quando ele estava aqui, né?
– Dante, por que você não reage? Se você melhorasse...
– Não vou melhorar, pai. Eu vou morrer aqui nesse hospital.
– Pára com isso, garoto!
– Pára você de fingir que não sabe! Nem mesmo o Dite vem me ver mais! E sabe por que? Porque ele sabe que não adianta! Para que ficar aqui, todo dia, toda a hora? É tempo desperdiçado! Eu não tenho jeito! Todo mundo que vem me ver entra aqui chorando como se eu já tivesse morrido: o Mestre Saga, O Mestre Shura, Shaka, Mu, Miro, Camus! Todo mundo! Eles entram e nem me olham do mesmo jeito! Eles já me olham como se eu fosse o menininho moribundo! Então porque fingir? Por que todo mundo entra aqui com os olhos cheios, chorando como se estivessem me velando, aí ficam longe de mim – parece até que leucemia pega! – e dizem "você vai ficar bom, menino" e vão embora chorando? É porque para eles eu já morri! Todos eles sabem que eu não vou sair daqui! Só estão esperando... o telefonema... O dia do doutor ligar e dizer "sinto muito, ele morreu". Aí vocês vão ficar todos aliviados e eu também!
– Eu não te entendo, Dante. – ciciou Máscara da Morte, desconcertado.
– Você entende sim...muito bem. Se não entende, eu repito: vai para casa, beije o meu pai na boca e durma na sua cama. Eu viver ou morrer é uma questão de tempo. Você estar aqui ou não, não muda nada.
– Não acredito que está falando comigo assim...
– Pai... Vai dormir em casa... Vai ficar com a Rosinha...
– Eu quero ficar com você.
– Não precisa. Não precisa. As enfermeiras cuidam de mim.
– Dante... meu filho...
– Vai pai... – ele estendeu um pequeno lenço embrulhado. – Leva isso pro Dite. Mas não abre. É só para ele. Ele vai entender.
– Dante, tem certeza?
– Que Ísis te guarde no seu caminho, pai.
– Boa noite, criança. – beijou a testa do filho, apavorado com a idéia de deixá-lo uma noite inteira. Mas Dante, apesar de não ser filho natural de Afrodite, se parecia com o sueco neste pormenor: era teimoso. Demais. Pegou o embrulhinho que o menino lhe dera e enfiou no bolso.
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– Hô! Hô! – o belo sueco pulou no colo do amante e o beijou apaixonadamente. De repente, notou que era noite e que o Canceriano devia estar no hospital com o filho. – Hô! O Dante... Ele não...
– Ele está bem... Ele só... pediu que eu viesse ficar com você...
– Como?
– Seu filho está com pena de você, por você dormir sozinho todas as noites.
– Dante é um anjinho...
– É, é sim. Pena que você não consiga mais olhar para ele.
– Hô, já disse que...
– Eu sei que dói em você ver como ele está, mas ele está piorando, Dite... Muito... eu tenho medo! E se ele não agüentar até a medula aparecer?
– Ele vai agüentar, Hô... Ele é tão corajoso...
– Não é mais, Dite... Não é mais... Ele está tão diferente... Tão fraquinho, tão triste... Me dá um aperto no coração... Uma revolta com o mundo, com os deuses... Com tudo! Meu filho! Minha criança inocente! Ele não merece isso, Dite! É muita dor para ele sozinho... É muita judiação com ele! O nosso menino está muito maltratado...
– Mas...
– Vai ver ele, Dite! Pelo amor de Zeus! Vá vê-lo antes que ele morra! Ele só fala nisso, ele está obcecado! Ele já me sugeriu levar você até lá para ele 'te espiar' pela porta sem você saber... Dite, ele está desesperado para te ver... Vai lá... agüenta um pouco... vai ver o menino... Por tudo que você ama nesse mundo... Vai ver o menino antes que seja tarde...
– Entra, Hô... Vamos... – apoiou o corpo curvado de cansaço do amante sobre seu próprio, empurrando-o para dentro da Décima Segunda Casa. – Não quero que te vejam por aí chorando... Senão vão lotar a frente da nossa casa perguntando pelo Dante... Entra...
– Estou tão cansado...
– Estou vendo... Vai tomar um banho para tirar esse cheio de hospital, eu preparo alguma coisa para você comer.
– Não tenho fome... Nem tenho vontade de fazer nada.
– Então vai, toma seu banho assim mesmo, de água morna para descansar o corpo. Eu levo uma vitamina para você na cama.
– Dite... eu...
– O que, amor?
– Eu te amo tanto... Eu preciso tanto de você agora...
– Hô... Meu Hô...
Afrodite envolveu seu homem com seus braços ternos e sedutores. Beijou-lhe a testa e os rosto seguidas vezes, sentindo o coração em pedaços com cada reação de seu amado, o abatimento evidente de Máscara da Morte o desesperava – fora disso que fugira, parando de ver seu filho. Mas a dor daquela doença invadia sua casa, por mais que a evitasse. Não podia fugir. Não era só Dante que tinha câncer: Máscara da Morte também tinha e ele começava a ter. Era uma doença coletiva que atacava-o e minava-o. Sentiu um calafrio ao pensar no menino sozinho em uma cama de hospital, tubos ligados ao corpinho magro e enfraquecido.
– Zeus, Hô... Você teve coragem de deixá-lo sozinho...
As palavras escaparam de sua boca.
– Ele me pediu... Já não consigo dizer não pra ele, Dite...
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– Doutor... Doutor...
O médico parou ao lado da cama. Olhou com olhos benevolentes para a criança deitada.
– O que foi, Dante?
– Eu tô com medo... Muito medo...
– Não precisa e...
– Segura a minha mão?
– Huh?
– Segura a minha mão, por favor? Só um pouco... Até eu dormir... Eu tô com medo...
– Cadê o seu pai?
– Mandei ele para casa... Ele precisa, você sabe doutor... fazer... aquilo...
– Aquilo?
– Sexo... Ele não faz tem um tempão... – o menino moveu os músculos do rostinho em algo que, supunha-se, devia ser um sorriso. – Tadinho... Ele dorme aqui toda noite.
– Pediu para ele ir?
– Se eu não pedisse ele não ia ir. Ele é muito bonzinho, o meu pai. Ele nunca ia me deixar sozinho...
– Você é uma criança tão boa, Dante.
– Eu não sou bom não. Eu sou ruim. Muito ruim.
– Vamos, você não me pediu a mão? Aqui está.
Estendeu a mão que o menino apertou levemente.
– Obrigado, Doutor.
— # —
– Seu eu estivesse fazendo amor com um boneco de plástico ele teria mais reações... – Afrodite, que estava com a cabeça entre as pernas de Horemheb, levantou-se e saiu da cama, procurando o robe azul claro que era o seu preferido.
– Como quer que eu tenha cabeça para isso?
– Pensei que me tinha me dito que me amava e precisava de mim.
– Preciso. Preciso muito. Vem cá... Eu prometo que vou te ajudar agora...
Afrodite voltou de robe, deitou-se na cama ao lado do amante. Abraçaram-se, mantendo os rostos colados, lábios presos naquelas beijos que nunca terminavam – Tinham aprendido, com os anos, a respirar no mesmo ritmo e com a mesma intensidade, prolongando os beijos ao máximo que podiam, com calma e doçura, como os jovens e afoitos cavaleiros que eles foram jamais imaginariam possível.
– Horemheb... Você não tem impressão de que estamos sendo punidos? Por nosso crimes? Se fosse eu doente não doeria tanto... Eles escolheram nosso filho como alvo... para doer mais. Para não parar de doer...
– Estamos vivendo um pesadelo, Dite... Parece que os dias não passam... Esse pesadelo não acaba... Eu quero você... Quero nosso filho... Quero nossa vida toda de volta!
– Vamos ter nossa vida de volta, Hô... Eu juro que... Eu vou tentar... Vou tentar ver o Dantezinho amanhã... Eu tenho tantas saudades dele, Hô! Eu passo os dias sozinho nessa casa... Enorme... Limpando o quartinho dele, para ver se ele volta... Arrumando as fotos, os brinquedos, tudo. Tenho saudades do berros de manhã, do corpinho dele aqui, nessa cama, entre nós dois, das reclamações do Saga sobre ele, do Shura entrar aqui gritando que o Dante quebrou as janelas dele...
Máscara da Morte suspirou desolado. Lembrou-se da 'encomenda' de Dante.
– Pega ali em cima da mesa... Um embrulhinho.
– Embrulhinho?
– Seu filho te mandou. Não me disse o que era. Mas falou que era para você. Que você ia entender. Abre isso no banheiro. Eu não quero ver o que é.
– Mas por que?
– Não sei. Ele disse que era seu. Eu não preciso ver.
– Está bem. – Afrodite ajeitou o robe, apanhou o embrulho de lenço branco sobre a penteadeira e foi até a suíte, batendo a porta atrás de si.
Sentou-se na beirada da banheira e abriu o lenço no seu colo.
Pétalas de rosas. Negras.
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flashback
– Pai, desculpa?
– Não! Não! Minha rosa azul! Minha preciosa rosa azul! Quebrada, arruinada e tudo por causa das suas boladas! Quem disse que você e aquele sujinho do filho do Saga podiam brincar de bola no meu jardim?
– Foi sem querer...
– Estou vendo...
– Pai... Você pode fazer rosas de qualquer cor?
– Posso.
– E até preta?
– Preta também. Mas...
– Mas?
– Uma rosa preta não nasce só de você querer. Claro, quando eu era um... Espectro...
– Ah, quando você foi herói? E salvou Atena mesmo arriscando sua honra?
Afrodite sorriu. É, era uma maneira bem bonita de se pensar na sua vergonha. Herói...
– Sim, quando eu era um Cavaleiro espectro fazia rosas negras. Mas quando eu estava vivo, nunca consegui fazer rosas negras de verdade. Pelo menos não completamente negras.
– Não? Mas por que?
– Porque uma rosa negra é uma representação do seu cosmo. E para ter um cosmo negro, só alguém que sofre, muito. Quando sua alma chora, pétalas negras nascem.
– E você nunca conseguiu fazer rosas pretas, pai?
– Não. Acho que nunca sofri assim de verdade. Quando seu pai morreu, eu tinha ódio. Mais ódio que sofrimento. Eu queria vingá-lo. Mas não tive tempo de chorar. Escuta, Dante: não é o ódio que tinge de negro as pétalas... Mas é a dor. Só a dor faz as pétalas ficarem escuras.
– Então, tá.
– Tomara, meu filho, tomara, que jamais você sofra o necessário para fazer pétalas negras...
– Tomara, né, pai?
Fim do flashback
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– Afrodite? Você não voltava para cama... O que foi que o menino te mandou?
– Horemheb... Me abraça?
– O que foi, Dite? Você está tremendo!
– Eu estou com medo, medo...
– Então vamos ver o menino amanhã...
– Eu vou tentar...
– Vamos, Dite...
– Eu vou tentar...
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Agradecimentos: Kids, obrigado demais a todos vocês por tudo. Citarei aqui os nomes dos que deixaram reviews. Dessa vez, o site foi generoso inventando um sistema de resposta de review...Então, só quem comentou como anônimo é que não recebeu uma respostinha. Para vocês, eu prometo um postzinho no blog ( o thesenseiclub ponto blogspot ponto com ). Aqui, os nomes das santas criaturas que comentam: Paola Scorpio, Lininha, Elfa, Giselle, Litha-chan, Athena de Áries, Amy Black, Pipe, Lady Nina, Anya Amamya, Tsuki Koorime, Anna Malfoy, Nana Pizani, Jade Toreador, Dark Lupina e Sinistra Negra.
