Disclaimer I: Saint Seiya não me pertence. A série original e seus personagens são propriedade de Masami Kurumada.
Disclaimer II: Mozão e Mozinho são expressões cunhadas por Pipe, usadas com a permissão dela nessa fiction. O enredo desta fanfiction, bem como seus personagens originais e nomes, quando não especificados, me pertencem.
Ps: Capítulo final. Uau. Nove capítulos, meses de sofrimento. Aqui está o resultado da longa caminhada de Dante e seus pais. Espero que gostem do desfecho. Devo agradecimentos mais do que especiais a todos que comentaram, por e-mail, via site, via MSN. Bom, sem mais delongas... Capítulo final e Epílogo. O título do capítulo final, óbvio, não podia ser outro... AMOR.
Ps2: Todas as instâncias em itálicos são flashbacks, bem como os ANEXOS.
MAIOR QUE TUDO
Capítulo 09 + Epílogo
Amor
Aqueles pés ligeiros corriam pelas escadas do Santuário, descalços. Eram pés pretos, imundos de lama e terra, cheios de areia. Úmidos e salgados. Eles subiam, velozes, atravessando as Casas Sagradas. Passavam por Áries vazia e por Touro. Aldebaram entregou ao dono dos pés sujinhos uma carga de açaí, guaraná e granola. E alguns beijos também.
Depois, em Gêmeos, os pezinhos ganharam mais beijos, tapinhas nas costas. E até um bilhetinho.
Os pés ligeiros passaram pela casa de Câncer, vazia, atravessaram Leão – A Casa de Leão, onde morava Aioria, conhecido no passado como "Aioria dos alígeros pés" – justamente por ser veloz. Recebeu mais tapinhas e beijinhos. Continuou sua jornada até Virgem, onde esperavam-no o dono da casa e o dono do coração do dono da casa – Shaka e Mu.
– Estava te esperando.
– Mestre Shaka, eu...
– Seu presente. – estendeu-lhe um juzu. O terço budista de cento e oito contas. – Faça bom uso dele. Mandei que viesse da Índia, jejuei e orei sobre ele durante muitas e muitas noites.
– Obrigado, mestre.
– Deixe-me abraçá-lo. Você ainda é tão doce e tão meigo quanto quando mal alcançava a minha cintura...
– E você ainda é o meu melhor amigo, o melhor de todos, Mestre Shaka.
– Leve seu presente com você e vá logo. Seu pai já está agoniado lá em cima, estou sentindo.
– Mas ele sabe que eu acordo sempre com as galinhas para ir pra praia...
– Mas hoje... Hoje é um daqueles dias em que ele fica mais do que ansioso.
– Ah, é... Então vou subir... Não conta pra ninguém, mestre, mas eu também estou louco de vontade de apertar meus velhotes hoje...
– E quando é que você não está?
– É, então eu vou. Esses pacotes estão pesadinhos...
– Presentes de Aldebaram? – comentou Mu, olhando os pacotinhos enfeitados com fitinhas verde-amarelas.
– Por que está interessado? – Shaka adiantou-se.
– Só perguntei, meu querido.
– Que te interessa os presentes de Touro?
– Ih, tio Mu... Ele está cheio de ciúmes. Não fica assim não, mestre Shaka... A namorada francesa do tio Deba estava lá com ele e ela é muito gata. Tipo, ela não é tudo que o tio Mu é, mas ela tá com um vestidinho que dá para ver até o útero!
– Respeito, Dante! Modere sua linguagem. Além do mais, por que eu teria ciúmes de Mu? Não seja tolinho, anda, vá... Seus pais estão esperando...
– Você vem, Mestre? Mais tarde? Eu sei que você disse que não. Mas... Eu queria muito que você estivesse lá...
– Filho... Eu vou estar pensando em você... O tempo todo, ouviu?
– Está bem, Mestre. – O menino deu um beijo sobre o terceiro olho do virginiano. – Eu sei que você vai ficar pensando em mim e eu agradeço.
Ele veio por trás do ariano e beijou-o na bochecha também.
– Você vai, né, tio Mu?
– Vou, claro que vou. Estou cansado de ser embaixador de Shaka aos lugares onde ele não quer ir e eu sempre vou 'representando-o'...
– Como se você não adorasse ser o 'social' de nós dois.
– Dantezinho... – Mu ignorou o comentário de Shaka. – Estarei lá.
Dante continuou subindo, passando pelas vazias casas de Libra, Escorpião e Sagitário. Entrou em Capricórnio. Shura não estava, mas a mulher e os filhos – amigos de infância de Dante – estavam e fizeram a festa ao vê-lo. Depois de se atrasar o bastante, subiu para Aquário, onde estavam Miro e Camus. O francês deu-lhe dois potes da preciosidade que era a guloseima preferida do menino: Nutella. Quando Dante tinha nove anos, Camus precisou fazer um trabalho para Athena na França. Como Miro não pôde ir, o francês pediu permissão a Afrodite para levar Dante com ele. O pisciano vetou a idéia, mas Máscara da Morte permitiu. O menino ficou uma semana, divertiu-se muitíssimo e voltou viciado em Nutella. O pai sueco não permitia o chocolate em excesso – limitava a quantidade semanal e sempre argumentou que Dante devia se alimentar da maneira mais saudável possível. Mas ele nunca recusaria um presente de Camus – muito menos Nutella. Camus deu a ele uma sacolinha pra pôr todas as coisas que carregava.
Então, quando saiu de Aquário, o menino respirou fundo. Deixou a sacolinha com tudo que tinha ganhado pelas casas no chão. Próxima parada, Peixes. Lar. Pais. Ainda estava molhado da praia. Ainda estava com os pés imundos. Subiu correndo, atropelando degraus no caminho até ver as portas da Casa abertas e a figura esguia, belíssima, do pisciano parado com sua túnica branca esvoaçante.
"Paiêeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Cheguei!"
O menino voou no colo do pai. Já era estranho vê-los assim, Dante grande demais para o colo do papai, os pés sujos roçando na túnica branquíssima do pisciano, que o beijou entusiasticamente.
– Feliz aniversário de quinze anos, meu filho!
– Feliz aniversário de filho, pai!
– Como você se sente agora que você já é um homenzinho?
– Corta esse papo brega, pai! Homenzinho! Parece que eu menstruei pela primeira vez! Fala sério!
– Mal educado! – o pisciano botou o filho no chão, mas não o soltou. Cheirinho de mar, água salgada. Seu menino esbanjando saúde.
– Cadê o meu pai?
– Está tomando banho lá dentro.
– Vou lá falar com ele...
Depositou outro beijo nas bochechas coradas do pai e continuou, dentro do enorme quarto dos pais, entrou no banheiro. Atrás do sofisticado boxe de vidro, o canceriano tomava banho cantando.
– Pai, tô aqui. – sussurrou o menino, entrando.
– Bambino! – o canceriano saiu do boxe, pingando, enrolado na toalha de rosto que achou.
O menino o abraçou, rindo. Afrodite era o amor de sua vida. Mas Máscara da Morte... Ele era o seu herói.
– Meu moleque! Feliz aniversário, meu filho. – o canceriano aproveitou a distração do filho e o agarrou pelos quadris, sentando-o na bancada, como quando ele era um bebê e ficava assistindo ao pai se barbear. – Senta aí. Vou fazer a barba... Veja se aprende, agora que é homem, vai precisar fazer a sua... A não ser que puxe ao seu sueco e não tenha pêlos...
– Eu vou ter pêlos sim, pai. Eu já tenho um monte... lá. – acrescentou, solene e orgulhoso. – E são todos ruivos!
– Verdes é que não podiam ser, garoto...
– Eu sou lindo pelado, a Allyanda é que me disse.
– E ela já te viu pelado?
– Na praia. O tio Saga dormiu na areia e nós aproveitamos para nadar pelados.
– Sei... E só nadaram?
– A Allyanda disse que se recusava a fazer sexo com pirralhos e que só ia pra cama comigo quando eu tivesse quinze anos.
– Agora é a hora, filho.
– Pois é. – ele olhou para o espelho, Máscara da Morte habilmente fazendo a barba com uma navalha afiadíssima. – Sabe o que é, pai...
– Você está nervoso. Inseguro. – ele abaixou a lâmina e riu. – Eu te disse para não ficar virgem esperando por ela, agora você não tem experiência... – ele riu outra vez, dando um tapinha nas coxas do menino. – Mas a bruxa já te viu pelado e gostou. Bom começo. Nada pior do que baixar as calças na frente de uma mulher e ver decepção nos olhos dela!
– Pai, isso não é difícil de fazer não, é?
– Depende... Da posição... Mas você tem bom equilíbrio, não é?
– Pára, velho! Eu estou falando sério!
– Escuta, Dante. É fácil demais. Quando ela deitar de pernas abertas só tem um lugar pra você ir, não tem como errar.
– Sério? Não é difícil de achar não? Assim... o lugar... O lugar pra... Você sabe... O buraco... Eu nunca vi uma mulher pelada... E se eu não achar, pai? Ela vai rir de mim. Eu tenho que acertar de primeira e não ficar procurando que nem Mr. Magoo...
O canceriano irrompeu em uma gargalhada que cintilou pelas paredes do banheiro. Largou a lâmina sobre a pia e desatou a rir.
– Do que é que você está rindo, pai? Ninguém nasce sabendo dessas coisas não, sabia? E você está rindo aí, faz anos que você só transa com um homem, você não entende, mulher é muito mais complicado, viu?
– Garoto, com você aqui não vou terminar minha barba nunca! Escuta aqui: você tem um pênis e ela tem um buraquinho... É simples assim! Não tem como você errar, meu filho! É lá e acabou! É só correr pro abraço! Simples. Você está fazendo uma tempestade num copo d'água... Isso é que dá, te criar todo protegido, todo guardado como uma donzela na torre... Ouça aqui, do seu velho pai – você vai fazer tudo certo, a bruxa vai te adorar. Seja carinhoso, trate-a bem. Se achar que foi depressa demais, peça desculpas e pergunte se está doendo. Beije bastante, olhe nos olhos dela e diga que ela é uma jóia preciosa e que você tem sorte de estar com ela. Ela vai te amar. Tudo vai dar certo. Tudo vai dar certo, escutou, meu filho... Você é ótimo, você é um garoto maravilhoso.
– Obrigado, pai.
– Obrigado de quê? – perguntou, já de volta com a navalha nas mãos.
– Por você me amar.
– Ah... Dante... Você não muda, meu filho... Você não muda... Sempre assim, sempre doce. – beijou a testa do menino, sujando-o de creme de barbear. – Agora me deixa terminar...
Esfregou o rosto, fingindo para o menino e para si mesmo que as lágrimas que começaram a brotar eram irritação por causa do creme. Máscara da Morte nunca deixava de se encantar com espontaneidade infantil de Dante. Talvez, por causa da doença e do isolamento involuntário durante a sua recuperação, longe das brincadeiras dos meninos e da rua, Dante Rafael conservou muito da sua criancice; mesmo completando quinze anos, era ainda um menininho, o mesmo menininho que ele tinha segurado doente no colo, com doze anos e apenas trinta e três por cento de chances de sobreviver ao transplante.
– Termina logo, velho. O Mozinho está em cólicas esperando a gente.
– Ele já te deu seu presente?
– Tá fazendo mistério. O que é, pai?
– Se ele está fazendo mistério, eu é que vou te contar?
– Deve ser algum presente que vem de fora, eu revirei a casa toda ontem quando vocês foram ao cinema...
– Ah, eu sabia! É por isso que minhas cuecas estavam todas fora do lugar!
– Depois meu pai arruma... Anda, Mozão... O que é? Um carro?
– Um carro? Só se for um carro de mão! Bestia! Você não tem idade para dirigir e com essa cabeça de vento que você tem eu não nunca mais ia dormir sossegado se você tivesse um carro!
– Ai, pai, tá bom... Só me diz: o seu presente e o do Mozinho são diferentes ou é o mesmo?
– Diferentes.
– Então vou ganhar DOIS presentes?
– Que surpresa! Você sempre ganha tantos presentes, Afrodite te mima demais.
– Pois hoje eu é que vou dar um presente pra você e pro Mozinho, anda logo, pai!
– Presente? Pra mim?
– E pro Rosinha. Anda logo!
Máscara da Morte conseguiu terminar a barba a muito custo e se vestir e perfumar para sair do banheiro do jeito que Afrodite gostaria: impecável. Sabia que o pisciano era solene e levava muito a sério todo o 'ritual' de entregar os presentes do filho. E era uma tradição familiar – acordar cedo, esperar Dante voltar da praia, tomar café juntos e entregar os presentes. Quando amava, Dite era muito generoso. O filho invariavelmente saía da mesa carregado de mimos. Agora, quando ele completava os quinze anos que ninguém esperava que ele fosse alcançar, não seria diferente. E a generosidade do pisciano para com o filho aumentava, porque Dante era igualmente generoso em retribuir com seus carinhos e atenção qualquer coisa que recebesse como presente do pai.
– Filho, você demorou! Senta aqui!
– Pai, posso comer Nutella hoje?
– Hoje você pode tudo, meu amor.
– Então eu quero pão com Nutella e suco de abacaxi com laranja e menta e quero também bananas e... O que mais eu quero... Tudo... O que tem na dispensa, pai? Tem biscoito recheado? Eu quero...
– Pára de ser guloso, Dante! A Nutella já vai te deixar cheio pelo resto do dia, por Zeus, você come mal como seu pai...
– Eu como mal? – Máscara da Morte foi arrancado de suas divagações com as mãos em um broa doce.
– Se entope de carboidratos e açúcares... Péssimo exemplo para nosso filho!
O canceriano enfiou a broa na boca.
– Fala logo pro garoto do presente, ele está se coçando pra saber o que é...
Afrodite sentou-se no banco comprido da mesa, abraçando o filho que prontamente se esfregou contra ele e se aninhou no peito do pai.
– Eu e seu pai, cenourinha, achamos que você já é um homenzinho. Então vamos te dar um presente que reflita isso...
– Vocês não vão me dar mais cuecas, né? Eu detesto cueca.
– Garoto! Quando é que te demos cuecas ou outras coisas mixurucas assim de presente?
– Tá, pai, então o que é um presente de homenzinho? Mostra!
O sueco tirou da carteira que estava sobre a mesa um chaveiro. Era o símbolo de Gêmeos, em platina com aplicação de diamantes. Agarrado nele, duas chaves.
– É seu.
Os olhos verdes brilharam de excitação vendo o chaveiro.
– É meu, Mozinho? Todo meu? É a chave de casa? Agora eu posso chegar a hora que eu quiser? Sério?
– Não fica feliz demais antes da hora... – resmungou Máscara da Morte do outro lado da mesa, trocando sorrisinhos cúmplices com Afrodite. – O presente não acabou.
– Não?
– Tem duas chaves, não tem?
– Tem, mas...
– Lembra que quando você ficou dodói, nós mandamos reformar um quarto nos fundos para você?
– Lembro. Mas depois você desmontou o quarto e fechou a ala toda. É no fundão, você disse que lá era escuro e tinha umidade e que não ia mais usar aquela parte da casa.
– Mas ela ficou em reforma por muito tempo, você não se lembra?
– Tá, mas... Você estava lacrando o lugar, não sei, era isso que você dizia, né?
– Dá a mãozinha, vem com o papai.
– Ai, pai, que mico! "Dá a mãozinha"! Quantos anos eu tô fazendo, cabeçudo?
Horemheb puxou o menino pelo braço e deu-lhe um tapa de leve na nuca.
– Então levanta e anda atrás da gente, moleque.
Os três saíram da Casa de Peixes e Afrodite caminhou na frente, guiando-os pela lateral da casa, uma pequena porta adjacente à grande estrutura, que Dante nem mesmo se lembrava de ter sido colocada ali. Ficava escondida, entre enormes folhagens de roseiras amarelas, nos jardins fechados que o pisciano cuidava com tanto carinho.
– Abre. Com a sua chave. – Afrodite estendeu o chaveiro brilhante para o menino. Ele abriu a portinha e entrou. Embasbacado, não teve palavras pra reagir.
Era um enorme quarto de menino. Uma cama de casal, janelas que davam vista para os montes verdinhos que escondiam o mar do outro lado. Uma bancada com um laptop, telefone, tv de plasma de 34'', um aparelho de som imenso, um videogame, frigobar, um banheiro, prateleiras com livros e cds, tudo bem decorado com o gosto irretocável do pisciano.
– Gostou, filho? É só seu. Tem entrada independente da casa, você pode entrar e sair na hora que quiser. Pode trazer suas namoradas e seus amigos. O seu quarto em casa continua sendo o mesmo, você fica à vontade pra vir pra cá quando quiser ficar sozinho ou precisar de privacidade... Você falou outro dia que seu quarto era de criança e que você não tinha... Computador, essas coisas que os meninos da sua idade têm... Então aqui está tudo o que você precisa... Tem até Internet! A deusa conseguiu wireless para nós...
– Pai... – balbuciou o menino. – Você não precisava...
– Ali, do lado do banheiro, tem uma passagem para a casa. Se estiver chovendo ou mesmo se você não quiser entrar por fora... Mas a chave é só sua, não tem cópia... A gente só vai entrar quando você quiser...
– Pai, eu... Eu... Eu não tava reclamando do meu quarto... Eu não preciso de computador e videogame, eu tenho vocês.
– Não seja bobinho, Dante, uma coisa não substitui a outra...
– Eu... Eu... Nem sei o que dizer... É muito lindo o quarto, mas...
– Mas o quê?
Máscara da Morte interrompeu:
– Não é um divórcio. Você ainda é nosso filho e vai ter de aturar a gente. Isso é só pra você poder fazer sexo sem seus pais entrando no quarto para ajeitar o mosquiteiro...
– Ah... Pai... Vocês são tão... Perfeitos!
O menino se atirou na cama macia e começou a pular nela.
– Colchão de mola! Que nem dos motéis!
– Olha isso, Hô... O pé podre na colcha que eu escolhi com tanto carinho...
– Desculpa, pai!
– Eu mando a criada trocar...
– Pai, e o presente do Mozão?
– Hô, olha como ele está interesseiro!
– Você disse que eram dois, por isso eu perguntei...
– Antes do Hô dar o seu presente, eu tenho mais uma coisinha para você...
– Mais presente, Dite?
– Mais presente, abre espaço nessa cama, para eu sentar do seu lado. – o pisciano se ajeitou na cama, limpou o suor da testa do menino e ajeitou o cabelo ruivo. – Fecha os olhos.
– Ih...
– Fecha! Pronto... Agora abre.
O menino abriu os olhos e resvalou a mão para o pescoço, onde tinha sentido o pai ajeitar alguma coisa – uma jóia, decerto. Os olhos verdes se arregalaram em espanto.
– Pa-pai... Meu... Meu cordão! Com meu anel que os suecos roubaram! Meu anel! Pai, como você conseguiu?
– Eu consegui. É o que basta. O anel foi presente do Hô para mim e o cordão é herança da minha família e eu dei para você. É um presente que tem exatamente a mesma idade que você. Nada mais justo: é seu, voltou pra você. Gostou?
– Caraca, pai! Queria fazer aniversário todo dia!
– Mmm... E o seu presente, Mozão? – brincou Afrodite.
– Chega, já não ganhou muito não?
– Já ganhei, mas você...
– Já sei: eu falei, agora você quer... Toma... – o canceriano ajoelhou-se e tirou uma lata de alumínio debaixo da cama. Era uma lata sofisticada, que tinha estampas vintage de Marilyn Monroe.
– Uma lata? – o menino revirou a lata nas mãos. – Para que serve isso? É pra guardar lápis? Mas eu nem tenho tantos assim...
– Mas como é burro! Abre a lata e pára de falar besteira!
O menino abriu a lata. Havia dezenas de camisinhas – de todas as cores, aromas e formatos. Havia também lubrificantes e óleos de massagem. Dante ergueu os olhos verdes para o pai e riu.
– Pai, você pensa em tudo! Mas pra que serve esse óleo?
– Passa na mão. Ele fica geladinho. Quando você lambe, ele esquenta.
– CARACA! Que maneiro! Eu nem sabia que essas coisas existiam! Quer dizer – só a camisinha...
– Precisa usar camisinha, filho... Tanta doença que aparece todo dia, a gente nunca sabe...
– Ah... Só de doença mesmo... Eu nunca vou engravidar ninguém...
– Filho, não fica triste...
– Posso te afirmar que um filho adotado vale tanto quanto um filho feito por você. – acrescentou Máscara da Morte. – Ou será que você duvida?
– Não duvido não, pai... Não duvido mesmo...Todo mundo pode duvidar, menos eu. Eu tenho certeza disso. Vocês são os melhores pais que alguém podia querer. Os melhores de todos...
– Espera... E o nosso presente?
– Nosso?
– É, Dite, o moleque disse que tinha um presente para nós dois.
– É, filho?
– É sim, pai... Eu queria falar com vocês dois juntos, senão iam logo dizer que eu prefiro um e que contei primeiro pra quem eu gosto mais... Para não ter ciumeira, os dois juntos...
– Pára de enrolar.
– Tá. Quando eu tava vindo pra cá, falei com Mestre Saga. E sabe o que ele me disse? Que Athena concordou! Ela vai me dar a Armadura de Gêmeos HOJE! Hoje, pai! E ela disse que é pra vocês não saírem de casa porque ela vai mandar os hefestianos passarem para polir as armaduras de vocês – todos os cavaleiros de ouro vão vir, o Mestre Dohko está vindo lá da China! E então? Por que vocês estão com essas caras? Fala alguma coisa, pai! Você não tá feliz?
Máscara da Morte e Afrodite não sabiam o que dizer. Era um sonho longamente esperado – o de ver o menino vestido com a armadura de Gêmeos. Quando Dante ficou doente, esqueceram-se disso. Mesmo Afrodite não ficava tranqüilo, apesar de ser um sonho de Máscara da Morte, ele nunca quis que Dante fosse cavaleiro. A primeira vez que o filho chegou em casa de joelho arrebentado, ele quis morrer. Fez um escândalo, exigiu que Dante parasse de treinar e finalmente entendeu porque todos os antigos cavaleiros eram ou órfãos ou abandonados pelos pais: um pai de verdade não podia agüentar por muito tempo ver um filho se matar em treinamentos para conseguir uma armadura que muito provavelmente só lhe traria dor e morte. Mas por fim, depois da bruxa afirmar que não haveria uma guerra tão cedo, acabou concordando com o treinamento. E agora... Depois de tanto tempo, seu menino ia ganhar uma armadura. E não era qualquer uma – era a armadura do mestre do Santuário.
― # ―
– Acha mesmo isso necessário?
– Necessário é óbvio que não é, mas não sei porque adiar.
– Não fico confortável com esse menino tão novo recebendo uma armadura sagrada... – a voz da deusa deixou escapar uma certa nostalgia, quase uma lamento. – Ainda mais a sua armadura... Me pergunto se uma criança mimada e fisicamente frágil como Dante pode substituir você... O mestre do meu santuário.
Ao ouvir uma menção pouco honorífica ao seu pupilo, Saga irritou-se. Saori Kido, na opinião dele, era a pessoa menos indicada no mundo para fazer reparos à fragilidade física e maturidade emocional de alguém.
– Dante tem tanta saúde quanto qualquer um de nós. Quanto a ele ser mimado, talvez a falta de amor na sua vida seja uma justificativa razoável para que você considere-o mimado e imaturo só porque ele foi amado demais.
– Está me desafiando, Saga?
– Não. Só acho que te falta sensibilidade e propriedade intelectual e moral para julgar Dante do jeito que você fez. Eu sou o Mestre dele, eu sou Cavaleiro desde os oito anos e me considero plenamente capaz de avaliar as capacidades de um menino que pretende vestir a armadura.
– Me chamou de burra?
– Despreparada para julgar-nos. Não a culpo. Mas deve ser humilde o bastante para admitir que não conhece a intimidade das funções de um cavaleiro. Ou já viu algum treinar? Receber uma armadura? Ser testado?
– Não... Eu...
– Então atenha-se a sua função de deusa e deixe que do treinamento dos meninos cuidamos nós, Cavaleiros. Quanto a ele ser novo, bem ele é sete anos mais velho do que eu era quando me tornei cavaleiro. E seu eu estou te dizendo que ele está pronto...Confia em nós, não?
– Claro que confio.
– Então?
– Darei a armadura a Dante, como quer.
― # ―
– Dante... Dante...
– Ah, pai, você está chorando? Mas por que? Você não ficou feliz?
– Estou mais do que feliz... Estou orgulhoso do meu moleque... Do meu filho que vai ser Cavaleiro de Ouro como eu...
– E vai ser como?
– Hoje na festa surpresa que meu pai organizou para mim... Né, Mozinho?
Afrodite fez-se de surpreso.
– Oh! Como você sempre descobre minhas festas surpresa?
O menino desatou a rir.
– São os fofoqueiros do Templo, pai...
– Ah é? Mas aposto que os fofoqueiros não imaginam que eu arrumei umas mudas de roupa muito lindas para você trocar, filhote... Quero você lindo como um rei!
– Roupas?
– Sim, uma muda de túnicas claras para festa agora de dia, uma túnica escura com enfeites prateados e para você sair para a boate também comprei umas roupas especiais...
– Oba! Então já posso vestir?
– Pode sim... Vai tomar seu banho e se veste que o almoço vai ser na baixa, mandei arrumar tudo lá, será uma festança como esse Santuário nunca viu!
— # —
O pisciano tinha razão – a festa foi fabulosa. Afrodite não poupou dinheiro e ninguém poupou esforços. O Santuário estava todos enfeitado com luzes, flores e adereços em prata, houve música, jogos, danças – todas as coisas simples, quase milenares, que Dante tanto amava.
À tardinha, organizaram um luau, Afrodite fretou pequenos carros para levar todos os amigos de Dante até a praia mais próxima. O menino adorava jogar bola na praia, nadar. A túnica escura ficou toda molhada e cheia de areia. Afrodite e Máscara da Morte divertiam-se vendo os moleques dançarem e rirem alto, bebericando e nadando. Saíram mais cedo, com os outros cavaleiros de ouro, para organizar a entrega da armadura.
Quando os mais novos e as mulheres voltaram para o Santuário, a deusa já os esperava e todos os Cavaleiros de Ouro, de armadura, prontos para a cerimônia que ia tornar o pequeno Dante Cavaleiro de Ouro de Gêmeos.
Normalmente, uma cerimônia de entrega de armadura era bem menos glamurosa e contava com bem menos convidados, mas Allyanda convenceu o pai de que seria 'simpático' aproveitar a festa de aniversário e dar logo a armadura ao menino. Saga não via empecilho e concordou. Athena sabia muito bem que não teria motivos para atrasar a festinha com discursos e longos protocolos, então foi direta e em vinte minutos Dante já vestia a armadura de Gêmeos. Afrodite carregava em uma mão a máquina fotográfica digital e na outra os quatro memory sticks cheios: não perdia uma pose do menino. Aproveitou também para fotografar Horemheb, descobriu-se irremediavelmente apaixonado pelo canceriano – estava achando-o lindo, deslumbrante. Maduro, elegante e tão sorridente quanto um menino.
Pensava nisso, ajeitando a máquina, quando o filho se aproximou, ainda de armadura.
– Pai, vou me arrumar.
– Arrumar?
– Pra sair... Pra boate. Eu te disse, lembra?
Ah, sim... A boate. Afrodite não sabia onde esteve com a cabeça para permitir que seu menino de quinze anos freqüentasse um ambiente podre como o de uma danceteria. Mas Dante queria tanto! Ele ouvira estórias dos irmãos de Allyanda e dos filhos de Shura, que iam às boates da moda na cidade e ficou encantado. Allyanda prometeu que o levaria quando ele tivesse altura e porte para enganar os seguranças de que era maior de idade. Decidiram que não podia haver melhor ocasião do que o aniversário dele. Máscara da Morte achou a idéia excelente, mas Afrodite vetou-a com toda veemência, até o último minuto, quando foi vencido pelo cansaço. E lá estava o moleque – louco para se arrumar e sair...
– Lembro desse inferno que você me fez prometer e agora não posso mais dizer que não quero... Anda, vai...
– Pai, brigado!
– 'Obrigado, obrigado'... Vá, vai logo. Mas desce aqui para eu te ver antes de você ir.
– Tá bom! Eu já volto...
— # —
– Filho... Você... Está... É o menino mais bonito do mundo...
Afrodite olhava, embasbacado, o filho arrumado para ir à boate com os amigos. De repente, Afrodite lembrou-se de que, talvez, com apenas quinze anos recém-completos, Dante não tivesse idade para ir ao local combinado para a travessura em grupo.
– Dantezinho, onde vocês vão mesmo?
– Lembra a boate que vocês freqüentavam quando eram meninos?
– A Synergy? Mas ela fechou faz anos!
– Ela reabriu tem uns seis meses. – esclareceu Allyanda, a única maior de idade do grupinho, que esperava Dante aparecer. Esperta, ela tinha medo de que o velho pisciano tentasse alguma manha para não deixar o filho ir na última hora. – Agora se chama Heavens. Ah! Rafael, eu vou descer e ver se meus irmãos estão prontos e se os filhos do Mestre de Capricórnio vão com a gente também... O espanhol velho não queria deixar os meninos irem.
– Não devem confiar em você. – murmurou Afrodite, em desdém.
– Pior para eles. Não poderiam estar em mãos melhores.
– Não sei onde eu estou com minha cabeça deixando o meu menino nas suas garras de bruxa.
– PAI!
– É verdade, filho!
– Deixa, Dante... Isso é ciúme. É da idade...
– Atrevida!
– Já volto, Dante... Cuide do paizinho... – ela riu. – Seja carinhoso... Essa noite ele vai passar em claro!
– Filho, como você pode sair com essa feiticeira abusada!
– Ai, pai, deixa ela...
– Como vai entrar na boate? Desde quando você é maior de idade?
– Desde hoje de manhã quando o tio Deba falsificou nossas carteirinhas, a minha e a dos irmãos da Allyanda. Ó! Eu tenho dezoito anos!
– O Deba fez isso? Mas filho, isso não é direito...
Máscara da Morte, no canto, ria desabaladamente. Irritado, Afrodite virou-se e o encarou.
– O que foi? Do que está rindo?
– Você! Você! Sai desse corpo que não é seu! Você se reconhece, Dite? É você dando lições de moral ao nosso filho, dizendo a ele que não é direito falsificar uma carteirinha!
– E qual é o problema?
– Nenhum, mas que é engraçado, isso é!
– Filho... Você tá tão bonito...
Afrodite logo dispersou sua atenção do 'evento' da carteira falsificada. Dante vestia uma calça jeans cheia de rasgos estratégicos, a camiseta branca de mangas longas, sobreposta com uma camiseta justa, vermelha, cheias de aplicações que brilhavam, como as tachinhas do cinto de couro preto. Nos pés, usava um Pzero. Os cabelos ruivos, já crescidos, na altura dos ombros, já tinham perdido muitos dos cachinhos de anjo da infância, mas ainda conservavam um ou outro anelzinho alaranjado nas pontas.
– Meu amor... Como você está bonito...
– Obrigado, pai.
– Filho, escuta... Ouve... – segurou o rosto do menino entre as mãos, guiando os olhos do menino para os seus. – Não vai beber muito, viu? Não aceita nada que nenhum desconhecido te oferecer, não bebe do copo de outras pessoas, tá? No máximo duas long-necks, tá, Dante? Se for beber caipirinha, bebe uma só. De resto bebe refrigerante, suco, qualquer coisa, viu, filhote?
– Tá, pai. Não vou beber.
– Esconde o dinheiro no sapato, não fica dando bobeira de madrugada. Esconde esse anel caro dentro da blusa... Se precisar, estiver cansado, pode ligar, a qualquer hora, pode ligar que eu e seu pai vamos te buscar, viu?
– Tá, pai, se precisar eu ligo. Mas eu acho que o Mestre Saga vai pegar a gente.
– Mas se precisar, liga. Olha, não arruma briga, neném. Se alguém quiser puxar briga, não entra em provocação, viu? Vem logo embora se você sentir que o clima ficou estranho, tá?
– Tá bom, pai.
– Do que você está rindo, Dante?
– De você, velho. Parece uma galinha velha dando conselhos pro pintinho.
– Menino bobo! – secou os olhos, mas o sorriso que também exibia, sumiu de repente. Estava mesmo velho. Seu filho já era um homenzinho. Na sua frente não estava mais o anjo de cachinhos ruivos, seu neném. Era um rapazinho pronto para sua primeira noite em uma boate e talvez a sua primeira vez com uma mulher. O pisciano sentiu seus olhos arderem de novo. Abraçou o menino. – Filho... Me desculpe... É que... É tão difícil te ver crescer assim...
O menino o enlaçou com força, o nariz enterrado em montanhas de cabelo azul.
– Você está fazendo um ótimo trabalho, pai.
– Estou mesmo?
– Está sim.
– Você entende meu medo? Quase perdemos você... Nós lutamos tanto... Cuidado, meu filho, cuidado...
– Vou ter todo o cuidado do mundo, pai...
– Mesmo que chegue muito tarde, passa no quarto para avisar, tá, neném?
– Eu passo lá.
–Vai... Que a Deusa te guarde.
– Que Ela guarde você, pai.
O menino se soltou e começou a descer as escadas com a 'gangue'. Allyanda, adulta e responsável, com um vestido preto curto e esvoaçante, os longos cabelos azuis e cacheados como os de Saga caindo sobre as costas, guiava a turminha – os quatro irmãos homens, mais os três filhos meninos de Shura e Dante, que descia de mãos dadas com ela. Afrodite não desviava o olhar de cada 'tac-tac' da sandália de salto alto da moça, porque cada passo dela era um passo do seu filho indo junto... Embora... Voando do ninho. Horemheb logo o distraiu.
– Tinha que dar um espetáculo. Você não muda, Afrodite.
– Horemheb... É meu menino. Nunca saiu de casa à noite para ir para uma festa, um lugar dos "comuns". Fico com medo. O mundo não é do mesmo jeito que era quando a gente era da idade dele. E também nós não éramos como o Dante. Na idade dele eu já era um assassino e minha inocência já era coisa de um passado muito distante. Se é que algum dia eu fui mesmo inocente.
– Eu sei que o mundo mudou. Mas o Dante vai saber se cuidar. E ele não vai estar sozinho.
– Ah! Que grande companhia! Os selvagens dos filhos do Saga, os remelentos do Shura e aquelazinha.
– Deixa de ser ciumento, Dite. A moça é linda, espertíssima e adora nosso filho. Vai dar tudo certo.
– O Dante é tão ingênuo, Hô.
– Ele é, mas foi para isso que o criamos, não?
– Sim, acho que sim. Criamos o garoto para ser criança para sempre. Às vezes sinto até remorsos.
– Eu não. Gosto de pensar que o Santuário é uma redoma de vidro. Que aqui dentro nossa rosa de estufa nunca vai precisar entrar em contato com o que há de pior nos homens. Não vai haver outra guerra tão cedo. Se houver, Zeus queira que ele não precise lutar. Ele vai ser puro, ingênuo e inocente. Para sempre.
– Eu também gosto de pensar que ele está... De alguma forma... Preservado.
– Então? Para que os remorsos?
– É... Mas não são as dificuldades que nos ensinam na vida?
– Vamos deixar nosso filho só aprender coisas com amor. Como ele tem aprendido até aqui.
O canceriano ainda estava dizendo isso quando o filho passou como um foguete por eles e voou no colo de Afrodite, que quase caiu com o peso do menino.
– Filhote...
– Pai... Pai, eu ainda amo você, mais que tudo... Se você for ficar muito triste, eu não vou... Eu fico com você... Tá?
– Filho... Eu...
Máscara da Morte puxou o menino do colo, ajeitou os cabelos ruivos bagunçados e deu um tapa de leve na bunda do menino.
– Passa fora logo, garoto. Vai se divertir.
– Tá... Mas o distrai o Mozinho para mim, Hô?
– Pode deixar... Agora vai, sua menina está te esperando...
– Ah, é... – ele secou os olhos com as costas das mãos. – Mas eu disse a ela que eu vinha e pedi pra me esperar lá embaixo.
– Vai sim, neném... – Afrodite beijou a testa do filho. – Vai sim. Se diverte muito e depois me conta tudo...
– Conto, pai! Assim que voltar te conto!
– Tchau, meu filho...
– Tchau, pai!
– Viu o que eu te disse, Dite? Olha como você estraga o menino! Nem saiu do Santuário já correu pra barra das túnicas do 'papai'...
– Olha só! Você está com despeito porque foi no meu colo que ele pulou!
– Não seja ridículo... Pisciano velho caduco...
– Velho é você... Olha pra sua cara murcha, canceriano! Seu filho vai para boates e você fica em casa tomando chá com seu marido... Tsc, tsc... Daqui a pouco até crochê vai estar fazendo...
– Crochê, é? Aquele que a gente faz com uma agulha bem grande?
– Não, isso é tricô... A agulha do crochê é afiada... Pica...
– Mmm... Agulha que pica... Já está ficando interessante...
– Eu acho que você leva jeito para manusear as agulhas, Hô...
– Eu tenho uma certa experiência...
– É mesmo? Eu posso ver?
– Vamos lá pra cima que eu te mostro...
– Oba...
— # —
A medula de Dante teve preço. O baú de jóias que Afrodite herdara da família. Recebeu um fax seco e direto do irmão, informando-o de que a medula da sobrinha estaria à disposição, tão logo o pagamento fosse efetuado. O irmão o esperaria com a mãe em Trallebörg, na sede da família, para que ele conferisse o baú, peça por peça. A mãe estaria junto para confirmar se faltava alguma jóia da coleção – se Afrodite tentasse ser esperto, nunca mais chegaria perto da medula da menina que estava para nascer. Afrodite não esperava muito da sua família – na verdade, não esperava nada. Mas a frieza com que negociaram e puseram preço na vida de seu filho o fez ficar de sangue fervendo. Voou para a Suécia, com o baú de suas mais queridas jóias, queimando por dentro. A 'negociação' foi concluída. A medula foi transportada de Estocolmo até Atenas.
— # —
– Vocês vão pensar que ele está morrendo. Ele vai ficar muito mal, tão mal quanto agora, talvez pior. Mas a carga de quimioterapia vai ser muito intensa, para podermos proceder com o transplante.
– E... E se o meu filho não resistir?
– Essa possibilidade existe. Mas se ele não resistir, não vamos poder fazer nada. É preciso que vocês compreendam – sem medula, Dante vai morrer, de um jeito ou de outro. Se ele não suportar a quimio, não poderá fazer o transplante.
– Meu filho é muito forte. Ele tem resistido a poucas e boas, doutor. Ele vai agüentar. Eu garanto.
– Pois bem, senhor Vündhegen, eu acredito que com sua ajuda, o menino Dante sobreviveria até mesmo a uma hecatombe nuclear... Mas vocês precisam ficar ao lado dele.
– Nós vamos ficar.
– Nos chamamos esse período de "regime condicionamento". Os efeitos colaterais não são de todo novos para vocês, mas serão muito acentuados. Provavelmente, Dante será estéril.
– Como assim?
– Nunca terá filhos.
– Meu neném? Mas... Isso é certo?
– É quase uma regra. Existem exceções. Mas não muitas.
– E o que mais?
– Náuseas, os vômitos, diarréia. Mucosite... A mucosite é muito dolorosa para o paciente, impede que ele se alimente normalmente. Vão ter que ter paciência, podem haver sangramentos. É possível que o tratamento afete as funções cardíacas – de maneira fatal. Problemas hepáticos, alguns também fatais. A radioterapia corporal total também pode causar a pneumonia intersticial idiopática e...
– O que é isso?
– É uma doença com elevadas taxas de mortalidade. Há também a possibilidade dele desenvolver ascite, icterícia e eventualmente encefalopatia. Todas causadas por problemas de fígado. E, por fim, há também que se considerar a possibilidade de distúrbios neurológicos.
– Ou seja: o transplante vai terminar de matar meu filho?
– A doença que seu filho tem é muito agressiva, senhor Vündhegen. Não há outra maneira de tratá-la. Ou matamos todas as células doentes ou a medula não será de utilidade alguma para o menino.
– Mas tem que ser tão agressivo assim? Quais são as chances?
– Depende muito, de caso para caso. Mas, devido às condições de saúde de Dante e o progresso da doença, estimamos cerca de 20 a 33 de chances de cura.
– Só? Trinta e três por cento? É só isso? Quer dizer que o meu filho vai passar por todo esse inferno por causa de míseros trinta e três por cento de chances de ficar curado?
– O senhor quer desistir? Podemos tratá-lo com alguns medicamentos para evitar dor excessiva e esperar que ele morra das complicações decorrentes da destruição da sua própria medula pela ação das células cancerígenas.
– O senhor não tem filhos, não vai entender... Mas eu quero tentar tudo para salvar o meu menino...
– Então estejam por perto e sejam fortes. Muito fortes. Porque ele vai precisar.
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Dante ficou muito fraco durante o regime de condicionamento. Na cama, ele mal tinha forças para mexer os dedinhos. Mas quando Afrodite estava perto, ele forçava um pequeno sorriso. O sueco sabia o valor daquele gesto – porque seu filho considerava a presença dele tão preciosa, que queria recompensá-lo com seus sorrisos, por mais falsos que fossem naquela situação. Assim, Peixes sentava-se ao lado da cama do filho, segurava os dedinhos gelados e lia estórias bonitas e com finais felizes, enquanto ele se remexia de dor na cama. Ele não abandonou a cabeceira do menino – nenhuma vez – até o momento da cirurgia. De todos os problemas que ele poderia desenvolver, Dante simplesmente desenvolveu todos. Os médicos julgavam a resistência do menino em sobreviver a crises e mais crises de infecções, sangramentos, distúrbios hepáticos e dores um verdadeiro milagre. Máscara da Morte e Afrodite, que conviviam com a agonia diária do filho, sabiam muito bem o custo daquele milagre. E houve noites em que Afrodite desejou não ser tão egoísta para pedir aos deuses que levassem seu menino embora, antes que sofresse mais.
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O pós operatório não foi muito diferente do regime de condicionamento. As reações eram mais ou menos as mesmas. A Casa de Peixes foi reformada pra receber Dante. Afrodite dispensou enfermeiras e babás – preferia tomar conta do menino ele mesmo. Enterrou-se na casa por meses seguidos. O filho logo desenvolveu crises convulsivas. As reações renais foram horríveis. Para evitar danos ao fígado e as infecções que eram comuns no pós-operatório, Dante tomava remédios. Afrodite mandou fazer um quarto especial para o filho, que dava vista para o mar, com enormes bancadas de mármore que ficavam apinhadas de remédios. Os marceneiros do Templo fizeram divisórias como pequenas gavetas, com tampas de vidro onde Afrodite escrevia com caneta marcador os horários de cada remédio, o nome e para quê o menino tomava aquilo. O sueco também mandou fazer uma cama para ele ao lado da cama do filho. Durante meses, ele não se deitou ao lado do homem que tanto amava. Depois de quatro meses, Afrodite instalou câmeras no quarto do menino e visores no seu próprio quarto. Assim, mesmo dormindo com Máscara da Morte, ele conseguia vigiar o menino o tempo todo.
Máscara da Morte reconheceu que, durante seis meses, Afrodite foi exclusivamente pai de Dante – e mais nada. Via o sueco enfiado no quarto, com bacias, bandejas, comida, babadores e remédios. O via ajoelhado no colchão perto do filho, massageando o corpinho do menino – cansado de ficar deitado, parado, os músculos jovens e tenros se atrofiando por falta de uso.
Quando Dante pôde sair do seu quarto, Afrodite passava tardes inteiras sentado com o filho no colo, no jardim de inverno de Peixes; ele, Máscara da Morte, se encarregava de manter a casa funcionando e de ficar junto do menino e do seu sueco. Era ele que ia para banheira de hidromassagem todos os dias trabalhar os músculos da criança. Dava-lhe prazer ver cada progresso de Dante.
Depois de algum tempo, Máscara da Morte passou a dar 'escapadas' ocasionais. Sentia-se miserável e cretino por procurar parceiras quando o seu sueco estava em casa, cuidando do filho doente. Mas não resistia aos seus desejos. Fazia sexo com culpa, muita culpa. Ainda mais porque sentia que Afrodite sabia. Não suportava ver o seu pisciano vaidoso e lindo como ele estava agora: desleixado e mal arrumado. Afrodite emagreceu, as suas primeiras rugas ( mantidas longe à custa de cremes caros e massagens ) apareceram, ele não se vestia mais com o mesmo cuidado, não se perfumava e seus cabelos ficaram secos e quebrados – estavam sempre presos por uma trança, trança que virava coque. Até o dia em que apareceu em casa com cabelos na altura do pescoço, muito lisos. Tinha feito escova progressiva e cortado os cabelos, porque já não tinha tempo para cuidar dos cachinhos que Máscara da Morte tanto amava e com eles curtos e lisos, perderia menos tempo se arrumando e teria mais tempo para o filho.
Óbvio, o canceriano o apoiou e disse que ele estava lindo. No fundo, odiou perder os belos cabelos do amante. Dante chorou uma semana inteira pela falta dos cabelos do pai. Dizia que a culpa era dele e que ele não merecia um sacrifício daquele tamanho. Mas toda vez que Dite segurava o seu menino, apertava junto do peito e o ouvia rir, ele sabia – Dante valia todos os sacrifícios do mundo. Valia muito mais do que ele pudesse dar. E se ele sofria e Máscara da Morte também, ninguém sofria mais do que Dante.
Só oito meses depois da cirurgia é que a vida deles começou a voltar ao normal. Depois de fazer amor com Afrodite pela primeira vez em meses, Máscara da Morte chorou como um bebê e confessou cada uma das suas escapadas, muitas, mas menos do que imaginara o pisciano. Afrodite o consolou, disse que sempre soube e que no fundo não ficou tão magoado, entendia. No fundo, no fundo mesmo, não entendia droga nenhuma e sofreu como um cão por cada mulher que tinha passado pelas mãos de seu homem, mas achou que ele também valia mais do que isso e que podia ignorar as escapadelas de Máscara da Morte pelo pai maravilhoso que ele era e pelo homem que sempre esteve ao seu lado, que mesmo dormindo com vadias nunca deixara de cobri-lo de carinho, mimos e atenção. Oito meses era, afinal, muita coisa para um homem com fogo nas calças como seu canceriano.
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Dante aos poucos voltou a freqüentar a escolinha do templo. Saga substituiu os treinamentos de cavaleiros por sessões de fisioterapia na praia. Ele, o pupilo e a filha – porque Allyanda se mostrou uma enfermeira muito competente e um estímulo para a recuperação do menino. Os cavaleiros estavam sempre ansiosos em ajudar: Aldebaram com seus 'contrabandos' comestíveis para Dante, Mu e Shaka com seu auxílio espiritual e calma – ensinaram o elétrico menino a meditar e se concentrar. Camus continuou com suas árduas aulas de francês e Miro tentou ser mais agradável. Shura fingiu não notar que as vidraças de Capricórnio estavam sempre quebradas e Aioria se encarregava de levar o ruivo ao cinema, sorveterias e passeios pelo "mundo exterior". Todos se empenhavam ao máximo em ocupar Dante porque assim Máscara da Morte e Afrodite podiam descansar um pouco e arrumar a casa, limpá-la dos vestígios da doença. E, é claro, isso dava tempo ao casal de retomar uma vida sexual e emocional que estava em frangalhos.
Enquanto o pequeno Dante – já nem tão pequeno assim, mas ainda muito magro – ia ao cinema com Aioria, aos museus com Miro e Camus, às feiras com Aldebaram e à praia com Allyanda e Saga, Afrodite e Máscara da Morte faziam amor. O canceriano se acostumava com os fios desenxabidos daquele cabelo que já tinha sido a visão mais alegre da sua vida. O pisciano esforçava-se em engolir a mágoa das traições; para ele, talvez mais do que para qualquer um, aceitar a traição era sofrido. Durante os dias em que puderam ficar juntos, quando o menino passeava, Afrodite percebia na paixão dos gestos e na urgência de Horemheb na cama, o quanto ele devia ter sentido falta daquilo quando estiveram separados na mesma casa. Não que ele também não sentisse – isso era um ponto contra o canceriano. Mas afinal, ele amava Horemheb mais que tudo e sentia que, com o tempo, seu coração assimilaria a mágoa. E, se mesmo assim, o coração não desfizesse a mágoa, ele ainda preferia aquela dor à separar-se de Horemheb: isso sim, seria insuportável. Além do mais, contava pontos em favor de Máscara da Morte que ele nunca fora, naqueles oito meses, descuidado ou negligente das suas obrigações de pai, estava sempre por perto, sempre ajudando. Quando Afrodite estava cansado, ele tomava o lugar. Quando o pisciano não tinha cabeça, ele cuidava da casa, da comida, das roupas e de tudo mais. E quando o sueco estava no limite das suas forças, ele sempre arrumava uma surpresa: enfeitava a casa de rosas, preparava um jantar especial, um passeio de carro para o menino ver o mar, mesmo de longe. Afrodite sabia que muitos homens faziam coisas por obrigação moral, mas não era o caso de Máscara da Morte: ele amava o filho e amava-o também. Não era apenas uma questão de perdoá-lo, mas de méritos – Horemheb merecia ser perdoado.
E aos poucos, a mágoa morreu. A vida de ambos foi voltando ao normal. Dante voltou para o quarto dele e deixou a 'CTI' improvisada pelo sueco. O cabelo de Afrodite cresceu, cacheado. O cabelo de Dante também. Máscara da Morte se perdoou também pelas traições e voltou a sorrir e ser espontâneo. O tempo é senhor de todas as coisas.
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– Também tenho um presente para você, Hô... – sussurrou o sueco, desvencilhando-se delicadamente do corpo sobre o seu.
– Presente? Pra mim? E eu mereço isso tudo?
A voz do canceriano era jocosa, mas Afrodite sabia exatamente o que ele queria dizer. As luzes trêmulas das velas no quarto eram mais do que suficientes para que o sueco visse – era a culpa. Máscara da Morte nunca deixou de se sentir culpado, ele conhecia muito bem aquele olhar.
– De que adianta eu te perdoar se você nunca vai se perdoar, Horemheb? Eu já disse que não me...
– Se você tivesse feito isso comigo, eu nunca ia te perdoar. Você está entendendo, Dite? Eu não consigo entender porque você me perdoou. E tão rápido...
– Eu te disse que te perdoei, mas não que eu esqueci. E muito menos que não doeu... Ou dói...
– Dite, eu...
– Eu sei tudo o que você tem para me dizer: eram vagabundas. Você ia a um prostíbulo, pagava, elas faziam o serviço, você ia embora aliviado, eu sei, eu sei de tudo isso.
– Elas não significavam nada para mim. Eu sempre amei você.
– Esse é o único motivo para eu não te mandar embora quando você em contou. Eu sei que você me ama. Você e... Depois de você, meu filho... Foram as únicas pessoas que realmente me amaram. Que se importaram comigo e com a minha felicidade e que sempre estiveram ao meu lado. Não vou jogar isso fora por nada. E você merece esse presente. É uma coisa que eu prometi que ia te dar. Demorou, mas está aqui.
– Está bem pega lá o presente então... Vou falar que nem nosso filho: "é de comer"?
– Não, não... – riu o pisciano já de pé, remexendo as gavetas – Não é de comer... É de olhar.
– Só olhar?
– Só olhar.
Ele achou a caixinha e veio com ela até a cama. Entregou nas mãos do amante. Máscara da Morte abriu a caixinha de veludo e riu. Gargalhou. Deu um tapa na bunda nua de Afrodite sentado a sua frente, maroto, ajeitando com os dedos os cachos de cabelos azuis.
– Eu sabia que você ia fazer isso...
– Gostou?
– Aposto que você escolheu o jeito mais difícil de fazer.
– Pode ter certeza. O mais difícil e o mais doloroso.
– Mas é um belo presente.
– Lindo. Mas foi chato.
– Chato?
– Ela ficou quieta, mas ele gritou muito, pediu pela vida... Um covarde. Não deu nem gosto. Pra alguém que fez tanto mal pro meu filho, ter os olhos arrancados é pouco, não é?
– É... – Máscara da Morte encarou o presente, dois pares de olhos verdes que o encaravam, esbugalhados, na caixinha. – Os suecos tinham mesmo os olhos parecidos com os do moleque...
– É... Eu pensei nisso na hora.
– Arrancou os olhos enquanto estavam vivos?
– Claro! Se estivessem mortos e sentindo nada, qual seria a graça?
– Vai deixar o Dante saber que você os matou?
– Ele não precisa ficar sabendo.
– Você veio com uma caixa grande, que eu vi...
– Aquele que se diz meu pai me ligou e me disse que o Lars ia viajar com a família e que tinha deixado a caixa com as minhas jóias no cofre da sede. Ele disse que se eu fosse lá, ele abriria o cofre para mim.
– Seu pai não é podre de todo.
– Deu pra ficar mole agora, Hô? Ele é um merda. Mas ele queria que eu ficasse com as jóias – jóias que eram da mãe dele, da minha avó por parte de pai! Aí eu fui lá e peguei. Esperei Lars voltar e dei-lhe uma coça de criar bicho. Dei tanta porrada nele – o máximo que eu podia dar sem matar o infeliz. E falei, para ele e para mamãe que quem manda na porra daquela casa sou eu. Eu sou o cavaleiro e ponto final. Não é porque eu sou manso com meu filho que todo mundo pode ir trepando nas minhas costas, o que é que há? Não comi Lars na porrada antes porque eu precisava da medula do meu filho e estava ocupado evitando que ele morresse. Mas agora acho que vão ficar mais mansinhos naquela casa.
– Adoro quando você faz assim, Dite... É assim que eu me lembro de você bem novo, jovem, quando a gente se conheceu. Cruel, debochado... Confiante. Foi por aquele moleque abusado, arrogante, sádico que eu me apaixonei. Antes de ser o homem que eu desejei, você foi o homem que eu admirei. E invejei. Eu sempre quis ser como você.
– Eu também te admirava. Te achava o máximo, Hô. Você era sujo, grosso, mal educado... Não tinha pena de ninguém, piedade por ninguém e era forte. Não porque tinham te ensinado, mas porque você era. Você era uma beleza natural, um animal indomado. Todos os cavaleiros morriam de tesão por você – todo mundo ficava enfeitiçado, cheio de fantasias imaginando se iam conseguir domar e pôr de quatro o "brutinho assassino" como dizia o Miro. Mas eu te pus de quatro por amor. Você foi meu porque quis.
– E continuo querendo... E vou querer sempre. Ser seu. Só seu.
– Hô... Já imaginou quando a gente ficar velho?
– Você vai ser um velhinho lindo...
– Você vai gostar das minhas pelancas?
– Vou. De cada pedacinho delas... Até quando você babar e precisar tomar oito remédios por dia, ainda assim vou te amar. Até quando você precisar usar fraldão geriátrico e ficar com a boca murcha...
– Que nojo, Horemheb... Eu não vou te amar quando você ficar de boca murcha!
– Ah, é? O que você vai fazer então?
– Vou pagar garotos de programa jovens e lindos para me satisfazer... E se você for um velhinho bonzinho e não fizer xixi na sua cama, eu pago um feioso, mas jovem, pra você se divertir um pouco também...
– Eu não quero. Eu quero você.
– Bobo... Bobo... Eu também só vou querer você... Só você... Meu velhinho babão...
– Nenhum garoto de programa chegaria aos seus pés. Eu te vi brilhar, Afrodite... Nunca houve nem haverá um homem tão bonito quanto você.
– Nem nunca haverá um homem tão bom quanto você, Horemheb. Você é um prêmio.
– E nosso menino, Dite? Será que finalmente hoje ele se livra da virgindade? Estava lá no banheiro, me perguntando se era difícil achar o "buraco" em uma mulher!
– Não ri, Hô! – Afrodite deu um tapa nos ombros nus de Máscara da Morte. – Não faz assim, tadinho do nosso filho!
– Tadinho mesmo! Você protegeu tanto esse menino que agora ele nem sabe o que todo garoto já nasce sabendo!
– Você acha que eu o protegi demais?
– Nem uma revista de mulher pelada! Nem uma única fêmea sem roupa! Nem aulas de anatomia... Como é que o garoto vai saber?
Afrodite suspirou, beijando os ombros de Horemheb.
– Eu queria ter netos...
– Nosso filho não pode ter filhos. Ele ficou estéril. E biologicamente nós juntos não poderíamos ter filhos e eu duvido que alguém tenha uma família tão feliz quanto a nossa. Dante pode adotar uma criança.
– Horemheb, eu queria que fosse parecido com ele.
– Se dê por feliz que ele está vivo...
– Já pensou a gente avô?
– Ia ser engraçado! Vovô Dite...
– Moleques pela casa toda! Menininhas ruivas! Vovô Máscara da Morte!
– Que coisa bizarra! Dio Mio! Minha mãe ia ficar horrorizada!
– Por que? A gente ia ser VVV...
– VVV?
– Vovô Veado Velho!
– Pára, Dite!
– Vovô veado! Já pensou? Pobres dessas crianças! Se um veado já é uma coisa feia, imagina um veado velho, que horror?
– Se a gente gostar delas como gosta do nosso filho... Felizes delas!
– Felizes delas... Bom... – Afrodite sacudiu os cabelos insinuante. – Já descansou? Está pronto para a próxima?
– Já. Só queria fazer um lanche antes...
– Que tal depois?
– Pedindo assim...
— # —
– E foi bom?
– Ah, isso é clichê! O que você quer beber? Não tem cerveja.
– Meu pai não ia me montar um quarto com frigobar e pôr cerveja, né, Allyanda?
– Mmm... É mesmo... Mas tem suquinho de uva, serve?
– Serve, trás...
A jovem sentou-se nua na cama, com a latinha de suco e entregou-a ao menino.
– Você não disse se foi bom. – ele riu. – Fui o melhor da sua vida?
– Claro que não! Você tem quinze anos e era virgem...
– Poxa, Allyanda...
– É a verdade. Você é inexperiente, com prática vai fazer melhor.
O olhos verdes a fitaram.
– Mas não foi ruim, foi?
Ela tapou os lábios dele com o dedinho.
– Eu te amo, Rafael.
– Eu te amo. Lísias.
– Só você sabe meu nome de feiticeira. Nem minha mãe ouviu ainda.
– Lísias e Rafael. É bonito.
– Psss... Você ouviu? Eu disse que te amo...
– Eu também te amo, Allyanda. Acho que desde de que eu nasci...
– Você é maravilhoso, Rafael... Você é tenro e gostosinho...
– Você também... – ele respondeu, vermelho. – Mas você já teve tantos namorados...
– Eu nunca tive um namorado, Rafael... Pare de se fingir de morto, como o meu pai. Eu não sou virgem desde os doze anos. E fiz isso porque é parte do meu ofício de feiticeira... Você não treina para ser cavaleiro? Eu também treino as artes do amor porque é assim que deve ser. Eu procuro parceiros e treino. Não tem nada a ver com amor. Eu nunca tive um namorado. E nunca terei outro além de você...
– Mas você já teve muitos meninos...
– Mas nunca tive um amor. Só você.
Ele subitamente começou a chorar. Pousou a cabeça na junção do pescoço e ombros da feiticeira.
– Por que, Allyanda? Por que não fizemos amor antes? Por que você me rejeitou até hoje?
– Rafael... Você é tão puro... Tão inocente... Eu não queria... Não queria destruir sua pureza... Você era só um menininho... Você ainda é tão menininho!
– Você me acha criança, como todo mundo!
– Você é uma criança, Rafael... Isso é tão lindo... É o que eu mais amo em você – sua ingenuidade... Por que você iria querer perder isso? Você ia querer ser adulto? Aos quinze anos? Por que? De nada vai te servir ser adulto e você ia ser menos feliz se visse o mundo como ele realmente é.
Ele secou as lágrimas com as costas das mãos.
– Mas a sua mãe parou de ter outros homens quando se casou com Mestre Saga...
– Ainda está pensando nisso? Isso é uma coisa tão boba! Minha mãe fez isso porque meu pai fingia não entender o que significava o sexo para uma feiticeira... E minha mãe já era uma sacerdotisa experiente quando se casou. Eu não. Eu quero ser experiente. Eu quero dominar todos os aspectos da arte.
– Se a gente se casasse, você pararia?
Allyanda beijou o rosto do menino todo. Ele era lindo. Lindo.
– Se fosse importante para você, pararia.
– Eu achei muito louco a gente voar de vassoura da boate até aqui, sabia? – ele riu, aliviado.
– É? Animar objetos inanimados é das coisas mais fáceis de se fazer, Rafael. Ouviu? – ela riu. – Se você ficasse broxa, até isso eu poderia consertar!
– Allaynda... Você acha mesmo que praticando eu seria muito, muito bom de cama?
– Você está sempre pesando em coisas bobas... Eu já não disse que amo você?
– Não é a mesma coisa! Isso é importante para um homem...
– Você está impossível hoje... Acho que praticando qualquer um fica melhor. Mas você ainda mais, porque você tem um talento natural para coisa... Você mexe os quadris muito bem, você só é rápido demais. Mas é normal quando não se tem experiência...
– Você não fingiu, fingiu?
– Não! – ela gargalhou, para ficar séria no instante seguinte. – Claro que não. Eu não precisei fingir: eu esperei por esse dia por tanto tempo, Rafael... Tanto quanto você...
– Então vamos fazer amor outra vez? Dessa vez eu deixo você ficar por cima...
– Ah! Vai deixar a profissional fazer o trabalho dessa vez! Sábia decisão!
– Meu pai sempre disse que quando você deixa a mulher ficar por cima é o começo do fim. Eu até ouço o Mozinho falando "se uma mulher experimenta o poder, ela não larga mais. Dá um dedo de confiança para ela e amanhã você já anda de cabresto. Mulher é uma raça ruim!"
– Seu pai tem toda razão! Mulheres não foram feitas para ouvir ordens, mas sim para comandar...
– Você vai me deixar fazer tudo hoje? Vai... É meu aniversário...
– Sei o que você quer dizer com esse 'tudo', pervertido... Mas vá... É seu aniversário... Eu deixo... Mas você ia precisar de duas vidas para eu te ensinar tudo o que eu sei...
– Metida... Me ensina o básico, eu me dou por satisfeito...
– Não quer os pirotécnicos? Tem uns que nem em filme pornô fazem melhor...
– Os especiais eu quero também... Aqueles de revista de sacanagem, aqueles que você lê e diz: "ca-ra-ca!".
– Desses eu sei um monte!
– Então vamos gastar todas as camisinhas que o Hô me deu...
– Vamos impressionar o seu papai, então...
— # —
– Psss... Mozão? Cheguei...
– Vem cá, filho... Deita aqui... – Máscara da Morte resmungou, a cara enterrada no travesseiro. Dante, já de banho tomado e com a calça de pijama de seda que Afrodite mais gostava, deitou-se entre os pais. Afrodite dormia a sono solto, os cabelos azuis espalhados pelo travesseiro. – Como foi sua noite, moleque?
– Foi demais, pai.
– Deu duro na feiticeira? Fez ela gritar?
O riso abafado do menino fez Máscara da Morte ter vontade de chorar de felicidade.
– Quem gritou fui eu, velho...
– Então se divertiram mesmo, hein?
– Diverti, pai.
– E a boate?
– Dancei muito!
– Não bebeu, não é? Nem fumou? Essas coisas estragam você por dentro.
– Não, pai. Só dancei e beijei.
– Você é um bom garoto...
Acariciou os cabelos do menino, encostado nele. Estava escuro, mas sentiu as mãos do filho tatearem buscando Afrodite. "Acorda, paizinho... Eu cheguei..."
Afrodite se sacudiu no travesseiro, ainda de costas.
– Já ouvi, você fez barulho demais...
– Pai, você nem me perguntou como eu estava...
– Eu ouvi você contar pro Hô. Estou com sono... Sabe há quantos dias não durmo por causa da festa?
– Deixa de ser manhoso... – o menino jogou o peso do seu corpo sobre o do pai, beijando-o no pescoço. – Fala comigo, pai... Fala...
Afrodite puxou o braço do menino por sobre ele, entrelaçou suas mãos às de Dante.
– Filhote... Você não muda... Como foi?
– Foi tudo ótimo... Segui os conselhos do Hô e deu tudo certo!
– Hô é muito bom com as mulheres...
– Você também, pai!
– Eu também... E a bruxa? Foi carinhosa com você?
– Foi, pai.
– Então fica calminho e dorme... Dorme com a gente.
– Não incomodo?
Afrodite riu.
– Você nem cresceu tanto assim... Não incomoda...
Dante se embrulhou entre eles e ficou. Já era bem tarde, madrugada e ele cochilou um pouco. Quando estava se virando, deu uma cotovelada de leve em Afrodite. Então, percebeu que já não era tão neném e que mesmo a cama imensa dos pais estava pequena pra três homens deitarem juntos. De leve, tocou o ombro de Máscara da Morte: sabia, pela respiração, que o velho canceriano não dormia pesado.
– Velho, dei outra cotovelada no Dite... Vou pro meu quarto...
– Fica... – Horemheb puxou o menino pelo peito, apertando-o. – Não incomoda.
– Não, Hô... – Dante beijou a testa do pai. – Eu vou...
– Que Osíris te guarde, meu menino.
– Eu te amo, Horemheb...
– Também te amo, moleque.
O ruivo puxou um dos dedos de Afrodite. "Pai, vou pro meu quarto."
– Sono, Dante... Sono...
O menino passou por cima do pisciano e saiu do outro lado da cama. Beijou de leve a bochecha rosada do pai sueco e ia saindo do quarto quando Afrodite de pronto esticou-se na cama, acendendo o abajur no criado mudo.
– Ia sair sem falar comigo? Filho ingrato!
Dante voltou logo, ajoelhou-se do lado do pai, segurou o belo rosto entre as mãos.
– Que foi, Peixinho? Ciúmes?
– Meu principezinho...
– Te amo... Te amo, pai... O Hô é meu paizão, meu herói... Mas você... Você é meu amor... Meu amor...
– Dantezinho... Você também é meu amor...
– Eu vou pro quarto, pai...
– Vai, amor... Que a Deusa olhe por você...
– Vai olhar... – beijou a testa do pai novamente. – Que a Deusa olhe por você também...
Dante saiu do quarto e passou pela sala. A parafernália da festa ainda estava por toda a parte. A máquina que imprimia as fotos das máquinas digital de Afrodite despontava orgulhosa sobre a mesa, cercada de fotos e garrafas de champanhe. Dante se sentou no sofá e começou a rir das fotos. Parou em uma ampliação: a foto da entrega da armadura. Ele no meio, Máscara da Morte atrás dele e Afrodite na frente, o trio vestido em armaduras douradas.
– E então? Pronto? – a voz feminina, que vinha do hall, não assustou o menino ruivo.
– Você está aí.
– Pensei que a gente tinha um encontro marcado, Dante Rafael.
– E temos.
– Está preparado para ir?
– Me dói deixar eles dois. Me dói muito, não pensei que fosse doer tanto...
– Eles vão agüentar.
– Vão. Bom... Está na hora de ir embora. Vamos, então?
– Não vai se despedir deles?
– Já me despedi. Mais ou menos. Acho que...
– O que?
– Vou deixar uma rosa para o Hô.
– Mas por que uma rosa para Horemheb?
– Porque eu e o Dite, a gente sempre se entendeu. A gente é parecido. Mas o Hô, não. Ele tem o jeitão dele, todo duro, caladão; mas ele é muito querido, como o Dite. Só porque eu digo isso mais pro Dite, não quer dizer que eu também não ame o Hô...
– Entendi...
Dante virou para cima as palmas das mãos e se concentrou. Não era a primeira vez que fazia isso – uma rosa daquele jeito. Mas fazia tempo. Depositou o resultado do trabalho do seu cosmo sobre a mesinha. Tinha certeza de que Horemheb saberia que a rosa era pra ele.
– Vamos, então? Está amanhecendo, logo eles acordam.
– Vamos. Não quero deixar você esperando...
– Que gentil! Mas... Se você quiser desistir... Ainda tem tempo.
– Não vou desistir, a gente pode ir agora.
— # —
– Mmm... Adoro quando você acorda assim com beijinhos, Horemheb...
– Eu sempre te acordo assim, Afrodite.
– Ah, estou tão feliz... Deu tudo certo, a festa foi um sucesso, o luau foi perfeito e aposto que meu filho lindo brilhou na boate!
– E depois se deu bem com a filhota do Saga, que cá entre nós, é um pedaço de mau caminho!
– Como assim?
– Ela é linda.
– Linda? Aquela lá? É bonitinha... No máximo...
– Ah, Afrodite, que bobagem você está dizendo! É um mulherão!
O pisciano deu um tapa nos ombros de Máscara da Morte.
– Você anda reparando nessa menina, Hô?
– Não, mas eu tenho olhos! E além do mais, me orgulho do meu moleque! Só quinze anos e já tão bem servido de mulher...
– Você que diz... – o pisciano se espreguiçou como um gato entre os lençóis de cetim. – Esta cama está perfeita, o sol está brilhando lá fora está tudo muito bom, mas...
– Mas?
– Só falta uma coisa para ficar perfeito.
– O que poderia ser?
– Nosso menininho, Hô... Bem aqui, entre nós dois, para a gente comentar a festa, como sempre...
– A fofoca do paizinho e do neném, é isso?
– Fofoca quem faz é mulher; homem comenta. E qual é o problema de eu conversar com meu filho sobre a festinha dele? Ontem eu estava com sono e nem estou sabendo se ele gostou do quarto, se a boate estava animada, essas coisas...
– Tá, está bom... Põe seu roupão de seda e vamos até lá, acordar o neném... Se ele ficar chateado porque você acordou ele tão cedo depois da farra de ontem, não me culpe...
– Mmm... Que rabugento esse meu homem... – Afrodite depositou um beijo rápido nos lábios do amante, já amarrando o delicado roupão de seda branca. – Vem... Vamos juntos...
Os dois saíram do quarto, rindo. Em direção ao quarto do filho, pararam pela sala. Dante dormia enrolado no sofá branco.
– Olha, Horemheb... Que amor... Dormindo no sofá...
– Deve ter parado para ver as fotos e acabou desabando de sono aí mesmo... Coitado, estava cansado, agitação demais para ele...
– Tão bonito, Hô... Olha como dorme gostoso... Dá pena de acordar!
– Então deixa...
– Ah... Mas eu queria!
– Então vai lá, eu vou buscar um copo d'água na cozinha...
O canceriano passou direto para a cozinha e Afrodite se aproximou do sofá onde o menino dormia. Ajoelhou-se e ficou admirando. Os traços bonitos, cabelos despenteados. Estava deitado de barriga para cima, um braço jogado sobre o tronco, o outro pendendo solto ao lado do sofá, a mão no chão. A cabeça apoiada no braço do sofá. Achou-o lindo. Lindo – seu coração amoleceu, o filho parecia tão desprotegido. Ia puxar o braço do menino que descansava sobre o peito, ainda lisinho, mas ficou observando. O braço não se mexia. Uma braço pousado sobre o peito devia subir e descer, junto com a respiração do menino. Mas o braço estava parado. Estático. Afrodite observou um pouco mais. O peito não se mexia.
O pisciano sentiu o sangue em suas veias parar de correr. Uma cratera parecia estar em seu abdômen. Esticou a mão para tocar o rosto do filho.
Frio.
Passou a mão pelo rostinho adormecido, com tapinhas delicados, mas já sabia: seu filho nunca mais ia acordar.
– Neném... Neném, acorda...
Afrodite olhava sua mão tremendo sobre o cabelo ruivo do filho e ouviu os passos de Máscara da Morte no corredor. "Não... Não, Zeus... Ele não vai agüentar..."
Levantou-se de pronto, mas devia estar tão pálido e tão trêmulo que Horemheb não demorou a perceber algo de errado. Só os deuses sabem o que se passou na cabeça de Afrodite, para achar que podia enganar o amante assim – e o que ele pretendia, já que era uma mentira que não poderia ser ocultada por muito tempo, mas o desespero o fez ter um pressentimento ruim e ele quis, logo, afastar Horemheb dali e de perto do menino.
– O que foi, Dite?
– Na-nada... Nada.
– Como nada? Você está tremendo... – ele desviou os olhos do amante e sua visão experiente concentrou-se sobre o menino. Levou apenas alguns segundos para notar o que Afrodite levara tanto mais tempo percebendo: o peito do menino não se mexia. – Dante... Meu filho...
– Hô, não, espera...
– Sai da minha frente!
Empurrou Afrodite para longe; foi até o sofá, puxou o corpo do filho até que ele estivesse no seu colo. Depois sentou-se, com o menino nos braços, olhando para Afrodite com os olhos mais aterrorizantes que o sueco já havia visto.
– Dite...Dite... Meu menino... Meu menininho...
– Hô...
– Meu filho! – o canceriano enterrou o rosto entre as perfumadas mechas de cabelos ruivos, chorando. Afrodite o acompanhou enquanto ele ninava o corpo inerte de Dante em seus braços como quem põe um bebê para dormir, choramingando. Depois de alguns minutos que pareceram anos, o sueco secou os olhos e murmurou:
– Hô... Vamos... Chamar um médico... Alguém...
Os olhos do amante voltaram-se para ele em fúria.
– Chamar alguém? Pra quê? Não está vendo? Ninguém pode fazer nada por ele. Sabe o que vão fazer com nosso filho? Retalhar o garoto e enterrar ele! Pra que correr?
– Mas, Horemheb... A gente não pode...
– É claro que pode! Ele é nosso!
– Horemheb...
– Não! Não!
Afrodite ainda protestou, flébil, mas Máscara da Morte estava fora de si. Gritou frases sem sentido e ainda agarrado ao corpo do menino, mandou que Afrodite se afastasse e correu ara o jardim de inverno, bradando que não deixaria que o pisciano lhe arrancasse o filho para ser "dilacerado".
Desnorteado, sobrecarregado com sua dor e a de Máscara da Morte, Afrodite pensou em chamar por ajuda. Shura estava mais perto, mas talvez não fosse o mais sensível para a tarefa. Pensou em Saga, mas ele estava mais longe. Então, o nome de Camus lhe passou pela cabeça como o de um salvador. Sim, era seu salvador. Máscara da Morte podia não amá-lo como amigo, mas o respeitava como cavaleiro e era isso que importava.
Enquanto, em choque, descia as escadas para Aquário, sentia o cosmo de Horemheb crescer como uma espécie de campo de força. "Ele está se defendendo..." pensou o pisciano. Não precisou bater em Aquário, porque o ocupante da Casa já estava esperando por ele, agitado com as forças em Peixes. Afrodite não se deu o luxo de explicar nada, apenas agarrou o francês pelo punho e o puxou até a Décima Segunda Casa. Quando Camus chegou, encontrou Máscara da Morte cercado por círculos de poder, isolado no meio dos círculos, gemendo de dor.
Camus precisou de pouco mais de quinze minutos para se fazer ouvir. Mas neste curto espaço de tempo, Miro apareceu. Confessou ao francês que praticamente todos os cavaleiros já haviam se comunicado com ele perguntando o que estava acontecendo.
– O que disse a eles, Miro?
– A verdade: eu não sei. – replicou, olhos fixos na cena pavorosa que presenciava.
– O menino morreu.
– Mas... Do quê?
– Não sei. Mas Máscara da Morte não quer soltá-lo.
– Entendi.
– Prepare tudo, ligue para a mulher de Saga.
– Silmara?
– Ele tem outra mulher?
– Mas para quê?
– Ela vai saber o que fazer.
– Não era melhor um médico?
– Ele está morto, Miro. Para que serviria um médico agora?
– Está bem, vou ligar.
Quando Camus conseguiu convencer Máscara da Morte a entregar a criança, ele a tomou nos braços, cobriu com edredom branco que Afrodite trouxera do quarto e entregou para Miro. Mas antes mesmo que Escorpião deixasse a casa, Silmara e a filha, Allyanda, já estavam vindo. Cobertas de preto dos pés à cabeças, com véus compridos que lhes cobriam o rosto todo.
– Como vai enxergar se está com a cara tapada? – foi a primeira pergunta que Miro fez assim que as viu.
– Cale-se, impertinente... – Silmara o repreendeu, mas sua voz era suave. – Você sabe como nós nos vestimos na ilha. Quando alguém morre...
– Me lembro vagamente, pouca gente morreu durante o meu treinamento...
– O que, levando-se em consideração seu mau-jeito, foi um milagre. Anda. Me dá o menino.
– Vai fazer com ele aquela coisa?
– Claro.
Ele ficou pensativo, vendo-a passar o corpo para os braços da filha.
– Afrodite vai ficar contente. Ele achava o garoto tão bonito...
– Que pai não acha o seu filho bonito? Além do mais, Dante era mesmo um jovem muito bonito. Avise a Peixes que o garoto estará pronto em uma hora.
– E se eles quiserem uma autópsia, Silmara?
– Uma o quê?
– Ah... É quando abrem o corpo e examinam os órgãos para saber a causa da morte...
– Que coisa bárbara! Retalharem a criança! Por Hécate! Jamais permitirei. Há outros meios para se saber o que o matou. Certamente não foi assassinado, portanto não sei de que utilidade isso seria para os pais ou para qualquer um.
– Tem razão.
– Avise a Athena. Não me dou com ela.
Mesmo aturdido pelos acontecimentos, Miro não perdeu a oportunidade de fazer uma gracinha.
– Mas ela se dá muito com o seu marido.
– Por isso eu não me dou com ela. Avise-a. Ela é a deusa deste Santuário e é quem deve tomar todas as outras providências. Máscara da Morte e Afrodite não terão cabeça para isso.
– Eu aviso.
Em pouco tempo, a notícia grassou o santuário inteiro. A correria sucedeu a comoção. Os restos da festa do dia anterior estavam intactos. As flores, as luzes, os enfeites em prata. Athena foi rápida em preparar e utilizar o que sobrara da festa para o cerimonial do funeral. Nisso sim, ela tinha experiência – as guerras santas haviam trazido mortos em abundância e ela acostumara-se, infelizmente, a lidar com a morte e os mortos da melhor maneira possível. Enquanto tantos choraram, ela sempre esteve a frente. Shura dizia que ela era 'forte e previdente'. Saga dizia que ela era 'egoísta e fria'. Mas nem em divergências sobre o caráter da deusa, eles discutiam a capacidade de organização e a ligeireza com que Saori Kido fazia aquilo que dela se esperava.
Quando estava tudo mais ou menos certo, ela mandou Camus à Décima Segunda Casa para uma inglória tarefa que o Aquariano não pôde declinar.
– Afrodite... Como ele está? – perguntou tocando de leve no ombro do pisciano que velava, de joelhos ao lado da cama, o sono de Máscara da Morte, sedado.
– Calmo. Mas com o que eu dei para ele, até as paredes de pedra desse Santuário cairiam.
– E você?
– Eu? E eu sei de mim? – ele virou-se até encarar Camus, debruçado sobre ele, os cabelos cor de fogo balançando perto dele. – E o meu filho?
– Silmara e Allyanda estão com ele. – ele hesitou brevemente, Afrodite beijava, em lágrimas, os pulsos de Máscara da Morte. – Dite... Eu... Seria a última pessoa a querer estar aqui fazendo isso, mas... Eu tenho que te fazer umas perguntas. Você... Você está bem para responder?
– Não. Eu nunca mais vou ficar bem, então você pode perguntar.
– Athena... Ela perguntou se... Você e Máscara da Morte.. Se vocês vão querer fazer uma autópsia... O médico disse que talvez descubra a causa da morte, mas...
– O que importa? Meu filho está morto. Não quero que estraguem o corpinho dele à toa.
– Sim... Eu pensei que você fosse dizer isso... E, mais uma coisa... A Deusa mandou perguntar se... Vocês vão querer...
– Pare de gaguejar, Camus e fale logo.
– O caixão aberto ou fechado. E se quer tampo de vidro ou não.
Afrodite finalmente dignou-se a olhar para Camus.
– Vidro. Aberto.
– Eu vou falar com ela. Você... Precisa de alguma coisa?
– Preciso. Preciso do meu filho. Preciso que meu homem se levante. Mas meu filho está morto e meu homem imprestável. Quero ficar sozinho.
– Eu volto quando tudo estiver pronto, Afrodite.
– Por favor.
— # —
Afrodite se vestiu, de preto. Penteou os cabelos calmamente, sem entrar em pânico; calçou os sapatos finos, se maquiou. Usou as cores que o filho gostava – azul nas sombras ( para combinar com os cabelos ) e rosa bebê nos lábios. Natural e simples, do jeito que Dante achava mais bonito. Estava inda sentado à penteadeira quando Miro entrou, desajeitado.
– Dite... Eu vim porque o Camus mandou... Desculpa, a porta...
– Estava aberta. Pode entrar.
– Pensei que ia te encontrar histérico.
– Histérico... Era só o que faltava, eu ter um ataque desses agora.
– É, eu fico feliz que você esteja sendo forte, Dite... – o escorpiano passou os braços pelos ombros do amigo e beijou-lhe a bochecha. – Eu sei que você era muito louco pelo seu garotinho...
– Quinze aninhos, Miro... Quinze. Lembra quando a gente tinha essa idade?
– A gente era feliz, como todo moleque. Mas não como seu filho... Ele era tão protegido, tão querido... Lembra de como a gente detestava o Mu porque ele era o queridinho do Shion?
– É, meu filho é muito querido.
Miro abraçou Afrodite por trás.
– Desculpe, Dite... Eu tinha tanto ciúme do moleque... Eu gostava dele, apesar de implicar, você sabe como eu sou... Eu tinha tanta... raiva... Eu tinha medo do Camyu gostar da idéia de ter alguém entre nós também...
Afrodite segurou os braços de Miro ao redor das suas costas, retribuindo, de uma forma tímida o abraço.
– Miro... Miro... Você é tão bobo! Um filho não rouba o amor do seu homem! Ele cresce... Você tem um filho e você ama o seu filho e ele também te ama e quando o seu homem ama o seu filho, você fica feliz. Muito feliz. Mas não dá para explicar. Eu sei que você nunca foi mau ou destratou meu filho. Se você tivesse feito isso eu nunca te perdoaria. Eu entendia você porque antes do meu menininho chegar, eu pensava desse jeito também.
– O Camus, meu amor... Você, meu melhor amigo... De repente todos estavam enfeitiçados pelo moleque... Mas ele era fofo mesmo... Você deu seu toque Afrodite nele!
– Que nada... Eu... Eu não tenho nada a ver com o charme do meu filho. Era dele. Era uma coisa... De Zeus, não sei...
– E agora?
– Agora eu não sei... Eu tinha feito tanta coisa para ele... O quarto...
– Eu vi... Tão bonito...
– Ele nem usou... Passou uma noite nele, Miro! Uma só! Eu quarto que eu montei com tanto carinho! – as lágrimas que ele vinha tentando segurar vieram todas juntas – Só a deusa sabe com que sacrifício eu fiz aquilo! Me custou tanto! Fazer um quarto para separar meu filho de mim! Para ele ser independente!
– Dite...
– Você não sabe o que é isso! Quando eles nascem, eles roubam todo o seu tempo e seu espaço... Eu ficava desesperado, Miro! Você se lembra! Mamadeira, chupeta, babador, fralda, tudo misturado com meus perfumes, minhas maquiagens! Que raiva quando ele golfava nas minhas colchas importadas, nas minha bolsas de couro! Perdi a conta de quantas joguei fora por causa disso! Eu reclamava que não tinha tempo pra nada, espaço. Ele me invadia... Ocupava todo o tempo, chorava, sentia dor, fazia coco e xixi toda hora. Mas ele me amava... Ele só me queria perto, sempre. Só parava de chorar no meu colo, sorria pra mim! Eu segurava ele no colo e ele ria pra mim... Ele ia crescendo e ia pra baixa brincar. Eu ficava com o coração na mão, com medo dele cair e se machucar, mas assim mesmo, ele só brincava um pouco e voltava. Ele aprendia a falar, dizia meu nome... Queria a minha atenção integral! Me explicava tin-tin por tin-tin tudo que ele aprendia ou ouvia. Ele queria ouvir minha voz, chamar minha atenção. Ele me queria todo pra ele. Ficava sentado no chão da sala, tagarelando bobagens... Só pra ficar comigo!
Miro... Para uma criança pequena os pais são mais que deuses... Tudo que eu fazia era lindo, tudo que eu dizia era inteligente, todas as minhas brincadeiras engraçadas, eu era perfeito, corajoso, a mais íntegra e valiosa das criaturas de Zeus... Mas ele cresce, Miro! Os filhos vão crescendo... Daí quando você vê ele passa mais tempo na rua com os amiguinhos do que com você... A sua opinião que era soberana, ele passa a discordar. A ter uma opinião... O que você diz não é mais absoluto... Tem o que o 'pai de fulano' fala, o que 'beltrano' disse... Você não é mais o único... E aí é você que corre atrás dele pra perguntar como foi o dia... Você quer que ele te dê atenção, que ele olhe pra você com aqueles olhos de quem fala com Deus, mas ele nunca mais te olha daquele jeito... E você se pergunta pra que serve tanto tempo e espaço... Você queria seu filho te perturbando de novo! Precisando de você, querendo você por perto. Ele arruma uma menininha e o seu porta retrato sai da cabeceira da cama dele e vai parar longe... Ele que chorava e esperneava para dormir na sua cama todos os dias – agora você tem que ligar pra saber onde ele dorme! É assim, Miro... Me sangrava o coração fazer aquele quarto... Para só entrar quando eu fosse chamado... Eu! Eu que nunca precisei pedir licença pra estar com meu filho... Mas eu fiz. Eu fiz o maldito quarto! E meu filho só dormiu lá UMA vez! Uma!
– Afrodite... Você foi um pai muito bom...
– Sabe como eu sinto? Como um cara muito necessitado eu ganha o prêmio maior na loteria. E quando ele vai receber o cheque, descobrem que houve um engano e que o ganhador não era ele. Aí tiram o cheque das mãos do cara... Eu sou o cara, Miro. Eu recebi meu prêmio, mas eles tiraram de mim...
– Dite... O funeral... Você vai deixar o Horemheb aqui?
Afrodite olhou para a cama onde Máscara da Morte ainda dormia.
– Não, eu tenho que acordar ele... Ele não ia me perdoar se eu enterrasse o menino sem ele...
– Quer que eu te ajude?
– Não, é melhor eu ficar sozinho com ele...
– Vou te deixar... Vê se fica calmo e se precisar de alguma coisa, chama...
– Está bem, obrigado, Miro...
Quando Miro saiu, Afrodite apanhou seu frasquinho de essências que sempre usava para reanimar desmaiados. Deitou-se na cama e passou o vidro destampado pelo nariz de Máscara da Morte.
– Acorda, Horemheb. Acorda.
– Dite?
– Sou eu mesmo.
– Dante...
– Você sabe o que aconteceu. Levanta.
– Dite...
– Levanta, vem... Vão enterrar o nosso filho. Você não vai deixar ele ir embora sem dizer 'tchau', não é?
– Dite... – ele enlaçou o pescoço do pisciano.
– Eu sei, eu sei... Escuta: vamos ficar de pé, vamos descer e dizer adeus pra nossa criancinha. Depois a gente volta... E vamos ter a vida toda, muitos anos, para chorar nossa tristeza... Muito anos, meu amor... Entendeu? Mas agora ele precisa da gente ainda... Vamos descer... Vamos...
– Afrodite...
– Eu sei que você adora meu nome, mas não precisa repetir... Eu ainda estou aqui, do seu lado. Anda. Já separei sua calça, sua camisa, meias, sapato. Até um paletó. Está calor, mas... Nosso filho merece que a gente esteja bem arrumado.
– Eu vou... Eu vou me vestir agora.
– Isso, eu estou esperando.
— # —
–Vocês demoraram.
– Estávamos nos preparando. Eu e Horemheb. Queríamos estar muito bem aprumados para o nosso filho.
Athena forçou um sorriso delicado.
– Vocês estão muito bem arrumados.
– Sei. – Afrodite voltou os olhos para o caixão aberto. Se aproximou, puxando Máscara da Morte pelo braço. – Olha, Hô... Como ele está lindo! Chega a estar... Rosadinho, ainda...
Miro se aproximou deles por trás.
– São as bruxas – ele sussurrou, apontando para as figuras todas de negro no canto. – É o tal feitiço que elas fazem, conservam o corpo assim... Rosado e vistoso.
– Vivo... – Afrodite passou os dedos pelo rosto do filho. – Como se ele estivesse vivo ainda.
O funeral foi rápido e melancólico. Começou a chover copiosamente. As pedras que ferviam de calor, fumegavam depois da chuva rápida. O mormaço era insuportável. As pessoas se dispersaram. Máscara da Morte, de pernas bambas, teve de ser aparado por Afrodite o tempo todo. O pisciano permaneceu ao lado do caixão, beijando o rosto do filho perdido, vez por outra olhando para o lado e vendo que Máscara da Morte mal tinha consciência do que se passava, os calmantes ainda estavam fazendo efeito nele.
Voltaram para casa. Sozinhos, no quarto fechado com o ar-condiconado ligado, de banho tomado, sentaram-se ao lado um do outro. Sem ter o que dizer, sem ter o que pensar. Ficaram mudos. A casa em silêncio absoluto – sem os choros do bebê, sem os gritos da criança, sem as louças quebradas do moleque, sem os sons do barulho do quarto menino. Vazio. Silêncio. Luzes apagadas às seis da tarde.
Um vazio.
Impreenchível.
E a pergunta, a única pergunta que tomava conta da cabeça deles: por que? Depois de tanta luta, por que? Uma morte sem razão nenhuma, sem sintomas. Por que Dante?
o0o0o0o os anexos são todos flashbacks 0o0o0o0o
Anexo I – A Oferta
– Deusa... Você me deu seu nome, eu sei que você me escolheu, que eu ia representar o esplendor da sua beleza no Santuário da Deusa que eu sirvo e que você sempre detestou... Senhora, eu tenho te servido e te honrado desde pequeno. Eu nunca pedi muito. Eu nunca implorei, nem pela minha vida, nem no Inferno. Quando eu fui covarde, eu não recorri a você. Quando eu tive coragem, eu me salvei pelos meus próprios esforços.
Mas eu não estou pedindo por mim. Eu estou pedindo pelo meu filho. Athena, aquela deusa seca, estéril, virgem nunca ia entender, minha Senhora... Ela nunca ia entender o que é sofrer por um filho, como você entende. A senhora salvou seu Enéias de uma Tróia em chamas, a senhora me entende... Eu preciso fazer alguma coisa pelo meu filho. Os médicos dizem que ele não tem jeito – mas eu sei que para senhora nada é impossível...
Eu faço uma oferta em troca da vida do meu filho. Eu ofereço à Senhora tudo o que de mais precioso eu tenho, depois do meu Hô e do meu Dante. Eu ofereço toda a minha beleza à Senhora. Tire a minha beleza de mim, toda a minha beleza... Mesmo que... Mesmo que o Hô me odeie e me despreze quando eu for feio, eu tenho certeza de que ele vai ser mais feliz se o nosso menino estiver em segurança.
Salve a vida do meu menino e eu serei feliz em poder entregar a beleza que uma vez a Senhora tão gentilmente me deu, pela vida do meu menino que é a coisa mais preciosa que existe nesse mundo.
Anexo II – A Oferta 2
– Osíris, meu pai; Ísis, minha mãe. Há tempos que eu estou aqui, servindo uma deusa que não é a minha, neste Santuário e nessa cidade. Mas eu sirvo Athena do melhor jeito que eu posso, na esperança de que vocês ainda se orgulhem de mim.
Eu... Eu não queria, depois de tanto tempo, vir frente ao meu Pai e minha Mãe para pedir ao invés de agradecer. Eu lembro que a última fez que estive na presença de vocês eu tinha acabado de embalsamar meu Giulino Verno, meu filho, morto nas águas. Eu não podia prever que aquela maldita louca da Violeta ia fazer com ele, só cheguei a tempo de não deixar o corpinho do meu bebê sumir nas águas, como um indigente qualquer, como qualquer um dos corpos que eu jogava com meu bando nas águas dos rios e dos canais da cidade... Mas dessa vez eu não vou esperar a tragédia chegar... Não vou, meu Pai. Osíris... Osíris... Salve meu filho! Salve meu moleque... Eu não suporto mais ver meu garoto chorando, meu Dite desesperado... Eu nunca mereci essa família, eu nunca mereci ser feliz, mas agora que eles existem, nada é mais importante que eles, nada, meu Pai...
Eu não tenho nada a oferecer... A minha vida não me pertence, me foi dada pelos deuses... Meu poder e minha armadura também me foram dados por deuses, nunca foram meus de verdade. Não tenho nada de meu para oferecer a você, meu pai, como um ato de sacrifício meu. As coisas mais queridas ao meu coração são justamente aquelas das quais eu não posso dispor: a vida do meu moleque e o bem estar do Afrodite...
Então, eu pensei, que se há uma coisa no mundo que eu adoro é a vida que levo com eles, essa vida que eu não merecia, mas que eu recebi e que tenho feito de tudo para honrar.
Meu pai, eu te ofereço a minha felicidade pela vida do meu moleque. Se o senhor salvar meu menino, se fizer ele viver e arrumar um doador e se curar dessa doença desgraçada, eu abandono a minha casa e não volto nunca mais. Eu vou deixar meu Dite e meu menino para sempre. Eu vou sofrer que nem um louco, mas eu vou ficar grato se eles estiverem bem. Eu vou esperar pela sua generosidade, meu Pai, pela sua piedade, minha Mãe. Eu só queria pedir para ficar do lado deles enquanto meu menino se recupera. Depois, o senhor me mandar um sinal, o sinal que eu, como filho do meu povo, como um filho de sacerdote e sacerdotisa de Amon Ra, vou entender. Me mande o sinal e eu vou deixar a minha família para sempre, sabendo que quando eu sair o senhor vai entrar e tomar... tomar conta dos meus bens mais precisos quando eu faltar... Por favor, meu Pai, reconheça o sacrifício que eu faço e salve meu filho, salve a vida do meu filho...
Anexo III – A Proposta
– Olá, Dante.
– Oi. Quem é você?
– Eu venho para te falar de um assunto muito, muito sério.
– Sério, é? Por que você não senta, então?
– Você tem estado muito doente, não é?
– É, mas eu vou morrer logo, eu sei. Vocês tem olhos verdes... Parece comigo. Qual o seu nome?
– Meu nome não é importante... Eu sou uma mensageira, nada mais.
– Você veio me trazer um recado?
– Uma proposta.
– Proposta?
– Sim, Dantezinho. Você criou um problemão enorme para os deuses. A cabecinha das divindades está um nó.
– Eu? Mas eu juro que não fiz nada...
– Eu sei, você é um ótimo menino.
– Então?
– Você tem razão quando diz que vai morrer logo. Esse era o plano. Mas agora nós temos um problema.
– Problema?
– Seus dias aqui estavam contados. Você, como eu, também era uma espécie de mensageiro. O seu recado já tinha sido dado e estava tudo correndo como deveria...
– Eu não entendi, tia. Posso te chamar de tia?
– Pode... Veja bem, você se lembra de como os seus pais saíram do Hades?
– Athena pegou eles de volta.
– Não foi bem assim.
– Não?
– Na verdade, Radhamanthys tinha direitos sobre as almas de Afrodite e Máscara da Morte. E assim era porque, em vida, eles tinham sido a pior espécie de homens possível. Não apenas eram assassinos ocasionais, como Shura, mas tinham prazer em matar, mesmo que não fosse preciso. Athena os quis de volta, mas Radhamanthys não ia devolvê-los. Nem mesmo Zeus poderia obrigá-lo a tal.
– Ih, tia, mas então, eu não entendi. Como é que ele saíram?
– Afrodite, a deusa, ela quis recuperar o seu protegido. Ela quis seduzir Ares, mas não teve muito sucesso. Tentou o mesmo com Radhamanthys, mas ele também não ficou satisfeito com as ofertas dela. Por fim, ela sugeriu uma aposta.
– Aposta?
– Mais ou menos assim: ela argumentou, em uma assembléia com os outros deuses, que seu pai não era um mau caráter de nascença e que tudo contribuiu para que ele fosse cruel, porque ele nunca tinha sido amado. Como a deusa sabia que Máscara da Morte era a única criatura a quem o Cavaleiro de Peixes devotava a mínima afeição, ela também pediu por ele, alegando que, desde a mais tenra idade, ele também fora exposto ao que havia de mais negro no coração dos homens.
– Mas isso é verdade, eles nem tiveram culpa.
– Pois a deusa foi bastante convincente e Zeus acreditou nela. Então, Zeus lançou um desafio – já que ele não podia tomar as almas dos seus pais de Radhamanthys.
– O que era esse desafio?
– A deusa se encarregaria de encontrar uma maneira – irrefutável e definitiva – de provar que Afrodite e Máscara da Morte podiam ser bons, podiam se redimir e podiam amar, amar plenamente. Zeus disse à Afrodite que, se ela trouxesse os cavaleiros de volta, eles certamente se comportariam bem – já que estariam gratos e teriam medo de cair no Inferno outra vez. Mas isso não era o bastante. Eles deveriam querer ser bons, não por eles, mas por outro motivo. Eles deveriam ser bons por amor.
– Eu entendi agora, mas o que eu tenho a ver com isso?
– Não é óbvio, Dante? Você é a maneira irrefutável e definitiva de provar que Afrodite e Máscara da Morte podiam ser bons!
– Eu? Mas eu não fiz nada...
– Você que pensa! Você é uma rosa que floriu numa quadra de cimento! Você é um milagre, Dante! A deusa o plantou entre os cavaleiros, na esperança de que eles pudessem mostrar aos deuses uma dedicação de que só aqueles que amam são capazes.
– E deu tudo certo?
– Muitíssimo! É impressionante ver a mudança. Todos ficaram convencidos, as almas de Afrodite e Máscara da Morte não pertencem mais ao Hades. Estão limpas. Só que tudo isso tem um porém...
– Porém?
– Radhamanthys não achou justo que, depois de tanto mal que tinha sido feito, Afrodite e Máscara da Morte saíssem limpos e felizes. Você pode até ficar chateado, Dante, mas a verdade é que Aioros jamais foi trazido de volta. Boas pessoas foram assassinadas e perdidas para sempre e para elas não houve benevolência divina alguma. O juiz do Inferno exigiu que a sua vida fosse curta. O sofrimento pela sua perda seria uma espécie de 'última prestação' de quitação das almas dos cavaleiros. Athena achou justo e Afrodite também. E então, eis que você, aos doze anos, morreria doente. A aposta estaria completa e sua vida não seria mais necessária.
– Ué, então não tem complicação: você veio me buscar. Tia, eu juro que não vou reagir, ó: eu nem estou de armadura... Pode me levar.
– Criança... Eu sei que você não reagiria... O problema é outro...
– Outro?
– O plano da deusa deu muito mais certo do que ela e os outros deuses imaginaram... O Cavaleiro de Peixes e o Cavaleiro de Câncer estavam realmente empenhados em mantê-lo vivo. Eis que eles vieram diante dos deuses pedir por você. E fizeram ofertas. Ofertas que deus algum poderia ignorar...
– Ofertas? Meu pai matou um boi por minha causa? Um boi inteirinho?
– Mais do que isso... Afrodite deu à deusa sua beleza e Máscara da Morte ofereceu aos deuses dele a felicidade que ele tinha conseguido – ele jurou abdicar de você e do Cavaleiro de Peixes, se você fosse curado. Você entende o problema que isso nos causa? Acontece que você não pode ficar vivo. Mas ao mesmo tempo, não podemos destruir a fé que os salvou um dia do inferno... Os deuses não podem simplesmente ignorar ofertas dessa magnitude... E se os pedidos fossem concedidos, o que seria deles?
– É, tia... A gente tem mesmo um problema.
– Um dos grandes. Você entende que os deuses não podem dar as costas para aqueles que depositam tanta fé nos seus desígnios. Ao mesmo tempo, seria cruel retirar deles aquilo que eles ofertaram. E ainda tem o problema – você não pode ficar com eles para sempre!
– Ih, mas que vontade que vocês estão de me matar, hein?
– Não seja bobinho, Dante! É mais do que isso, não vê? Máscara da Morte e Afrodite não criaram você para ser uma criança normal. Você é uma rosa de estufa... Eles não criaram você para o mundo, mas só para eles... Não vê? Mas estava tudo bem, porque todos sabíamos como ia acabar. Agora temos esse problema...
– Mas você disse que tinha uma proposta...
– Ah, a proposta... O caso foi levado até o sábio Zeus e ele decidiu que a escolha do que devia ser feito era sua.
– Minha?
– Você é a razão do problema e o principal interessado, sim? Nada mais correto... Está nas suas mãos decidir o que fazer. Veja, os deuses reconhecem que a oferta de Máscara da Morte e Afrodite foi magnífica – ofereceram, de fato, aquilo que julgavam mais valioso em suas vidas por você. Zeus diz que é possível reverter o Destino de alguém, que você poderia viver até a idade adulta, mas isso teria um preço: as ofertas seriam cobradas. Afrodite perderia sua beleza e Horemheb sairia da vida de vocês para sempre. Por outro lado, não atender às súplicas deles e tirar você deles, seria cruel. Eles jamais teriam fé novamente... Então Zeus sugeriu que você pudesse ficar com eles mais um pouco... Uns dois ou três anos. Nada seria tirado deles, no fim do prazo, você morreria, como estava acordado desde o princípio da aposta. Então? O que acha?
– O que eu acho do quê?
– De tudo!
– Vocês fizeram uma lambança, é isso que eu acho.
– O que você prefere? Viver sua vida, longa e plena? Ou garantir que nada seja tirado dos seus pais?
– Boba. É claro que eu não ia querer viver sem o Mozão perto de mim e com o Mozinho sofrendo. Que tipo de vida eu ia levar? Ei... Por que você está rindo?
– Porque já imaginávamos que você ia escolher isso. Você é, realmente, uma rosa nascida no cimento... Encantador...
– Não puxa meu saco, mensageira... Mas eu tenho uma condição.
– Você não está me posição de fazer exigências... Mas vá, diga o que quer...
– Eu quero que eles jamais saibam disso. Eles não podem saber de aposta, barganha, proposta, nem nada... Promete?
– Hm. É uma proposta razoável. Está aceita. Temos um trato, então?
– Temos, né? Que jeito...
– Não fique assim...
– Como você ia ficar se soubesse que você e a sua vida não passam de uma aposta de deuses?
– Devia ficar orgulhoso...
– Orgulhoso de quê?
– Por sua causa, as almas de dois homens foram definitivamente salvas do Inferno. Você não é só uma aposta. Você é um instrumento de mudança. O amor mudou a vida de vocês três. Você poderia ter passado a vida toda naquele orfanato... Era o seu destino. A deusa tirou você de lá. Ela deu você para um homem seco. E olhe para vocês! Vocês fizeram muito mais do que nós esperávamos. Vocês três. O assassino do Máscara da Morte, que se não fosse pela intervenção da deusa estaria condenado aos Infernos sem ninguém que pedisse por ele, que saiu de lá em uma barganha, por puro acaso... Ele se mostrou tão nobre! Nem mesmo Athena acreditou que fosse possível!
– A Saori sabe?
– Athena sabe. Essa jovem, Saori Kido, possui apenas uma pequena parcela da consciência da deusa. O corpo de um humano é muito finito em si, muito pequeno para açambarcar toda a plenitude da existência de uma divindade. Então, tudo que Saori Kido sabe, Athena sabe, mas nem tudo que Athena sabe, Saori sabe, entende?
– É complicado... Mas você fala tão bonito, mensageira... Eu adoro essa palavra... Plenitude...
– Você gostou, né? Vai ter tempo agora, para usá-la...
– Mas não muito, né? Dois anos?
– Três...
– Então, quando eu tiver quinze anos...
– Por que pensar nisso? Você terá três anos para ficar com eles... Três anos é tanta coisa... Vocês vão ficar juntinhos e vão ser muito felizes... Eles não vão saber... Serão tão felizes acreditando que salvaram você...
– É, mas depois... Kapluft! Filho nenhum...
– Essas coisas acontecem... Ou daqui a três anos, ou hoje mesmo. Você que sabe.
– Com essas escolhas também, é difícil negociar, hein, tia?
– Lamento, mas não tenho autonomia para oferecer nada melhor.
– Tudo bem... Mas como eu vou morrer?
– Como você quer morrer?
– Posso escolher?
– Na verdade, não. Mas já que estamos conversando, fiquei curiosa...
– Você é boba, hein, tia? Ué... Eu ia querer morrer... Dormindo... Como passarinho.
– Ótima escolha. Mas não se preocupe com isso. Eu mesma virei te buscar, quando for a hora.
– Então, vou te ver de novo, tia?
– Sim, logo. Mas por hora, durma.
– Você vai embora?
– Vou achar sua medula. Agora você vai precisar de uma.
– Posso te pedir um último favor, tia?
– Pedir você pode. Eu fazer já depende de outras coisas...
– Eu queria assim ter uma medula da família do Dite. Não dava para arranjar? Assim eu ia me sentir mais filho dele, entendeu?
– Como você é bobinho, Dante! Depois de tudo que você sabe, você ainda acha que precisa de algo que o faça mais filho deles?
– Por favor, tia! Facilita uma pra mim, vai?
– Está bem. Vou ver o que posso fazer.
Afrodite passou muito tempo cuidando das feridas de Horemheb. Isso o fazia bem, por distraí-lo da sua dor. Ele e Máscara da Morte ficaram reclusos na casa de Peixes por semanas seguidas. A princípio, tentaram aplacar o vazio que crescia negro dentro deles com a presença um do outro. Faziam amor todos os dias, várias vezes ao dia, tentando calar com um prazer rápido aquela dor que não parava de crescer, como se o sexo fosse um anestésico fraco que exigisse novas e mais fortes doses sempre.
Depois, se afastaram tão abruptamente que os habitantes do Santuário imaginaram ser o fim de um casamento de tantos anos. Foi mesmo de repente, que um passou a ver o filho morto no outro. Mesmo adotivo, Dante acabara parecendo-se com eles tanto quanto um filho natural pareceria. Afrodite fugia de Máscara da Morte: via nele a obstinação do menino, os mesmos modos mal-criados, o jeito de andar e lutar, a vontade de ser líder e até a maneira como Dante comia e dormia lembrava o jeito do canceriano.
Máscara da Morte também, não suportava olhar parar Afrodite e ver no pisciano a meiguice do filho. Toda vez que Afrodite falava, ele se lembrava de como Dante falava, o mesmo jeito de tagarelar bobagens que não tinham sentido nenhum, a mesma dedicação às rosas; a mesma generosidade e clareza para mostrar carinho e amor.
O tempo passou e essa fase também. Afrodite via Máscara da Morte definhar com sua tristeza, os olhos tão queridos passavam pela sala procurando o sofá onde o menino tinha morrido. O sueco quis tirar aquilo da sala assim que o primeiro baque se dissipou, mas Horemheb não permitiu. Afrodite não desistiu e mandou forrá-lo de uma cor diferente, mas não adiantou. Noite após noite ele tinha que trazer Horemheb no colo de volta para a cama, porque ele saía de madrugada para 'ajeitar o mosquiteiro' do quarto de Dante e acabava dormindo no quarto do menino, chorando cansado. O sueco sabia quanta dor estava sentindo e imaginou que Máscara da Morte a sentisse em dobro, porque já era a segunda vez que perdia um filho.
Então, o sueco resolveu mostrar ao canceriano que era capaz de dar provas do seu amor, não apenas com palavras. Falou com Athena e com Silmara, mulher de Saga. Reformaram a casa de Câncer, limparam-na física e espiritualmente. Uma bela tarde, ele acordou Máscara da Morte da sesta, com malas prontas. Despediu-se do jardim que era sua vida e o seu consolo depois da morte do filho e mudou-se para a úmida e escura casa de Câncer.
Afrodite perdeu Dante, seu jardim, sua casa, em tão pouco tempo. Mas toda vez que olhava para o corpo aninhado junto ao seu na cama, pensava que se tivesse perdido também Horemheb, não conseguiria mais viver. E estar na casa onde Dante vivera e morrera estava acabando com Máscara da Morte.
Como dois animais feridos, eles se lambiam e se cuidavam, cultivando no amor pelo outro uma razão para viver e continuar. Eles viam as crianças que um dia brincaram com o filho deles crescendo felizes e com saúde e não suportavam a injustiça. Não conseguiam entender os critérios do Divino. Desde a viagem de Máscara da Morte e os primeiros sintomas da doença de Dante, passando por quase um ano e meio de dor e tratamento até a bela festa de quinze anos – tudo lhes parecia de uma ironia mortal.
Mas os anos foram passando.
Até as feridas mais doloridas cicatrizam um dia.
EPÍLOGO
– Feliz aniversário, Afrodite.
– Obrigado, meu amor. Foi lindo você me trazer aqui para o meu aniversário.
– Era a praia que seu filho mais gostava, era aqui que gente veio tantas vezes ver o garoto nadar. Achei que ia ser especial para você.
– É especial para mim. Muito especial. Aqui é tão bonito. Tem tanta paz.
– Eu queria te tirar do Santuário também. Todo mundo fica perguntando coisas, querendo saber como a gente está.
– Faz três anos e eles ainda me perguntam sempre como estou quando me vêem. Como se eu nunca fosse sarar.
– E você por acaso sarou?
– Não. E você?
– Não. Eu não sarei da morte do meu italianinho, que foi há quase vinte anos. Por que eu ia esquecer a morte do meu Dante que foi há três?
– Eu lembro de tantas coisas nessas horas, Hô...
– Eu também. Lembra aquela vez que a gente foi ao motel e quando a gente estava no meio dos 'trabalhos' ligaram de casa dizendo que ele estava febril e você ficou furioso?
– Eu era tão idiota...
– Você entrou em casa berrando que um filho só dava trabalho e não servia pra nada...
– Imagina, o anjinho não dava trabalho...
– A serva sentada no seu sofá lendo uma revista e Dante se esgoelando de tanto gritar na cadeirinha.
– Vaca, vagabunda! O menino chorando e ela lá, lendo, fingindo que não ouvia! E com os pés no meu sofá! Como alguém pode ser tão cretino a ponto de maltratar um criancinha linda como era meu filho?
― # ―
– Sua vaca! – Afrodite largou a bolsa no chão e tirou Dante, de oito meses, da cadeirinha, acomodando-o no seu colo. Horemheb, tire essa mulher das minhas vistas antes que eu mate ela!
Horemheb dispensou a mulher, Afrodite sentou-se na poltrona com o bebê no colo. Dante ficou silencioso, afofado contra o peito do pisciano, que o ninava, ainda nervoso.
– Está febril, Hô. – empurrou a chupeta na boca da criança.
– Ontem ele espirrou, não lembra? É uma gripinha à toa. Vou lá dentro, faço um chazinho para ele, de camomila com mel. Não deve ser nada.
– Vai, eu vou pro quarto com ele. Essa vaca nem lembrou de colocar um casaquinho nele, ele está febril, deve estar com frio.
– Eu levo a mamadeira lá, Afrodite.
No quarto, Afrodite trocou o menino e sentou-se com ele na poltrona de amamentar, que ele deixava ao lado do bercinho da criança. Dante não chorou, mas os olhinhos vermelhos estavam deixando Afrodite agoniado. Com a mamadeira nas mãos, ficou calminho. Afrodite olhava-o mamar, os olhos verdes enormes o encaravam.
– O que foi? Está me olhando por que?
O menino respondeu com um sorriso, balançando os pés.
– Está feliz porque o 'papapapa' voltou?
Ele riu de novo, olhos fitos nos dos pisciano.
– Como você pode gostar tanto do seu 'papapapa' se eu sou tão ruim pra você?
O menino largou a mamadeira e estendeu os braços para Afrodite, puxando com os dedinhos pequenos as mechas de cabelos azul. O pisciano, mesmo tentando, não conseguiu evitar as lágrimas que aquele corpinho aninhado ao seu lhe provocava. – Por que você gosta de mim? Eu sou um pai ruim, eu não te dou atenção... Eu nem te amo... Ouviu? Não te amo...
Dante lhe sorriu novamente.
– Seu bobo! Bobo! – abraçou a criança junto do peito, beijando o rostinho febril. – Por que você tem que gostar de mim? – deixou que Dante segurasse sua mão, trazendo-a perto dos lábios, beijou os dedinhos miúdos enroscados nos seus. – Neném... Eu juro que eu vou ser bom pra você... Eu juro que vou te dizer que te amo um dia... Porque... Porque eu te amo, mas um dia eu vou provar de verdade...Um dia eu vou dizer que te amo mais que tudo... Que você é tudo pra mim. Um dia... Por favor, continua gostando de mim até lá? Tem paciência com esse pai burro que você tem... Continue gostando do seu papapapa... Eu preciso tanto de você...
― # ―
– Hô. Eu aprendi muita coisas nesses quinze anos. Foram os quinze anos mais difíceis da minha vida, muito mais difícil do que servir à Athena e lutar. Ser derrotado pelo pirralho do Shun não foi tão dolorido quanto ver meu anjo doente. A morte do Dante foi tão repentina, tão imbecil... Eu até hoje...
– Não se conforma?
– E eu posso me conformar? Toda noite eu sonho com ele! Todas as noites eu pego ele no colo e dou mamadeira para ele, ele ri pra mim... Você também sonha com nosso filho, Hô?
– Sonho sim. Quase sempre. E sempre o mesmo sonho: na noite em que ele morreu, quando ele disse que ia sair do quarto, eu segurei ele e disse para ele ficar. Ele foi embora assim mesmo. Eu sempre sonho que nessa hora eu segurei ele com mais força... E ele não foi. E ficou com a gente. E não morreu.
– Ah, Hô... Nosso filho era tão meigo e tão doce... Eu lembro ainda de como ele saiu do quarto dizendo que eu era o amor dele...
– Eu sinto falta dele me acordar com gritos por causa das brincadeiras...
– Sinto falta das reclamações do Saga, das brigas que ele arrumava na baixa.
– Eu sinto falta de mim, de quando eu tinha motivos para acordar cedo e ver o nascer do sol... Você lembra, não lembra?
– Lembro sim... A gente acordava cedinho, ia com ele para o alto da casa, e vi o sol nascer, lindo. A gente dizia que o cabelinho dele era feito de sol, porque tinha a mesma cor.
– E ele acreditava!
– Era tão bobinho...
– Mas eu ainda tenho você.
– Zeus, Horemheb, se você não estivesse comigo eu tinha morrido de tristeza, eu não teria suportado a falta do menino se eu não pensasse que você precisava de mim.
– É, eu precisava... E preciso mesmo, muito de você.
– Eu te amo tanto...
– Eu também te amo, Afrodite. Mais do que tudo na vida. Por isso...
– Por isso?
– Eu quero que a gente volte a morar em Peixes...
– Horemheb... Não precisa...
– Precisa sim. É a sua casa, que você ama, com seus jardins. Câncer é fria, estéril. Por mais bem feito que tenha sido o trabalho da bruxa e da deusa, a casa nunca vai ser normal como as outras. Você sabe... Você ouve... Os ruídos... Os aparelhos que quebram sem razão nenhuma, as plantas que murcham e morrem, o frio que não passa, o fogo da lareira que apaga sozinho. A sua insônia, minhas dores de cabeça. A casa é maldita.
– Mas... Mas...
– Eu não vou entrar em parafuso e morrer por causa das lembranças do nosso filho. Eu até sinto falta de ver as coisinhas dele espalhadas. Eu estava ferido, estava sangrando... Agora a cicatriz fechou.
– Fechou?
– Fecha, Dite. Um filho morto é como uma ferida enorme. Ela sangra, arde, dói. Enfraquece. Mas ela melhora, ela cura. Só que a cicatriz nunca vai embora. Ela fica. E sempre que você olha pra dentro de você a cicatriz está lá, feia, para te lembrar da dor que você sentiu com aquela ferida. E quando faz frio, a cicatriz repuxa. Quando faz calor, ela coça. Se apertar, ela sangra outra vez. É assim. Tem dias que dói e é insuportável. Tem dias que a lembrança é amena. Melancólica. Não é a casa. Eu não preciso de nada para me lembrar que eu tive o Dante e ele morreu.
– Então está bem, voltamos... Eu tenho saudades do meu jardim... E da luz que entrava na minha casa de manhã... E da cozinha onde eu tomava café da manhã com meu neném...
– E a rosa?
– Que rosa?
– A dourada, que ele deixou pra mim.
– Está lá, no jardim. Intacta. Perfeita. Feito de cosmos, perfeita... Tão boa quanto uma feita por mim...
– Ele era tinhoso... Disse que ia aprender e aprendeu...
– Hô...
– O quê?
– Você se pergunta a razão de Dante ter morrido? Não foi justo... Depois de tanta luta...
– Sempre. Às vezes eu chegava a achar que...
– Que?
– Deixa pra lá.
– Me conte!
– Eu... Quando ele estava doente eu prometi a Osíris que sacrificaria a coisa mais importante da minha vida, se meu filho sobrevivesse.
– Eu... Eu... Eu também... O que você prometeu?
Máscara da Morte acariciou o rosto perfeito de Afrodite, já com pequenas rugas de expressão ao redor dos olhos azuis-piscina, que em compensação ainda brilhavam com todo o vigor da juventude.
– Prometi toda minha felicidade – você. Se ele me concedesse a vida do menino, eu iria embora e deixaria você e o Dantezinho para sempre.
– Hô! Como você... Pôde... Você ia mesmo nos abandonar?
– Pela vida do Dante? Não pensaria duas vezes. E você? O que prometeu?
– A única coisa de valor que tinha, além de você e dele: minha beleza.
– Eu amaria você de qualquer jeito.
– Será mesmo?
– Acha que qualquer ruga desse seu rosto ia apagar pra mim tudo o que eu sinto? Acha que um nariz torto ou uma boca sem dentes ia me fazer menos apaixonado por você? Meu amor sempre ia encontrar alguma coisa linda em você para admirar. Eu amo você. Eu vou te amar pra sempre.
– Horemheb... Às vezes... Quase sempre... Eu acho que não mereço o seu amor... Eu não mereço você...
– Não chora, sueco bobo... É seu aniversário, você devia estar feliz...
– Eu estou. O máximo feliz que eu poderia estar... Obrigado...
– Pelo que? Eu nem te dei um presente.
– Você é meu presente. E você me deu o Dante, que também foi um presente pra vida toda. Nunca vou esquecer meu menino. Ele sempre vai ser uma parte de nós dois. Ele sempre vai ser o melhor de nós dois. Ele foi a única 'coisa' que fiz, com minhas mãos, de que me orgulho de verdade, muito.
– Ele parecia com você, Dite. Doce, apaixonante, lindo.
– E com você: decido, nobre, bom.
Máscara da Morte coçou os olhos, limpando as lágrimas.
– Quer ir embora? Com certeza seus amigos organizaram uma 'festa surpresa' para você no Santuário...
– Não. Quero ficar com você aqui... Quero que você me abrace forte e me beije e diga que me ama, apesar de eu ter rugas e da minha pele não ter mais aquele viço, aquele rosadinho dos jovens... Quero que você me diga que ainda sou sua rosa... E que eu sou um amante perfeito e um pai exemplar...
– Você foi o melhor pai que Dante poderia ter tido – porque ele te amava demais. E para mim o melhor amante do mundo... Porque eu também te amo demais.
– Eu te amo, Hô...
– Feliz aniversário, minha rosa...
FIM
Obrigada por tudo! Ficaram surpresos com o final? Bem, este era o final que eu tinha em mente quando a fic começou. Depois, eu me afeiçoei tanto ao Dante, que não queria mais matá-lo. Mas aí minhas amigas ( Lola e Vera, assumam a culpa! ) disseram que se eu mudasse o final ia ficar super sem graça... Então, aí está. Prometo que este final tem post no thesenseiclub ponto blogspot ponto com . Beijos a todos.
Escrito por Mme Verlaine em 11.01.2006
