Capítulo 3: Enterrando Tio Alphard

Devo ter desmaiado novamente porque, quando abri os olhos outra vez, me sentia bem melhor. Minha perna estava inteira outra vez; e eu estava deitado numa enorme cama de casal, num quarto vazio em Grimmauld Place, 12. Quer dizer... "vazio" era uma qualidade muito relativa ali. Tiveram que afastar algumas tralhas e tranqueiras para que eu pudesse me deitar na cama.

Tonks estava ajoelhada no chão ao meu lado, uma mão pousada em meus cabelos. Abri os olhos; e ela se afastou, rápida.

"Oi. Como se sente?"

"Muito melhor... o que... o que aconteceu?"

'Primeiro, bebe isso", e me estendeu um cálice. "Moody e Kingsley apareceram logo depois e acabaram com a festinha dos Comensais. E trouxeram a gente pra cá. Chegaram bem a tempo, na verdade. Você foi piorando tanto que... eu fiquei mesmo preocupada", ela acrescentou, arregalando os olhos. "Sabe... por alguns momentos, pensei até... bem..." e a expressão aflita em seu rosto completava a frase.

Sorri.

"Não ia passar para uma melhor assim tão fácil, Tonks."

Ela não me pareceu muito convencida; e tentou dizer algo sobre eu ficar em casa quando estivesse doente. Eu não podia, era claro. Ia perder muita, muita coisa se concordasse em ficar na cama a cada lua. Mas ela era insistente:

"Continuo achando que não deve sair. Vou..."

"Tonks..."

Sorri outra vez e ela sorriu também; e colocou um dedo sobre meus lábios, me impedindo de continuar.

"Se divertindo na cama com a minha prima, Moony?" interrompeu Sírius no pior momento possível, entre irônico e divertido, encostado na porta e erguendo uma sobrancelha.

Nos afastamos imediatamente, e nos sentamos, muito tensos, com as costas retas, como se fôssemos crianças travessas fazendo algo de muito errado. Ele se aproximou e parou de pé ao lado da cama.

"Ela não saiu daí desde que vocês chegaram."

Olhei para ela, que ficou estranhamente calada, mordendo o lábio, e finalmente disse que não tinha sido bem assim. Sirius pensou um pouco, inclinando a cabeça, e então disse:

"É uma troca de favores! Você cuida dela, ela cuida de você."

A semana inteira trancado no quarto com Bicuço absolutamente não havia feito bem algum a Sirius. Cuidar dela? Não tinha a menor idéia do que ele estava falando. Nem Tonks, pelo ar de espanto em seu rosto.

"Vocês não estão entendendo", ele sorria um sorriso maníaco enquanto seus olhos passavam de mim para Tonks. "Não se lembram, não é? A Festa do Enterro do Tio Alphard."

As coisas começaram a se encaixar quando ele disse as palavras mágicas. Mas... seria possível?

De dentro de lembranças enevoadas de anos, voltaram à mente imagens da bizarra Festa do Enterro de Tio Alphard, como nós a chamávamos. Com letras maiúsculas e tudo. Porque havia sido isso mesmo. O velho tinha morrido; e toda a família se reuniu segundo um último desejo dele. Tio Alphard deu ordens para que fosse organizada uma festa para a leitura do testamento e convidados todos os Black. Que ficaram chocados porque Sirius apareceu com "aqueles três amigos delinqüentes"; e ultrajados quando abriram o testamento e descobriram que ele tinha deixado toda sua fortuna justamente para Sirius.

Seria a mesma pessoa? A mesma garotinha de cabelos rosas que tropeçou em mim naquele dia teria se transformado nessa garota que... olhei para ela, tentando associar as duas imagens. Não me lembrava muito bem dos seus traços quando criança... mas os cabelos e o jeito desastrado eram inconfundíveis.

"Sirius... Eu nunca poderia imaginar."

"Afinal, do que é que vocês estão falando, hein?" Tonks nos interrompeu.

"Pois é. Olha, pra ser sincero, achei que você não se esqueceria assim tão fácil", ele se explicou. "Afinal, vocês se deram muito bem naquele dia!

"Nos demos muito bem?" ela perguntou outra vez, franzindo a testa. "Sirius!"

A porta do Saguão lá embaixo se abriu. Pulando de repente da cadeira e gritando "Harry!", ele saiu porta afora. Não me lembrava de quase nada, afinal, fazia anos; e nem havia sido um acontecimento excepcional para que eu o guardasse por tanto tempo. Eu examinava o rosto dela, enquanto tentava me recordar de mais alguma coisa. Estudava o nariz pontudo, as maçãs do rosto levemente salientes, os olhos grandes e negros, os cílios compridos... e os cabelos cor-de-rosa. O lábio de baixo, cheio, que ela mordia quando estava pensando. A pele muito clara, o rosto com aquele formato de coração...

Foi quando notei que, com os lábios entreabertos, seus olhos também escaneavam o meu rosto. E, eu sabia, não era muito bonito o que ela estava vendo ali. Algumas rugas precoces, algumas cicatrizes antigas. Cabelos despenteados, fora de moda. Movido por alguma força inexplicável, encarei-a. Nossos olhos se encontraram; e então, não se moveram mais. Senti minhas bochechas queimando pela primeira vez em anos; e disse para mim mesmo que era porque me nunca senti bem com pessoas me encarando. Desviei os olhos. Ela fez a mesma coisa; e se desequilibrou e quebrou o cálice, derramando o resto da poção no chão.

E então, ela me encarou mais uma vez por dois longuíssimos segundos, antes de se levantar de repente e fugir do quarto, dizendo que precisava ajudar a Sra. Weasley a arrumar os quartos para os garotos que chegariam amanhã bem cedo.