Capítulo II

Entardecia na Grécia. Havia um burburinho no centro da cidade; uma certa apresentação, pela primeiríssima vez, de um talento promissor. Há pelo menos um mês, só se falava nisso; na televisão, jornais, revistas, emissoras de rádio e principalmente na rua. Naquele comecinho de noite, até o trânsito parecia estar diferente, mais... caótico.

Poucas horas antes, quando o sol grego ainda teimava em não partir, no seio das montanhas gregas duas figuras nervosas conversavam:

Flashback...

- Kamus, o que você acha? Como queria que eu ficasse? – Shura sentava-se olhando para o nada, visualizando algo apenas na mente, com uma perna cruzada sobre a outra, tornozelo suspenso sobre um joelho, cotovelo sobre o joelho dobrado, o queixo pousado na mão.

- Oras, é só não se alarmar... – Kamus olhava indiferente para uma arara cheia de gravatas dentro do guarda-roupa., enquanto segurava uma delas com a mão, vendo se combinava com a roupa. – Afinal, não é algo complicado: só precisa encarar como uma garota que está afim.

- ...

- Quantas vezes já não fez isso? – Aquário ajeitava o nó da gravata eleita de frente para o espelho.

- E você acha que em todas as vezes eu fiz pensando em agradar o Santuário e não por que gostava delas? Que eu me aproximo de alguém simplesmente por que penso que "assim deve ser"? Pelos Deuses Kamus, às vezes penso que você congela as coisas porque já é um próprio cubo de gelo.

- Aaaaaghh, que mau-humor! Desse jeito, obviamente ela não ficará nem dois minutos perto de você – disse o francês em tom jocoso, sendo prontamente respondido pelo olhar cortante do outro.

- Kamus, eu achava que você fosse racional.

- E eu sou, meu amigo.

- Racional? Só se a cabeça "de baixo" pensa.

- Você está muito engraçadinho hoje. Dormiu com algum palhaço? – Não deixou que outro respondesse. Fez sinal pra que se levantasse, foi saindo, apagando as luzes e se retirando da casa. – Vamos. Sua "Prima Donna" nos espera.

Do lado de fora, as primeiras estrelas, cintilavam fracas quando os dois cavaleiros andavam pelo Santuário. Shura não tinha idéia de que direção tomar, por isso chamou Kamus, mais "ligado" aos acontecimentos sociais da cidade, como um guia e acompanhante. Além de testemunha da cena ridícula que seria bajular alguém com ego possivelmente ainda superior ao de Milo de Escorpião.

Decidiram ir de taxi, o tal Teatro onde a moça se apresentaria não era longe dalí. Foi difícil - por incrível que pareça, se tratando de uma cidade considerada o berço da civilização ocidental, que recebia milhares de turistas por ano e portanto acostumada com o grande fluxo de pessoas – arrumar um táxi. Durante o trajeto Shura preocupava-se com o quê dizer, como abordar a artista. Quem ele era? Um cavaleiro dourado do Santuário poderia ser muito para aqueles que viviam lá dentro, mas no mundo comum... Era como ser o guardião do pote de ouro das histórias infantis: poucos te conheciam, mas muito ririam se você contasse quem é e o que faz.

- Acalme-se Shura, tenho conhecidos na área artística. Tenho certeza de que um deles pode nos apresentar a ela. Melhor lidar com isso do que com um bando de espectros...

O taxista deu uma olhada de sobrancelha arqueada pelo retrovisor. Realmente, quando acontecia algum grande evento na cidade seus moradores também piravam. Era cada tipo que aparecia! E com cada conversa!

- Ahan... – Shura concordava roendo uma unha olhando pela janela do carro.

- Você está prestando atenção? Olha, vamos até ela, você se apresenta como um fã...

- Mas não sei nada sobre ela. – Shura interrompe, ainda na mesma "meditação".

- Sim Shura, mas eu já disse que vou te ajudar. Além disso, quem disso que você não sabe nada? Já não vai ver esse concerto? É apenas uma intérprete de obras de caras mortos, se souber sobre eles, sabe sobre ela! – Para Kamus, era tudo questão de "pensar". Era reconhecidamente o cuca-fresca das Doze Casas, não por ser irresponsável, longe disso, mas sim por que para ele, nada era digno de preocupação. Se o mundo caísse, Kamus se sentaria, esperaria a poeira baixar, observaria a situação calmamente e veria a melhor maneira de consertar os destroços. Definitivamente, era bastante racional, inabalável como uma rocha.

Pouco a pouco, o trânsito complicado foi ficando lento... lento... lento... devagar... parou.

O som das buzinas e as infinitas luzes, somados à atmosfera tensa da cidade deixariam qualquer um morrendo de vontade de ir pra casa.

- Que houve? – despertou o espanhol de seus pensamentos sentindo um soco no estômago já não tão confortável.

- Ahhh..! – retrucou o taxista – parece que essa moça abalou a cidade. Pelo menos por aqui. Parece que os guardas estão dizendo que esses caminhos estão interditados... Devemos pegar um atalho...

Atalho? A nem meio quilômetro de distância do tal Teatro? Era só que faltava! Ficar dando voltas pela cidade lotada e chegar atrasados quando estavam tão perto de chegar. Até que Kamus sugeriu que seguissem a pé. A cidade estava louca mas era melhor enfrentar a pé do que de carro, pelo menos, não ficariam sentados no meio da confusão inertes, esperando o tempo passar. Pagaram o taxista que resmungou algo por ter que voltar para trás, sem passageiros, na metade do trajeto sem sequer terminar a corrida. Não deram bola. Em poucos minutos estariam na frente do tal teatro.

Fim do Flashback...

A noite grega estava fresca e leve, com um céu azul profundo e cheio de estrelas. Uma noite digna de um grande espetáculo.

Chegaram ao teatro com quinze minutos de atraso, mesmo com todo o esforço para não

perder um só minuto da apresentação. Graças aos amigos do aquariano sentaram-se num lugar ótimo, com uma visão perfeita do palco.

Logo que se instalaram, entreolharam-se com expressões entre surpresa e atônita. Shura imaginara que, se tratando de uma soprano, fosse encontrar alguma mulher corpulenta, com um vestido extravagante, cantando de forma aguda, disposta a quebrar vidraças. O que viram não era exatamente isso, mas pouco diferente. Ainda assim, essas diferenças gritavam: não, não era uma gorda de meia idade, e sim uma mulher pequena, de porte médio, com um corpo torneado de bailarina, entre o magro e o roliço, vestida de forma dramática, ma sem grandes apelos. No entanto, de todo o conjunto o mais surpreendente era a voz; nada de gritos quase infantis de menina suave e desprotegida que beiravam os sons que só um cachorro pode ouvir; a voz da moça se impunha de forma marcante, forte como um trovão, mas feminina e dramática o suficiente para passar qualquer sensação que quisesse, indo da raiva ao medo, do amor apaixonado e sensual à inquietação da alma. Tudo sempre de forma marcante, como se houvesse maturidade e experiência por trás de cada sentimento. Shura se lembrou do que o Mestre dissera " Hera não escolherá para si alguém que não seja condizente com sua própria imagem". E a deusa havia escolhido a dedo a figura mais perfeita que pôde, de fato.

A apresentação seguiu tranqüila, com algumas pausas, onde aproveitaram para conhecer melhor as instalações do velho teatro. Numa delas, um conhecido de Kamus foi até os dois cumprimentá-lo, e Aquário aproveitou para pedir um favor. Claro que eles poderiam falar pessoalmente com ela, se quisessem. Afinal, era assessor da moça.

Nos bastidores da antiga construção, corredores um tanto estreitos para tantas pessoas que se acotovelavam alí. Por ente elas, os dois cavaleiros procuravam passar, até o camarim reservado para o assessor, onde se encontrariam finalmente com a representação humana da "Deusa do Casamento". Pensando assim, mal podiam conter o riso, mas o que queria realmente a deusa?

De costas para ambos, uma figura de longos cabelos louros e ondulados, entre o dourado e acinzentado, gesticulava com as mãos enquanto falava. Devia ter aproximadamente um metro e sessenta e poucos de altura. Parecia ainda menor do que vista no palco, onde o salto e a roupa a alongavam um pouco. Subitamente virou-se e fixou os enormes olhos verde-água em ambos, com um sorriso encantador:

- Perdoem-me pela minha falta de educação! Ficar de costas para os convidados! São vocês os amigo de Gillan, não são? – estendeu a mão para ambos. Nada nela denunciava a arrogância de uma Olímpica. A única afetação que ela tinha era a típica cordialidade exagerada daqueles que possuem fama.

- Sim, mademoseille, muito prazer, sou Kamus. E não e preocupe, acabamos de chegar – antecipou-se o francês pegando a mão da moça e dando um beijo sutil no dorso. Pareceu que nem ela esperava.

Shura ainda estava atordoado pela missão, pela bagunça, pela apresentação e principalmente, pela simples proximidade da moça.

- Muito prazer, senhorita. – E fez-lhe uma leve reverência com a cabeça. Agora, começaria a dança.

S e g u e ...