Segunda Chance

Parte III


Não é o final ainda.

Nota e review no live journal


Dor. Essa foi a primeira coisa que ele sentiu ao voltar a consciência. Nunca sentira tanta dor em sua vida. Sempre pensara que ao acordar no outro mundo não haveria mais dor, tristeza ou desilusão... Pelo visto estava errado. O paraíso era uma tremenda propaganda enganosa... Ou talvez estivesse no inferno... Não podia reclamar, merecia qualquer castigo que viesse a receber por seus crimes.

Tentou abrir os olhos para observar sua 'nova morada' e teve que fechá-los novamente. Aquilo era muito claro para ser inferno... Ou talvez fosse apenas mais uma forma de tortura...

Torceu o nariz para o cheiro forte de desinfetante e então ouviu aquele horrível e monótono 'bip' do monitor cardíaco. A dor aumentou ao perceber finalmente o que tinha acontecido, contrariando todas as chances, ele sobrevivera. Então aquilo era realmente o inferno, continuar a viver sem Kaoru... Depois de causar sua morte... Não podia ter outro significado.

Abriu os olhos novamente, devagar e piscando algumas vezes até que se acostumasse com a claridade do quarto. Encarou o teto branco e insípido, amaldiçoando-se pelo que tinha causado e imaginando se teria forças o suficiente para levantar da cama e se atirar pela janela...

- Você parece realmente miserável.

- Obrigado, tudo que um doente precisa ouvir assim que acorda é o quanto sua aparência é ruim. – As palavras deixaram seus lábios automaticamente, antes que seu cérebro pudesse registrar realmente as palavras. Fechou os olhos, tentando desencorajar a conversa com aquela mulher irritante.

- Ora, vamos... Não diga que magoei seus sentimentos! – A voz soou divertida e estranhamente familiar. – Eu estava aqui quando trouxeram você ontem... Baleado... Não está tentando me fazer sentir pena de você para me assaltar assim que ficar bom, está?

- Não, só quero que cale a boca e me deixe em paz. – As palavras escaparam automaticamente de seus lábios novamente... A conversa parecendo mais familiar a cada segundo.

- Quanto mau humor! – A garota riu. Um riso delicado, leve e conhecido... Dolorosamente conhecido.

Kenshin abriu os olhos novamente, virando a cabeça para a desconhecida sentada a uma cama de distancia.

- Se você estivesse sentindo a mesma dor que eu estou no momento não acharia tão estranho... – Sentiu sua voz falhar ao reconhecer a figura sentada ali. Uma garota com longos cabelos negros, presos em um rabo de cavalo, incríveis olhos azuis emoldurados por longos cílios e sobrancelhas perfeitas. – Isso não é possível! – Ignorando a dor do ferimento, sentou na cama em um só movimento. Arrependeu-se instantaneamente ao sentir as pontadas no ombro aumentarem de intensidade. – Mas que droga! – Deitou novamente, a mão esquerda voando para segurar o ombro direito e... E foi então que percebeu.

Não havia sido baleado no ombro na noite anterior. Lembrava com perfeição das pontadas conhecidas de dor no abdômen... As mãos tocando o tecido encharcado de sangue...

- Você não devia ter feito isso. – A voz estava mais perto dessa vez, voltou a abrir os olhos e encarou a garota em silencio pela primeira vez. – Aposto como abriu os pontos, idiota... – Ela tocou seu rosto, as mesmas mãos delicadas e macias contra sua pele, o mesmo sorriso inocente... – Fique aqui, vou chamar a enfermeira. - E antes que seu cérebro tivesse a chance de processar alguma informação ela se afastou e saiu do quarto.

Kenshin fechou os olhos novamente enquanto buscava por alguma explicação plausível para o que estava acontecendo. Não havia sido baleado uma segunda vez ou sentiria... ou teria tido dificuldade em mover o braço... 'Não! Não! Não!' Uma única bala o atingira e com certeza não fora no ombro... A única vez que tivera tal ferimento fora... Abriu os olhos, em choque... Quando conhecera Kaoru!

'Não... Impossível... Isso não pode estar realmente acontecendo...'

E foi dessa maneira, os olhos abertos em choque, fixos no teto sem realmente enxergá-lo, balbuciando coisas incompreensíveis, que a enfermeira o encontrou quando voltou acompanhada de Kaoru. Pode vê-las debruçarem-se sobre a cama, seus lábios se movendo enquanto a enfermeira balançava a mão a frente de seus olhos, tentando chamar sua atenção, mas estava ocupado demais tentando entender o que estava acontecendo para esboçar alguma reação.

Fechou os olhos apenas para abri-los novamente quando sentiu a picada da agulha em seu braço. Piscou, observando os olhos azuis cheios de preocupação.

- Kaoru...

A garota piscou confusa ao ouvi-lo. Abriu a boca para perguntar como ele sabia seu nome e o viu os olhos claros fecharem-se lentamente. Deixou-se cair na cadeira, sua atenção fixa no rapaz adormecido.

- Ele vai ficar bem?

- Claro que sim. – A enfermeira respondeu com um sorriso. – Apenas não deveria ter se levantado... Garoto teimoso.

- Ele disse meu nome... Como poderia saber?

oOoOoOoOoOoOo

- Ei!

- O que foi agora, Sano?

- Por que ele não lembra dos seus... 'Enganos'?

- Irrelevante para a situação.

- Mas ele...

- Ele não precisa lembrar, ok?

- Não faz sentido ele lembrar apenas de uma...

- Cala a boca, Sano! Ele apenas não lembra, ok?

- Não faz sentido...

- E depois eu sou a sádica...

oOoOoOoOoOoOo

Kenshin abriu os olhos lentamente para o quarto irritantemente silencioso. Podia ouvir as vozes quase sussurradas no corredor, os passos leves sobre o assoalho... O maldito e insistente 'bip' do monitor cardíaco... Odiosos sons que haviam se tornado familiares depois de alguns dias naquela 'prisão'.

- Está acordado?

O rapaz quase gemeu ao ouvir a conhecida voz feminina soar no quarto escuro. Fechou os olhos rapidamente, esperando que ela parasse de falar. Ainda não conseguia entender o que estava acontecendo, o que eram apenas fragmentos nos primeiros momentos em que acordara, agora encaixavam-se, tornando-se um doloroso quebra-cabeça de uma vida que não existia.

'Por quê?'

- Eu sei que está acordado. – Kaoru continuou depois de alguns minutos de silêncio – Se não quer conversar é só dizer.

- Não quero conversar. – As palavras escaparam, como vinha acontecendo desde o momento que acordara naquele maldito quarto, e ele xingou a si mesmo mentalmente por sua estupidez.

- Eu sabia que estava acordado!

Kenshin quase sorriu, a voz feminina transmitia alegria por tê-lo pego desprevenido mais uma vez. Abriu os olhos lentamente, mordendo o lábio para conter as palavras que ameaçavam escapar e encarou o teto em silêncio, sabia que ela continuaria a falar.

- Como se sente?

- Maravilhosamente bem.

- Sério?

- ... – Por que ela ao menos não podia parecer diferente. Seria tão mais fácil se os olhos azuis o encarassem com medo, raiva... Ou qualquer outra coisa além de curiosidade.

- O gato comeu sua língua?

- Você é irritante. – Ele respondeu finalmente. Tentou virar na cama e piscou confuso ao perceber algo prendendo seu torso ao colchão. – O que diabo...?

- A médica achou melhor prender você na cama... – A garota falou divertida, estendendo a mão para o interruptor que ligava o abajur ao lado da cama. – Depois da terceira vez que tentou fugir...

- Não tentei fugir. – Kenshin falou entre dentes, encarando a tira de couro que o prendia a cama.

- Não devia ter tentado levantar a cada vez que acordou.

- Parece que não tenho outra opção agora.

- Você parece uma criança mimada que está de castigo. – Ela riu, virando-se para encará-lo. – Podia ter saído daqui se não –

- Você consegue ficar calada por mais que dois segundos? – Ele a cortou, fechando os olhos para não ver a expressão magoada que surgira no rosto delicado. – O que ainda está fazendo aqui?

-...

Kenshin abriu os olhos, virando o rosto para observá-la. Arqueou uma sobrancelha ao perceber a expressão determinada da garota, encarando-o com os lábios cerrados.

- O que foi agora?

-...

- Não podia parar de falar a um minuto atrás e agora—

- Você disse que eu devia calar a boca. – Kaoru falou calmamente.

- Não quando estou falando com você!

- Não especificou os termos.

Encararam-se em silêncio por alguns minutos, como se travassem uma pequena batalha por controle. Kenshin suspirou, virando o rosto para a direção oposta.

- Escute... Não é muito agradável acordar e ser bombardeado com perguntas quando seu cérebro nem ao menos está funcionando corretamente.

- Está tentando me fazer sentir culpada? – Kaoru afastou-se da janela, caminhando calmamente até a cadeira entre as duas camas. – Seu cérebro estaria mais desperto se não insistisse em tentar fugir a cada vez que abre os olhos.

- Eu não estou tentando fugir!

- Não me surpreende que não consiga pensar direito, com todo o calmante que vi aplicarem em você—

- Está falando sem parar novamente, Kaoru.

- Como diabo sabe meu nome?

'Droga!' Fechou os olhos tentando organizar os pensamentos, sentindo o olhar inquisidor sobre si. Aquele tipo de discussão parecia tão familiar que acabara esquecendo que não tinham trocado mais que meia dúzia de frases... Antes que ele levantasse da cama e fosse atacado por um grupo de enfermeiras com agulhas e...

- Eu fiz uma pergunta.

- Ouvi alguém chama-la assim... – Ele começou lentamente – Infelizmente não ouvi o sobrenome. – Forçou-se a continuar com a expressão impassível no rosto enquanto esperava pelo que ela diria a seguir.

- Deve ter ouvido meu pai... – Ela começou, a voz falhando ao pronunciar ultima palavra..

Kenshin voltou sua atenção a garota sentada a seu lado, lançando um rápido olhar para a cama vazia. Koshijirou Kamiya não poderia estar morto... Ainda. Kaoru estava ali a seu lado e não percorrendo lugares de reputação duvidosa em busca de informação daqueles que haviam traído seu pai.

'Eu não estive acordado para falar demais sobre coisas que ela nem desconfia existir...' Sim, Kaoru sempre o fazia falar demais em uma tentativa de se livrar dos inconfortáveis silêncios entre os dois...

- Ei! – Kenshin piscou em surpresa ao perceber a mão delicada balançando a frente de seus olhos. – Você não morreu, não é?

- Não, não morri. – 'Embora desejasse estar morto...'

- Olha, por que você não—

A garota parou de falar no momento que a porta se abriu revelando a enfermeira. Kaoru levantou de um pulo, esquecendo-se completamente do rapaz ruivo, os olhos presos no rosto da mulher trajada de branco.

- Meu pai... A operação...

- O médico quer falar com você, Senhorita Kamiya.

- Ele está bem, não está? – Karou perguntou enquanto ignorava o rapaz observando-a deixar o quarto.

Kenshin suspirou no momento que a porta se fechou deixando-o no mais completo silencio. Graças a suas reações impensadas a cada vez que acordara não sabia quanto tempo havia se passado desde o primeiro dia.

Fechou os olhos, tentando aproveitar aqueles minutos de consciência para tentar colocar os pensamentos no lugar. Tudo o que tinha certeza era que por algum motivo desconhecido voltara ao momento que conhecera Kaoru...

Aquele quarto era uma espécie de tortura, o perfume da garota estava impregnado no ar, impedindo-o de se concentrar mesmo sem sua voz constantemente chamando sua atenção... Fazendo-o se lembrar da ultima vez que a tivera em seus braços, o corpo delicado coberto de sangue, a voz murmurando palavras de conforto, o silencio... Seu ultimo pedido tolo antes de perder a consciência...

'Eu não devia ter deixado você se envolver comigo... Se eu tivesse uma chance... Se eu pudesse mudar tudo... Se ao menos eu tivesse uma chance...'

Abriu os olhos de repente, tentando inutilmente sentar-se novamente. Gemeu, com a dor que trespassou seu corpo quando a faixa o segurou no mesmo lugar.

'Eu tenho essa chance agora'

Estava ali, no momento em que conhecera Kaoru, sem que ela tivesse se aproximado demais. Podia começar a tratá-la com indiferença, concentrar-se em melhorar e sair daquele hospital sem um segundo olhar sobre o ombro para o que estava deixando para trás. Tudo o que restaria... Seriam seus sentimentos. Lembranças que agora não passavam de simples sonhos.

'A única pessoa que vai se magoar sou eu'

Fechou os olhos lentamente, sentindo-se verdadeiramente cansado. Uma pequena parte sua não queria esquecê-la... Não queria abrir mão daqueles momentos que haviam passado juntos... Não queria viver sozinho sem a chance de tocá-la, deixá-la transformar seu mundo sombrio em algo luminoso novamente... Não queria deixá-la viver sozinha até encontrar um outro homem...

'Egoísta. Sempre egoísta demais para pensar nos outros antes de si mesmo.' Suspirou desanimado, ajeitando-se no pouco espaço que tinha. Fora assim que se envolvera com Kaoru, vira na garota a companheira perfeita, não porque não tivesse defeitos, mas porque parecia compreender tão bem os seus. Depois de tantos anos sozinho, finalmente ter alguém que o seguia sem lembrá-lo constantemente como era inútil por ainda estar naquela vida...

Sim, fora egoísta por pensar apenas em si mesmo. Em suas necessidades. Presunçoso por pensar que nada poderia atingi-lo. Ninguém seria melhor do que ele ou o venceria. Estúpido demais por pensar que poderia protegê-la.

- Acho que pedi por isso. – Murmurou, virando o rosto para a porta quando ela se abriu repentinamente, e a garota entrou. Tentou encontrar algum traço de tristeza ou lágrimas no rosto delicado, mas ela parecia normal. – Você está bem?

- Claro, melhor impossível.

Kenshin observou-a em silencio, notando a palidez no rosto dela, os dedos delicados tamborilando o batente da janela enquanto ela parecia olhar para o vazio como se não houvesse nada mais interessante no mundo.

- Não parece bem.

- Houve complicações na cirurgia do meu pai.

Kenshin fechou os olhos, suspirando. Ali estava sua chance de agir com indiferença e deixar que a garota o julgasse um mau caráter. Não seria difícil, ela sabia a razão por ele estar ali...

O soluço baixo, revelando o choro contido chamou sua atenção e ele soube que não havia nada que pudesse fazer para mudar aquele momento. Abriu os olhos novamente, encarando-a com pesar. 'E aqui vamos nós novamente'

- Quer conversar?

oOoOoOoOoOoOo

- Estúpido! – Sano gritou para a cena passando diante de seus olhos. – Afaste-se dela!

- Sabe que ele não pode te ouvir, certo? – Megumi arqueou uma sobrancelha para o rapaz que continuava murmurando xingamentos para o casal naquela espécie de nevoa por onde vinham obsercando os acontecimentos.

- Você é a culpada!

- Eu? – A garota cruzou os braços, franzindo o cenho. – Pelo que?

- Ser sádica! Está se divertindo deixando que eles se matem.

- Bobagem... Você ouviu o que ELE disse.

- Essa é sua ultima chance.

- Pior, é nossa ultima chance.

- Então dependemos do que esse cara fizer?

- Você sabe que ele tem boas intenções.

- Preciso dizer para onde as pessoas de boas intenções acabam?

- O mesmo lugar que nós se ele morrer novamente.

- Não agüento mais ver isso.

- Que tal avançar um pouco?

- Isso não é um filme, Megumi.

- Se eu posso voltar o tempo, posso avançá-lo também.

- Você nunca ouve! – Sano resmungou, cruzando os braços e fechando a cara. – Não estaríamos sendo ameaçados se você não achasse que pode brincar desse modo!

- Atendi um pedido.

- Nunca ouviu falar de regras?

-...

- Nunca atenda a pedidos dos humanos!

- Sano?

- Que?

- Cale a boca!

oOoOoOoOoOoOo

Kenshin observava a casa modesta do outro lado da rua em silencio. Fechou o casaco, cruzando os braços enquanto movia-se desconfortável dentro do carro.

Falhara miseravelmente em cortar relações com a garota, especialmente quando o pai dela viera a falecer, mas ao menos mantivera a boca fechada para os detalhes que ela não precisava saber... Especialmente se quisesse continuar viva.

- Ei, você! – Kenshin pulou, encarando a janela do carro. A garota sorriu, fazendo sinal para que abaixasse o vidro. – Você é péssimo nisso, sabia?

- Péssimo em que? – O rapaz perguntou, ainda confuso.

- Está me seguindo há pelo menos dois dias. – Ela falou divertida, endireitando o corpo. – Sim, eu vi você uma dúzia de vezes em todos os lugares em que fui.

- Coincidência.

- Certo. – A garota cruzou os braços, encarando-o – É coincidência você estar parado dentro do carro, em uma das noites mais frias do ano, vigiando minha casa?

- Você é esperta demais...

- A gente aprende algumas coisas sendo filha de um policial. – A garota falou, abrindo a porta do carro. – Foi descoberto, agora venha jantar comigo.

- Seu pai não lhe ensinou a não convidar estranhos para dentro de casa?

- Talvez, nunca tive talento para vitima indefesa. – Esperou que ele saísse do automóvel – Prefiro ser o caçador, não a chapeuzinho.

- Metáfora estranha.

- Não se preocupe, não pretendo atirar em você. – A garota continuou sorrindo enquanto caminhavam na direção da casa. – A menos que você tenha engolido alguma vovozinha.

- Você é estranha.

- Eu sei.

oOoOoOoOoOoOo

- Por que?

- Hum?

- Por que ele aceitou entrar? – Sano choramingou – Esse cara é muito burro, está repetindo todos os erros.

- Está mesmo?

- Oh, não! Você tem algum plano estranho para eles!

- Tenho?

- Vai fazer os dois morrerem! – Sano levantou de um pulo, apontando um dedo para a garota - Sua maluca sádica!

- O que você acha que tem que acontecer, Sano querido? – Megumi perguntou calmamente, aquele sorriso perigoso curvando seus lábios.

- O idiota tem que se afastar da garota.

- Errado! – Megumi sorriu, cruzando os braços despreocupadamente. – Ele tem que entender onde foi que errou.

- Ele errou ao se aproximar dela!

- Não, ele errou ao escolher o mundo que desejava.

- Não estou entendendo, Megumi.

- Vai entender. – Ela sorriu, observando a cena que passava diante de seus olhos. – Vai entender quando tudo terminar.