A Saga de Lúcifer:

UM REQUIEM PARA OS ANJOS

Capítulo III

Cosmos, 28 d.C.

Seu corpo está coberto de sangue, seu próprio sangue. Os longos cabelos brancos estão grudados no crânio e nas costas, misturados ao sangue, ao suor e a terra. Mal se percebe sua respiração. Qualquer um diria que o menino-anjo está morto, se não fosse pela Presença...

- COMO OUSA! COMO OUSOU FALHAR!

Miguel estava imóvel; de cabeça baixa sentia o sangue escorrer pelos ferimentos e pingar pelos dedos.

- SEU TOLO! ACHOU QUE VENCERIA ABBADON NO PULSO DE ENERGIA? IMBECIL!

Os anjos envolta de Miguel se olharam nervosamente. A maioria duvidara desde o começo que aquele novo anjo pudesse matar Abbadon, cujo poder chamara a atenção da própria Presença.

- ELE TEM MILHARES DE ANOS DE EXPERIÊNCIA. NÃO CAIRIA PERANTE A TUA FÚRIA INFANTIL.

Miguel encolheu-se ante aquelas palavras. Então, uma energia semitransparente o envolveu, e todas as partículas de sangue, suor e sujeira foram sendo retiradas de seu corpo, explodindo a poucos centímetros dele.

Seus ferimentos começaram a se curar e os olhos vermelhos voltaram a adquirir brilho.

- VOCÊ VIVERÁ. NÃO SE ESQUEÇA QUE AINDA NÃO CUMPRIU SUA FUNÇÃO. E LEMBRE-SE DE USAR A INTELIGÊNCIA E NÃO APENAS OS MÚSCULOS!

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Jerusalém, Periferia madrugada

O lugar estava escuro, todas as casas pareciam estar de luto, entregues à escuridão.

As ruas estavam sujas e o ar, seco, cheirava a esgoto. Tudo isso passava despercebido para um homem que com o olhar ansioso varria as cercanias.

De repente, ele soltou uma exclamação e com movimentos descordenados, agarrou pelo colarinho um homem que acabara de chegar.

- O que aconteceu! Por que ele não falou? O que aconteceu lá!

Seus dedos branquearam pela força com que apertava a roupa do outro.

- Não era pra isso acontecer! Ele tinha que nos liderar. Por que ele não se revoltou?

Enquanto gritava, seu rosto reluzia de suor. O outro nem se mexia, como se estivesse imobilizado pela voz.

- Não foi isso que planejamos! Era pra ele iniciar a luta armada quando se revoltasse... Mas, ele não... Ele aceitou a morte. O QUE N"S FIZEMOS!

- Nós...?

Finalmente, o recém-chegado se manifestou. Com uma voz neutra, continuou:

- Eu não fiz nada. Você fez tudo. Você o entregou aos romanos.

- Você disse... Você disse que ele se rebelaria se pressionado! Você concordou com tudo!

- Não! Eu comentei que ele PODERIA se revoltar caso algo drástico acontecesse. Você fez tudo, Judas, sozinho.

Com delicadeza, retirou as mãos de Judas de sua roupa, e dando-lhe as costas, foi embora.

Judas ajoelhou-se no chão enquanto observava o outro sumir na escuridão.

- Tiago...

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Gólgota entardecer

A noite vem rápida fora dos muros de Jerusalém. Não que os que lá estão, reparem.

O homem crucificado, por exemplo. De todos os condenados, ele é o único ainda vivo.

Sua cabeça, coroada de espinhos, sangra toldando-lhe a visão, a garganta seca dificulta a já debilitada respiração, de um corte na altura das costelas escorre sangue. É um milagre ainda estar vivo.

Os últimos raios de sol somem, um soldado romano percorre o local acendendo as tochas, enquanto em latim maldiz o cheiro de carne putrefata, urina e fezes que infestam o local.

Quando a última chama é acesa, o crucificado vira lentamente a cabeça em sua direção. Os olhos se embaçam, os punhos e os tornozelos, perfurados pelos cravos, relaxam. A respiração cessa.

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Monte das Oliveiras entardecer

Os animais não fazem barulho, não há vento, o único som é o de uma corda sendo cuidadosamente amarrada num galho.

No alto de uma árvore, Judas olha o poente antes de colocar o laço no pescoço. Soluça quando pensamentos dolorosos cruzam sua mente. Algumas moedas caem de seu bolso.

Sem uma palavra ou um momento de hesitação, ele pula e a forca se distende. Não arqueja, nem tenta buscar apoio, o impacto quebrou seu pescoço antes que ele pudesse sufocar.

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Gólgota Noite

O corpo de Jesus continua preso à cruz, os romanos se recusaram a descê-lo, porém permitiram que um de seus familiares se aproximasse. E ali estava Tiago, observando o irmão mais velho.

- Veio terminar sua tarefa?

Tiago voltou-se para a voz, seu rosto empalideceu e uma aura energética rapidamente iluminou seu corpo.

- Abbadon!

- Jesael... – Lúcifer encarou calmamente o outro. – Eu sabia que você iria se esconder em um corpo humano, mas tenho que aplaudir a sua manipulação desse mortal... Poderia ter me enganado... Se o objetivo não fosse tão evidente!

- Ora, seu...

- Chega!

Os dois se voltaram para o anjo ruivo de armadura dourada que aparecera subitamente.

- Jesael! Você tem um trabalho a terminar!

Diante do olhar imperativo do outro, Jesael desceu o corpo de Jesus e rapidamente sumiu do local. Os dois restantes se encararam.

- Gabriel, tenho que dizer que o plano é engenhoso!

O anjo lançou um olhar intrigado diante do sorriso mau de Lúcifer.

- Deliberadamente deu poder a um humano para que as pessoas a sua volta o julgassem divino, manipulou-o no sentido de criar um novo mito, uma nova religião. E lógico... Melhor que um herói, só um mártir. Realmente engenhosa a idéia de fazer com que um de seus companheiros fosse responsável por sua morte. Porém, vocês cometeram um erro grave. Um erro que fará com que a humanidade se volte para mim e não para vocês.

- E qual foi esse erro, Abbadon?

- Essa pseudo-nova religião nega tudo o que torna esses seres humanos... e é por isso que no fim todos eles se voltarão para mim. Eu não poderia imaginar um resultado melhor.

- Você está errado. Por mais difíceis que sejam as provações, por mais torturante que seja a nova ordem, todos esses humanos agora temem você. Não duvido que muitos abracem o seu lado, mas os mais fortes, os mais preciosos, vão ceder ao nosso condicionamento e negarão você até a morte!

- Isso não é uma luta de bem e mal, Gabriel. Vocês podem querer que seja assim, mas não é! E não pense que eu desconheço o motivo pelo qual a Presença teve esse súbito interesse por seus antigos brinquedos. Eles são poderosos, muitos serão ascensores, com poder suficiente para fazerem pender o equilíbrio de força que houve com a cisma divina. E eu vou estar por perto quando eles se revelarem, e por não nega-los eles virão até mim!

- Abbadon... Você não terá essa chance. Eu sinto muito.

Atrás de Lúcifer um portal se abriu e um raio potente de energia atingiu-o em cheio.

Lúcifer rapidamente se levantou do chão, porém quando se virou para o lado do tiro não encontrou nada. Imediatamente um novo raio o atingiu pelo lado esquerdo, só que dessa vez, ele estava preparado e absorvendo o impacto revidou o tiro que varreu parte da cidade de Jerusalém.

"... Tática de guerrilha... Parece que o primeiro anjo de combate resolveu fazer jus ao seu título..."

Um corpo brilhante desceu sobre Lúcifer a uma velocidade tremenda. Era Miguel partindo para o combate corpo-a-corpo. Desferindo uma seqüência de chutes e socos, conseguiu atordoar o oponente e terminou com uma rajada curta que varou o ombro esquerdo de Lúcifer.

Antes que Miguel conseguisse preparar outro disparo, Lúcifer pulsou energia e atirou o jovem anjo longe, aumentando a destruição.

"Moleque... Dessa vez você não vai conseguir se esconder... heim!..."

Acompanhando a luta de perto, Gabriel aproveitara a oportunidade e agarrara Lúcifer pelo braço.

- Chega, irmão! Pare com essa loucura! Olhe para nós, usando armaduras e lutando uns com os outros. Arrependa-se e termine com essa guerra!

Os olhos negros de Lúcifer brilharam perigosamente. Com um movimento ágil ele se livrou da torção e com o braço envolta do pescoço de Gabriel, o colocou na sua frente, imobilizando-o.

- Essa guerra só começou!... E obrigado por me garantir a vitória... irmão.

Com a mão direita na altura do abdômen de Gabriel, Lúcifer concentrou uma bola de energia e a soltou. A bola perfurou o corpo do anjo e acertou Miguel que não podendo ver seus movimentos, não teve como se desviar. A explosão varreu o local.

Quando a poeira baixou e a energia se dissipou se pôde ver o corpo de Gabriel caído aos pés de Lúcifer. Uma enorme poça do sangue brilhante dos anjos circundava o cadáver e podia-se ver em sua face uma expressão de surpresa e dor.

Poucos metros à frente, estava Miguel, também caído. O corpo uma massa disforme de carne queimada e ainda fumegante.

Lúcifer olhava para tudo com o rosto inexpressivo. A cidade sofrera tremendos danos, os muros e pelo menos dois terços de Jerusalém haviam sido, literalmente, pulverizados. Mas não era a isso a que ele se atinha. Um verdadeiro exército de anjos o cercava.

Atrás dele estava sua Legião. Armas em punho. Prontos a lutar.

A sua frente estava o exército celeste. Armas guardadas. Olhos marejados.

Um anjo loiro que Lúcifer reconheceu como Ismael, bradou algumas ordens. Um outro anjo se dirigiu até o corpo de Miguel e o recolheu. Lúcifer percebeu surpreso que o garoto ainda estava vivo.

Três anjos, liderados por Ismael, caminharam até Lúcifer, mas nada disseram. Com Ismael o encarando, os outros se abaixaram e cuidadosamente envolveram o corpo de Gabriel em energia branca e se afastaram com ele.

Ismael encarou Lúcifer por mais alguns momentos, então lhe deu as costas e partiu com seu exército.

- Batlerby, convoque o meu panteão... Quero uma reunião com todos os deuses que me apoiaram!

- Senhor, o que devo informar a eles?

- Diga que é sobre a postura que vamos tomar em relação aos humanos daqui em diante.

A Legião partiu e o anjo-deus, ainda com o ombro a sangrar, sorriu levemente pisando na poça de sangue de Gabriel.

FIM