O FOGO E A FÚRIA
PRÓLOGO - O olho do dragão
"Far, far beyond the island
We dwelt in shades of twilight
Through dread and weary days
Through grief and endless pain"
Mirror, Mirror – Blind Guardian
Um céu avermelhado pelo pôr-do-sol cobria uma gigantesca planície. No horizonte, uma coluna de fumaça subia até as nuvens. O primeiro vento daquele novo tempo não era mais que uma mera brisa, mas trazia um alívio fresco e varria para longe o cheiro de sangue e morte. Guerreiros ergueram seus rostos cortados e sujos para senti-la e sentiam-se tristes porque seus companheiros mortos naquela mesma planície não podiam fazer o mesmo.
Dois séqüitos cortavam a planície cada um vindo de uma extremidade. O séqüito da direita trazia seis homens com armaduras bem forjadas, que mesmo pesadas não rangiam nem incomodavam o guerreiro dentro delas, traziam os elmos em forma de cabeça de dragão de baixo dos braços e as espadas descansavam ainda sujas dentro das bainhas. Na frente caminhava um guerreiro alto, esguio e seus olhos estavam escuros de tristeza. Cada olho do dragão no seu elmo tinha uma pedra preciosa verdes que brilhava especialmente naquele dia. Ele era o rei do Makai.
Do outro lado, o segundo séqüito caminhava em número de sete. Tão bem vestidos e solenes quanto os outros, os guerreiros traziam elmos cujos desenhos lembravam ondas e estrelas e na frente caminhavam dois guerreiros: o primeiro era tão alto e largo que seu corpo chegava a curvar-se um pouco e sua armadura brilhava mais que as de todos os outros; seu rosto era largo e duro e tinha uma barba negra espessa e desgrenhada e ele se chamava Enma Daio e era o Senhor do Reikai. Ao seu lado caminhava um guerreiro comum, com o peitoral amassado e arranhado e com o rosto sujo de sangue. Era forte, tinha olhos jovens e cabelos castanhos compridos e embaraçados pela guerra que escondiam orelhas pontudas. O elmo havia rachado bem no alto da cabeça e se transformara numa lata velha, sem utilidade, mas mesmo assim, ele o carregava debaixo do braço. Um terceiro guerreiro levava um baú negro nas mãos.
Os grupos se encontraram bem no meio do campo de batalhas. Os guerreiros na frente se encararam por alguns minutos sem dizer uma palavra. Olharam-se, mediram-se, xingaram-se mentalmente e, quase como se tivessem combinado, seus olhos rodaram pelo campo coberto de guerreiros mortos e entristeceram.
Os soldados vestidos com dragões depuseram seis armas: uma espada, uma lança, duas adagas, um arco e um chicote, todas brilhantes como ouro. Os outros soldados fizeram o mesmo e aos seus pés estavam os mesmos tipos de armas, tão parecidas que poderiam ser confundidas.
O baú foi posto no chão e guerreiro de cabelos castanhos pegou cada uma das armas com extremo cuidado, como se fossem tesouros frágeis e as guardou. A tampa se fechou com um baque surdo e o ambiente pareceu livre de um pesado fardo. O Rei do Makai tirou seu elmo e arrancou uma das pedras verdes que faziam os olhos do dragão. Levou a pedra até bem próximo dos lábios e sussurrou algo como uma prece.
"Pronto." – ele disse com voz forte e estendeu a pedra a Enma-Sama que a pegou e fez o mesmo.
"Este..." – Enma-Sama começou apontando para o soldado ao seu lado.
"O nome dele não me interessa, eu o vi lutar... gostei dele." – o Rei deu um sorriso desajeitado como se não tivesse o hábito de fazê-lo.
Enma-Sama entregou a pedra ao soldado que a recebeu com uma pequena reverência.
"Guarde-as." – ele ordenou – "Você não tem permissão de usá-las, ninguém mais tem. Estas armas não devem sair desta urna novamente, aestrago que elas causaram foi suficiente para uma vida inteira... Você só deve abrir a urna caso algo ameace os dois mundos. Esta é a chave." – e deixou a pedra verde nas mãos do guerreiro.
O FOGO E A FÚRIA
Parte I – O décimo terceiro tesouro
"Silently we wander
In search of truth and confidence
So many hopes were lost here
Along the way
From morning to night"
Wander - Kamelot
As portas se abriram deixando uma fumaça quente escapar para a noite, mas ela permaneceu do lado de fora parada nas sombras. Olhava o movimento ruidoso da casa de banhos, seguindo com os olhos azuis apenas o seu alvo. Um homem grande e forte, de cabelos castanhos que desciam até sua cintura, escondendo as orelhas pontudas. Usava um quimono branco com desenhos dourados finamente cortado que caía-lhe com perfeição.
Com ele estavam seis guardas-costa que ouviam e viam tudo exceto por ela nas sombras das janelas, espiando. Um serviçal da casa aproximou-se, fez uma reverência e logo ambos subiam as escadas até o segundo andar onde um salão havia sido preparado especialmente para atendê-lo.
Ela alcançou o segundo andar como uma sombra e, agarrada às reentrâncias da parede e com os pés apoiados nas vigas de madeira, observou o homem tirar seu rico quimono, pendurá-lo em um cabide e afundar-se em uma banheira de água quente e folhas de eucalipto que ficava escondida atrás de um biombo. Podia quase ouvi-lo suspirar deliciado de tão atentos que seus sentidos estavam.
Em muitos anos sentia-se tensa. Confrontá-lo seria sua morte, ela assumia isso, mas confiava em suas habilidades para sair dali com o que fora buscar. Era difícil manter sua energia escondida dentro de si para que não fosse sentida, demandava uma concentração extrema que ela tinha que dividir com seus outros atos. Criou uma pequena bola de chamas vermelhas na palma da mão, derreteu o trinco e com rapidez pulou para dentro do salão, fechando a janela atrás de si sem nem mesmo deixar que o vento ameaçasse a luz das velas. O biombo a protegia da visão do homem na banheira e, em menos de um gesto ela resgatava do bolso do quimono uma pequena pedra verde. Guardou o artefato em um bolso próximo ao corpo e, com um meio sorriso esticou-se para a janela.
Foi quando seus sentidos gritaram e seu corpo eriçou-se como o pêlo de um lobo. As mãos puxaram as espadas nas laterais do cinto. Havia mais alguém ali, pronto para cair sobre ela, mas seus olhos procuravam em vão. Até perceber que as sombras das velas nas paredes se mexiam ao seu redor, cercando-a. Não mais que uma sombra partiu para o ataque atirando-a contra o biombo e fazendo com que caísse com os pés na banheira onde o homem jazia morto em água carmim.
"É incrível!" – ela pensou – "Não há um corpo, mas mesmo assim, esta sombra me atirou até aqui. Alguém deve estar controlando-a de longe.". Era inacreditável, nem mesmo podia tocá-la, seus dedos passavam pelo espectro negro como se não estivesse lá. Suas espadas curtas rodopiavam ferozmente e mesmo que descessem com força sobre a sombra não cortavam mais do que o ar. "Logo toda a casa de banhos estará aqui. Já tenho o que quero, seja lá o que for isso não é da minha conta, preciso sair."
A sombra investiu mais uma vez com a força pesada de cem homens, mas ela conseguiu pular sobre o inimigo que abriu um buraco na parede com seu soco. As espadas caíram pelo caminho, mas não pensou em buscá-las de volta, já tinha o que queria. Ouviu os homens correrem pelas escadas e ela estava pronta para mergulhar pela janela e para a escuridão de onde viera quando a sombra envolveu suas espadas e elas tornaram-se negras.
As armas se ergueram com as pontas voltadas para ela e, como se a sombra as houvesse arremessado, cortaram o ar em sua direção. Já estava a meio caminho da janela quando a primeira cravou-se na parede. A segunda, porém, raspou sua barriga rasgando pele e carne e caindo pela janela junto com ela. Em segundos a ladra sumia na escuridão.
Só parou de correr muitos quilômetros depois quando estava novamente sozinha. Tombou no chão com a roupa ensopada de sangue e os olhos turvos vigiavam a noite a procura de sombras vivas. A dor era desesperadora para um corte como aquele, ardia e queimava todo o corpo e, aos poucos, até seu espírito passou a ficar perturbado e ela caiu num pesadelo de dor até o meio do dia seguinte quando acordou com a luz batendo nos olhos. Pôs a mão na ferida e ela parecia cicatrizada a fogo. Levantou-se ainda tonta e voltou para o seu lugar.
