"O frio é o clima das pessoas solitárias." Hiei ia lembrando dessas palavras enquanto caminhava pela planície gelada. Estava perto do lugar onde nascera e sentiu raiva do seu passado, tanta raiva que poderia cortar o primeiro ser que cruzasse seu caminho, mas ali não havia nada vivo. Fazia um frio parado, sem vento, que envolvia o corpo impedindo que se sentisse os dedos e as pontas das orelhas e do nariz. Mas ele não pareceu incomodado, o frio é o clima das pessoas solitárias.
Chegou ao destino no início da noite, o céu ainda tinha alguma cor entre o vermelho e o negro, numa luz pálida. Era um acampamento de ladrões em uma clareira cercada por um bosque que sobrevivia bravamente ao frio. O bando contava com 30 ladrões cuidadosamente escolhidos e que formavam uma força extremamente letal e eficiente. Não tinham nome, nem precisavam, eram conhecidos pelas ações.
Alcançou a clareira sem esbarrar em guardas ou batedores, algumas tendas estavam armadas ao redor de uma grande fogueira e tochas estavam presas nos troncos das árvores. Hiei parou alguns passos dentro do círculo do acampamento quando os olhares voltaram-se para ele. Os três mais próximos se levantaram imediatamente.
"O que você quer?" – um deles perguntou.
"Com vocês, nada. Saiam da minha frente." – o olhar displicente de Hiei pareceu irritá-los.
"Você não deve ter entendido, menino. Daqui você não passa. Não aceitamos estranhos nem crianças."
Os três partiram para cima de Hiei que desviou sem ser visto. Em um piscar de olhos o koorime estava atrás deles com a espada desembainhada. A movimentação chamou a atenção do bando, mas ninguém se intrometeu: acreditavam que três contra um era uma clara vitória.
"Eu já disse que não quero nada com vocês. Deixem-me passar e vocês podem até viver."
"Menino arrogante! Vai morrer agora!"
"Parem com isso." – uma voz alta e suave soou da escuridão do bosque e era de tal altivez que até mesmo Hiei descansou da posição de ataque e embainhou a espada.
Do meio das árvores surgiu uma figura esguia que, aos poucos, ia sendo iluminada pelas chamas do acampamento. Era uma mulher vestida de preto com uma capa pesada amarrada nos ombros, à medida que a luz achava suas feições era possível ver que vestia vinho e calças pretas, os cabelos negros estavam amarrados por fitas vinho assim como seus punhos e seus olhos eram azuis, tão profundamente azuis que refletiam o vermelho das luzes das tochas.
Os ladrões fizeram uma reverência.
"Vocês fizeram bem, podem ir agora."
"Mas..."
"Eu disse que podem ir."
Os três se afastaram, os olhares ao redor voltaram aos seus afazeres como se a ordem tivesse sido dada a todos.
"Você tem uns guerreiros bem arrogantes por aqui." – Hiei falou sem se intimidar com a figura.
Ela deu um meio sorriso ao se aproximar e os dois fitaram-se nos olhos, pois tinham quase a mesma altura e, não se soube se os olhos dela ainda refletiam as chamas do acampamento ou os olhos na sua frente.
"Nem todos aqui te conhecem, Hiei. Não pense que sua fama é tão grande quanto acha."
"Você já foi mais seleta com seu bando."
"É o meu bando, deixe que dele eu cuido." – ela replicou sem piscar – "Venha."
Hiei a acompanhou até uma tenda onde um lampião estava aceso no chão fazendo com que as sombras formassem desenhos disformes no tecido.
"Eu soube que você quase perdeu o braço para o seu próprio golpe, parece que o seu dragão fugiu do controle." – ela disse vendo parte do braço direito de Hiei que aparecia sob a capa preta.
"Eu só fiz mostrar o meu poder completo. Você deveria saber."
"É, eu deveria saber." – ela murmurou, porém, sua indiferença foi abalada momentaneamente. Sentiu que, de repente, todo o sangue de seu corpo esfriou, as formas ao redor desmancharam-se e tudo era um borrão. Sentiu que ia cair, mas não tirou os olhos de Hiei, tentando disfarçar o mal estar.
"Lyn?" – a menção do seu nome a trouxe de volta. Ela piscou voltando a respirar e seus olhos acharam os dele novamente. – "Eu não vou perder meu tempo aqui. Vá direto ao ponto."
"Amanhã, Hiei." – ela conseguiu dizer ainda zonza.
"Sem brincadeiras, Lyn!"
"Eu disse amanhã! Se não quer esperar vá embora, mas eu aviso: te chamei aqui por um motivo muito forte, que interessa mais a você do que a mim. Você pode escolher."
Hiei se calou irado e deixou a tenda sem olhar para trás. Lyn desmoronou sobre os joelhos sem fôlego e sem forças, como se um pedaço de sua alma tivesse sido arrancado e com ela caiu também toda a sua altivez.
Desde a luta com a sombra sentia que o sofrimento só acabaria quando toda a sua alma fosse retirada. Aquela cicatriz era um veneno diabólico agindo lentamente na sua vida, morreria em breve e só restava-lhe um tempo curto para vingar-se.
Hiei chegou a deixar o acampamento para trás, mas algo o impediu de continuar. Estava furioso com Lyn por tê-lo descartado daquela forma, porém, a lembrança de seus olhos o fez ficar: estavam escuros. Na verdade, ficaram escuros de repente. Havia algo errado e, achou-se tolo por pensar daquele jeito, mas resolveu ficar para saber o que era. Nunca admitiria também que a curiosidade o consumia. O que Lyn poderia querer depois de anos sem se encontrarem?
Acomodou-se num galho largo e esperou o dia e as respostas.
Lyn acordou com a claridade. Ajoelhou-se, fechou os olhos concentrando as forças para o novo dia e, do meio da escuridão, ela ouviu o toque de um sino ecoar por toda a planície, subindo pelo vale inteiro, tomando montanha e bosque. Um som que a levou muitos anos no passado e fez seu corpo estremecer.
A pureza do som tirou Hiei de seus pensamentos. Já ouvira sinos antes, mas este quase falava com ele, as badaladas tinham um significado muito claro. Alguém desafiava Lyn e ele não podia deixar de assistir ao espetáculo que aquilo se tornaria.
As badaladas significavam que um membro do bando desafiava seu líder para uma luta que só terminaria em morte. O desafiador deveria fazer um desafio diante de todo o bando, dando ao desafiado a oportunidade de se defender com palavras ou com a luta. É óbvio que, entre os ladrões, a defesa por palavras praticamente inexistia, mas estas eram as leis. E Lyn, como uma boa ladra, jamais se defenderia ou defenderia sua liderança só com palavras.
Sob o poste, tocando o sino, estava Gunn, um ladrão antigo e ambicioso. Lyn sabia que ele mais cedo ou mais tarde a desafiaria ou, no mínimo, deixaria o bando para criar seu próprio grupo, já havia notado suas tendências traiçoeiras desde que o escolhera, mas Gunn era bom em certas coisas e tudo que ela precisava era mantê-lo em seu lugar. Parecia que nos últimos dias sua dominação não vinha fazendo muito efeito e Gunn se libertara, finalmente. Porém, era claro que poucos ali poderiam vencê-la e, com certeza, Gunn não era um deles. Ele não primava pela força e habilidade, estava mais para raposa que para lobo, tinha ouvidos apurados para qualquer coisa, principalmente intrigas, uma língua mordaz, um cérebro rápido e uma alma ambiciosa e insolente. Lyn não estava surpresa, estava furiosa.
"Eu desafio Lyn, a dama dos ladrões," – ele gritou ao ver Lyn se aproximar – "para uma luta pelo posto de líder deste bando sob a acusação de que não é mais forte o suficiente para liderá-lo."
"Podia, ao menos, criar uma acusação um pouco melhor..." – Lyn pensou ainda em sua tenda – "Como se ele fosse capaz..."
Do lado de fora, um youkai saltou diante de Gunn, seus olhos negros contrastavam com a pele muito branca e dos cantos da boca duas presas cresciam ameaçadoras.
"Enfrente a mim, Gunn." – o youkai falou com uma voz convidativa.
"Você não daria nem para o início, vampirinho."
"Não me subestime."
Lyn saiu da tenda a tempo de ver os olhos do youkai-vampiro se tornarem vermelhos e os que estavam perto viram sua boca salivar ao olhar o pescoço de Gunn.
"Merda!" pensou e em voz alta ordenou que o youkai se afastasse mas ele não pareceu ouvir.
"É uma ordem, Zen. Ou eu o tirarei a força!"
Os olhos do ladrão voltaram ao negro e ele se afastou de Gunn a contragosto.
"Se eu lhe matar Gunn você me garante que eu estarei provando a minha força?"
"O quê?"
"Eu quero saber se você realmente acredita que eu estarei mostrando toda a minha força ao lutar com você. Uma luta com alguns daqui poderia até provar qual é minha força real, mas com certeza você não está entre esses. Pessoas poderosas são sábias e sabem a quem desafiar e quando desafiar. Você não passa de um linguarudo ambicioso que morrerá hoje ao fim do dia."
Lyn tomou a corda do sino e tocou uma vez. O som fez estremecer os picos de gelo de tão agudo e, provavelmente ao redor do País de Gelo, que ficava logo acima daquela planície, escondido pelas nuvens, alguma encosta deslizou. Do galho onde estava assistindo Hiei sorriu com satisfação. Nada parecia errado.
A altivez e ousadia de Lyn eram famosas por todo o Makai, porém, desta vez ela sabia que estava indo longe demais. Sabia que com suas energias se esvaindo Gunn não era um adversário tão ridículo, mas não fugiria nunca de uma luta, nem deixaria que um fraco pusesse em dúvida sua liderança.
Os ladrões dispersaram logo após o toque de Lyn e ela se viu sozinha ao lado do sino olhando ao redor como se procurasse alguém. Sentia a energia conhecida de Hiei em algum lugar dos seus domínios e saiu para procurá-lo; achou-o sentado em um galho observando o acampamento.
"Não conseguiu ir embora?"
"Pra falar a verdade, fiquei por causa do desafio. Você pode vir a precisar da minha ajuda." – ele falou irônico.
"Cale a boca! Gunn não apresenta a menor ameaça e você sabe disso."
"Chega, Lyn!" – a voz de Hiei mostrava que ele estava cansado daquela demonstração de superioridade. Saltou silenciosamente para o chão – "Eu não vou perguntar de novo: o que está acontecendo? Eu sei que há algo errado, eu senti no mundo dos humanos e continuo sentindo aqui."
Lyn deu alguns passos se afastando mais do acampamento e Hiei a seguiu.
"Eu roubei uma chave." – ela disse quando estavam longe suficiente.
"Uma chave que abre o quê?"
"Uma chave que abre um tesouro, Hiei." – ela inclinou-se como se contasse um segredo e sua voz entrou nos seus ouvidos suavemente – "Eu roubei um dos Tesouros do Makai."
Hiei não conseguiu conter a surpresa, seus olhos se arregalaram sem acreditar ainda mais na forma tranqüila que Lyn lhe contava.
"Um dos... Tesouros do Makai? Eles são guardados pelo guerreiro Kayo, você não é tão forte assim, Lyn."
"O Guardião está morto, Hiei."
"Você não pode ter matado Kayo, ele é poderoso demais até para os Reis!E além do mais, seria um grande estupidez, você sabe que ninguém deve chegar perto de Kayo..."
"Foram os humanos que te ensinaram a obedecer regras agora?" – a voz dela era ácida – "Eu não disse que o matei, disse que ele está morto. Mas não se preocupe, você irá comigo. Já está decidido. Agora vamos, sinto alguém estranho nos meus domínios!"
Ela sumiu rapidamente pelas árvores com Hiei logo atrás e só parou ao ver três vultos caminhando pelo bosque. Parou em um galho olhando cuidadosamente para o chão.
"Que diabos está acontecendo aqui? De repente todo mundo resolveu fazer passeios turísticos pelo Makai?" – ela resmungou vendo as figuras caminharem tranqüilamente pela trilha. Não podia ver seus rostos, mas era claro que um tinha cabelos vermelhos e vestia um quimono azul e branco enquanto que os outros dois exalavam um cheiro de humano. Hiei os reconheceu imediatamente e ficou surpreso, mas não disse nada. Lyn saltou sem esperá-lo.
"Eu os aconselho a deixarem este lugar." – ela disse ao tocar o chão bem em frente ao grupo.
"Procuramos uma pessoa." – o jovem dos cabelos vermelhos se adiantou em falar e Lyn percebeu que seus olhos verdes permaneciam tranqüilos diante da ameaça. Seu corpo era esguio, parecia um menino frágil, mas a energia que se desprendia dele trazia uma certa letalidade. Ao seu lado estavam os dois humanos, um tinha cabelos pretos penteados cuidadosamente para trás, colados na cabeça que - Lyn pensou - nem mesmo um vendaval poderia tirá-los do lugar. O último tinha cabelos castanhos, um corpo forte, era bem mais largo que os outros dois e seus olhos estavam perdidos observando todos os lugares ao mesmo tempo como uma criança deslumbrada. Fediam a humanos, todos os dois.
"Aqui não procuram ninguém. Melhor se apressarem pelo caminho de onde vieram." – ela ordenou, levando a mão ao punho da espada.
"Espere! Você é Lyn, a líder dos ladrões, não é?"
"Sou."
Ela pôde ouvir os outros dois sussurrarem boquiabertos:
"Essa menina me lembra alguém. Quem você acha?"
"É você tem razão... mas não consigo saber quem é."
"Se nos responder iremos embora." – o primeiro continuou sem piscar e Lyn por um momento simpatizou com sua determinação.
"Fale logo."
"Procuramos um youkai, seu nome é Hiei."
"Ele está morto." – ela falou secamente.
"O quê?" – os três empalideceram, pegos de surpresa pela mentira de Lyn. Ela pôde ver o minuto de confusão que tomou conta dos pensamentos dos três e seus olhos refletiam surpresa, dúvida e uma tristeza que ela não sabia se alguém poderia sentir. Depois, então, sorriu e olhou para cima. "Amigos de Hiei...? Quem diria..."
"Do que você está rindo?" – o de cabelo preto gritou furioso pronto para avança sobre ela – "Hiei era nosso amigo!"
Ela riu despreocupada.
"Muito engraçado." – a voz de Hiei veio com um tom de divertimento – "Pode deixar, eu os conheço. Estes são Yusuke e Kurama." – ele apontou para o nervosinho e para o jovem de olhos verdes. – "E aquele é Kuwabara."
Lyn balançou os ombros, indiferente.
"O que fazem aqui? Se ia trazer amigos deveria ter me avisado, eles poderiam estar mortos agora."
"Eu não trouxe ninguém, eles me seguiram." – ele respondeu jogando-lhes um olhar ferino.
"Então, resolvam seus problemas sem me incomodar. Vocês podem ficar, mas em um instante eu posso mandá-los embora ou matá-los. Entenderam?" - os três sacudiram a cabeça concordando – "Vamos."
"O que vocês querem aqui? Como me acharam?" – Hiei perguntou enquanto Lyn se afastava.
"Nossa quanta hostilidade, hein? Qual é? Não podemos começar por um "Estou muito feliz em ver vocês"?" – Yusuke brincou.
"Vocês vão ficar de conversa no meio do mato, é?" – a voz de Lyn colocou-os de volta a andar.
"Diga Hiei, você agora recebe ordens de uma mulher?"
O youkai não se deu ao trabalho de encarar Kuwabara e Yusuke que riam. Kurama já andava atrás de Lyn com os olhos escuros e sérios.
"Vocês querem se apressar ou perderão um evento único." – Lyn falou sem olhar para trás.
"Evento único?" – os olhos de Kuwabara brilharam – "Espero que seja um festa, estou morrendo de fome!"
"Depende do que você considera festa." – Hiei resmungou, voltando a andar.
"Você quer falar logo o que vai acontecer?" – Yusuke pediu.
"Lyn vai lutar."
"Lyn foi desafiada?" – a voz de Kurama estava cheia de surpresa.
"Hoje cedo. A luta será no cair da noite e vocês, pelo que parece, serão convidados de honra."
"Vocês querem parar de cochichar que eu não tô ouvindo nada! O que é que tem esse desafio? O que é que tem demais Lyn lutar?"
"O desafio decide o líder do bando e só termina com a morte." – respondeu Kurama.
"E quantos desafios ela já venceu?" – Yusuke perguntou de olho em Lyn mais adiante.
"Um" – ela respondeu olhando rapidamente para trás – "e eu era a desafiante."
Isso pôs um fim na conversa que já começava a irritá-la profundamente. Chegaram ao acampamento e Lyn deixou-os dizendo que precisava resolver assuntos importantes, mas todos podiam perceber que ela estava tensa com a proximidade do duelo. Uniu-se a Zen e os dois se afastaram.
