Na noite do segundo dia chegaram aos pés de uma cadeia de montanhas que se erguia como uma sombra no meio de uma planície pedregosa sem vegetação nem água. A linha de montanhas rochosas se estendia como uma muralha gigantesca até perder-se de vista: rodeá-la levaria semanas e atravessá-la tomaria alguns dias duros e frios o que tornava o mundo atrás daquele paredão um mistério. O vento batia forte, fazendo um barulho alto no ouvido dos viajantes, arranhando os rostos e fazendo os olhos lacrimejarem.

Os dois últimos dias tinham sido os mais desesperadores da vida de Lyn. A cada passo que dava sentia um pouco de suas chamas diminuírem e esconder o que acontecia demandava um nível de concentração que a fez se manter calada por toda a jornada. Temia que suas chamas se apagassem muito antes de conseguir sua vingança, fazendo com que todo aquele sacrifício terminasse numa morte estúpida. Pensara em pedir sua vida de volta ao invés da localização do assassino, mas considerou o desejo por demais covarde e desonroso, cogitara deixar a vingança nas mãos de Hiei caso morresse, mas também considerou que morreria com uma dívida não paga. Acreditou, então, que o melhor a fazer era não morrer. E, apesar de ser uma opção bem óbvia, não se mostrava nem um pouco fácil de ser cumprida.

Preferiram não seguir adiante por aquela noite: sentaram-se e acenderam uma fogueira com a ajuda das chamas de Lyn, que não se apagavam com o vento. Apenas a youkai ficou de pé, olhando para a noite e para as sombras mal-desenhadas pelo fogo.

"Que lugar é este, afinal? Não há nada a não ser pedra!" – Kuwabara reclamou procurando qualquer coisa na escuridão – "Será que a tal sombra que matou o Guardião Kayo está aqui?"

"Só quem vê o mapa sabe o caminho." – Lyn respondeu examinando cuidadosamente a escuridão – "Além do que, eu reconheceria o menor rastro daquela energia."

"Mas você não viu o mapa." – Kurama observou.

"Não, mas, como eu disse, procurei alguém que pudesse vê-lo." – ela fez uma pausa proposital, seu olhar parou em Hiei e quando voltou a falar sua voz era sombria – "O país do gelo ainda conserva umas meninas muito ingênuas do mundo."

Lyn percebeu que suas palavras provocaram um arrepio em todos. Os detetives se entreolharam discretamente e encararam Hiei que olhava a ladra desafiadoramente. A youkai desviou o olhar novamente para a escuridão se divertindo com os músculos que saltavam de raiva no pescoço de Hiei.

"Mas não me dei o trabalho de ir até lá, não gosto... muitas crendices e mentiras num mesmo lugar não me agradam. Nessa busca, preferi o calor ao gelo e achei um aliado puro no Deserto Vermelho. Foi ele quem me disse o caminho, eu só fiz decorá-lo." – ela deu um meio sorriso lembrando-se da visita que fizera a um antigo – e agora ela até cogitava usar a palavra – amigo.

Ela olhou novamente para Hiei e ele parecia menos furioso. Porque se divertia tanto em irritá-lo?

"E tudo isso pra quê?" – Kurama perguntou com os olhos fixos nela que fingiu uma cara de desentendimento – "Ou você estava só se divertindo?"

"Eu tinha uma dívida e achei que esse Tesouro fosse valioso suficiente para pagá-la."

"Quanto você devia!" – Yusuke perguntou, surpreso.

"Você tinha uma dívida? O que vai acontecer agora que você não vai poder pagá-la?" – Kurama continuou, quase certo de que a dívida que Lyn precisava pagar era com Hiei.

Lyn balançou os ombros, indiferente: "Acho que terei que roubá-lo de vocês novamente, quando menos esperarem."

"O quê!" – Kuwabara levantou-se com um salto, encarando a ladra bem de perto – "Como você pode dizer uma coisa dessas? Nós estamos confiando em você!"

"Você deveria estar me agradecendo por ter roubado o Tesouro, se não, ele estaria nas mãos de um assassino!" – Lyn falou tranqüilamente, dando as costas ao grupo.

"Aonde você vai?" – Yusuke perguntou.

"Não se preocupe, eu não vou fugir." – respondeu ela já escondida pela noite – "Nem vou roubar vocês."

Hiei olhou a escuridão por onde Lyn havia sumido – o que a atormenta tanto? – pensou ele, sem querer assumir que a curiosidade se tornava preocupação. Ela perdera a pose majestosa, ás vezes parecia uma menina fraca. Com relação a Lyn, a única coisa que a mantinha em pé era a certeza de que se vingaria com fúria e sangue.

"Hiei, você não acha que tá na hora de contar quem é essa garota?" – Kuwabara perguntou depois de olhar diversas vezes para os lados.

"Não." – o koorime respondeu seco.

"A gente já percebeu que vocês têm um passado, Hiei. Não tem porque não contar, aqui você está entre amigos. Conta logo, cara! Porque vocês são tão parecidos?" – falou Yusuke com aquele tom insuportavelmente persuasivo que o humano achava que tinha.

"É, baixinho, conta logo! Eu aposto que ela é sua namorada." – Kuwabara provocou.

"Cale a boca!" – Hiei reclamou.

"Hiei tem uma namoradinha! Ele tem uma namoradinha!" – Kuwabara continuava cantarolando a frase, sabia que sua voz incomodava o demônio-do-fogo ao extremo e, logo, ele entregaria a verdade em troca de um pouco de paz.

"Nós fomos criados juntos." – ele disse dando-se por vencido achando que aquilo bastaria para saciar a curiosidade dos humanos.

"Não sabia que ladrões criavam meninas." – comentou Kurama.

"Ela era uma escrava." – Hiei respondeu balançando os ombros como se não se importasse.

"Vocês já lutaram um contra o outro?" – Yusuke perguntou.

"O que o Yusuke tá querendo perguntar é se você já perdeu para Lyn." – Kuwabara riu – "Afinal, ela nunca perdeu um desafio."

"Lyn já perdeu um desafio." – revelou, incomodado pelo fato de Lyn ser aparentemente imbatível ali e não ele – "Na verdade, ela lutou duas vezes. O primeiro duelo foi interrompido e seu castigo foi ter que permanecer no bando sob o título de perdedora. Só um ano depois ela venceu um novo duelo e se tornou líder."

"Como uma luta pode ter sido interrompida?" – Kurama perguntou aproveitando a distração de Hiei em contar coisas do seu passado – "Você assistiu a tudo?"

"Assistiu tanto que se intrometeu onde não devia." – a voz de Lyn surgiu com a altivez usual. Seu rosto foi iluminado pelo fogo e era claro que ela estava furiosa – "Vamos lá Hiei, agora que você começou conte logo tudo, mas deixe eu me sentar bem aqui para ouvir e corrigir um ou outro detalhe que você tenha esquecido!"

Um silêncio caiu sobre eles, Kurama, Yusuke e Kuwabara desviaram os olhares, tremendamente envergonhados. Só Hiei continuava olhando-a e podia ver que ela estava mais magoada do que brava.

"É a verdade, Lyn!" – disse ele, fingindo não dar importância ao assunto.

"Quem você pensa que é? Primeiro, me dando sermões sobre a luta com Gunn e agora, comentando a minha vida. Então, conte que foi você quem interrompeu a luta me rotulando como fraca e incapaz! Você contaria isso a eles? Eu acho que a sua história daria tanto ou mais do que falar que a minha, mas pra que se expor, não é mesmo?"

As mãos de Lyn fecharam de raiva contendo um ataque furioso.

"Pois eu digo que o poderoso Hiei, Mestre do Jagan, esqueceu-se dos próprios princípios." – e ela falou o nome de Hiei com tanta tristeza e ódio que não ele teve coragem de responder e seu silêncio era a prova de que assumia a culpa. Pôs as mãos nos bolsos, virou as costas e sumiu na escuridão.


Quando o dia clareou os quatro já estavam de pé. O vento diminuíra e a luz ia varrendo o chão rochoso, esquentando os corpos dormentes. Kuwabara roncara a noite inteira, Yusuke cochilou em algum momento, Kurama com seu jeito sutil de observador fechou os olhos, mas não dormiu, se concentrando no mundo ao redor e Lyn não desviou os olhos do fogo, perdida em pensamentos do passado.

Hiei não aparecera.

"Onde está Hiei?" – Kuwabara perguntou olhando ao redor – "Hiei!"

"Vou te dizer, hein, Lyn! Esse seu amigo é muito esquisitinho!" – Yusuke falou girando o indicador perto da cabeça – "Doido, doido..."

Lyn fingiu que não ouviu o comentário de Yusuke e junto com Kurama varreu a planície com o olhar. Hiei não tinha onde se esconder, da onde estavam até a parede rochosa há alguns metros era tudo um enorme descampado já iluminado pelo dia.

"Ali! Está vendo, Lyn?" – Kurama apontou para um ponto escuro perto da montanha onde uma nuvem de poeira acabara surgir.

"O que ele está fazendo lá?" – Lyn resmungou mal-humorada.

Hiei já tinha perdido a paciência há alguns minutos. Na sua frente, um youkai de pele esverdeada e corpo esguio sorria insanamente enquanto fazia surgir do chão pedregoso tentáculos verdes. O koorime já havia tentado se aproximar o suficiente para golpear o inimigo, mas os tentáculos surgiam no ponto exato em que seus pés tocavam o chão e cresciam na sua direção. Hiei já havia fatiado dezenas deles, mas quanto mais ele os cortava mais tentáculos surgiam.

"Eu já disse que este lugar é do Guardião Kayo!" – o youkai falava enquanto os tentáculos pulavam da terra e avançavam na direção de Hiei.

"Kayo está morto, seu imbecil! Eu tenho a chave agora e ordeno que retire a barreira da entrada!" – Hiei replicava.

"Nunca!" – um tentáculo agarrou o pé do koorime e o arrastou para o chão, outros se aproximaram como cobras e se enrolaram em seus braços e pernas.

"Agora você está perdido. Uma vez que os tentáculos pegam seu inimigo eles não soltam mais!" – o youkai riu – "Eles o levarão para debaixo da terra que será o seu túmulo!"

"Maldito!" – Hiei cortou um tentáculo que segurava seu punho, mas a criatura continuava enrolada no seu corpo e a ponta decepada crescia de volta para a terra.

"Eles não soltarão!" - o youkai riu e, no meio da gargalhada se engasgou emitindo um ruído gutural nojento, seus olhos se arregalaram e um risco vermelho surgiu ao longo do pescoço. Por um momento não emitiu mais nenhum som, os tentáculos se desgrudaram de Hiei caindo no chão se retorcendo. Um segundo depois a cabeça do youkai-lagarto tombou para frente, jorrando um sangue gosmento e um segundo depois seu corpo também caiu. Kurama estalou o chicote apenas uma vez, algumas gotas de sangue espirram na sua roupa e ele olhou Hiei com tranqüilos olhos cor de esmeralda.

"Mas o que está acontecendo aqui?" – o koorime perguntou visivelmente revoltado com a interrupção - "Quem disse que você pode chegar e se intrometer na luta dos outros, Kurama?"

"Você não é o mais indicado para falar disso, não é Hiei?" – o ruivo respondeu com um sorriso vitorioso – "Porque não esperou por nós?"

"Estava ficando impaciente." – Hiei resmungou, desgrudando os tentáculos que restavam agarrados aos seus tornozelos.

"A entrada é aqui." – Hiei apontou para o paredão rochoso e o grupo olhou para onde o demônio apontava, mas nem mesmo os olhos de Kurama encontraram mais do que rocha lisa e íngreme ali.

"Não tem nada ali, Hiei." – Lyn reclamou.

"É uma entrada escondida, dependendo do ângulo em que você olha a luz reflete e indica o local certo. Eu pude ver de longe, mas esse maldito demônio..." – ele chutou o corpo do youkai-lagarto no chão – "... me tirou do caminho certo."

Kurama, Yusuke e Kuwabara estavam de olhos fixos na pedra movendo as cabeças lentamente procurando o ângulo certo. De repente os olhos de Kurama se estreitaram e ele abriu um curto sorriso de satisfação. Sua cabeça pendia levemente para a direita e, na pedra, ele viu aparecer um brilho amarelo como se um enorme espelho refletisse a luz do dia direto nos seus olhos.

"Agora eu consigo ver." – afirmou ele – "É bem..." – ele caminhou lentamente ainda com a cabeça tombada, seus pés não faziam o menor barulho, como se qualquer intromissão pudesse fazer o fenômeno desaparecer para sempre. O grupo o acompanhou em silêncio sem ver nada, caminhando para cada vez mais perto da parede de pedras. Kurama pôs a mão na rocha, não era diferente do resto da montanha – "Aqui. Kayo deve ter feito uma magia para que a porta sumisse no meio das pedras, mas que, de alguma forma, ele pudesse achá-la quando viesse até aqui."

"E como nós entramos? Batendo?" – Kuwabara perguntou, colando o ouvido na rocha.

"Não, Kuwabara, quebrando." – concluiu Yusuke, apontando o indicador pronto para explodir tudo.

"Ah, não! Deixa isso comigo!" – Kuwabara protestou - "Eu posso pôr essa porta abaixo fácil, fácil. LEIKEN!" – a espada dourada surgiu na mão do humano que desceu o braço com toda a força sobre a rocha. A ponta da espada arranhou a pedra numa linha vertical que brilhou dourada por alguns segundos antes de tudo se despedaçar em milhares de cacos finos como vidros. Uma entrada estreita se abriu na frente dos quatro. Os pedaços da porta caíam no chão e se estilhaçavam produzindo um ruído parecido com pequenos sinos que ecoavam graças ao vazio da caverna adiante.

"Eu fico imaginando se é possível fazer isso com mais estardalhaço." – Hiei comentou ácido.

"O que você queria? Que eu abrisse uma portinha do seu tamanho?" – Kuwabara rebateu gritando com o berro ecoando pela caverna.

"Parem com isso!" – Kurama falou passando pelos dois com Yusuke e Lyn – "Kayo deve ter posto guardas aqui, precisamos ficar atentos, com certeza existem mais demônios pelo caminho."

"Ótimo! Assim você não fica com toda a diversão." – disse Yusuke.