Ao contrário da fenda de entrada, o interior da caverna era extremamente amplo, o teto era tão alto que não se enxergava aonde começava. O vento não chegava ali e o ar era abafado e úmido. Ecos de gotas pingando faziam o lugar parecer ainda maior e estalactites ameaçavam suas cabeças como estacas gigantes. Seguiram o corredor de pedras se afastando cada vez mais da pouca luz que entrava pela porta. Aos poucos o corredor se tornou mais amplo até se abrir totalmente em um salão redondo muito maior.

A luz da entrada só servia agora para demarcar as silhuetas mais escuras de algumas pedras no caminho e das paredes lisas. O teto era incrivelmente mais alto que no corredor anterior e as estalactites apontavam para baixo presas em uma base escondida na mais absoluta escuridão.

"Temos que continuar apesar do escuro." – avisou Lyn, levando a mão imediatamente dentro do bolso e sentindo a pedra.

Andaram por alguns minutos engolidos pelo breu quando uma lufada de vento os envolveu.

"Tem mais alguém aqui!" – Kuwabara gritou, evocando sua espada de energia. O clarão iluminou um pouco mais o ambiente e puderam ver que algo mais escuro que as sombras voava rapidamente sobre suas cabeças. O grupo assumiu posição de combate, mas era quase impossível seguir o vulto que girava no ar.

"Algo está... voando a nossa volta." – Yusuke concluiu, tentando definir um alvo com o indicador – "Eu não tenho um alvo para acertar, preciso de mais luz!"

Lyn percebeu que não poderia continuar evitando usar suas chamas já que eram as únicas coisas capazes de iluminar todo aquele salão. Evocou o fogo que ainda tinha em sua alma e sua aura brilhou revelando as paredes lisas do salão e no alto, um ser alado planava com enormes asas negras abertas.

"É um demônio-morcego." – Kurama falou enquanto o demônio mergulhava na direção do grupo com rapidez incrível.

Yusuke mirou, mas antes que pudesse disparar o Leigan precisou se jogar para o lado, desviando do vôo rasante que o demônio-morcego fazia. O youkai soltou um guincho estridente ao perceber que não acertara ninguém e voltou a alçar vôo para o escuro do teto. Lyn arremessou duas bolas de fogo para cima tentando iluminar mais o salão, mas elas se apagavam rápido demais.

"Eu sou Vráin, um dos três guardiões deste Templo. Estes são os domínios de Kayo, o Guardião dos Tesouros, apenas ele pode entrar neste salão." - o youkai disse com uma voz esganiçada que arranhava os ouvidos.

"Kayo está morto!" – Yusuke gritou enquanto o morcego se afastava do chão – "Nós temos a chave agora, temos direito a um pedido!"

"Ninguém pode chegar ao altar a não ser Mestre Kayo. Vocês devem morrer aqui. ASAS DA ESCURIDÃO!"

Rajadas de vento desceram da escuridão envolvendo cada um e jogando-os contra as paredes. Lyn perdeu a concentração momentaneamente e sua aura se apagou. Vrain ria insistentemente com uma gargalhada estridente e ás vezes voava muito baixo batendo as asas logo acima das cabeças do grupo, se divertindo em deixá-los perdidos e tudo que os detetives podiam ouvir eram suas respirações alteradas, o farfalhar das asas negras do youkai e o ruído do chicote de rosas de Kurama estalando a esmo no escuro.

"Esse pessoal não vai entender, não?" – o humano resmungou com seu disparo riscando a caverna de azul. O golpe acertou o teto fazendo algumas estalactites caírem no chão. O youkai-morcego guinchou e o barulho pareceu um riso de satisfação.

"Está muito escuro para os seus olhos, mas está claro suficiente para os meus. Vocês são como ratos esperando a morte. Um por um vão morrer sem nem mesmo me ver chegar."

Lyn se concentrou novamente e sua energia se espalhou pelo salão, que pareceu estar pegando fogo com a luz avermelhada e todos puderam ver Yusuke apontando o indicador para o teto escuro. O tiro cruzou o ar com um zunido, mas Vrain desviou-se facilmente e, mais uma vez, a caverna tremeu com o impacto.

"ASAS DA ESCURIDÃO!" – a voz esganiçada gritou e o vendaval atirou-os contra as paredes novamente.

Desta vez Lyn não conseguiu se levantar. Um cansaço repentino se apossou de seu corpo e, apesar de querer se levantar, suas pernas estavam dormentes demais para agüentá-la. Sentia as chamas se apagarem lentamente. Kuwabara se aproximou tentando ajudá-la, mas a sombra do morcego mergulhou entre os dois e o jogou para trás.

"Urameshi, acabe logo com esse bicho!" – Kuwabara gritou sentado no chão desnorteado.

Mais um disparo de Yusuke na escuridão seguido de um riso insano. As paredes tremeram, rugindo como trovões. Estalactites caíram e uma delas bateu no chão, rachou e uma das metades tombou sobre Kuwabara, imprensando-o.

"Chega, Urameshi! Deixa pra lá, me ajude aqui!" – Kuwabra gritou de volta tentando se livrar do peso sobre o peito.

Kurama e Hiei estavam lado a lado, os olhos vidrados na escuridão do teto onde o morcego se escondia.

"Ele vai descer a qualquer momento, Hiei." – Kurama murmurou, tenso.

"Ótimo! Mantenha-o voando baixo e deixe o resto comigo." - Hiei respondeu rangendo os dentes.

Kurama se arrepiou ao ouvir o farfalhar das asas negras que, provavelmente, se abriam prontas para mais um mergulho sobre eles. Dessa vez Vrain não guinchou, desceu silenciosamente, apenas um zunido baixo anunciava seu ataque. Hiei trouxe a lâmina da katana bem perto do rosto quase sentido o frio do metal e flexionou os joelhos, pronto para saltar.

O vento recomeçou. Kurama segurou o punho do chicote com força e forçou os olhos na escuridão. A silhueta surgiu de repente, com as asas farfalhando como se tivesse trapos amarrados nela.

O chicote estalou.

O youkai desceu há poucos metros da cabeça de Kurama, bateu as asas e no mesmo instante, a ventania dobrou de intensidade. Kurama viu o exato momento em que a silhueta negra abriu as asas que descreveram um arco para cima, preparando a subida para o esconderijo no teto. A curva era abrupta e as asas estavam prontas para bater novamente e impulsionar o corpo esguio do demônio quando foram interrompidas por um puxão que transformou toda a movimentação em um debater de asas desajeitado.

O morcego guinchou e o grito era como se arranhassem uma espada contra uma pedra. Kurama puxava o chicote, que havia se enrolado nos pés do inimigo, para baixo, como se tentasse trazer um gigante para o chão. Hiei girou a espada na mão esperando um sinal para fazer sua parte. O kitsune enrolou o chicote na mão com firmeza e os espinhos cortaram sua pele. A cara de menino estava transformada pela dor e determinação. Ele puxou o chicote com toda a força, trazendo o youkai para perto do chão.

"Agora, Hiei!" – gritou, deixando que dor saísse junto com a ordem.

O demônio de fogo obedeceu prontamente e um salto bastou para alcançar as costas do youkai. O monstro sacudiu-se como se tentasse se livrar de um mosquito irritante, mas o koorime continuava em suas costas com a katana apontada para baixo, tentando cravá-la no crânio do adversário.

As asas batiam desesperadamente, testando a força de Kurama e os espinhos cravavam-se cada vez mais em sua mão até que ele não conseguiu mais segurar o chicote e o soltou. A libertação repentina deu um novo impulso a Vrain e e o bater de suas asas fez com que Hiei fosse arremessado contra a parede e despencasse no chão, desacordado.

Tudo estava escuro novamente. Vrain ria e a risada ecoava nas paredes que tremiam. Lyn olhou para os lados distinguindo apenas as silhuetas do grupo. Aquelas risadas a incomodavam profundamente... eram tão seguras de si, tão confiantes naquela escuridão.

"Escuridão..." - ela murmurou com uma idéia cruzando a sua cabeça.

Era suicídio ou quase isso, mas por algum motivo que ela não entendia continuou com sua idéia. Concentrou-se nas chamas que lhe restavam e as acendeu o mais forte possível. Elas cresceram pelo salão inteiro, pegando a todos de surpresa. Os olhos azuis faiscavam fartos daquela risada.

"Ainda é muito pouco." - a voz esganiçada falou, escondida em algum lugar do teto que ainda permanecia no escuro.

Talvez fosse mesmo suicídio, mas ela sentia-se estranhamente satisfeita e triste.

As chamas dobraram de intensidade, lamberam as paredes alcançando a base das estalactites e se espalhando pelo teto, procurando uma saída. As paredes ficaram quentes e tremeram mais e o grito de Vrain fez despencar uma ou duas estacas de pedra.

Ele saiu do esconderijo voando sem rumo. A luz transpassava pela pele fina da asa onde estavam amarrados tiras de tecido negro, o corpo comprido e magro era extremamente pálido, com pernas e braços e mãos com dedos muito finos que, naquele momento, protegiam os olhos da luz. O morcego bateu nas paredes algumas vezes, ainda zonzo por causa da luz repentina e depois pousou.

"Eu acho que agora está claro o suficiente, você não acha?" – perguntou Lyn.

Kurama, Yusuke e Kuwabara fecharam os punhos, prontos para um ataque. Apenas Lyn continuava parada, sentindo suas chamas se esvaírem com o esforço que fazia dando lugar para o veneno que a acompanhava desde o roubo. O demônio-morcego tirou as mãos dos olhos machucados pela luz e deles corria um sangue vermelho que contrastava profundamente com sua pele branca.

"A luz não vai me matar." – Vrain falou.

"Ah, mas o fogo vai." – Lyn completou.

As asas do youkai abriram repentinamente como um anjo negro e elas se erguiam muito acima da cabeça dele e eram mais largas do que dois homens de braços abertos. O vento que se iniciava fez balançar os farrapos negros amarrados nelas.

"ASAS DA ESCURIDÃO!"

A rajada de vento se transformou em um poderoso tornado dentro daquele local fechado. A ladra não se moveu apesar do vento que a jogava para trás.

"ESPIRAL DE FOGO!" – ordenou ela com a voz impassível e as chamas ao redor obedeceram ao comando, enrolando-se numa enorme espiral que avançou sobre Vrain. Uma barreira de vento impediu que o fogo continuasse seu caminho e, enquanto ela forçava as chamas contra o vento, seu corpo era empurrado para trás.

"Mais força." – continuou.

A espiral cresceu, forçou a barreira de vento e, quando atravessou-a, engoliu Vrain numa bola de fogo e luz. Ele não gritou nem riu, sua voz esganiçada estava perdida, procurando um caminho para fora do medo. O corpo magro caiu sem vida, o rosto marcado pelo sangue que escorrera dos olhos. As chamas diminuíram imediatamente e sumiram com rapidez, recolhendo-se de volta para o corpo de Lyn.

Escuro novamente.

Lyn sentiu que seus joelhos haviam batido em algo duro, logo depois seu rosto e suas mãos. Era frio. Frio demais. Estava cansada novamente, sentia a respiração como um fio e os olhos pesados se recusavam a abrir. Um gosto amargo na boca seca. Uma dor lancinante que repuxava os músculos e doía a cabeça. Uma tristeza tão profunda que sufocava.

"Lyn?" – alguém a chamava, mas não queria mais responder a chamado algum, procurava um descanso de tanta dor.

Yusuke pegou Lyn nos braços enquanto Kurama a olhava de perto ainda com a mão sangrando.

"A força dela parece tão tênue..." - o kitsune falou.

"O que você quer dizer com isso?" - Hiei perguntou se aproximando. Ninguém comentou, mas ele estava preocupado.

"Ela está..." – Kurama fez um esforço para que a voz saísse – "...morrendo. Eu... eu não entendo porquê..." – a energia de Lyn não era mais que um fio entre eles. A força que havia surpreendido a todos no início não era mais que uma impressão antiga, quase como névoa que some no ar.

No escuro dos seus olhos Lyn não ouvia mais que ecos distantes que pareciam vir mais de dentro dela do que dos arredores. Ouvia Hiei e ouvia Kurama, sentia as mãos de Yusuke e a respiração de Kuwabara, sentia suas energias voltadas para ela, mas não conseguia lutar mais.

Frio demais. Onde estavam as chamas que deveriam esquentá-la?

Silêncio. O sangue não conseguia mais lutar contra o veneno que tomava conta de seu corpo, dominando-o, apagando suas chamas e levando com ele sua força e sua vida. Talvez aquilo fosse um descanso merecido para uma vida como a sua.

"Hiei..." – ela chamou. Ou pensou chamar. E o demônio de fogo sentiu um arrepio correr seu corpo.

Hiei ficou paralisado por um segundo sentindo seu peito apertar e uma vertigem dominar seus sentidos. A ladra deixava sua mente ser levada por um verdadeiro nevoeiro no qual ela não tinha forças para mais nada a não ser sentir o cheiro de Hiei que se aproximava. Pensou que não queria deixá-lo.

Fraca como estava, Lyn não agüentaria sair daquela caverna, morreria naquele lugar patético por um motivo que ele desconhecia. Queria gritar com ela, sacudi-la e trazê-la de volta para dizer-lhe que ela havia mentido e que tudo estava errado.

Os braços de Yusuke estavam trêmulos e o humano ajoelhou-se, apoiando o corpo imóvel de Lyn no chão. Kurama tocou seu pulso e seus olhos se fecharam pesadamente. Uma lágrima correu o rosto de Yusuke e logo seu choro pingava no chão, ecoando insistentemente. Cada gota, um baque no peito e na mente do koorime. Hiei piscou sem querer acreditar, não havia mais nenhum risco da energia de Lyn ao seu redor. Simplesmente a escuridão e as silhuetas fantasmagóricas dos seus amigos. Olhou para o corpo de Lyn, mas no escuro não via seu rosto, lembrava-se apenas dos olhos azuis que acompanhavam-no desde pequeno e era só por causa dela que se lembrava de sua infância. Mas as memórias terminavam ali, não havia mais quem as trouxesse de volta.

As chamas dentro dela haviam se apagado.

Yusuke e Kuwabara choravam e Kurama se mantinha ajoelhado de cabeça baixa. O que restava para Hiei agora? Caçaria a Sombra, vingaria Lyn numa luta sangrenta que seus músculos já antecipavam. Desceria a espada em qualquer um e, mesmo assim, ele tinha certeza, que nem todas as gargantas do mundo seriam suficientes para aplacar a sua tristeza. Ajoelhou-se ao lado de Lyn e pôs a mão dentro do bolso onde estava o Tesouro e guardou-o no seu bolso enquanto repetia para si mesmo que a vingaria.

"Vamos continuar." - Hiei falou tentando esconder a tristeza na voz, mas ele tinha certeza que tudo nele o traía naquele momento - "Vamos terminar isso tudo e sair logo daqui."

Nunca, na vida de Hiei, ele havia sentido a morte tão presente e tão devastadora daquele jeito, estava ali, dentro de Lyn, e ele não podia salvá-la dessa vez.